Open-access Incidência e tendência temporal de acidentes de trabalho na indústria têxtil e de confecção: análise de Santa Catarina, Brasil, entre 2008 e 2017

RESUMO:

Objetivo:   Estimar a incidência e a tendência temporal dos acidentes de trabalho típicos na indústria têxtil e de confecção de Santa Catarina no período de 2008 a 2017.

Métodos:   Trata-se de um estudo epidemiológico retrospectivo baseado nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). A tendência temporal foi analisada por meio do cálculo da mudança média anual e da regressão logística.

Resultados:   Houve tendência de queda na incidência de acidentes de trabalho em Santa Catarina no período estudado (8,8%). Observaram-se as maiores taxas de acidentes no ano de 2008 entre homens (12,6%), trabalhadores com faixa de idade entre 40 e 49 anos (6,7%), negros (7,4%), pessoas com menos de 12 anos de estudo (5,0%), com remuneração média de 3 a 7 salários mínimos (7,0%), com até quatro anos de tempo de emprego (6,9%), trabalhadores da fabricação de produtos têxteis (10,3%), estabelecimentos de médio porte (100 a 499 trabalhadores) (7,9%) e nas regiões da Grande Florianópolis (7,0%) e Vale do Itajaí (6,8%).

Conclusões:   O risco de acidente de trabalho típico caiu significativamente ao longo do período. Contudo futuros estudos são necessários para analisar novas relações que possam apontar outros fatores associados. Espera-se que este estudo possa contribuir para subsidiar ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde dos trabalhadores desse setor produtivo.

Palavras-chave: Acidentes de trabalho; Indústria têxtil; Epidemiologia; Saúde do trabalhador; Estudos de séries temporais

ABSTRACT:

Objective:   To estimate the incidence and time trend of typical work accidents in the textile and clothing industry in Santa Catarina from 2008 to 2017.

Methods:   This was a retrospective epidemiological study based on data from the Annual Social Information Report (RAIS). The time trend was analyzed by calculating the average annual change and logistic regression.

Results:   There was a downward trend in the incidence of occupational accidents in Santa Catarina during the period studied (8.8%). The highest incidence occurred in 2008 among men (12.6%), workers aged between 40 and 49 years (6.7%), black people (7.4%), people with less than 12 years of education (5.0%), with an average income of 3 to 7 minimum wages (7.0%), with up to 4 years of employment (6.9%), workers in the manufacture of textile products (10, 3%), medium-sized establishments (that is, between 100 and 499 workers; 7.9%) and in the regions of Greater Florianópolis (7.0%) and Vale do Itajaí (6.8%).

Conclusions:   The risk for typical occupational accidents dropped significantly over the period studied. However, future studies are needed to analyze new relationships that may point to other associated factors. It is hoped that this study can contribute to support measures for the prevention, promotion, protection and rehabilitation of the health of workers in this production sector.

Keywords: Accidents; occupational. Textile industry. Epidemiology. Occupational health. Time series studies

INTRODUÇÃO

O acidente de trabalho é um fenômeno complexo e multicausal determinado pelas características da organização do trabalho1. Para fins notificatórios, acidente de trabalho é um evento súbito ocorrido no exercício de atividade laboral e que acarreta dano à saúde, potencial ou imediato, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que causa, direta ou indiretamente, a morte, a perda ou a redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho2. Além dos custos previdenciários e de dias perdidos de trabalho3, os acidentes de trabalho geram gastos aos serviços de saúde e prejuízos sociais aos trabalhadores4.

A indústria têxtil e de confecção configura um importante setor a ser investigado em estudos científicos sobre o tema no Brasil, uma vez que o país ocupa o quinto lugar no ranking de maior produtor têxtil do mundo e o quarto lugar como maior produtor de vestuário do mundo5. No entanto existem poucos estudos epidemiológicos sobre acidentes de trabalho nesse setor6,7,8,9,10,11,12.

O estado de Santa Catarina é o segundo maior polo têxtil do país, atrás apenas de São Paulo. Em 2017, Santa Catarina possuía 1.832 empresas têxteis, 7.411 empresas de confecção e empregava 162.845 pessoas. Somente naquele ano, o setor gerou o segundo maior faturamento da cadeia têxtil e de confecção do país (19,7%)13.

O único estudo brasileiro sobre o perfil epidemiológico dos trabalhadores têxteis é um relatório de pesquisa desenvolvido pelo Serviço Social da Indústria (SESI) com dados de 2004. Observou-se que a taxa de incidência de acidente de trabalho no setor têxtil brasileiro era de 24,0/1.000 trabalhadores, enquanto a taxa no estado de Santa Catarina foi de 32,1/1.000 trabalhadores14. Naquele mesmo ano, a taxa de incidência de acidente de trabalho entre os segurados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foi de 16,4/1.000 trabalhadores15. Ou seja, em 2004, os trabalhadores têxteis brasileiros sofreram 46% mais acidentes de trabalho em relação aos trabalhadores gerais segurados pelo INSS.

Uma importante barreira para o desenvolvimento de pesquisas epidemiológicas em setores econômicos específicos, como a indústria têxtil, refere-se à dificuldade no acesso às bases de dados oficiais sobre os acidentes de trabalho. Os microdados do INSS não são abertos, e o acesso é dificultado por trâmites burocráticos. Os sistemas de informação em saúde ainda apresentam limitações quanto à qualidade e à cobertura dos dados sobre acidentes de trabalho. De modo geral, os campos sobre atividade econômica têm problemas de completude, sendo difícil fazer inferências sobre acidentalidade nos diferentes setores produtivos16.

A base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) tem informações sobre acidente de trabalho de todos os trabalhadores formais do país, consistindo numa fonte de dados pouco explorada pelo campo da saúde, mas que apresenta potencial para produzir informações importantes sobre o perfil epidemiológico em diferentes setores produtivos. Nessa perspectiva, o presente estudo pretende preencher lacunas da literatura ao desvelar informações sobre acidentalidade envolvendo todos os trabalhadores formais do setor têxtil catarinense, o que poderá contribuir para um aprofundamento das discussões em saúde do trabalhador.

Este estudo objetivou estimar a incidência e a tendência temporal dos acidentes de trabalho típicos na indústria têxtil e de confecção de Santa Catarina no período de 2008 a 2017.

MÉTODOS

Realizou-se um estudo epidemiológico retrospectivo que estimou incidência e tendência dos acidentes de trabalho típicos na indústria têxtil e de confecção de Santa Catarina de 2008 a 2017. Analisaram-se os dados de acidentes de trabalho entre todos os trabalhadores formais do setor têxtil do estado.

A pesquisa utilizou dados secundários provenientes da RAIS, que reúne informações sociais e econômicas dos vínculos empregatícios e dos contratos celetistas, regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), portanto, cadastrados no INSS. As informações declaradas pelas empresas, públicas e privadas, são enviadas anualmente ao Ministério da Economia, que processa e homologa as informações declaradas, analisa os dados, elabora indicadores relacionados ao trabalho e disponibiliza as informações para a sociedade. Com base na RAIS, é possível obter informações tanto dos trabalhadores (ex. sexo, idade, remuneração média, causas do afastamento) quanto das empresas (ex. tamanho do estabelecimento, Classificação Nacional de Atividades Econômicas - CNAE)17.

Os dados da RAIS utilizados nesta pesquisa estavam disponíveis, de forma aberta, por meio do Programa de Disseminação das Estatísticas do Trabalho (disponível em http://pdet.mte.gov.br/microdados-rais-e-caged). Os dados foram coletados em março de 2019, quando foi possível acessar os bancos até 2017. Como na base de dados não havia informações sobre a variável “causas de afastamento” para 2010 e 2011, esses períodos foram excluídos da análise.

A variável dependente foi a ocorrência do primeiro afastamento por acidente de trabalho típico em cada ano analisado. As variáveis independentes foram: sexo (masculino, feminino); faixa etária (15-19; 20-29; 30-39; 40-49; 50-59; 60 anos ou mais); raça/cor (branca, negra [pretos + pardos], indígena, amarela e não identificada); escolaridade (ensino superior incompleto a superior completo, ensino médio completo, ensino fundamental completo a médio incompleto, sem instrução a fundamental incompleto); remuneração média - faixa média de remuneração do ano corrente até 31 de dezembro, em intervalos de salários mínimos (SM) - (até 1,5 SM, 1,51 a 3,00 SM, 3,01 a 7,00 SM, mais de 7,00 SM); tempo de emprego no mesmo vínculo empregatício (até 4 anos, 4,1 a 10 anos, 10,1 a 20 anos, mais de 20 anos); setor têxtil (CNAE 13 - fabricação de produtos têxteis, CNAE 14 - confecção de artigos do vestuário e acessórios); tamanho do estabelecimento conforme classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (microempresa: 0 a 19 trabalhadores, pequena empresa: 20 a 99 trabalhadores, empresa de médio porte: 100 a 499 trabalhadores, empresa de grande porte: 500 ou mais trabalhadores); regiões de saúde de Santa Catarina (Grande Oeste, Meio Oeste e Serra Catarinense, Sul, Vale do Itajaí, Planalto Norte e Nordeste, e Grande Florianópolis).

Realizou-se o teste χ2 para verificar a associação entre o desfecho e as variáveis, considerando todo o período estudado. Para o cálculo da incidência, consideraram-se os trabalhadores que possuíam vínculo ativo com algum estabelecimento no dia 31 de dezembro de cada ano, metodologia adotada nos cálculos oficiais da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia.

Realizou-se regressão logística para estimar a ocorrência ou não do acidente de trabalho típico e sua tendência temporal no período estudado. Esse é o método padrão para desfechos dicotômicos. Os métodos para análise com base na correlação de Pearson, tais como análise de séries temporais, que utilizam autocorrelação, necessitam de um número maior de pontos no tempo para obter resultados robustos18. A mudança média na taxa de incidência no período foi calculada pela seguinte fórmula (Equação 1):

( ( ( I c . 2017 - I c . 2008 ) / I c . 2008 ) / 10 ) * 100 (1)

Em que:

  • Ic =  incidência.

Todos os dados foram consolidados e analisados no programa estatístico Stata/SE 13.1 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos). Esta pesquisa foi realizada com dados secundários de um banco de domínio público e anonimizado, não sendo necessário submeter o projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

Os resultados desta pesquisa podem ser observados na Tabela 1. Investigaram-se 1.555.414 vínculos trabalhistas, predominantemente de mulheres (66,4%) e com faixa de idade entre 20 e 29 anos (35,8%). Houve predomínio de trabalhadores brancos (77,2%) e uma pequena quantidade de negros (4,1%). Contudo chama atenção o quantitativo de trabalhadores que não tiveram sua raça/cor identificada (17,6%).

Tabela 1.
Características sociodemográficas e ocupacionais dos trabalhadores e dos estabelecimentos da indústria têxtil e de confecção, incidência cumulativa anual (%) e tendência temporal de acidente de trabalho típico, Santa Catarina, 2008-2017.

Quanto à escolaridade, 40,8% dos trabalhadores têxteis tinham ensino fundamental completo a médio incompleto, enquanto 35,8% tinham ensino médio completo. A maioria apresentava remuneração média de até 3,0 salários mínimos (91,6%) e menos de 10 anos de tempo de emprego (80,2%). Apenas 18,8% dos vínculos empregatícios advinham de empresas de grande porte. Cerca de 70,0% atuavam na confecção de artigos do vestuário e acessórios. Entre as regiões do estado, o Vale do Itajaí empregava mais da metade de todos os trabalhadores têxteis (53,4%).

Entre 2008 e 2017, houve tendência de queda de 22% ao ano, em média, na incidência de acidente de trabalho típico em Santa Catarina (OR = 0,78, IC95% 0,77 - 0,78). Nota-se queda nas taxas em todas as regiões de saúde, variando, em média, no período, de -14,0 a -15,2%. As maiores incidências foram observadas em 2008 na Grande Florianópolis (7,0%), Foz do Itajaí (6,8%) e Vale do Itajaí (6,8%). Os intervalos de confiança das taxas podem ser consultados no Material Suplementar.

Com relação ao sexo, em 2008, os homens afastaram-se 3,7 vezes mais do que as mulheres por acidente de trabalho típico. Enquanto o risco entre os homens era de 12,6%, para as mulheres foi de 3,4%. Notou-se redução na incidência anual média no período tanto para os homens (-9,3%) quanto para as mulheres (-8,2%). Da mesma forma, a razão de taxas entre homens e mulheres diminuiu 69% ao longo do período, passando de 3,7, em 2008, para 1,4, em 2017.

Em 2008, observou-se a maior taxa de incidência de acidentes entre trabalhadores com 40 a 49 anos (6,7%), embora se tenha constatado queda anual no risco de acidente de trabalho em todas as faixas etárias. Os negros destacaram-se com a maior taxa em 2008 (7,4%), enquanto, no fim do período, a incidência ficou distribuída de forma semelhante entre todas as categorias de raça/cor.

Quanto à escolaridade, as maiores incidências ocorreram em 2008 entre trabalhadores que não tinham ensino superior (5,9%). Embora as taxas tenham caído ao longo do período, em 2017 os trabalhadores sem instrução ou com fundamental incompleto tiveram 344% maior risco de acidentes em relação àqueles com nível superior.

Quanto à remuneração, a maior incidência de acidente de trabalho típico ocorreu, em 2008, em trabalhadores que recebiam entre 1,51 e 7,00 salários mínimos (acima de 7,4%). Os trabalhadores com remuneração acima de 7,00 salários mínimos foram os únicos que tiveram aumento no risco de acidentes de trabalho típicos ao longo do período estudado (17,9%), passando de 1,6 para 4,4%.

Em relação ao tempo de emprego, a incidência de acidentes de trabalho típicos mais alta ocorreu em 2008 e entre trabalhadores com até 4 anos de emprego (6,9%). Mas, no fim do período, aqueles com tempo de emprego entre 10,1 e 20,0 anos apresentaram 153% maior risco de acidentes em relação aos trabalhadores com até 4 anos de tempo de emprego.

Com relação ao setor têxtil, em 2008 a taxa foi 178% maior na fabricação de produtos têxteis (10,3%) em relação à confecção de artigos do vestuário e acessórios (3,7%). É possível notar predomínio de acidentes de trabalho típicos no primeiro setor (CNAE 13) em relação ao segundo (CNAE 14) durante todo o período estudado, embora tenha ocorrido mudança média anual de -9,1 e -8,6%, respectivamente, indicando queda na incidência em ambos os setores.

O maior risco em relação ao tamanho do estabelecimento ocorreu em 2008 em empresas de médio porte (7,9%). Embora o risco de acidentes de trabalho tenha caído em todos os tipos de estabelecimentos, independentemente do porte, observa-se no fim do período que estabelecimentos com mais de 100 trabalhadores tiveram incidência de acidentes de trabalho 46% maior, no mínimo, em relação aos estabelecimentos de menor tamanho.

DISCUSSÃO

Entre os anos de 2008 e 2017, houve tendência de queda na incidência de acidentes de trabalho típicos em Santa Catarina variando, em média, -8,8% ao ano. Também foi possível observar uma queda abrupta de 81% na taxa de acidentes entre os anos de 2009 e 2012, passando de 4,2 para 0,8%. De modo geral, as maiores taxas de incidência foram encontradas entre trabalhadores homens, com menos de 12 anos de estudo (sem instrução a médio incompleto), que atuam na fabricação de produtos têxteis e em empresas de médio porte (100 a 499 trabalhadores).

No período estudado, o setor têxtil catarinense empregou mais mulheres (66,4%) em detrimento dos homens. Apesar da incidência de acidente de trabalho típico ter sido maior entre os homens em todo o período, a diferença nas taxas em relação ao sexo diminuiu ao longo dos anos.

Dois estudos realizados com trabalhadores têxteis atendidos em hospitais da Turquia por motivo de acidente de trabalho revelaram diferenças em relação ao sexo. No primeiro, 73,3% dos acidentes de trabalho ocorreram entre os homens10, enquanto, no segundo, 76,2% dos acidentes de trabalho ocorreram entre as mulheres9. Vale ressaltar que esses estudos não são de base populacional, e os resultados não podem ser diretamente comparados aos desta pesquisa.

Neste estudo, não foram analisadas as atividades realizadas por homens e mulheres, mas o fato de o maior risco de acidente de trabalho típico ter sido entre os homens sugere que eles estariam atuando mais com maquinários, enquanto as mulheres ocupariam funções mais relacionadas a atividades manuais e repetitivas, que geram mais doenças ocupacionais do que acidentes. Os homens realizam predominantemente atividades de capital intensivo, que exigem maior qualificação, dotadas de maior desenvolvimento tecnológico e com maior exigência técnica, ao passo que as mulheres são alocadas principalmente em atividades fundadas em trabalho intensivo, com menor qualificação, piores condições, pautadas na precarização e na exploração do trabalho19. Então a divisão sexual do trabalho se refletiu nas taxas de acidentalidade. Em estudos futuros, sugere-se estudar as diferenças sociais e ocupacionais entre homens e mulheres do setor têxtil para compreender melhor os aspectos que guardam relação com a ocorrência dos acidentes de trabalho entre eles.

Observou-se que a maior incidência de acidente de trabalho típico ocorreu em 2008 com trabalhadores entre 40 e 49 anos de idade (6%). Um estudo conduzido na República Democrática do Congo identificou que a maior parte dos acidentes na indústria têxtil ocorreu entre trabalhadores com até 38 anos (65%)20, enquanto outros estudos encontraram 40,6% dos acidentes entre pessoas de 30 a 39 anos10 e 44,7% dos acidentes com trabalhadores entre 14 e 24 anos9.

Nesta pesquisa, 92,9% dos trabalhadores têxteis tinham nível de escolaridade até o ensino médio. Aqueles sem instrução ou com fundamental incompleto apresentaram 4,4 vezes mais risco de acidente de trabalho em relação aos trabalhadores com nível superior (incompleto ou completo). Estudos anteriores revelaram que as maiores proporções de acidentes de trabalho na indústria têxtil ocorreram entre pessoas com nível de escolaridade até o ensino médio (89,6 e 63,5%, respectivamente)9,20.

Houve diferença na acidentalidade segundo o tempo de emprego. Embora não seja possível afirmar que o tempo de emprego seja sinônimo de experiência, é possível supor que tenha relação com o conhecimento do trabalhador acerca de processos de trabalho, estratégias operatórias e diferentes níveis de percepção acerca de mudanças inesperadas ou problemas técnicos. As diferenças nas experiências influenciam o momento de identificação da origem das falhas ou dos problemas no sistema. Desse modo, a compreensão de um ruído, por exemplo, pode ser diferente para um novato e um trabalhador experiente. Trabalhadores menos experientes, portanto, tendem a estar mais expostos ao risco de acidentes de trabalho1.

Nesta pesquisa, o risco de acidente de trabalho típico, em 2008, foi de 7,0% para os trabalhadores com até 4 anos de tempo de emprego, ou seja, 27% a mais do que aqueles com 10,1 a 20 anos de emprego. Sobre a interferência da experiência na acidentalidade, estudos anteriores demonstraram que trabalhadores com menos de 10 anos de experiência são os que mais sofrem acidentes de trabalho10,21.

A incidência de acidente de trabalho típico no setor têxtil catarinense no fim do período foi de 0,7%, valor bem abaixo do encontrado em países como Holanda (5,2%) e Suécia (1,1%) no ano de 2016, conforme divulgado pela Organização Mundial do Trabalho22. Contudo se supõe que as proporções encontradas nesta pesquisa não reflitam a realidade acidentária no estado, pois:

  • os dados extraídos da RAIS são declaratórios e é possível que não reflitam todos os casos de acidentes de trabalho típicos registrados pelo INSS23;

  • cerca de 41,0% dos trabalhadores no Brasil estão no setor informal24, e, embora não se saiba a porcentagem exata destes na indústria têxtil, a RAIS apresenta informações apenas dos trabalhadores formais;

  • como a notificação do acidente de trabalho contribui para a composição do fator acidentário previdenciário, implicando o aumento da alíquota paga pela indústria para financiamento do seguro acidente de trabalho25, existe forte pressão para que os registros não ocorram.

A queda abrupta no risco de acidente de trabalho entre os anos de 2009 e 2012 também foi encontrada por Araújo et al.26. Dificilmente a redução de agravos relacionados ao trabalho seria brusca em tão curto espaço de tempo sem que houvesse alguma mudança em nível nacional. Como não se tem relato de mudanças substanciais nas condições de trabalho que pudessem justificar tal queda, supõe-se que a redução na incidência esteja relacionada a barreiras para o reconhecimento dos casos de acidentes de trabalho por parte da perícia médica do INSS.

Em 2007, o INSS instituiu nova sistemática de concessão de benefícios acidentários, denominada nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP). Os benefícios para os casos de acidentes de trabalho passaram a ser concedidos mesmo sem a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho e o ônus da prova passou a ser da empresa23. A construção do NTEP é baseada na identificação de associações estatísticas entre a entidade mórbida motivadora da incapacidade e a atividade econômica da empresa, por meio da associação de códigos da classificação internacional de doenças e CNAEs27.

Embora o NTEP pressuponha a inversão do ônus da prova, ficando este a cargo da empresa e cabendo a ela apresentar provas de não haver fatores de risco no trabalho para o agravo incapacitante, na prática isso não ocorreu, fazendo com que o número de benefícios acidentários caísse ao longo dos anos após a instituição do NTEP28,29. Isso demonstra quanto o Brasil ainda apresenta limitações no que se refere aos dados oficiais sobre acidentalidade impactando o processo de proteção social e a saúde dos seus trabalhadores26.

A subnotificação de agravos relacionados ao trabalho é um fato conhecido no Brasil, sendo diversos os estudos que apontam para essa realidade30,31,32,33. As causas da subnotificação são múltiplas. Aliada às demais já citadas, vale ressaltar que a concessão do benefício acidentário do INSS fica a critério da perícia médica. Além disso, nos últimos anos, a inserção de novas tecnologias pode ter contribuído para afastar os trabalhadores do INSS, especialmente os analfabetos digitais.

Outra hipótese explicativa para a redução no risco de acidente de trabalho típico ao longo do período relaciona-se à conduta das empresas de realocar trabalhadores que tenham sofrido acidentes menos graves em atividades consideradas mais leves, conhecida pelos trabalhadores como “trabalho compatível”. Independentemente do afastamento, o caso deveria ser notificado como acidente de trabalho, mas nem sempre o é. Conceitualmente, o trabalho compatível é uma situação em que o trabalhador com incapacidade parcial permanente, com restrição definitiva, após o tratamento e a reabilitação profissional, preserva condições para realizar outra atividade ou função “compatível” com suas condições de saúde e capacidade para o trabalho34.

Essa estratégia, criada como um recurso para reinserir o trabalhador com incapacidade parcial permanente na atividade laboral, tem sido usada pelas empresas para manter o trabalhador acidentado em atividade até que este se reestabeleça e possa retornar à função original. Contudo o trabalhador “compatível” pode sofrer ainda mais que o trabalhador “saudável”, pois enfrenta intensificação do trabalho, ritmo intenso, adensamento do trabalho e prolongamento da jornada. O uso desse recurso tem direcionado práticas que levam à exclusão do trabalhador “compatível” tanto dentro quanto para fora da empresa34.

O período estudado nesta pesquisa foi emblemático, com predominância do modelo produtivo toyotista e pesados investimentos em novas tecnologias no setor têxtil brasileiro com objetivo primordial de aumentar a produtividade e a competitividade no mercado mundial5. Contudo isso não foi acompanhado de melhoria das condições objetivas de trabalho, podendo levar à intensificação e à precarização.

Entre as limitações do estudo, destaca-se a possível e até provável subnotificação dos acidentes de trabalho no setor formal por causa de ônus financeiro que estes causam à empresa. Além disso, o setor têxtil historicamente terceiriza muitas etapas do processo produtivo para pessoas físicas não cobertas pelo RAIS. Esta pesquisa estudou a incidência e a tendência temporal dos acidentes de trabalho típicos na indústria têxtil e de confecção de Santa Catarina. Há que se considerar a relevância social e científica do estudo, ao revelar dados epidemiológicos que poderão contribuir com o planejamento de ações em saúde do trabalhador, especialmente aquelas relacionadas à vigilância em saúde, além de subsidiar informações para ações dos agentes fiscalizadores do trabalho.

Considerando que os bancos de dados da RAIS são disponibilizados abertamente e fornecem informações populacionais sobre os vínculos empregatícios de todo o território brasileiro, essa base de dados é fonte de informação fundamental para estudos que procurem compreender a magnitude dos acidentes de trabalho nos diversos setores produtivos. Em estudos futuros, sugere-se analisar o risco de acidente de trabalho no setor têxtil brasileiro e em outros setores produtivos ainda pouco explorados no país.

REFERÊNCIAS

  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2020
  • Revisado
    24 Ago 2020
  • Aceito
    25 Ago 2020
location_on
Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Dr. Arnaldo, 715 - 2º andar - sl. 3 - Cerqueira César, 01246-904 São Paulo SP Brasil , Tel./FAX: +55 11 3085-5411 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro