Open-access O FUTURO DA FORMAÇÃO DE PREÇOS DE ENERGIA NO BRASIL

THE FUTURE OF ENERGY PRICING IN BRAZIL

RESUMO

Este artigo descreve as características gerais da metodologia atual para o despacho econômico e para a formação do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), usado no setor elétrico brasileiro, e o compara com características gerais do que poderia ser um sistema de preços definido por ofertas em um mercado organizado. Reconhecem-se as desvantagens de ambos os sistemas. Se por um lado o sistema atual leva a ineficiências econômicas, um modelo por oferta abre espaço para manipulação de preços. No entanto, argumenta-se que o segundo é claramente superior e os perigos que comporta podem ser contornados por meio de um desenho de mercado criterioso. O desenho do mercado não é simples, portanto, é preciso atenção para que seja conduzido por especialistas. Talvez mesmo por essas dificuldades, pela estrutura atual do setor, por sua cultura e pela reticência dos agentes, o processo de mudanças pode, infelizmente, levar um tempo mais longo do que seria desejável.

PALAVRAS-CHAVE: Setor elétrico brasileiro; desenho de mercado; formação de preços; despacho elétrico por oferta de preço dos agentes

ABSTRACT

This article describes the general characteristics of the current methodology for economic dispatch and the formation of the Settlement Price of Differences (PLD) used in the Brazilian electric sector, and compares it to the general characteristics of what could be a price system defined by offers in an organized market. The disadvantages of both systems are analyzed. While the current system leads to economic inefficiencies, a model based on offers creates room for price manipulation. However, it is argued that the latter is clearly superior and the dangers it poses can be overcome with careful market design. Market design is not a simple task, therefore, it requires attention so that it is carried out by experts. Perhaps due to these difficulties, the current structure of the sector, its culture, and the reluctance of agents, unfortunately, the process of change may take longer than desirable.

KEYWORDS: Brazilian electricity sector; market design; pricing design; electric dispatch by agent pricing offer

INTRODUÇÃO

Os mercados de eletricidade estão em transformação ao redor do mundo. O ganho de competitividade das fontes renováveis, aliado à eletrificação da matriz energética e ao desenvolvimento tecnológico na área de armazenamento, causarão uma mudança sem precedentes nos sistemas elétricos. O antigo paradigma de fluxo unidirecional de energia do gerador ao consumidor logo será superado. Com a mudança de paradigma dos sistemas elétricos, os desenhos de mercado terão de ser revistos.

As soluções descentralizadas desafiarão os operadores dos sistemas de geração, transmissão e distribuição ao aumentarem significativamente a complexidade operacional. Nesse cenário, mercados altamente centralizados e com forte planejamento governamental, como é o caso do Brasil, poderão sofrer ainda mais com as mudanças - devido aos legados contratuais e institucionais acumulados ao longo de décadas. A descentralização da oferta tende ainda a exigir tarifas com maior granularidade temporal e geográfica, assim como robustos programas de resposta pelo lado da demanda, a fim de maximizar o uso das redes e do sistema, de acordo com critérios técnicos e econômicos. Sob esse aspecto, a regulação no Brasil ainda está significativamente atrasada, contando com regras incipientes de resposta pela demanda e com tarifas com baixa discretização temporal. Além disso, dentro de uma mesma área de concessão, as tarifas de distribuição são uniformes.

Na transmissão, alguns passos têm sido dados a fim de aprofundar a sinalização econômica das tarifas de uso do sistema. Em 2022, foram aprovados normativos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) com o objetivo de intensificar o sinal locacional nas tarifas de transmissão, com redução gradual da parcela “selo” - a saber, aquela que divide custos de forma equânime, sem considerar aspectos locacionais e de uso da rede.

Já a queda nos custos das fontes renováveis, especialmente eólica e solar, tendem a gerar um ciclo de custos marginais decrescentes para os mercados de energia. Diversos países da Europa têm registrado, ao longo de diversas horas do ano, preços negativos de energia (EUROPEAN COMMISSION, 2020). Se pela ótica dos consumidores trata-se de uma boa notícia, pela ótica dos investidores é um desafio crescente para a financiabilidade dos projetos - problema conhecido na literatura como “missing money” (HOGAN, 2017).

Nesse contexto, qual desenho de mercado será necessário para permitir a entrada das fontes renováveis com equilíbrio econômico? Mais especificamente, qual mecanismo de formação de preços será utilizado para transmitir a informação necessária para que geradores invistam em nova capacidade de geração e para que consumidores modulem sua curva de carga?

E o Brasil? Por muitos anos, o país seguiu um “caminho próprio” nessas discussões devido às características peculiares do sistema elétrico local. Um robusto Sistema Interligado Nacional (SIN) foi construído, somando, em 2022, 175 mil km de linhas de transmissão e mais de 180 GW de capacidade instalada de geração predominantemente hidrelétrica (ONS, 2022).

Esse quadro, todavia, está em transformação. A fonte hídrica que respondia por mais de 90% da geração anual, no início dos anos 2000, já representa menos de 70%. E a expectativa é a de que sua participação caia paulatinamente ao longo da próxima década, chegando a 50% até o ano de 2030 (BRASIL, 2021a). E isso não impactará apenas a matriz elétrica do país, mas também seu desenho de mercado.

Na última reforma do modelo setorial, em 2004, instituiu-se no país a contratação de energia por meio de leilões centralizados de geração voltados ao ambiente regulado. Projetos tecnicamente habilitados disputam o certame por meio de lances limitados por um preço-teto estabelecido pelo governo. A demanda é declarada pelas companhias de distribuição que gerenciam um variado portfólio de contratos, com limitações no repasse aos consumidores finais.

As diferenças entre os montantes contratados - seja pelas distribuidoras, seja por consumidores livres - e aqueles efetivamente medidos são liquidados no Mercado de Curto Prazo (MCP) ao valor do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). O PLD, por sua vez, reflete o Custo Marginal de Operação (CMO) do sistema com algumas flexibilizações.

Nesse cenário, ainda que o PLD não seja o preço utilizado nos contratos, ele se torna um importante sinalizador do estado presente e futuro do sistema. Cabe a ele, no caso do sistema hidrotérmico brasileiro, passar a informação sobre abundância ou escassez de recursos, e sobre a necessidade de contratação de geração adicional.

E é justamente esta a importância dos preços para o mercado de energia. Os preços impactam todos os aspectos do setor elétrico: o custo da energia para o setor produtivo; o custo da energia para os consumidores residenciais; o lucro dos geradores; os incentivos para novos investimentos, ou para redução da demanda; a expansão das redes de transmissão; e a própria segurança no abastecimento.

Logo, é fundamental que o preço esteja bem calibrado e a forma de determiná-lo - por modelo ou por oferta - implicará se ele está “certo” ou não. Conceitualmente, o “preço” obtido por modelos de otimização não é um “preço”, afinal não traduz as percepções e as expectativas dos agentes, apenas o “custo” de operação do sistema em determinado instante. Assim, determinar o preço por modelo é simplesmente errado do ponto de vista conceitual.

Porém a migração para um novo mecanismo de formação de preços não é tarefa trivial. Há inúmeras preocupações (muitas delas legítimas) sobre possíveis problemas futuros, por parte de agentes, de técnicos e do governo. São questões que vão desde a garantia de suprimento, passando por poder de mercado, manipulação de preços e dificuldades na coordenação de hidrelétricas em cascata.

Entende-se, todavia, que tais questões não podem ser utilizadas para obstruir o debate. Argumenta-se a seguir que o atual modelo de despacho e formação de preços tem dado sinais consistentes de esgotamento. Demonstra-se, também, que algumas das preocupações sobre a formação de preços por oferta encontram paralelo no modelo vigente sem que seja possível os agentes atuarem para corrigir tais erros e distorções.

Por fim, serão apresentadas as razões pelas quais julga-se que a formação de preços por oferta é superior, apontando também alguns caminhos para uma transição segura. O momento é adequado, afinal, em 2021, mais uma crise hídrica colocou em xeque a segurança no abastecimento. Mesmo nesse cenário, os modelos de otimização demoraram a responder aos sinais de escassez nos recursos hídricos - o que dificilmente teria acontecido no caso do uso da inteligência descentralizada no setor.

Em termos de metodologia, o artigo faz uma avaliação do atual modelo de formação de preços a partir dos resultados que tem produzido e das possíveis razões para seus problemas. Para tanto, será feito uso da bibliografia necessária, mas principalmente de dados e estudos de casos que corroboram com as conclusões aqui apresentadas. Por fim, o artigo ainda traz uma série de questões que poderiam nortear as discussões para uma transição entre modelos de formação de preços, partindo da formação de preços por modelos computacionais até chegar à formação de preços por oferta.

1. STATUS QUO: PREÇO DEFINIDO POR PROGRAMA DE OTIMIZAÇÃO

Diferentemente da maioria dos países que passaram por reformas no desenho do mercado de eletricidade na década de 1990, o Brasil optou pela formação de preços a partir de custos auditados. Nesse modelo, os agentes declaram sua disponibilidade e seus custos de produção, que são utilizados por um operador central para despachar o sistema de forma ótima. Para tanto, o operador dispõe de modelos computacionais de otimização, que calculam o “despacho ótimo” com base em parâmetros de risco pré-estabelecidos, restrições de transmissão, dados do sistema e expectativas de comportamento futuro - de carga e, no caso brasileiro, de hidrologia. O custo marginal de geração determina também o preço do mercado de curto prazo.

A próxima seção apresenta uma breve descrição dos modelos computacionais utilizados na operação do sistema, assim como na formação de preços. Destacam-se as principais variáveis consideradas pelos programas de otimização e como o problema é resolvido. Por fim, apresentam-se as diferenças entre o universo da operação e o da formação de preços uma vez que, no caso brasileiro, estes estão separados.

1.1. MODELOS COMPUTACIONAIS E A OPERAÇÃO DO SISTEMA

O despacho otimizado é coordenado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), com base em uma cadeia de modelos computacionais desenvolvidos pelo Cepel desde a década de 1980. Para tanto, os programas resolvem um problema de otimização dinâmico, sob incerteza. Por tratar-se de um sistema predominantemente hidrotérmico, a determinação da política operativa ótima deve levar em conta algumas características singulares (CEPEL, 2020), como:

  • acoplamento espacial, devido à existência de reservatórios em cascata - ou seja, a operação de uma usina à montante impacta a decisão operativa das usinas à jusante;

  • acoplamento temporal, uma vez que a água utilizada para operar as usinas no presente não estará disponível para a operação futura;

  • incerteza nos dados (problema estocástico), por não ser possível prever com exatidão as afluências no futuro;

  • problema de grande porte, no qual mais de 300 usinas hidrelétricas e termelétricas são despachadas de forma centralizada, interligadas eletricamente com outras centenas de usinas, por meio de linhas de transmissão.

Em suma, o que se busca é a minimização dos custos de operação do sistema, tendo em vista o custo imediato de operação e o custo futuro. Atender a carga, no presente, com água implica em menor disponibilidade de recursos hídricos no futuro, logo o custo de atendimento cresce de acordo com a decisão imediata de operação. Por outro lado, despachar mais térmicas no presente implica em maior disponibilidade de água no futuro, fazendo com que o custo imediato seja maior e o futuro menor. Assim, o comportamento das duas funções é inversamente proporcional e o mínimo custo global de atendimento à carga dá-se no ponto em que as derivadas das curvas se anulam - i.e., qual a quantidade de água que deve ser utilizada naquele momento para minimizar o custo global do sistema.

A Figura 1 ilustra o problema descrito anteriormente.

Figura 1
Decisão operativa e valor da água

Para fazer frente a tais desafios operativos, o ONS recorre a um conjunto de modelos computacionais que têm como horizonte o planejamento da operação no médio prazo (5 a 10 anos), assim como as decisões operativas de curto prazo (1 ou 2 meses à frente) e de curtíssimo prazo (dia seguinte, hora a hora). O acoplamento entre eles é feito pela Função de Custo Futuro (FCF) que representa o valor da água nos períodos seguintes.

O sistema computacional utilizado para simular o horizonte de médio prazo é o Newave. Neste, os reservatórios das hidrelétricas são representados de forma agrupada, em 12 reservatórios equivalentes (REE). Já as usinas termelétricas são representadas de forma individualizada. Os intercâmbios entre os submercados (Norte, Nordeste, Sudeste/Centro-Oeste e Sul) também são agregados de acordo com a capacidade total das linhas de transmissão que fazem as interligações. Ele utiliza Programação Dinâmica Dual Estocástica (PDDE) para estimar as hidrologias futuras em um horizonte de 5 anos, em etapas mensais (ou seja, 60 meses).

O programa Decomp é utilizado para o planejamento da operação no curto prazo - até 2 meses à frente. No Decomp, as usinas hidrelétricas são representadas de forma individualizada e são consideradas restrições nos intercâmbios entre os submercados. Para as semanas do primeiro mês, ele trabalha com informações determinísticas e para o estágio mensal com programação estocástica. A FCF do Decomp é definida a partir da FCF do segundo mês do Newave.

Para a programação diária da operação utiliza-se o modelo Dessem. O Custo Marginal de Operação (CMO), para efeitos de despacho, é calculado por barra do sistema (mais de sete mil pontos), levando em conta todas as restrições elétricas e as unidades geradoras das usinas hidrelétricas. Considera-se, ainda, as restrições operativas das usinas termelétricas, assim como suas rampas de acionamento (unit commitment). Utiliza Programação Linear Inteira Mista determinística, com horizonte de uma semana e estágios semi-horários. O acoplamento com o Decomp é feito na primeira semana operativa.

Nota-se, assim, que quanto mais curto o prazo de operação, maior o detalhamento. Para prazos mais longos, além das incertezas sobre armazenamento dos reservatórios, há também desafios computacionais, dada a dimensão do problema a ser resolvido - “maldição da dimensionalidade”. Justamente para transpor tais desafios que se instituiu uma cadeia de modelos, acoplados pela FCF.

Assim, o Newave determina o custo de oportunidade intertemporal da água, sem ter preocupação imediata sobre como será operada cada usina individualmente. Já o Decomp é capaz de capturar fenômenos de curto prazo, que podem impactar a operação nas semanas seguintes. E o Dessem observa os efeitos de curtíssimo prazo, com atualização diária das informações relevantes para a operação do sistema.

Importante pontuar que, apesar da capacidade do Dessem de calcular o CMO por barra do sistema, para efeito de cálculo do preço - Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) - ele não considera as restrições elétricas dentro dos subsistemas, uma vez que o PLD é divulgado por subsistema.

2.2. DILEMAS E DESAFIOS DA OPERAÇÃO

Conforme ressaltado antes, o problema de otimização é resolvido sob incerteza. O Operador tem, diante de si, uma enorme árvore de cenários. Logo, os preços são “definidos” pelos modelos computacionais em função das restrições ativas em cada estado. Na realidade, os preços são sensíveis a muitas outras variáveis que são inseridas no modelo, como: a produtibilidade das usinas hidrelétricas, a capacidade dos reservatórios e sua relação com as alturas de queda (aproximados por um polinômio de quarto grau - o polinômio cota-volume), as perdas no sistema de transmissão, os limites de interconexão entre os subsistemas, entre outras.

A partir dessas variáveis e das estimativas de vazões futuras e dos cenários de carga, constrói-se a árvore de cenários. De forma resumida, a decisão operativa no presente é tomada sem a certeza do que virá no futuro: boas afluências, seca severa, expansão ou retração na carga. Essa ideia básica é ilustrada pela Figura 2.

Figura 2
Ideia básica do Sistema

Porém, por se tratar de um sistema com memória, para cada estado haverá novos cenários (ou novas aberturas). Considerando um horizonte de otimização de 60 meses, como no caso do Newave, o número de cenários cresce exponencialmente - p.ex., se para cada estado houvesse apenas duas opções, o número de cenários seria de 260.

A Figura 3 ilustra essa sucessão de nós que representam os estados do sistema. Observa-se que, a cada período, é preciso determinar o novo estado. Para isso, é preciso um modelo que estima quanta água será usada, quanta energia será produzida e quanta água será armazenada no reservatório.

Figura 3
Ilustração da sucessão de nós representando estados do sistema

2.3. DA OPERAÇÃO AO PREÇO

No Brasil, o universo do despacho do sistema está separado do universo da formação de preços. Ambos utilizam a mesma cadeia de modelos computacionais, porém com algumas flexibilizações diferentes e com objetivos relativamente distintos.

O despacho do sistema é feito pelo ONS, que busca otimizar a operação do SIN. Ou seja, o objetivo do ONS é operar o sistema no presente ao menor custo - presente e futuro. Para tanto, ele considera todas as restrições elétricas e energéticas, de acordo com seu horizonte operativo. Dessa decisão sai o CMO, que determinará quais usinas serão utilizadas em cada momento, a fim de maximizar o uso dos recursos disponíveis (água, vento, sol, combustíveis).

Já a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) é responsável pela medição, contabilização e liquidação no MCP. Para tanto, ela calcula o PLD, utilizado para liquidar as diferenças entre os montantes contratados e consumidos. Para o cálculo do PLD, algumas aproximações são feitas, especialmente para tornar seu processamento mais “leve”. Não são utilizados, por exemplo, restrições na transmissão dentro dos submercados, uma vez que o PLD é o mesmo dentro de cada um deles.

Até 2020, o PLD era calculado por patamar de carga - leve, média e pesada. A partir de 2021, ele passou a ser calculado de forma horária, para tornar a precificação mais aderente à realidade operativa.

3. PROBLEMAS DO MODELO ATUAL

Nesta seção realizar-se-ão algumas considerações sobre os principais problemas apresentados pelo atual modelo de formação de preços no Brasil. Afinal, a despeito dos ganhos em termos de coordenação e controle da operação do sistema, argumenta-se que o modelo atual apresenta significativos problemas na alocação de riscos, além de definir preços artificialmente - i.e., sem considerar as informações dos agentes. Demonstra-se que, no longo prazo, os “benefícios” da operação coordenada podem ser suprimidos pelas externalidades negativas, geradas pelo controle sobre os preços.

Além disso, será discutida uma série de problemas específicos do modelo atual, ilustrada a partir de dados e casos reais. Observa-se que um dos maiores desafios atuais é a falta de credibilidade dos dados de entrada e dos próprios parâmetros de risco utilizados, apesar de inúmeras alterações feitas no passado recente.

3.1. COMO UM PROGRAMA PODE CALCULAR PREÇOS?

Para ilustrar como funciona conceitualmente o programa de despacho e a formação de preços, apresenta-se, inicialmente, um exemplo simples. Supondo que determinado sistema de geração conta com um único gerador, com capacidade instalada de 100 MW e custo declarado de operação de R$ 180/MWh. Neste caso, como o custo é dado e há apenas um gerador, o preço automaticamente é calculado em R$ 180/MWh.

Matematicamente, o problema consiste em minimizar o preço, sujeito a:

  • preço menor ou igual ao custo (pc);

  • produzido (q) é igual ao consumido (em que a demanda é dada por uma função do preço, Q(p));

  • produzido (q) é no máximo igual à capacidade (k) qk ;

Em notação matemática, isso seria:

m i n p c , q k , q = Q p p (1)

O caso é ilustrado pela Figura 4.

Figura 4
“Preço” quando não há restrição de capacidade ativa

Simulando um segundo caso, com as mesmas características sistêmicas do caso anterior e no qual se busca resolver o mesmo problema. Agora, porém, há um deslocamento na curva de demanda, ultrapassando a capacidade de atendimento à carga da usina existente (ao preço anterior, de c = R180 MWh). Pode-se observar isso na Figura 5, em que a demanda ao nível de preços anteriores R180 MWh) seria Q'>k, ou seja, acima da capacidade do sistema. Nesse caso, para atender a demanda, é necessário aumentar o preço, como ilustra a Figura 5.1

Figura 5
“Preço” quando há restrição de capacidade ativa

Ou seja, mesmo para esse sistema, extremamente simples, não há igualdade entre o preço obtido de um programa de minimização de custos e os custos do sistema. É claro que se pode argumentar que não é desejável operar na capacidade do sistema, como ilustrado na Figura 5, mas em situações mais realistas do que esse exemplo considera, acaba havendo esse descasamento por outras razões. A principal causa é a existência de custos presentes e futuros, como já discutido na seção 2.1, e a demanda futura.

Assim, em geral tem-se, para o mesmo sistema com custos idênticos, preços completamente diferentes. Isso acontece porque não basta conhecer (bem) as características do sistema e os custos para operá-lo. É preciso conhecer também a demanda - atual e futura. Em outras palavras, o sistema exige muita informação, não apenas do estado presente, mas também da evolução futura.

Conforme discutido anteriormente, o sistema brasileiro é de característica hidrotérmica, o que lhe confere um acoplamento espacial e também temporal - i.e., as decisões tomadas no presente afetam a disponibilidade de recursos (hídricos) no futuro. Portanto, ainda que, em tese, seja possível ao programa computacional estimar os preços de equilíbrio, o problema torna-se matematicamente complexo, dada a quantidade de variáveis envolvidas e de cenários possíveis. Assim, resolver o problema exige um conjunto enorme de dados de entrada e uma série de aproximações pouco realistas - como na sequência “reservatórios equivalentes”, “usinas individualizadas” e “unidades geradoras”.

Ainda que a cadeia de modelos computacionais pareça uma boa solução para a “maldição da dimensionalidade”, conclui-se que os resultados apresentados têm sido bastante insatisfatórios. Para tanto, serão apresentados a seguir uma série de exemplos reais para ilustrar as lacunas e dificuldades do atual modelo de formação de preços.

3.2. FLUTUAÇÕES NOS PREÇOS

Um sistema que funciona bem deveria ser capaz de prever o que acontecerá amanhã - do contrário, ele se torna pouco útil. Na realidade, uma boa decisão depende justamente disso: prever o que acontecerá no instante seguinte, ao levar em consideração sua decisão atual. Neste caso, num sistema perfeitamente desenhado, não deveria haver muitas surpresas nos preços. Mas não é isso que se verifica na prática.

A volatilidade do PLD é um problema conhecido e bastante discutido nos últimos anos.2 Porém, apesar de inúmeros “ajustes” nos parâmetros dos modelos computacionais (destacados a seguir), poucos resultados significativos foram colhidos.

Sob várias medidas, a volatilidade dos preços no mercado de energia brasileiro é excessiva. A Figura 6 mostra a variação do PLD comparada ao índice de preços Ibovespa, aos preços de energia no Nordpool e à cotação do Brent (em base semanal, normalizados pela média). Observa-se que o PLD é mais volátil do que o preço da energia em outro sistema elétrico, como a cotação do barril de petróleo (commodity global) e o mercado financeiro.

Figura 6
Volatilidade do PLD × Bovespa, Nordpool e Brent

A volatilidade nos preços não é, necessariamente, um problema. Em virtude das características do sistema elétrico brasileiro - com elevada participação de usinas hidrelétricas - alguma variabilidade nos preços é esperada, uma vez que as afluências futuras são desconhecidas e os modelos meteorológicos são imprecisos. Contudo, ao examinar as origens dessas flutuações, constata-se que o maior responsável pela variação dos preços semanalmente é a previsão de vazões.

A título de ilustração, a Figura 7 mostra os elementos que impactaram o CMO do subsistema SE/CO, a cada semana operativa, entre outubro de 2020 e janeiro de 2021. Nota-se que a alteração nas vazões previstas chegou a causar variações superiores a R$ 400/MWh entre uma semana e outra. Alterações ainda mais drásticas foram observadas ao longo de 2021, durante o período de estresse hídrico do setor elétrico. Porém o exemplo abaixo demonstra como mesmo em situações “normais” a definição dos preços é bastante sensível ao cenário hidrológico de curtíssimo prazo.

Figura 7
Variáveis que impactam o CMO

Em 2020, a Comissão Permanente para Análise de Metodologias e Programas Computacionais do Setor Elétrico (CPAMP) considerou retirar a Energia Natural Afluente (ENA) do conjunto de variáveis de estado na construção da FCF do Newave. Após fazer inúmeras simulações, concluiu-se que tal alteração reduziu “significativamente a volatilidade observada no CMO/PLD”, porém “foi necessário considerar parâmetros bem mais restritivos para os mecanismos de aversão a risco” (BRASIL, 2020, p. 19).

Além disso, concluiu-se que para anos com hidrologias mais desfavoráveis, mesmo com a adoção desses parâmetros de aversão ao risco, o armazenamento ao final do período de simulação foi insatisfatório. Assim, a proposta da CPAMP foi pela preservação da ENA como variável de estado no modelo Newave.

Dada a relevância da hidrologia para a operação do sistema brasileiro, retirar a ENA como variável de estado do modelo não é a solução adequada. Por outro lado, destaca-se que ela pode exercer um papel mais significativo do que deveria. A alteração na previsão de vazões afluentes não pode alterar os preços em mais de R$ 400/MWh de uma semana para outra - certamente isso não espelha a expectativa dos agentes.

Para além dessa discussão, o objetivo é apontar como as possibilidades de ajustes no modelo são quase infindáveis, porém nunca haverá uma solução perfeita que torne a operação plenamente aderente à realidade. Em outras palavras, não há modelo matemático e computacional capaz de determinar preços de forma exata. Afinal, como será demonstrado na seção 4, os preços têm um papel informacional numa economia de mercado. Esta, por sua vez, resulta das expectativas dos agentes - percepções que não conseguem ser capturadas, ou traduzidas, matematicamente.

3.3. PROBLEMAS NA GERAÇÃO DE CENÁRIOS HIDROLÓGICOS

Um dos desafios de se aplicar modelos computacionais para o cálculo do preço da energia é a qualidade dos dados de entrada. Os resultados impressos pelo modelo são retratos das formulações matemáticas e, em especial, das informações disponibilizadas ao sistema. Logo, é fundamental que estas sejam constantemente analisadas, a fim de não imputar distorções ao modelo.

Os programas computacionais utilizados para o despacho e para a formação de preços recebem, diariamente, centenas de novas informações, que visam representar da forma mais adequada possível o estado do sistema. Os dados necessários para otimizar a operação vão desde produtividade das usinas hidrelétricas, à evaporação de água nos reservatórios e tempo de viagem da água entre uma usina e outra.

Conforme visto na seção anterior, os dados de vazão são um dos mais relevantes para o comportamento dos preços. Para efeitos de despacho do sistema, os modelos computacionais partem do histórico de ENA, que atualmente vai de 1931 a 2019.

A ENA é calculada a partir da vazão natural afluente aos reservatórios, considerando a produtividade das usinas com 65% de armazenamento. A ENA pode ser calculada em diversas bases temporais. Para utilização no Newave, por exemplo, é calculada em bases mensais e de forma estocástica, a partir de um programa gerador de série sintéticas - o Gevazp.

A Figura 8 apresenta como as vazões são representadas nos programas computacionais, de acordo com o horizonte temporal considerado. Para a primeira semana, o modelo é determinístico, ou seja, utiliza dados de vazão previstos em modelos meteorológicos. Já o Previvaz é um modelo estocástico, responsável pela previsão de vazões nas próximas semanas.

Figura 8
Geração de cenários hidrológicos

O Gevazp é um modelo do tipo Periódico Autorregressivo de Ordem p - PAR(p). De acordo com CPAMP (BRASIL, 2019, p. 18):

O PAR(p) é um modelo autorregressivo cujos parâmetros apresentam um comportamento periódico. É utilizado para representar séries hidrológicas mensais, as quais apresentam média, variância, assimetria e estrutura de autocorrelação de comportamento periódico. A ordem p refere-se à quantidade de estágios passados que o modelo leva em consideração ao prever as ENAs de um dado estágio m (no caso, mês).

Sua formulação é dada pela equação (2):

Z t - μ m σ m = i = 1 p K i Z t - 1 - μ i - 1 σ m - 1 + α t (2)

Dessa forma, os dados históricos de ENA passam a ser bastante relevantes na geração dos cenários sintéticos. Logo, a qualidade das previsões futuras guarda relação com os dados passados. Todavia, quando se avalia o comportamento histórico das ENA, constata-se que, ao menos nos últimos 30 anos, o padrão hidrológico das principais bacias do SIN mudou consideravelmente.

As bacias dos rios Paranaíba, Grande, São Francisco e Tocantins são responsáveis por 80% da capacidade de armazenamento do SIN. Porém, as ENA dessas bacias apresentam desvios cada vez maiores em relação à Média de Longo Termo (MLT). Os valores são apresentados na Tabela 1. Para cada bacia analisada, apresenta-se o comportamento da ENA em relação à MLT (100% representam o histórico completo), nos últimos 30, 20, 10 e 5 anos.

Tabela 1
ENAs, variação em relação à MLT

Nota-se que há uma tendência consistente de redução das ENAs nas quatro bacias, quanto menor o período analisado. Isso sugere que as vazões afluentes estão cada vez menores, mesmo com a ENA sendo estimada com reservatórios a 65% de acumulação - ou seja, é possível que a energia afluente seja ainda menor. As incertezas são ainda maiores se considerarmos que as mudanças climáticas alteraram, significativamente, os regimes de chuvas e aumentarão a frequência de eventos climáticos extremos nos próximos anos.

A mesma tendência é ilustrada nos gráficos da Figura 9. Esse comportamento das ENA explica, em partes, a dificuldade que o Operador tem tido para recuperar o armazenamento dos reservatórios hidrelétricos nos últimos anos - ao menos desde 2013.

Figura 9
Histórico das ENAs por bacias

Esse comportamento das ENAs suscita algumas questões:

  1. Seria esta alteração, no padrão das vazões, algo permanente ou temporário? Se for permanente, o que fazer para alterar o viés “otimista” da série histórica?

  2. Quanto os problemas nas séries históricas utilizadas e nos modelos de geração de cenários hidrológicos afetam a confiabilidade dos modelos como um todo? Ou seja, é possível operar o sistema com a confiança necessária, sabendo que as vazões podem estar passando por mudanças estruturais?

  3. A própria formulação das ENAs não estaria inadequada? Faz sentido calculá-las ao considerar um nível de armazenamento de 65% dos reservatórios?

3.4. ARBITRARIEDADES NA DEFINIÇÃO DOS PREÇOS

Ainda que os modelos utilizados para formação de preços no Brasil fossem perfeitos, permaneceriam sujeitos à intervenção do poder central - ou do próprio ONS - que concentra enorme poder de influência no mercado. Todavia, a fragilidade dos modelos torna-os ainda mais suscetíveis a decisões que podem ser arbitrárias.

Conforme será explorado adiante, a prática de poder de mercado é geralmente apontada como um dos desafios da formação de preços por oferta dos agentes. Porém como demonstra Santana (2004), o despacho por modelos computacionais não está imune a falhas de mercado e, também, pode distorcer o mercado, a depender da aversão a risco, adotada pelo Operador. Nas suas próprias palavras:

Os resultados apresentados permitem deduzir que o modelo de formação do Pmae é vulnerável ao uso de informações assimétricas, mesmo sendo tal preço resultado da operação de uma cadeia de programas de computadores e não do bid por parte das usinas. A aversão ao risco, associada à minimização dos custos do arrependimento, incentiva o uso de condutas de natureza defensiva na operação do sistema elétrico, incluindo o uso dos reservatórios e da geração termelétrica, o que resulta em preços spot artificialmente baixos, na ineficiência alocativa e produtiva e no desestímulo à entrada de novas usinas. (SANTANA, 2004)

Alguns dos exemplos dados por ele, à época, serão explorados adiante, demonstrando que ainda que os modelos tenham evoluído e a própria arquitetura do mercado mudada, as fragilidades do modelo permanecem, em virtude do poder discricionário do Operador e/ou das demais instituições do SEB.

As discricionariedades podem ser de diversas ordens. Há atuações sobre os parâmetros técnicos do modelo e sobre os dados de entrada. Há constantes decisões sobre seguir ou não a política operativa determinada pela cadeia de programas computacionais, que pode levar à geração fora da ordem de mérito, ou por segurança energética. E ainda há o risco de alteração no preço teto, em virtude dos impactos econômicos para alguns agentes.

PROBLEMAS NA GOVERNANÇA DO USO DA ÁGUA

Após enfrentar um longo período hidrológico desfavorável, o país observou intensos e constantes conflitos pelos usos múltiplos da água. Os reservatórios hidrelétricos, além de utilizados na produção de energia, ajudam a regularizar o fluxo de águas nos rios. A regularidade desse fluxo é importante para o uso dos rios para transporte, ecoturismo, irrigação de lavouras e, principalmente, para o abastecimento humano e a dessedentação animal, os chamados usos consuntivos da água.

A diversidade de usos da água leva a conflitos que são resolvidos administrativamente pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), em diálogo com inúmeros agentes envolvidos. Cabe também à ANA definir a defluência mínima das usinas, de modo a viabilizar os múltiplos usos. As vazões são determinadas, no geral, em virtude do armazenamento dos reservatórios e do período do ano.

Nesse contexto, têm sido recorrentes as alterações nos dados de vazão feitos pela ANA - muitos deles provocados pelas instituições do próprio setor elétrico. Algumas dessas alterações devem ser aprovadas pela Aneel antes de serem consideradas pelo ONS e pela CCEE no despacho e na formação de preços.

Em junho de 2016, a Aneel autorizou uma relevante alteração nas vazões do rio São Francisco, com impacto significativo nos preços de curto prazo. A decisão foi duramente questionada pelos agentes e, após muito debate, culminou na publicação da Resolução CNPE nº 07, de 14 de dezembro de 2016. Esta definiu uma série de diretrizes para modificações nos dados de entrada e parâmetros dos modelos computacionais. O objetivo foi delimitar competências para aplicar as modificações, assim como as periodicidades permitidas para cada tipo de ajuste.

Porém os conflitos não terminaram aí. Em dezembro de 2020, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) solicitou uma alteração na regra que estabelecia redução nas vazões mínimas do rio São Francisco, em virtude da redução no volume armazenado, impactando a operação de todo o sistema. O CMSE estava preocupado com o impacto dessa redução no resto do sistema. A ANA atendeu ao pedido do CMSE e autorizou a manutenção de vazões mais elevadas.

Assim que concedida pela ANA, a alteração nos dados foi incorporada nos modelos computacionais do ONS e da CCEE, causando uma redução de mais de R$ 70/MWh no PLD da semana seguinte - quando a Resolução CNPE ordena que tais mudanças sejam informadas ao mercado com, ao menos, 30 dias de antecedência.

O caso foi, mais uma vez, questionado pelos agentes. Após análise dos pleitos, a Aneel reconheceu o mérito do questionamento, determinando que as alterações nos dados de entrada não poderiam ocorrer antes do período mínimo de 30 dias. Porém, pelo princípio da estabilidade regulatória, a agência optou que sua decisão valeria apenas daquele momento em diante, sem recálculo dos valores aplicados no passado.3

No início de 2021, uma nova controvérsia sobre o uso das águas impactou o cenário de despacho e formação de preços. Por determinação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a usina hidrelétrica de Belo Monte foi obrigada a aumentar a vazão destinada ao trecho da Volta Grande do rio Xingu. Consequentemente, limitou-se a quantidade de água destinada à geração de energia na casa de força principal (sítio Belo Monte), diminuindo a capacidade de geração da usina no seu período de máxima disponibilidade de recursos hídricos.

De acordo com o “hidrograma de consenso” vigente, em janeiro de 2021 a vazão destinada a esse trecho do rio deveria ser de 1.100 m³/s. Já para fevereiro, seria de 1.600 m³/s. Pela decisão do Ibama, esses valores foram majorados para 3.100 m³/s e 10.900 m³/s, respectivamente. Em ofício enviado ao órgão ambiental, a Aneel defendeu que a utilização do hidrograma proposto exigiria o acionamento de 500 MW médios de geração térmica adicional ao longo de 2021. O impacto estimado, apenas para os dois primeiros meses do ano foi de R$ 1,3 bilhão (ANEEL, 2021).

Dado o histórico de debates sobre a inclusão dessas alterações na formação de preços, ONS e CCEE optaram por não considerar a nova restrição no cálculo do PLD antes do período mínimo estipulado de 30 dias (ONS, 2021c). Por outro lado, as restrições foram internalizadas para efeitos de despacho do sistema, causando mais um descasamento entre operação e formação de preços.

No início de fevereiro de 2021, o IBAMA e a Norte Energia - concessionária da usina de Belo Monte - chegaram a um acordo. Mediante contrapartidas de R$ 157 milhões, a usina voltou a ser operada de acordo com o hidrograma vigente em 2021, minimizando os impactos para todo setor. O acordo ainda foi questionado pelo Ministério Público Federal (MPF), que entrou com Ação Civil Pública contra o acordo firmado pelo órgão ambiental (BRASIL, 2021b).

Note-se que essas decisões governamentais impactam diretamente o PLD, provocando mudanças nas transferências entre os agentes de ordem muito significativa (centenas de milhões de reais a cada semana).

ALTERAÇÕES NOS PARÂMETROS DO MODELO

Além das alterações mencionadas anteriormente, têm sido recorrente as modificações feitas nos parâmetros técnicos dos modelos computacionais, sempre sob a justificativa de tornar a operação e a formação de preços mais aderentes à realidade. Exemplo disso foram as alterações feitas nos fatores do CVaR, desde 2013, quando este foi internalizado nos modelos.

O Valor Condicionado ao Risco (CVaR) modifica a função-objetivo do problema de otimização. Nesta função, os custos de energia esperados de todos os cenários são ponderados por um fator (1-λ) e os α piores cenários são ponderados por um fator λ.4 Desta forma, maior peso é dado aos cenários mais desfavoráveis, tornando a operação do sistema mais avessa ao risco.

A função-objetivo do problema de otimização é apresentada na equação (3).

min x 1 s o b r e s t r i ç ã o C 1 x 1 + 1 - λ · E min x 2 C 2 x 2 + λ · C V a R α min x 2 C 2 x 2 (3)

Colocando numa breve linha do tempo, as seguintes alterações foram feitas nos parâmetros do CVaR, desde sua internalização nos programas Newave e Decomp, em 2013:

  • de set. 2013 a abr. 2017: α=50% e λ=25%;

  • de maio 2017 a dez. 2019: α=50% e λ=40%;

  • de jan. 2020 a dez. 2022: α=50% e λ=35%;

  • de jan. 2023 em diante: α=25% e λ=35%.

Nota-se que ao tornar a operação do sistema mais avessa ao risco, a partir dos ajustes do CVaR, os programas de otimização de despacho elétrico tendem a aumentar o custo de geração, pois haverá uma predileção ao acionamento de termoelétricas com o objetivo de preservar água nos reservatórios das hidroelétricas.

De acordo com a apresentação feita na reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), em 17 de dezembro de 2013, a internalização da metodologia de aversão ao risco (CVaR) nos modelos computacionais do setor teria como benefícios (BRASIL, 2013):

  • um aumento da segurança energética e uma sinalização econômica mais realista com relação à formação do preço de liquidação no mercado de curto prazo, além de maior coerência entre as atividades de planejamento e operação;

  • o despacho de usinas termelétricas acionadas fora da ordem de mérito será reduzido a eventos muito raros e, consequentemente, o custo adicional com esse despacho será muito baixo.

A Figura 10 mostra a relação entre as alterações feitas nos parâmetros do CVaR e o comportamento da geração térmica por segurança energética - ou seja, aquela que é feita fora da ordem de mérito dos programas de otimização. Nota-se que sucessivas alterações foram feitas nos parâmetros de risco, com objetivo de reduzir a geração fora da ordem de mérito, porém com pouco sucesso.

Figura 10
Alterações no parâmetro de aversão ao risco

Outras alterações em parâmetros importantes foram feitas nos últimos anos, como: (i) redução nos patamares de déficit considerados - de quatro patamares para patamar único, no valor de R$ 6.524,05/MWh; e (ii) a introdução do “Volume Mínimo Operativo (VMinOp)” nos programas computacionais, com penalizações econômicas no caso de ultrapassagem.

Os níveis mínimos de armazenamento definidos para os REE Sudeste, Paraná e Paranapanema são de 10% do EAR máximo para todos os meses do ano. Já para os REE Sul e Iguaçu são de 30% do armazenamento máximo. Além disso, são impostos limites mínimos para alguns reservatórios específicos, como para as usinas de Três Marias e Itaparica (30% do volume útil - V.U.), Sobradinho (20% do V.U.) e Tucuruí (23,2% do V.U.).

Assim como no caso anterior, a introdução do VMinOp tinha como objetivo restringir mais a operação do sistema. Ou seja, caso o modelo observasse uma ultrapassagem nos volumes mínimos estipulados nos meses adiante, ele deveria sinalizar uma limitação no uso da água dos reservatórios. Porém, conforme exemplos vistos até aqui, foi mais uma tentativa de aperfeiçoamento do modelo computacional que não alcançou seus objetivos.

FALTA DE CONFIANÇA NOS MODELOS COMPUTACIONAIS

A falta de confiança nos modelos computacionais tem induzido, principalmente, à prática apontada acima: geração fora da ordem de mérito. Trata-se de um instrumento reconhecido pela legislação atual, ao qual recorre o ONS - com autorização do CMSE - quando sua percepção de risco ultrapassa aquela dos modelos oficiais.

Para tanto, o ONS utiliza uma curva de referência bianual, que determina o nível mínimo de armazenamento dos reservatórios que será buscado mensalmente, visando chegar ao fim do período seco (mês de novembro) com garantia no suprimento. Na prática, é um outro instrumento de aversão ao risco utilizado para operar o sistema de forma “segura” - ainda que fora do que os programas determinam.

Como a Figura 10 ilustra, as instituições do SEB têm recorrido frequentemente à geração por segurança energética. O uso indiscriminado da geração fora do modelo tem duas consequências graves: (i) o aumento do pagamento de Encargos por Serviço do Sistema (ESS), que inclui o pagamento dos geradores térmicos despachados fora da ordem de mérito e o ressarcimento dos geradores hidroelétricos que não foram despachados por essa razão; e (ii) deslocamento do PLD, desfigurando ainda mais os sinais de preços de energia no Brasil.

O primeiro problema é normalmente mais explorado, em virtude dos seus impactos diretos para os consumidores - por tratar-se de ESS, ele é rateado entre consumidores regulados e livres, na proporção do consumo individual. Desde 2013, mais de R$ 35 bilhões foram pagos a título de ESS por segurança energética. Os valores acumulados do ESS podem ser observados na Figura 11, junto com a Geração Fora da Ordem de Mérito (GFOM) ou Geração Térmica por Segurança Energética (GTSE).5

Figura 11
ESS por segurança energética

Porém um outro problema, ainda mais grave, é a distorção gerada nos preços propriamente ditos. Na prática, a GFOM pressiona os preços para baixo, uma vez que poupa água nos reservatórios no presente e o custo dessas térmicas despachadas não entra na formação de preços. Apesar de os custos serem rateados via encargo tarifário, a distorção nos preços impacta sensivelmente a percepção dos investidores sobre os custos de oportunidade do sistema - aprofundando o problema do missing money.

Essa redução de preços no mercado de curto prazo passa a mensagem de um sistema que está adequadamente projetado para suprir a carga, quando, na verdade, opera sob estresse. Assim, utilizam-se recursos mais caros disponíveis na operação, o que deveria ser refletido na informação econômica de que mais investimentos são necessários. Ao contrário, preços reduzidos passam a informação de que o sistema está balanceado e investimentos na produção não são tão necessários assim. Esse papel informacional dos preços será discutido mais profundamente na seção 4.

Outro aspecto é o impacto direto da redução da variação do PLD. A adoção da GFOM reduz a volatilidade do preço, que não é permitido subir tanto quanto o faria se não ocorresse GFOM. Com menores variações do preço, há menor interesse em se proteger por meio de contratos. Para entender isso, é suficiente pensar na situação limite, em que sempre há GFOM num nível máximo. O preço é mantido próximo do mínimo, todos os consumidores pagam a maior parte dos custos do sistema por meio do ESS e os contratos não cumprem nenhuma função de proteger os agentes do setor dos riscos. Note-se que o risco não desapareceu: ele continua presente na flutuação do ESS. Apenas, os contratos não são mais capazes de proteger os agentes desse risco.

A Figura 12 ilustra a relação entre a geração por segurança energética e o comportamento do PLD. Nota-se que há, em diversas semanas, um comportamento inversamente proporcional entre o PLD e o despacho por segurança energética, confirmando a tese acima.

Figura 12
Impacto geração por segurança energética no PLD

A questão que surge nesta subseção é: será que os preços são, de fato, definidos por um “modelo”? Ou ele serve apenas como referencial para que o ONS, sob a tutela do CMSE, opere o sistema da forma mais “segura” possível?

E isso leva a uma reflexão adicional importante. Muitas vezes levanta-se o problema do “poder de mercado” nas discussões sobre despacho por oferta, mas quanto poder para direcionar os preços não concentram as instituições do setor nas situações aqui descritas?

De forma geral, a geração não seguindo as indicações do modelo sugere que as autoridades responsáveis pelo despacho e segurança energética (ONS e CMSE) não têm confiança nos programas computacionais usados. Essa falta de confiança acaba por aumentar a percepção de risco dos agentes e demais investidores, com consequências diretas para o ambiente de negócios.

PREÇOS MUITO LIMITADOS

Como apontado, o preço do mercado de curto prazo, no Brasil, tem diversos problemas. Um deles está relacionado aos limites mínimo e máximo estipulados para o PLD.

No ano de 2014, a queda no nível dos reservatórios hidrelétricos levou o PLD a permanecer no “teto” (à época, de R$ 822,83/MWh) durante quase todas as semanas operativas dos meses de fevereiro a maio. Dado que o PLD é utilizado para liquidar as exposições de geradores, distribuidores e consumidores livres no mercado de curto prazo, um forte ruído instaurou-se no setor - devido ao receio de default de alguns agentes.6

Em decorrência disso, a Aneel atuou reduzindo o preço-teto em 53%, passando para R$ 388,48/MWh a partir de janeiro de 2015 - valor determinado pelo CVU da térmica a gás natural mais cara operando no país naquele momento. Já o limite mínimo foi elevado de R$ 15,62/MWh para R$ 30,26/MWh.

Em 2019, às vésperas da entrada em vigor do PLD horário, uma nova revisão foi feita nos limites do preço, a fim de torná-lo mais aderente ao novo modelo. Dois limites máximos foram estipulados: (i) um PLD máximo estrutural, de R$ 556,58/MWh; e (ii) um PLD máximo horário, de R$ 1.141,85/MWh (valores de setembro de 2019). Esses valores são reajustados anualmente pelo IPCA.

O PLD máximo horário é aplicado a cada hora do dia, porém a média das 24 horas de um dia não pode extrapolar o PLD máximo estrutural. Caso a média dos PLD horários em determinado dia supere o PLD máximo estrutural, os preços horários são ajustados for um fator uniforme, respeitando o limite mínimo, de forma que a média dos PLD horários seja igual ao PLD máximo estrutural.

É comum a existência de limites para o preço spot nos mercados de eletricidade. Entretanto, constata-se que os limites estabelecidos no Brasil são relativamente baixos. A Tabela 2 apresenta um quadro simplificado dos limites de preços em diferentes mercados de energia.7

Tabela 2
Limites de preços em diferentes mercados em 2020

De forma geral, observa-se que mercados sem algum mecanismo de contratação de capacidade, como Aemo (Austrália) e Ercot (Texas) tendem a ter limites maiores de preços - justamente para dar o sinal econômico correto. Porém, mesmo nos demais casos, observa-se que tanto o teto quanto o piso de preços são bem superiores ao brasileiro.

A principal justificativa utilizada para a manutenção de preços-teto baixos é a base hídrica da matriz elétrica. Neste caso, períodos de hidrologia adversa prolongados tenderiam a manter o preço em patamares muito elevados por várias semanas ou até meses - diferentes de mercados com base térmica, nos quais os picos de preço são mais curtos.

Além disso, o limite inferior do preço é calculado de forma a remunerar os custos operacionais das usinas hidrelétricas. Como se pode ver na Tabela 2, a quase totalidade dos mercados elétricos têm preços mínimos negativos ou zero. Não parece haver razão para arbitrar um valor mínimo acima de zero no Brasil, uma vez que toda a expansão do sistema é fundamentada em leilões de longo prazo, que já “garantem” o retorno dos projetos.

Porém, como discutido na seção 1, a matriz elétrica brasileira passa por um processo de diversificação, que alterará profundamente suas características nas próximas duas décadas. Assim, o argumento de que o Brasil merece regras especiais porque tem base hídrica deveria levar em conta a mudança dessa realidade. A inserção massiva de fontes renováveis altera ainda mais radicalmente o cenário de preços e exigirá a rediscussão dos limites ora estabelecidos.

Ademais, a definição de preços-teto muito baixos tem efeitos negativos para o setor já no presente. A Figura 13 apresenta a geração das usinas térmicas com CVU não-nulo.8 Observa-se que o despacho de usinas com custo variável superior ao PLD é bastante recorrente, sugerindo que o sinal de preços não tem sido suficiente para operar o sistema. Ou seja, muito frequentemente os preços estão abaixo do necessário para atender ao sistema e seus custos são transferidos para os consumidores via encargos tarifários.

Figura 13
Geração térmica por tipo de despacho do ONS

IMPACTO DA GERAÇÃO DISTRIBUÍDA

A fonte solar fotovoltaica seja na modalidade de mini e microgeração distribuída (MMGD), seja na geração centralizada cresceu substancialmente nos últimos anos. Segundo a Absolar (2023), a potência instalada passou de 7 MW em 2012 para 24.000 em dezembro de 2022, tornando-se a segunda fonte, em capacidade instalada, na matriz elétrica brasileira.

Na MMGD os produtores/consumidores injetam energia diretamente na rede de distribuição. A fatura emitida pela distribuidora é calculada com base no consumo líquido mensal (net metering), dado pela diferença entre o que foi consumido e a energia gerada. Por suas características, dispersa e conectada no sistema de distribuição, a MMGD não está sob supervisão do ONS, por isso, não é considerada nas simulações de planejamento da operação e definição de preço (Newave, Decomp e Dessen).

Estima-se que essa carga de MMGD passe de cerca de 0.8 GWmed em 2020 para 4.3 GWmed em 2031, segundo o PDE2031. Atentos à gravidade do impacto dessa geração para o despacho das usinas e na formação do PLD, o ONS e a CCEE criaram um grupo de trabalho para propor a representação da MMGD na cadeia de modelos computacionais no âmbito do Comitê Técnico PMO/PLD (subcomitê temático de Dados, Processos e Regulação).

Inicialmente previsto para 2022, a entrada em vigor das novas regras foi adiada para 2024, em função das dificuldades técnicas de modelagem e previsão de carga da MMGD. Nota-se, porém, que a massiva instalação de painéis solares nos últimos anos, decorrente da corrida para a manutenção do subsídio com o prazo de transição dado pela legislação da MMGD (Lei nº 14.300/2022) (BRASIL, 2022), tem como consequência um desequilíbrio nos modelos de precificação, fazendo com que o patamar de PLD horário esteja acima do preço real.

3.5. OS EFEITOS DELETÉRIOS DA CENTRALIZAÇÃO

Fica claro, a partir dos exemplos apresentados acima, que, de forma geral, as instituições setoriais concentram muito poder. Decisões que afetam os resultados econômicos dos agentes são tomadas de forma unilateral, sem considerar as percepções individuais e a inteligência descentralizada no setor.

Para tentar dirimir esses riscos, muitos agentes organizam-se em torno de associações de classe, que trabalham nas instâncias competentes a favor dos seus interesses. O problema é que este modus operandi acaba por fortalecer, ainda mais, o governo central.

O bom uso da inteligência descentralizada tende a alcançar resultados melhores do que a centralização das decisões e do que a atuação descoordenada em favor de interesses específicos. Neste processo, o preço terá papel fundamental, uma vez que ele é o responsável por transmitir informações para alcançar as alocações mais eficientes.

É por isso que romper com o sistema descrito anteriormente vai além de mobilização política em favor de interesses individuais. É preciso uma revisão completa do sistema. Um novo desenho de mercado para o SEB, que contemple, entre outras coisas, uma nova sistemática de formação de preços.

Para tanto, será fundamental resgatar as bases teóricas sobre a função do preço em uma economia de mercado para, a partir disso, reavaliar seu papel no mercado de eletricidade.

4. PREÇOS: SUAS FUNÇÕES E SUA FORMAÇÃO

Preços têm papel fundamental em uma economia de mercado. São responsáveis por transmitir informação relevante para a tomada de decisão dos agentes. São, assim, essenciais para sinalizar a escassez de algum bem, a oferta de recursos, a viabilidade de novas tecnologias, as preferências dos consumidores e dezenas de outras variáveis que afetam o equilíbrio dos mercados.

Esta seção abordará mais detidamente o papel do sistema de preços em uma economia de mercado. Serão feitas algumas referências aos problemas apresentados na seção anterior, mostrando mais algumas lacunas no processo de formação de preços de energia no Brasil. Também serão lançadas as bases teóricas para a próxima seção, que tratará da formação de preços por oferta dos agentes.

4.1. O PAPEL INFORMACIONAL DO PREÇO

No seu artigo clássico, “The use of knowledge in society”, Friedrich A. Hayek (1945) propõe uma importante discussão sobre as condições necessárias para a existência de um sistema econômico eficiente e socialmente benéfico. Ele inicia sua discussão com uma constatação:

Se detivéssemos todas as informações relevantes, se pudéssemos tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido, e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema seria simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por qual é o melhor uso dos meios disponíveis estaria implícita em nossos pressupostos. (HAYEK, 1945, p. 519-520, tradução nossa)

Diante disso, a grande questão é: o conhecimento de tais “informações relevantes” é possível? Alguém é capaz de conhecer plenamente os “pontos de partida” do problema econômico, assim como os “meios disponíveis”? O próprio Hayek conclui com um enfático “não”. Os “dados” necessários para os cálculos econômicos não estão - e nunca estarão - disponíveis a uma única mente. Reflete Hayek:

O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional é determinado justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias sob as quais temos de agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório que todos os indivíduos separados possuem. O problema econômico da sociedade não é meramente uma questão de como alocar recursos “específicos” - se este “específico” for entendido como meio para que uma única pessoa deliberadamente resolva o problema estabelecido por esse “dado”. Em vez disso, o problema é como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, colocando sucintamente, o problema é a utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.9 (HAYEK, 1945, p. 519-520, tradução nossa)

Em uma economia de mercado, o mecanismo capaz de coordenar essa série de informações dispersas na sociedade é justamente o preço. E assim o faz, pois exerce um importantíssimo papel de transmitir informação relevante para as decisões de agentes econômicos.

Nesse contexto, é válido analisar o caso do SEB. O atual modelo de despacho e formação de preços parece pressupor que os “dados” relevantes para tomada de decisão econômica estão todos à disposição do operador do sistema. Este, por sua vez, coordena o despacho, a fim de maximizar o uso dos recursos disponíveis - no presente e no futuro -, para atender a carga a cada instante a partir de tais dados. A própria concepção do sistema, portanto, tem como premissa central exatamente o que Hayek refuta: a possibilidade de centralizar a informação. Ao contrário, os dados relevantes não estão disponíveis de forma centralizada para ninguém, nem mesmo para um programa de computador.

É útil ilustrar que tipos de informação relevantes estão dispersos com os agentes. Um gerador hidrelétrico pode ter uma ideia melhor da eficiência energética de sua usina, ou mais precisamente, a razão com que um determinado nível de vazão turbinada é convertido em energia. Isso é influenciado, por exemplo, pelo assoreamento das barragens, que diminui o volume útil do reservatório e pode afetar a geração líquida da usina. Um gerador térmico pode ter informações sobre o atraso da entrega de seu combustível, ou da variação imediata de seu custo, tanto para baixo quanto para cima, que afetariam sua disposição de produzir naquele dado momento. Um grande consumidor de energia pode saber que, em um dado momento, é extremamente valioso continuar usando energia em seu processo produtivo, mesmo a altos custos, porque o mercado que atende está aquecido. Em outros momentos, ele poderia reduzir o ritmo de produção porque seu estoque permitiria atender uma demanda fraca. Essas informações sobre o valor da energia (o quanto ela é importante) para cada agente são importantes para determinar o quanto de energia deveria ser realmente produzida em cada instante.10,11

Não há, na organização do sistema brasileiro atual, uma forma de agregar tais informações. Embora sejam extremamente importantes para determinar o despacho ótimo, não há um mecanismo para “coletar” essas informações nas pontas onde existem e trazê-las para o centro decisório que delas necessita para tomar as melhores decisões alocativas. Felizmente, porém, a humanidade já inventou um sistema extremamente simples e efetivo para agregar tais informações: o sistema de preços.

Um preço determinado livremente pelas forças de mercado é capaz de agregar as informações relevantes. Para que essa função se cumpra, ele precisa: 1) responder às ações dos agentes da economia e, portanto, às informações possuídas por estes; e 2) ser conhecido no momento da produção/consumo, para que as decisões de produção e consumo sejam tomadas com base em tal preço. Se estas condições são atendidas, o preço é o melhor mecanismo para agregar essas informações dispersas.12 Isso é válido para qualquer ambiente econômico, mas convém ilustrar tal princípio para o caso do setor de energia.

Se o gerado hidroelétrico julga que seu reservatório está em nível muito baixo (ou que não haverá tantas chuvas no horizonte próximo) e que, pelo preço ofertado pelo mercado, é melhor poupar água do que usá-la para produzir energia naquele momento, então preferirá poupar água. Se o preço justo for mesmo aquele, isso significa que outros geradores (térmicos, hidroelétricos etc.) estão em melhores condições de produzir naquele momento - e é mais eficiente para a sociedade que o façam. Da mesma forma, um gerador térmico que tenha acesso a um combustível barato, naquele instante, poderá decidir produzir pelo preço ofertado. Um sistema de decisões centralizadas, sem ter informações locais que tais geradores detém, poderia tomar a decisão alocativa inversa, despachando o gerador hidroelétrico e poupando o gerador térmico citados acima. Essa decisão seria não eficiente e, portanto, mais custosa para a sociedade.

Note-se que com os preços respondendo às condições reais de produção/consumo e sendo conhecido no momento das respectivas decisões, os agentes teriam os incentivos e os mecanismos para tomarem decisões mais acertadas, refletindo suas informações. Essa participação ativa dos agentes permitiria agregar as informações dispersas, refletindo-se exatamente no preço. Um preço alto sinaliza que o parque gerador está realizando um custoso esforço para produzir aquela energia; se o preço é baixo, a informação é que as condições são favoráveis à produção. Em qualquer situação, o preço agrega o que há de relevante nas informações dispersas e, sendo conhecido a tempo de tomar as decisões de consumo/produção, permite que cada agente as tome da forma que mais lhes é conveniente, implicando a eficiência alocativa, que será discutida na seção 4.2 a seguir.

O preço da energia no sistema elétrico brasileiro não cumpre nenhuma das duas condições listadas anteriormente. Em primeiro lugar, ele não é influenciado pelas ações dos agentes, mas calculado por um programa de computador com informações previamente disponibilizadas. Além disso, o preço efetivo da energia não é conhecido no momento da produção ou do consumo, o que impede que seja usado na tomada de decisões por parte dos agentes. Por preço efetivo da energia, entende-se não apenas o Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), mas também os encargos, que são definidos apenas a posteriori.13

Dessa forma, os preços calculados pelo modelo computacional brasileiro cumprem apenas a função de definir a transferência de riqueza entre os agentes, mas não ajudam a resolver o problema de encontrar a alocação eficiente (quem produz, quem consome), que é, na verdade, o problema mais relevante do ponto de vista econômico, como apresentado a seguir.

4.2. ALOCAÇÕES EFICIENTES E PREÇOS DE EQUILÍBRIO

Do ponto de vista econômico, mais importante do que o preço é que a alocação seja eficiente. Para entender o que isso significa, convém primeiro entender o que é alocação. Neste contexto, é simplesmente a quantidade de energia que cada um dos geradores e consumidores produz e consome, respectivamente. Não é a soma das quantidades produzidas (que sempre é igual à consumida no setor elétrico), é a quantidade produzida e consumida por cada um dos agentes. Assim, se o gerador A reduz sua produção em 1 MWh enquanto o gerador B aumenta a sua pelo mesmo valor, tem-se o mesmo total produzido, mas a alocação é distinta.

A alocação é fundamentalmente relevante do ponto de vista econômico porque define os custos de produção, bem como os benefícios que o consumo proporciona. É fácil ver o lado do custo, se o gerador A citado anteriormente tem um custo maior do que o gerador B, o custo total será reduzido. Do lado do consumo, deve-se observar que 1 MWh pode proporcionar benefícios de valores distintos. Por exemplo, ele pode ser consumido por lâmpadas que esqueceram de apagar, ou por aparelhos numa sala de cirurgia. Portanto, alocações definem aspectos reais da economia.

Naturalmente quer-se que a alocação seja o mais “favorável” para os agentes econômicos, mas “favorável” ou “desejável” são termos ainda muito vagos. O conceito de eficiência formaliza o que se pretende capturar. Uma alocação é eficiente se não existe nenhuma outra que seja estritamente melhor para, pelo menos, um agente, sem piorar a situação de nenhum. Ou seja, qualquer outra alocação melhor para todos será uma alocação ineficiente (sendo estritamente melhor para pelo menos um agente).

No setor elétrico, uma alocação eficiente corresponderia a uma alocação em que apenas os geradores de menor custo produzem e os consumidores que consomem são aqueles que atribuem à energia valor pelo menos tão alto quanto o custo (marginal) de produzi-la. Em outras palavras, se uma alocação é eficiente não se pode encontrar nenhuma modificação nas quantidades produzidas e consumidas por cada um dos agentes sem aumentar o custo total de produção ou deixar algum consumidor insatisfeito por seu consumo. Ou seja, a alocação é eficiente se o conjunto de produtores e consumidores é o melhor possível”.14 Dessa discussão pode-se perceber a relevância do conceito como uma medida de bem-estar do conjunto de agentes econômicos.

Note-se que na definição anterior, sequer são mencionados os preços. É referenciado o custo marginal de produção, porque este define o nível do consumo que é ótimo, do ponto de vista econômico. Se incluir consumo, cujo valor para a energia consumida está abaixo do custo de produzi-la, seria melhor evitar aquele consumo/produção. Mas custo marginal não é exatamente preço. Os dois conceitos acabam coincidindo sob algumas hipóteses, conforme discussão a seguir, mas conceitualmente são distintos.

Isso significa que preços não são importantes para a eficiência? Não, pelo contrário, um dos resultados fundamentais da economia (o primeiro teorema fundamental do bem-estar social) permite exatamente relacionar alocações eficientes com os preços (de equilíbrio) que emergem de um mercado competitivo. Sob as hipóteses desse teorema (que essencialmente garantem que o mercado é perfeitamente competitivo), as alocações que emergem do equilíbrio são eficientes. Mais importante do ponto de vista prático, esse resultado nos permite caracterizar as alocações eficientes de uma forma bem simples.

De fato, numa alocação eficiente, apenas produtores com custos inferiores ao preço (de equilíbrio) produzem e apenas consumidores com valores superiores ao preço consomem. Nenhuma outra alocação que não obedeça a esse duplo critério de corte (para produtores e consumidores) é eficiente. Se algum produtor com custo maior que o preço de equilíbrio produz ou se um produtor com custo inferior ao preço de equilíbrio deixa de produzir, então a alocação é ineficiente. Da mesma forma, se um consumidor não valoriza a energia ao ponto de estar disposto a pagar pelo preço de equilíbrio, então não deveria estar consumindo.

Essa caracterização através do preço permite compreender as funções que este exerce para que a economia chegue às alocações eficientes que, ao final, são - insiste-se mais uma vez - o aspecto central de uma economia. Para compreender isso, considere a Figura 14 a seguir.

Figura 14
Preços de equilíbrio

A Figura 14 ilustra uma situação atípica, em que não há apenas um preço de equilíbrio, mas um intervalo deles. Isso é apenas para enfatizar algo dito antes: os preços não são necessariamente custos: de fato, na Figura 14 o intervalo de preços de equilíbrio é determinado pelo maior valor da demanda que não é atendido e o menor custo de geradores que não produzem. E poderia ser facilmente desenhado um equilíbrio em que mesmo esse intervalo seria determinado pelos valores dos consumidores, mas não pelos custos dos produtores.

O ponto importante é que os agentes cujos pontos estão à direita da quantidade de equilíbrio Q* não produzem ou consomem em equilíbrio - e isso é eficiente. O que é interessante nesse modelo é que tais agentes estão contentes com o fato de não participarem da produção ou do consumo. Na realidade, eles escolhem essa posição por livre vontade. Os produtores à direita de Q* preferem não produzir porque receberiam um preço que é menor do que seu custo; ou seja, se produzissem estariam perdendo dinheiro. Da mesma forma, os consumidores à direita de Q* preferem não consumir porque se o fizessem, teriam de pagar um preço acima do valor que atribuem àquela energia consumida.

Daí pode-se ver claramente o papel que o preço tem em produzir alocações eficientes. Recordando as duas condições citadas anteriormente: que os preços respondam às ações dos agentes e que estes sejam conhecidos pelos agentes quando tomam suas decisões. Dada a segunda condição, apenas os agentes que julgam o preço aceitável (os consumidores que têm valor maior e os produtores que têm custo menor) é que participam da alocação. A primeira condição garante que os preços se ajustam para chegar a um valor de equilíbrio. Ao chegar a esse valor, os preços terão cumprido a importantíssima função de agregar as informações relevantes que apenas os participantes detêm: a saber, os valores que atribuem ao bem consumido ou os custos de produzi-lo.

4.3. POR QUE OS “PREÇOS” NO BRASIL NÃO PODEM CUMPRIR SUA FUNÇÃO

Toda essa discussão deixa bem claro porque a forma como os preços são determinados e comunicados no Brasil tornam absolutamente impossível que os preços cumpram seu papel de agregador de informação.

Em primeiro lugar, eles não se ajustam às ações dos agentes, não respondem de forma alguma as suas decisões. Ao contrário, são determinados por um programa que os define com as informações (e rotinas) que lhe são fornecidas. Não há possibilidade de que os agentes influenciem, com suas ações, a formação instantânea dos preços.15

Em segundo lugar, os preços não são conhecidos pelos agentes: assim, não podem reagir a eles. Os consumidores não sabem exatamente quanto pagarão pela energia que consomem, e os produtores não podem tomar as decisões de produção, que são centralizadas no operador do sistema.

Em suma, a organização atual leva a uma significativa destruição de riqueza no setor elétrico. Usinas com custos superiores ao preço são constantemente despachadas. Consumidores, por sua vez, não dispõem de mecanismos para responder aos preços. E tudo isso ocorre sob a ilusão de um sistema perfeitamente coordenado, que determina o despacho ótimo e os preços de equilíbrio.

5. FORMAÇÃO DE PREÇO POR OFERTA

Na seção anterior, mostrou-se como os preços de energia elétrica no Brasil não podem cumprir as funções que os preços devem cumprir e cumprem em mercados competitivos. Na próxima seção, serão exploradas em mais detalhes as circunstâncias para que essas funções sejam cumpridas, de forma a traçar um conjunto de condições que um futuro modelo de preço por oferta deveria satisfazer.

5.1. O CENÁRIO IDEAL PARA A FORMAÇÃO DE PREÇO POR OFERTA

O ambiente desejável para o funcionamento do mercado de despacho elétrico por oferta de preço deveria ser baseado no conceito da concorrência perfeita, definido pelas seguintes condições:

  1. muitos produtores e consumidores, no qual nenhum participante individualmente detenha o poder de influenciar preços de forma unilateral;

  2. produtos homogêneos, isto é, não existe diferenciação entre os produtos oferecidos entre as empresas;

  3. simetria de informações, ou seja, há disponibilidade e transparência das informações do mercado para todos os participantes;

  4. inexistência de barreira de entrada; e

  5. os preços podem se mover livremente, respondendo às decisões dos agentes.16,17

No setor elétrico, a satisfação dessas condições ideais enfrenta obstáculos significativos. Em geral, existem poucos agentes, com diferentes participações no mercado. Além disso, observa-se uma trajetória de consolidação das empresas, o que concentra ainda mais o poder de mercado em poucas (e estratégicas) empresas.

No mercado de energia elétrica podem ser comercializados diversos produtos, como energia, potência, atendimento da ponta, serviços ancilares, segurança energética e resposta da demanda. Há diversas fontes de geração, com características específicas, e dois ambientes de contratação: ambiente livre, no qual os contratos são customizados de acordo com as necessidades dos consumidores livres; e ambiente regulado, com vários tipos de contratos de fornecimento, como energia existente, energia nova, energia de reserva e reserva de potência. Além disso, cada usina tem suas particularidades operacionais, como rampas de comissionamento e descomissionamento, tempo mínimo de funcionamento do gerador, critérios de regularidade de geração, disponibilidade de combustíveis, entre outras. Ou seja, não existem produtos homogêneos.

As informações do mercado não estão disponíveis para todos os agentes. Contratos bilaterais de venda de energia, de fornecimento de combustíveis, assim como arranjos entre sociedades contêm cláusulas de confidencialidade. Empresas do mesmo grupo econômico também podem valer-se de informações privilegiadas não compartilhadas. A assimetria de informações é endógena no setor.

No Brasil, devido à integração elétrica por meio do SIN, aos limites de transmissão inter-regionais, às características intrínsecas de cada fonte e unidade geradora e ao gerenciamento dos recursos energéticos para a garantia de suprimento no longo prazo, o despacho das usinas é coordenado por um operador central. Além disso, são consideradas características climáticas regionais, fenômenos meteorológicos e condições do mercado internacional, como a disponibilidade energética das interligações elétricas com outros países e a competitividade do gás natural. Logo, a operação não é livremente determinada pelos agentes.

Em suma, não há um cenário ideal de concorrência perfeita. Essa situação cria desafios que são levados em conta no desenho do mercado com formação de preços por ofertas dos agentes, como será comentado mais a fundo nas seções seguintes.

5.2. BENEFÍCIOS DO PREÇO POR OFERTA

Despacho por preço é diferente do despacho por custo. Como enfatizado acima, o custo obviamente influencia a formação do preço, mas os dois conceitos são distintos. Neste sentido, o despacho por preço permite a descentralização da formação do custo marginal, tornando o despacho mais aderente às informações, expectativas e preferências dos agentes, que promove a correta alocação dos recursos.

Outra vantagem da descentralização da decisão de despacho é que não haverá necessidade de se utilizar modelos simplificados do sistema e das unidades geradoras. Cada agente conhece sua usina e tem informações muito mais detalhadas da operação do que o agente central. Com um mercado por ofertas, a agregação da informação reduzirá a ocorrência das “surpresas” que o sistema atual experimenta ao verificar que os níveis do reservatório são distintos do que se esperava. Isso reduzirá a característica da volatilidade do preço no Brasil, como comentado anteriormente.

O desmembramento dos produtos de energia, negociados por meio do preço por oferta, reduzirá significativamente os encargos setoriais, muitos deles ligados ao despacho centralizado. O despacho fora da ordem de mérito, por segurança energética, deve ser minimizado - ou, idealmente, extinto. Serviços ancilares devem deixar de ser remunerados por encargo e tornar-se-ão produtos disponibilizados pelos agentes. Assim, o ESS tende a ficar limitado aos despachos por restrições elétricas, que deverão ainda ser coordenados pelo operador central, para balanceamento do sistema.

A transição para um despacho por oferta também propiciará o ambiente necessário para a revisão do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE). Motivo de sucessivas judicializações no passado recente, este mecanismo de socialização de sobras e déficits - desde 2013, apenas déficits - pode ser substituído por um sistema privado de hedge. Nessa nova configuração, apenas geradores hidrelétricos que desejarem participar do mecanismo teriam acesso, ficando vedados repasses aos consumidores via encargos tarifários, como tem acontecido frequentemente.

No Brasil, são inúmeros os casos de intervenção do Estado no mercado de energia. A eletricidade é um vetor importante no controle da inflação, por isso, até a reforma do setor na década de 1990 os preços foram controlados oficialmente. Mesmo após esse período, diversos episódios podem comprovar tentativas de, artificialmente, conter o aumento dos preços da energia elétrica. Exemplo emblemático disso foi a MP 579/2012.

Além disso, lobbies atuam na defesa de seus interesses individuais, influenciando as agências reguladoras, os ministérios e o congresso nacional, e conquistam regras que beneficiam seus associados. A atividade parlamentar também contribui para a ineficiência do SEB, ao criar subsídios locais, principalmente para as regiões Norte e Nordeste.18

Por último, o receio de um possível racionamento leva o governo a adotar medidas mais conservadoras para a garantia do abastecimento - que implica em elevados montantes de geração térmica fora da ordem de mérito. Nesse caso, julga-se que a pressão sobre o preço é menor do que o custo político do racionamento.

A descentralização das responsabilidades do despacho por oferta vedará parte dessas ingerências, pois a influência do governo e das entidades externas serão limitadas, trazendo os incentivos para o comportamento eficiente dos agentes. Ou seja, mitiga-se parte do risco de intervenções externas, assim como limita-se o poder dos lobbies setoriais.

O processo competitivo do preço por oferta é superior, pois traz a eficiência e o sinal econômico que reflete a aversão ao risco dos agentes. Nesse sinal econômico, mais aderente à realidade, o planejamento de longo prazo da expansão do parque gerador e das linhas de transmissão guia-se pelas condições de equilíbrio do mercado. Da mesma forma, no curto prazo, há incentivo ao desenvolvimento da resposta pela demanda, conferindo mais um grau de liberdade aos consumidores, que poderão reduzir sua demanda mediante contrapartidas econômicas.

Em síntese, o modelo de preço por oferta é mais robusto e transparente, conferindo maior eficiência alocativa com o poder de decisão transferido para cada agente. A tendência, com a quantidade de recursos energéticos limpos e de baixo custo operacional disponíveis no Brasil, é que com o aumento da competição, a longo prazo, haja redução dos preços.

5.3. DESAFIOS DE UM MODELO POR OFERTAS

No Brasil, o passo seguinte às reformas dos anos 1990 seria a implantação da competição no despacho do sistema elétrico. No entanto, ocorreu a crise de suprimento, que resultou no grave racionamento nacional nos anos 2001 e 2002. Nesta época, a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica (GCE) criou o Comitê de Revitalização do Modelo do Setor Elétrico, que em seu Relatório de Progresso nº 2 previa a evolução do modelo de formação de preço por oferta (BRASIL, 2002).

Todavia, a crise aumentou a desconfiança com os mercados, o que foi exacerbado com a mudança no comando do governo federal. Em 2003, o novo governo encaminhou mudanças no setor, que foram consolidadas na Lei nº 10.848, de 2004. O novo modelo tornou as decisões mais centralizadas, com a criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelo planejamento da expansão, e do CMSE, responsável pela supervisão da operação e da expansão do sistema. Além disso, foram instituídos os leilões centralizados de expansão da geração e da transmissão, coordenados por Aneel, EPE e CCEE.

O SEB é um sistema com grande dependência hidroelétrica. O aproveitamento do potencial hídrico foi largamente explorado, com diversas usinas em um mesmo rio, além de rios que se conectam em bacias. Ou seja, o despacho hidroelétrico é complexo, pois uma determinada usina à montante interfere na geração da usina à jusante.

Além disso, a geração de energia está sempre associada ao transporte. Toda a geração é transferida para o consumo imediatamente, afinal não há, até o momento, armazenamento em larga escala economicamente viável. Tem-se, ainda, um componente locacional importante a ser considerado. Ou seja, não se busca apenas o suprimento global, mas deve-se observar o local da geração, a capacidade de transporte, as restrições de transferência, as perdas elétricas e os critérios de contingência operativa das redes de transmissão.

Conforme discutido na seção 1, a coordenação das usinas em cascata e a implantação do SIN foram as principais motivações para a escolha do despacho por custo, estruturado por meio de modelos computacionais. Em tese, tal modelo permitiria o uso ótimo dos recursos energéticos disponíveis - imediatamente e no horizonte operativo. O que não se verifica, na prática, conforme os inúmeros exemplos discutidos.

Com isso, buscava-se mitigar um dos principais desafios do despacho por oferta, a saber, a manipulação de preços. O risco é de que um agente dominante abuse dessa posição para orientar o funcionamento do mercado em determinada direção.

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas, de 2018, concluiu que o mercado de geração de energia no Brasil é moderadamente concentrado, enquanto o segmento de transmissão é altamente concentrado (FGV, 2018). Atualizando os dados para 2020, percebe-se que situação não se alterou de forma significativa.

As Tabelas 3 e 4 apresentam o market share dos segmentos de geração e transmissão, de acordo com a capacidade instalada - em GW e km de linhas. Observa-se que, no caso da geração, o agente dominante detém 23,4% da capacidade de geração do SIN e 38,2% da extensão das linhas de transmissão.

Tabela 3
Participação de mercado na geração
Tabela 4
Participação de mercado na transmissão

Assim, apesar dos indicadores de concentração19 apontarem para um mercado moderadamente concentrado, destaca-se a disparidade entre a primeira e as demais empresas da lista. Constata-se que a Eletrobras detém capacidade de geração cinco vezes maior do que a segunda maior empresa do mercado, a Engie. Capacidade, esta, predominantemente hidrelétrica com reservatórios de acumulação, o que confere ainda mais relevância ao tema.

Hochstetler e Cho (2019) utilizam simuladores de mercado, baseados no modelo de Cournot-Nash, para avaliar eventuais impactos sobre o preço da energia de movimentações relevantes, como a mudança no modelo de formação de preços associada à privatização do agente dominante - Eletrobras. Os autores concluem que a venda da Eletrobras de forma consolidada - isto é, sem separação dos seus ativos, de acordo com as subsidiárias de geração - pode implicar em pressão sobre os preços de energia, em virtude do poder de mercado.

A análise do mercado de contratos sugere o mesmo risco. Partindo de dados das maiores empresas de geração, com capital aberto, constata-se que com o processo de privatização da Eletrobras,20 a nova empresa privada terá à sua disposição um volume de energia descontratada, no ano de 2026, que é mais de seis vezes superior ao montante descontratado da sua maior concorrente - a Engie. De acordo com estimativas da própria Eletrobras, a parcela da sua energia descontratada, em 2026, será da ordem de 80%, enquanto as demais empresas, em geral, têm atuado com nível de contratação superior a 80%.

Os dados estão sintetizados na Tabela 5.

Tabela 5
Parcela descontratada de energia das principais geradoras (GW médios)

Na verdade, a Teoria de Leilões prevê que (quase sempre) há bid shading. Essa expressão corresponde à prática de fazer ofertas com valores dos custos reais, com o objetivo de provocar um aumento do preço. Isso é desprezível para as primeiras unidades ofertadas, mas pode ser relevante para as últimas unidades ofertadas por grandes produtores, vide ilustração desse fenômeno na Figura 15. A curva em vermelho denota as ofertas acima dos custos reais. Observa-se que a diferença entre as duas curvas cresce com o número de unidades ofertadas. É precisamente esse comportamento que define bid shading.

Figura 15
Bid shading: prática de dar lances acima dos custos reais

Embora seja uma realidade em leilões, esse fenômeno pode ser mitigado se os agentes são pequenos. Assim, para observar e limitar sua ocorrência, deve-se preocupar principalmente com os grandes operadores. No entanto, não é viável simplesmente proibir essa prática: simplesmente é muito difícil provar sua ocorrência. Afinal, não saber o custo real é exatamente a primeira motivação para implementar um sistema de preços por oferta que agregue a informação dos agentes. De qualquer forma, outras precauções podem ser tomadas para combater práticas de manipulação de preço como essa. Discutiu-se esse aspecto mais extensamente na seção 6.3. Em todo caso, vale a pena observar que a manipulação dos preços é uma preocupação legítima, mas contornável, pelo menos em parte, a partir de um desenho de mercado consistente. É possível mitigar as falhas de mercado adotando as boas práticas da experiência internacional.

No caso de usinas em cascata, para incentivar os diversos agentes a se coordenarem para buscar a operação eficiente dos reservatórios é preciso segregar a negociação em dois produtos: energia e direito de uso da água. Conforme Lino et al. (2003), com a possibilidade de precificação dos reservatórios é possível encontrar a solução ótima do uso da água para essas usinas em cascata.

6. IMPORTÂNCIA E COMPLEXIDADE DO DESENHO DE UM NOVO MERCADO

As seções anteriores trazem inúmeras ilustrações dos problemas causados pela organização atual do processo de formação de preços de eletricidade no Brasil. A conclusão natural dessa discussão é que é necessário explorar alternativas para chegar a ter um mercado com menos problemas. Infelizmente, tal mercado não se manifesta “espontaneamente”, como emergem muitos mercados competitivos, porque o setor elétrico não funciona em concorrência perfeita e, por isso, é altamente regulado. Para que mudanças aconteçam é necessário coordenar esforços no desenho de um novo mercado.

Nesta seção discutem-se aspectos do necessário esforço de desenhar esse novo mercado. A seção 6.1 discute aspectos conceituais sobre desenho de mercados em geral, com ênfase em aspectos relevantes ao setor elétrico brasileiro. A seção 6.2 lista pontos mais específicos que deverão ser definidos por um desenho de um novo mercado que inclua mecanismos de formação de preços por ofertas dos agentes. Um dos aspectos que esses pontos sugerem é a possibilidade de manipulação de preços, que é uma das mais importantes (e legítimas) preocupações quando se passa de um sistema com preços definidos por modelo computacional, como é o atual, para um outro em que agentes influenciam a formação de preços. Pela importância e centralidade dessa questão, a seção 6.3 é dedicada a analisá-la em mais detalhe.

6.1. REFLEXÕES SOBRE DESENHO DE MERCADOS DE ELETRICIDADE

O desenho de um novo mercado é uma tarefa complexa e envolve a consideração de múltiplos fatores. Se essa afirmação é verdadeira, em geral, é especialmente importante no caso de um mercado complexo e importante como o setor elétrico brasileiro. Essa primeira observação deve levar a pensar que essa tarefa não é para “amadores”, por mais bem intencionados e dedicados que sejam os profissionais incumbidos. Essa mudança exige competência e relevantes conhecimentos técnicos e práticos de desenho de mercados para que seja bem executada.

Se a tarefa é deixada na mão de um grupo de pessoas competentes para realizá-la, pode parecer que não é necessário elencar recomendações sobre como fazer tal trabalho. Afinal, os especialistas saberão o que devem fazer. No entanto, esta seção é direcionada aos coordenadores de tal processo, ou seja, as autoridades que terão a cargo escolher o time de especialistas que deverão desempenhar a parte técnica do desenho de mercado, bem como avaliar o projeto entregue. É importante que tais autoridades tenham uma boa noção do trabalho que deverá ser desenvolvido, bem como as preocupações que deverão ter no momento de avaliá-lo. As observações a seguir estão alinhadas com esse objetivo.

Em primeiro lugar, existe uma visão, muito costumeira, de que é preciso preocupar-se apenas com o mercado spot e não com o mercado de contratos que pode se formar a partir deste. Embora seja possível tomar essa abordagem, ela se mostra sub-ótima, vez que uma das preocupações centrais para o desenho de mercado - a possibilidade de manipulação de preços - pode ser muito mais bem encaminhada levando-se em conta também os mercados de contratos. Ou seja, é melhor pensar os mercados de eletricidade de forma integrada, não focando apenas no mercado spot, mas também no mercado de contratos. A seção 6.3. detalha melhor esse ponto.

Da mesma forma, é preciso considerar não apenas o mercado de energia e capacidade, mas também serviços ancilares. Essa recomendação de levar em conta os vários mercados é influenciada por ideias relacionadas à Teoria de Equilíbrio Geral, que ensina que todos os preços são determinados simultaneamente, afetando uns aos outros. Ou seja, o mercado de contratos e de serviços ancilares influenciam o mercado spot e são, por sua vez, influenciados por este. A influência não vai apenas na direção do mercado spot para esses outros mercados, mas em ambas as direções. Para entender isso, é suficiente recordar que um produtor pode ter receita vendendo energia diretamente no mercado spot ou vender serviços ancilares ou ainda vender energia no mercado de contratos, ficando, portanto, fora do mercado spot.

Outra ideia importante para se levar em conta vem da Teoria de Leilões, esta determina que, simplesmente, participantes de um mercado real não são tomadores de preço! Recorde-se que uma das premissas dos mercados competitivos é que nenhum agente tem poder de mercado. Mas em mercados reais, principalmente os mercados de eletricidade, em várias partes do mundo, o poder de mercado é um problema importante. Assim, é necessário assumir que algum poder de mercado existirá, de forma a incluir regras que tratem de limitá-lo.

A seguir, é necessário levar em conta outra ideia de Teoria de Jogos: ao definir regras, os agentes se adaptam, respondendo aos incentivos criados por estas. Isto é, firmas vão atuar estrategicamente e exercer seu poder de mercado - explorando as regras do mercado! Isso não é um desastre: é apenas uma das condições normais de um mercado real. Assim, é preciso desenhar as regras sabendo que os agentes farão o que é melhor para eles, não o que o gestor central quer que eles façam. Isso requer uma análise de comportamento das condutas que vai além da simples intenção de quem criou as regras. É preciso analisá-las num contexto de jogos, preferencialmente através de experimentos, antes de realmente implementá-la.

Essa predisposição sinaliza a importância de uma forma de ver a questão que é um tanto distinta da forma de pensar de um engenheiro ou de um especialista em finanças. Um engenheiro tende a pensar na solução de problemas por meio da concepção de intervenções mecânicas nas partes do sistema. Isso não funciona em mercados porque pessoas não respondem necessariamente como o projetista concebeu: pessoas são muito mais criativas em suas ações que equipamentos mecânicos ou elétricos. Uma mentalidade restritiva de enxergar esses mercados como puros mercados financeiros, em que “basta” conceber produtos para serem negociados, também não é suficiente. É preciso, obviamente, especificar os produtos que serão negociados, mas isso não esgota a preocupação em se antecipar em como os participantes se comportarão para cada conjunto de regras definidas. É necessária ainda uma visão de Teoria de Jogos até mesmo para considerar apropriadamente essa questão em toda sua profundidade e importância.

Outra das ideias que podem auxiliar a resolução desses problemas é dar incentivos à revelação da informação. Deve-se recordar que informação tem valor - não é possível negar renda informacional aos agentes que a detém. Essa forma de pensar torna a abordagem um pouco mais realista e habilita aproximar-se do importante objetivo de alcançar eficiência por meio da agregação de informação, conforme comentado na seção anterior.

Enfim, o desenho de mercado é uma arte complexa, com muitas moving parts, que tornam toda a tarefa desafiante. É crucial conseguir coordenar os interesses do governo e dos outros agentes do mercado para que a equipe escolhida para realizar o desenho do mercado elétrico brasileiro seja suficientemente capacitada para fazê-lo.

6.2. QUESTÕES ESPECÍFICAS PARA O DESENHO DO MERCADO

Há diversos desafios na definição do desenho de mercado para a transição para o modelo de preço por oferta. A seguir, listam-se, de forma não exaustiva, algumas das questões que um desenho de mercado abrangente e suficientemente detalhado para ser implementado deverá responder.

  1. Qual é o portfólio de produtos a serem comercializados? Eles incluem: energia, capacidade, reserva, serviços ancilares, atendimento de ponta etc.

  2. Quais os tipos de oferta permitidas? As ofertas podem ser restritas a apenas quantidade e preço (múltiplas ou um único valor por participante), ou a submissão de ofertas complexas, como curvas com vários preços e quantidades, limites de potência, rampas de início, arrefecimento, desligamento, no-load, tempo mínimo de funcionamento, despachabilidade, intermitência etc.

  3. Qual é a periodicidade do mercado? Este pode ser apenas day ahead ou, também, intra day, week ahead, intra week etc.

  4. Qual é o modelo de precificação? As opções incluem: nodal, zonal, por submercado etc.

  5. Qual será a granularidade da contabilização? Semanal? Diário? Horário? A cada 15 min? A cada 5 min?

  6. Quais são as regras com respeito à mitigação do poder de mercado/política de regulação e defesa da concorrência? Autorregulação ou normas? Haverá monitoramento do mercado por um market monitor? Como ocorrerá o combate às condutas anticompetitivas? Haverá regras excludentes para pequenos agentes (small fish swims free), como existe no Ercot?

  7. Como será realizada a contabilização e a liquidação? Haverá critérios de medição? Rateio de inadimplências? Depósitos de garantias? Qual será a periodicidade de liquidação (diária, semanal, mensal)?

  8. O modelo de leilões centralizados de contratação de LT, com remuneração por Receita Anual Permitida (RAP), é suficiente? Arranjos de autorização e receita variável, conforme utilização, poderiam dar maior dinâmica e contribuir para a alocação eficiente do serviço de transporte de energia? Nesse aspecto, há trade-offs entre eficiência e poder de mercado e entre eficiência e “justiça social”.

  9. Quantos preços distintos cada empresa pode ofertar? Alguns países/mercados proíbem múltiplos preços, para tentar combater o bid shading. Outros permitem um número baixo de preços distintos (três ou quatro, por exemplo), enquanto outros permitem maior multiplicidade.

  10. Contratos podem determinar despacho ou este é determinado pelo mercado imediato (day ahead or intra day)?

  11. Como fica a questão do unit commitment? Será permitido self dispatch? Como serão feitos os gerenciamentos dos custos de uplift?

  12. Como serão tratados os produtores não-despacháveis (eólica, solar etc)? Poderão dar lances ou serão tomadores de preços?

  13. Qual será o tratamento dado aos chamados prosumers (consumidores produtores)? Eles poderão participar do mercado, talvez por meio de alguma empresa agregadora que os represente coletivamente?

  14. Como serão tratados os grandes consumidores? E os autoprodutores?

  15. Quais as regulamentações para distribuidoras e comercializadoras representando o mercado cativo (residencial e pequenos consumidores)?

  16. Quem será o comercializador de última instância, ou seja, a empresa responsável pelo suprimento dos consumidores que, por algum motivo, não tiveram contratos ativos de compra de energia, e como será a formação de preço desse agente?

  17. Como formalizar um programa amplo de resposta da demanda para incentivar a redução do consumo em períodos de maior uso do sistema? Quais as regras para a redução mandatória da demanda, quando necessário (em períodos de crise)?

  18. Que possíveis externalidades serão levadas em conta no mercado? Haverá diferenciação das fontes como, por exemplo, o impacto que terão nas emissões de gases de efeito estufa (GEE)?

  19. Como será integrado o mercado de preços e a atuação do Operador Nacional do Sistema? Como a obrigação de balancear o sistema será operacionalizada com a atuação do mercado?

  20. Como será a contabilizacão e liquidação do mercado? Será ainda feita pela CCEE? Haverá integração de órgãos? Haverá uma clearing house?

  21. Qual será o papel dos instrumentos financeiros no mercado de energia elétrica no sistema de preços por oferta?

  22. Haverá alguma provisão para o mercado de contratos? Este será, de alguma forma, conectado com o mercado formador de preços instantâneos?

  23. Como ficará o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE)? Quais as regras que deverão ser modificadas?

  24. Como ficarão os contratos legados? Como será a transição entre as regras e obrigações passadas - e ainda vigentes - e as novas?

Estas questões são apenas uma ilustração da quantidade de aspectos que precisarão ser definidos no desenho do mercado.

6.3. FATOR MITIGADOR DA MANIPULAÇÃO: MERCADO DE CONTRATOS

Em um mercado liberalizado e competitivo, geradores e consumidores não têm incentivos para revelar seus verdadeiros custos e benefícios marginais, a menos quando forçados por meio da concorrência. Nesse ambiente, quando o lado da oferta conta com diversos fornecedores, um agente estará disposto a vender seu último produto produzido ao custo marginal. Em um leilão, para oferta de lances de despacho, exceto em mercados com preços diferenciados, a última oferta aceita define o preço para todo o mercado.

Essa característica aumenta a possibilidade de jogo entre agentes dominantes, que podem induzir, artificialmente, preço acima do custo marginal. A manipulação do mercado pode se dar não apenas na oferta de lances para o despacho, mas também por meio das restrições de transmissão. Uma forma eficaz de reduzir o exercício do poder dominante é o mercado de contratos.

Geradores, comercializadoras e varejistas negociam contratos de venda de energia para entrega a termo ou para o mercado futuro. Compõem esses contratos as condições, como quantidade de energia, prazos e local de entrega, e sua correspondente compensação: o preço. Se as condições e os produtos forem padronizados, os agentes do mercado devem concordar com o preço. Nesse sentido, a padronização do mercado de energia com produtos negociáveis torna-se um desafio crítico para o mercado, pois permite a criação de um ambiente para preços transparentes e eficientes, que sinalizam para o custo real e a disposição a pagar por esses custos (IEA, 2005, p. 71).

Se por um lado, lastrear a capacidade entrega de energia por contratos garante uma receita aos vendedores; por outro, pressupõe-se a obrigação de geração dessa energia. O compromisso contratual é contábil, mas exige a contrapartida física: o despacho das usinas (próprias ou de terceiros). No modelo de despacho por oferta, geradores deverão concorrer por preços competitivos, negociar com seus pares para suprir a energia negociada ou assumir o risco (e a volatilidade) do preço spot.

Geradores que não possuem contratos de venda de energia podem participar dos leilões. Porém a ausência de receita de venda aos consumidores e comercializadores retira a competitividade dos lances desses geradores, pois aqueles que têm contratos podem ofertar preços mais competitivos por não estarem expostos às incertezas naturais do mercado de energia. Ou seja, quanto maior o comprometimento contratual, menor será o incentivo às manobras de preço no mercado de curto prazo.

Os contratos futuros são necessários para que os agentes do mercado operem de forma eficiente. Contudo, também são importantes na perspectiva de regulação da concorrência. Os contratos financeiros, além de tornar o mercado mais líquido, também têm a capacidade de evitar abusos de posição dominante, pois quanto maior e mais longo for o comprometimento de um agente de posição dominante em entregar energia a um determinado preço, mais complexos e menos rentáveis serão as possíveis manipulações de mercado.

A volatilidade dos preços na indústria de energia elétrica é um fator de risco percebido tanto para os geradores quanto para os consumidores. Um gerador corre o risco de que o preço seja muito baixo para cobrir todos os custos. Um consumidor corre o risco de que, às vezes, o preço da eletricidade seja muito alto em comparação com os benefícios que ela cria. Um mercado de contratos oferece aos geradores e consumidores uma oportunidade de conhecer e criar um hedge de risco mútuo. Ambas as partes provavelmente estarão preparadas para pagar um prêmio para evitar riscos. Nesse sentido, os contratos oferecem proteção tanto para geradores quanto para consumidores (IEA, 2005, p. 101).

Nesse sentido, o mercado de derivativos de contratos de energia elétrica pode ajudar a mitigar as variações de preço. É neste mercado que são negociados contratos que funcionam como instrumentos financeiros que permitem que as partes envolvidas fixem o preço de compra ou de venda da energia elétrica para uma data futura. Eles são diferentes dos contratos de entrega física registrados na CCEE, por isso são negociados em bolsa.

Em mercados mais avançados, com grande volume de contratos negociados, os derivativos contribuem para melhorar a eficiência e a liquidez do mercado livre de energia. No Brasil, esse é um mecanismo relativamente novo. Desde 2015, a Bolsa Brasil Balcão (B3) disponibilizou o registro de derivativos de energia. Em 2020, o Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (BBCE) também foi autorizado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a negociar esse tipo de contrato. Entretanto, o volume de contratos negociados ainda é pequeno.

Apenas parte das incertezas na geração, na transmissão, na distribuição, na comercialização e no consumo, que gera a volatilidade dos preços, são conhecidas e mitigáveis. Outra série de incertezas sempre estará presente na operação do sistema, como questões climáticas, preços de combustíveis, expansão da infraestrutura, desenvolvimento tecnológico, entre outros. Essas incertezas se traduzem em riscos que, quando não gerenciáveis, são precificados. O incentivo de cada agente em reduzir esse risco definirá a eficiência desse mercado.

Em um setor verticalmente integrado, ou mercados parcialmente liberalizados e regulados, como no Brasil com o ACR, boa parte dos riscos na cadeia de valor do setor elétrico são simplesmente repassados aos consumidores. Entretanto, a eficiência econômica só será atingida quando esses riscos forem atribuídos àqueles agentes tomadores de decisão, que se responsabilizam por considerar essas incertezas em cada elo da cadeia. Por essa razão é preciso que o Brasil avance nas reformas do setor elétrico, evoluindo para o mercado livre varejista. Essa mudança não altera o nível de riscos e incertezas do setor, mas tornam sua gestão mais transparente e justa com a correta alocação das responsabilidades.

CONCLUSÃO E REFLEXÕES FINAIS

Levando em conta toda a discussão deste artigo, a mudança para um modelo de formação de preços por oferta será benéfica para o SEB, desde que o processo de desenho de mercado seja bem conduzido. Deve-se ressaltar que os obstáculos a superar são inúmeros e será necessária uma boa dose de conhecimentos do mercado para se alcançar uma organização satisfatória.

A escassez hídrica vivida em 2021 nos trouxe algumas reflexões. Os resultados dos sistemas de despacho ótimo, a exuberância do instituto do despacho fora da ordem de mérito, a inércia dos preços e as possibilidades de flexibilização da transmissão que não são consideradas nos modelos confirmam que a concentração do poder de decisão está equivocada. Esta não é uma questão de ajuste de modelo, mas de considerar a inteligência distribuída e dar velocidade de resposta em tempos de crise.

Para que esse processo seja levado a bom termo, um dos pontos cruciais é que fique claro, para os agentes, o potencial de ganhos de eficiência e transparência que um novo mecanismo de formação de preços trará.

Em particular, alguns players importantes precisam ficar convencidos desses benefícios. Inclui especialmente autoridades e dirigentes de órgãos públicos (mesmo que de direito privado), como a CCEE, o ONS, a Aneel e o MME. Será necessário gerar a confiança nesses órgãos de que tudo vai continuar “sob controle” e funcionando bem, mesmo que tais órgãos não detenham o mesmo poder centralizado que atualmente detém.

Por outro lado, como essas autoridades sofrem pressões de agentes que podem se sentir incomodados ou ameaçados em seus interesses, é necessário que haja um suficiente consenso no mercado. Ou seja, os agentes precisam superar as divergências de interesse de curto prazo e de convicções, com o objetivo de alcançar um sistema que seja benéfico a todos no longo prazo. Para isso, é necessário que haja suficiente discussão, para que os agentes entendam as mudanças necessárias e se disponham a aceitá-las e, até mesmo, colaborar com elas.

Assim, é importante fomentar consensos em torno de propostas tecnicamente bem construídas. Naturalmente, isso leva tempo e requer paciência, perseverança e resiliência. Afinal, é necessário superar a cultura do setor, que se desenvolveu dentro de esquemas do tipo “comando e controle”. Tal cultura leva a não haver confiança em soluções de mercado. Mas estas soluções funcionam como diversos mercados demonstram. Falar da experiência internacional, mostrando seus benefícios, pode ser uma forma de alcançar tal amadurecimento cultural, que tornará possível o aperfeiçoamento das regras do setor.

REFERÊNCIAS

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  • BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Comissão Permanente para Análise de Metodologias e Programas Computacionais do Setor Elétrico. Análise de alternativas para mitigação da volatilidade do CMO/PLD. Brasília, DF: CPAMP , 2020. (Relatório Técnico, 1-2020).
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  • 1
    Nos mercados de eletricidade, a curva de demanda é, em geral, muito inelástica (vertical na Figura). Assim, a diminuição da demanda com o preço é pequena. Porém, essa variação está presente nesse exemplo, para que o problema de minimização tenha solução.
  • 2
    Ver CPMAP (BRASIL, 2019).
  • 3
    Toda documentação sobre o caso consta do Processo Aneel 48500.000101/2020-28 e está disponível no site da agência (www.aneel.gov.br).
  • 4
    A definição técnica do CVaRα de uma variável X é E[X|X 6 Q1−_[X]], em que Q1−_[X] é o (1−_)-quantil da variável X, ou o α-Value-at-Risk, ou seja, o valor tal que a variável X o excede com probabilidade α (ou fica abaixo com probabilidade 1-α).
  • 5
    Os dois termos não são, a rigor, sinônimos. Pode ocorrer GFOM por restrições elétricas (dada, por exemplo, pela capacidade de uma linha de transmissão). A GTSE é associada mais especificamente à geração de térmicas pela razão de segurança energética e aprovada pelo CMSE. Por simplicidade, serão usados os dois termos como sinônimos.
  • 6
    O episódio está relacionado com a descontratação de distribuidoras que decorreu da não realização de um leilão A-1 em dezembro de 2012 e deixou as distribuidoras expostas ao PLD. O governo deixou de realizar tal leilão porque acreditava que as geradoras iriam aderir às normas propostas na MP 579, de 2012. As distribuidoras ficaram em situação financeira crítica ao longo de 2013 e 2014 e receberam empréstimos patrocinados pelo governo para as socorrer.
  • 7
    Os valores estão referenciados em dólares americanos. Para conversão, utilizou-se a taxa média de câmbio no ano de 2020, publicada pelo Fundo Monetário Internacional.
  • 8
    Desconsiderou-se também, para efeitos de análise, a geração inflexível.
  • 9
    No original em inglês: “The peculiar character of the problem of a rational economic order is determined precisely by the fact that the knowledge of the circumstances of which we must make use never exists in concentrated or integrated form, but solely as the dispersed bits of incomplete and frequently contradictory knowledge which all the separate individuals possess. The economic problem of society is thus not merely a problem of how to allocate ‘given’ resources—if ‘given’ is taken to mean given to a single mind which deliberately solves the problem set by these ‘data.’ It is rather a problem of how to secure the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative importance only these individuals know. Or, to put it briefly, it is a problem of the utilization of knowledge not given to anyone in its totality”.
  • 10
    Nos exemplos dados, limitamo-nos a listar informações detidas por agentes que operam diretamente no mercado de energia. Há outros grupos que também têm informações relevantes, mas que não estão atuando diretamente nesse mercado. Por exemplo, um grupo de meteorologistas pode ter melhor informação sobre a perspectiva imediata de chuvas considerando fenômenos como El Niño e La Niña, além de outras variáveis climáticas globais. Técnicos que acompanham os usos alternativos das águas de bacias podem ter uma melhor informação sobre a afluência. Note-se que essas informações detidas localmente não necessariamente estariam captadas numa série histórica, por mais longa que seja, exatamente pelo fato de que as condições imediatas podem ser muito distintas das que produziram tal histórico. Convém acrescentar que é possível criar mecanismos de mercado para que tais agentes aportem tal informação diretamente. Castro e Cramton (2012) discutem como isso poderia ser feito.
  • 11
    As informações de consumidores foram incluídas na lista porque essas são úteis para definir o nível eficiente de produção. Uma das distorções do mercado de energia (não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo) é que consumidores geralmente não reagem a preços, mas em muitos mercados pelo menos grandes consumidores tem a prerrogativa de fazê-lo e isso é desejável.
  • 12
    Há outras hipóteses para que “tudo funcione bem”, como, por exemplo, que nenhum agente tenha poder de mercado para influenciar o preço e não haja externalidades. Essas outras hipóteses serão deixadas de lado por enquanto para focar no que é mais importante para a discussão neste momento. Essas condições serão revisitadas posteriormente.
  • 13
    Mesmo o PLD, pelo menos até 2020, era definido uma semana (ou mais) depois do período a que se referia. Isso mudou com a entrada do PLD horário em 2021, conforme discutido na seção 3.4.
  • 14
    Tecnicamente, também se diz que a alocação é Pareto ótima.
  • 15
    Acabam influenciando dinamicamente, claro. Por exemplo, os consumidores definem seu consumo e isso leva a um nível de produção que implicará a um maior ou menor uso da água para gerar eletricidade (por parte das hidroelétricas), impactando os níveis dos reservatórios que depois será levado em conta pelo programa. No entanto, o consumo em um dado momento não influencia o preço daquele momento e é nesse sentido que se faz a afirmação original.
  • 16
    Essa condição geralmente não é explicitamente definida no exame teórico de mercados, porque de certa forma já está contida na primeira condição de forma implícita. De fato, a primeira condição preconiza que o preço não é influenciado pelos agentes, o que inclui naturalmente o governo. Sem determinação por parte dos agentes, o preço flutua livremente.
  • 17
    É claro que é possível definir preços no dia anterior, o que é chamado de day ahead — e muitos mercados assim o fazem. Esses preços ficam fixos de um dia para o outro, mas foram definidos pelos agentes. Tais mercados agregam as informações disponível até o momento de seu fechamento. Portanto, é conveniente que haja intra day markets, que permitam agregar as informações mais recentes, respondendo às decisões dos agentes, como enfatizado no ponto.
  • 18
    O exemplo mais recente foi a tramitação da MP 1031/2021, que tratou sobre o modelo de privatização da Eletrobras. A proposta foi completamente desvirtuada pelo congresso, com inclusão de inúmeros dispositivos que visam apenas o benefício de segmentos específicos de geração, assim como distribuição de recursos para algumas regiões do país.
  • 19
    O estudo supracitado, da FGV, estima a concentração de mercado por meio do Índice Herfindahl-Hirschman (HHI).
  • 20
    Que incluirá, entre outras coisas, a “descotização” das usinas anteriormente renovadas, nos termos da Lei 12.783/2013, que somam 7,5 GW médios de garantia física, e a renovação antecipada das usinas de Tucuruí e Mascarenhas de Moraes, quem somam mais 4,3 GW médios de garantia física.
  • CLASSIFICAÇÃO JEL:
    L11; L51; L94; D47; D61; Q41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2021
  • Aceito
    23 Fev 2023
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