RESUMO:
O artigo em tela tem como finalidade articular a dialética inerente à constituição do eu a partir do encontro com o outro com as noções de ferida narcísica e sentimento oceânico. Em seguida, apresenta-se um caso-problema que interroga os limites da construção identitária dos sujeitos subalternizados, marcados pelo discurso colonial, o qual opera a partir de uma distribuição ontológica hierárquica promotora da divisão entre nós e eles, e cujo pressuposto é a noção de falta como atributo fundamental dos colonizados. Tal distribuição ontológica repousa, portanto, na pressuposição de uma hierarquia dos saberes e discursos que tanto reprime a produção de conhecimentos e dos sistemas de signo dos dominados quanto mitifica àquela dos dominadores. O caso em tela coloca em evidência o colonialismo interno em sua dupla determinação: do ser e do saber, e nos leva a problematizar os processos de identificação entre a autofagia e a antropofagia, bem como ao questionamento dos modos pelos quais é possível articular uma fala de resistência que não esteja comprometida pelo discurso e pelos poderes dominantes.
Palavras-chave: alteridade; identidade; colonialidade; dominação epistêmica; antropofagia
ABSTRACT:
Stuttering in One’s Own Language: Anti-identitarian Anthropophagy as a Disruption of Epistemic Domination. This article aimed to articulate the inherent dialectics of self-constitution through encounters with the other, employing the concepts of narcissistic wounds and oceanic feeling. Subsequently, a case problem is presented, which questions the limits of identity construction for subalternized subjects marked by the colonial discourse. The colonial discourse operates through a hierarchical ontological distribution, promoting a division between ‘us’ and ‘them,’ presupposing the fundamental attribute of lack for the colonized. This ontological distribution relies on the presupposition of a hierarchy of knowledge and discourses that both repress the production of knowledge and sign systems of the dominated and mythify those of the dominators. The case at hand highlights internal colonialism in its dual determination: being and knowledge, prompting scrutiny of identification processes between autophagy and anthropophagy. It also raises questions about how it is possible to articulate a resistant discourse that is not compromised by dominant powers.
Keywords: Otherness; identity; coloniality; epistemic domination; anthropophagy
Da ferida narcísica ao sentimento oceânico: o eu às bordas de si mesmo
Não são poucas as assertivas freudianas que produziram algum impacto no campo da cultura. De escrita fluida, o autor nunca recebeu o reconhecimento pretendido dos meios científicos. Foi laureado, no entanto, com o prêmio Goethe de literatura, o qual não lhe deixou de causar certo desconforto. Não que preterisse os poetas e escritores, ao contrário, admirava a Freud (1996/1907) a capacidade que possuíam de antecipar o que só muito depois seria “descoberto” pelo conhecimento acadêmico, uma vez que, em relação ao “conhecimento da alma”, nutriam-se de material ainda não acessível ao meio científico: “os escritores criativos são aliados muito valiosos [do psicanalista], cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar” (FREUD, 1996/1907, p. 20). Freud não se supunha um deles.
Contemporâneo ao psicanalista, o poeta Fernando Pessoa expôs de forma reiterada e insistente a falsa soberania do eu, o caráter alienante e ilusório dessa unidade ficcional, a sua natureza inteiramente outra, externa, a começar pelos muitos heterônimos que criou ao longo de suas obras. Pessoa fora muitas outras pessoas. O eu que se quer indivíduo, nele, afirmou-se multidão anônima: “criei em mim várias personalidades... [T]anto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena nua onde passam vários atores representando várias peças” (PESSOA, 2011, p. 288). Este pequeno trecho do Livro do desassossego, escrito sob o semi-heterônimo de Bernardo Soares, entre 1913 até a morte de Pessoa, em 1935, é contemporâneo da constituição do eu como conceito basilar da psicanálise na obra freudiana.
A constituição da psicanálise enquanto campo de saber é marcada por desnudar a pretensão totalitária do domínio da consciência na vida mental dos indivíduos, como expressa pela tradição da filosofia do sujeito, em favor de uma outra realidade, inconsciente, cujo desconhecimento não elimina a sua importância. No lugar da consciência como ser do sujeito, o discurso freudiano ofereceu o inconsciente como ser do psiquismo (BIRMAN, 1997), esboçando uma nova topologia para o psiquismo, cuja consequência necessária foi a hipótese de uma divisão estruturante do sujeito. No entanto, o descentramento da consciência para o inconsciente, operado por Freud no âmago da primeira tópica, representou apenas o primeiro passo para um outro, mais radical, que implicaria todas as expressões do sujeito. Restava, ainda, colocar em xeque a instância do eu como soberana na regulação do psiquismo.
Entretanto, com a publicação de Introdução ao narcisismo em 1914 e a propositura de que há um investimento realizado pelo Eu em si mesmo, abre-se a concepção desta instância não apenas como sujeito, posto que ainda ligada à consciência, mas fundamentalmente como objeto. A radicalidade desta concepção está na desnaturalização do Eu, que passa a ser inscrito na ordem do outro, ou seja, o Eu não comporia a vida psíquica desde sempre, mas precisa ser desenvolvido no processo dialético que amarra o sujeito à multiplicidade de objetos que compõem o seu mundo. Isso significa que o Eu está, de saída, deslocado em relação a si mesmo, restando-lhe, como possibilidade, tomar-se como objeto e investir libidinalmente em si mesmo, tal como investe nos objetos do mundo externo.
Vale ressaltar que Freud (1914) situa o narcisismo como etapa intermediária entre o anarquismo das pulsões parciais - as quais advêm apoiando-se nas necessidades vitais e na intervenção do outro externo - próprias ao autoerotismo como estágio da sexualidade desprovido de referência unitária, ou seja, que dispensa uma construção identitária, e o investimento libidinal em objetos externos. O narcisismo seria a resultante dessa “nova ação psíquica” colocada em funcionamento pela interferência do outro e imprescindível, portanto, à constituição do eu, cuja consequência primeira foi o seu realojamento na teoria das pulsões, uma vez que a introdução do narcisismo seria responsável pela organização das pulsões parciais anárquicas em torno de uma imagem unificada do eu, investida, a princípio, por esse outro externo ao organismo:
Uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo; o eu tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo portanto necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo (uma nova ação psíquica) a fim de provocar o narcisismo. (FREUD, 1996/1914, p. 84).
O narcisismo adquire importância primeira na vida mental, pois organiza a libido em torno de uma totalidade que, a princípio, será o próprio Eu, reduto de todo o erotismo como sentimento de si mesmo, ainda que restrito aos limites corporais. Nas palavras de Birman, “a constituição do eu se realizaria apenas pela antecipação e pelo investimento das figuras parentais no organismo infantil, de forma a transformar o auto-erotismo em narcisismo” (BIRMAN, 1997, p. 31). Esse momento primeiro de investimento em si será figurado por Freud como de formação do eu ideal, posto que consequência da revivescência do narcisismo perdido dos pais, que passam a investir na figura do bebê. Assim, enquanto os pais atribuem todas as perfeições e plenitudes ao bebê, idealizando-o, este se identifica com o ideal que lhe é atribuído, passando do desamparo à onipotência graças ao amor que lhe é dirigido. O “mim mesmo” psicológico, antes de se constituir como sujeito, surge como que por efeito de um objeto que fora amado, ou seja, a partir do reconhecimento que lhe é oferecido pelo olhar e pelo desejo do outro.
Deste modo, a capacidade de estender-se para o mundo já pressupõe a constituição de si na dependência de um outro: só há Eu enquanto unidade organizativa das pulsões onde houve investimento narcísico; só há narcisismo ali onde há pulsões parciais; não há pulsões onde não interveio o investimento de um terceiro. A noção de Eu, por conseguinte, não se encerra em uma individualidade fechada sobre si mesma, isso porque tomar a si mesmo como objeto de investimento, como realizado no narcisismo, é colocar em tela a anterioridade da alteridade sobre a identidade e, mais radicalmente, a anterioridade da heteronomia sobre a autonomia. O Eu, como lugar de afirmação do sujeito, é também o lugar da sua alienação, como dirá posteriormente Lacan (1998a).
Freud sabia do impacto destas afirmações. No texto Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1996/1917), o autor se perfila ao lado de Nicolau Copérnico e Charles Darwin, cujas descobertas impingiram uma ferida narcísica na humanidade, ao colocarem a nu as pretensões geocêntricas, antropocêntricas e, com Freud, racionais e consciencialista do homem. Como escrevera Fernando Pessoa, “há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua” (PESSOA, 2011, p. 479). Recorrendo a metáforas, Freud explicita o impacto de tais descobertas como produtoras de uma ferida narcísica, como modo de apontar o golpe causado por elas na imagem de autonomia formulada pelo homem a respeito de si mesmo. A metáfora da ferida não é nova, já havia sido utilizada por Freud (1996/1895, p. 258) muito tempo antes, no Rascunho G, ao se referir à melancolia como padecimento em que as excitações sofreriam uma “retração para dentro na esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre as quantidades de excitação contíguas. [...] com isso, instala-se um empobrecimento da excitação - uma hemorragia interna [...] que atua de forma inibidora, como uma ferida” (FREUD, 1996/1895, p. 258). Ao escolher a imagem de uma ferida narcísica, Freud está a dizer que, além de não ter a autonomia como um dos seus predicados, há sérios obstáculos à expansão ilimitada do Eu, obstáculos estes que são consequência da sua própria constituição.
Poderíamos opor essa chaga narcísica, que “atua de forma inibidora”, retraindo o Eu e evitando a sua dissolução onipotente, ao definir e limitar, mesmo que de forma precária, as suas fronteiras, ao “sentimento oceânico”, objeto de debate muito tempo depois, em 1929, no Mal-estar na cultura, entre Freud e seu amigo poeta Romain Rolland, que o define como:
[...] sensação de “eternidade”; um sentimento como o de algo sem limites, sem barreiras, “oceânico”, por assim dizer. Esse sentimento seria um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; [...] Portanto, um sentimento de ligação indissociável e um pertencimento à totalidade do mundo exterior. (FREUD, 2020/1929, p. 306-307).
Enquanto Rolland vincula o “sentimento oceânico” à religiosidade e à sensação de pertencimento ao todo, Freud traça um paralelo entre aquele e o “excessivo narcisismo” presente nas crianças e no homem primitivo1, os quais atribuem poderes excepcionais às suas ideias e pensamentos, supostamente capazes de influenciar o rumo dos acontecimentos externos através de uma força mágica. Ao contrário do poeta, o psicanalista se perfila ao lado dos cientistas, notadamente aqueles que realocaram o homem em posições muito mais modestas, bem aquém da eternidade, do universal ou da razão.
Se a ferida narcísica pode ser contraposta ao sentimento oceânico é porque ambos estão relacionados às fronteiras, às insuficiências, às dependências e relações que constituem o Eu como viajante à deriva do seu destino, sempre contingente e errante. A terceira ferida narcísica da humanidade proposta pela psicanálise representaria, portanto, uma ferida psíquica, pois obrigou o homem a se reconhecer como não sendo o Eu senhor e soberano que supunha ser.
Nesse caso, Freud, o não-poeta, antecipara Pessoa nessa ferida aberta quando se enuncia um Eu que só é possível diferindo de si mesmo. O poeta, no entanto, concordaria com o seu contemporâneo: “sou um viajante que de repente se encontra numa vila estranha, sem saber como ali chegou; e ocorre-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência” (PESSOA, 2011, p. 75).
A propositura radical da psicanálise desloca o Eu não apenas do centro da experiência psíquica, mas o desvia de igual modo em relação a si mesmo, isso porque afirmar a anterioridade da alteridade em relação à identidade é tomar o eu como instância povoada por muitos outros: “<< a maioria da gente é outra gente >>, disse Oscar Wilde, e disse bem” (PESSOA, 2011, p. 273). Pessoa também o dirá:
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, porque agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu. Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. (PESSOA, 2011, p. 75).
Não sendo senhor em sua própria morada, o Eu se afirma em psicanálise como instância fronteiriça, cujas dobradiças o mantêm poroso aos diversos atravessamentos. A divisão intrapsíquica que lhe é efetuada nas instâncias do eu ideal, ideal de eu e supereu colocam em debate os destinos do Outro na constituição do sujeito, mas não só. A insistência de Freud com a metáfora da ferida narcísica em contraponto à antipatia direcionada ao sentimento oceânico é indicativa da importância do Eu na interpretação dos nossos modos de adoecimento psíquico; mas, igualmente, os modelos de sua fundação podem nos auxiliar na compreensão das nossas formas de socialização, não por uma psicologização do social, ao contrário, pelo reconhecimento da antropogênese da qual o Eu é tributário. Disso decorrem os esforços freudianos em marcar a inseparabilidade entre a psicologia individual e a psicologia coletiva; diríamos contemporaneamente, entre os processos de subjetivação e as formas de socialização.
Nesse sentido, enquanto a ferida narcísica pode funcionar como abertura ao campo do outro, ao expor as insuficiências do Eu e remetê-lo a um para além sob a forma de ideias, o sentimento oceânico, ao tomar o Eu como o próprio mundo, a partir da reativação do eu ideal, para cuja formação concorrem não apenas o narcisismo daqueles que inseriram o pequeno infans no mundo humano, mas também a negação da existência do outro em separado - eu-prazer-purificado2 - oferece chaves para a compreensão de processos éticos, sociais e políticos, como o racismo, a xenofobia e o colonialismo.
Quando o subalterno “se intelectualiza”: será você como nós?
Há não muitos anos atrás, no final de 2021, a autora deste ensaio, mulher nordestina migrante-estrangeira nos campi do sudeste, participei como ouvinte de uma defesa de trabalho de conclusão de curso em uma universidade pública do Rio de Janeiro. O trabalho em questão, apresentado a uma banca especializada em construções de narrativas e lutas sociais, tinha por objetivo desconstruir certa noção essencialista da identidade nordestina. O estudante colocava em cena a construção social de um imaginário sobre o nordestino que, em sua hipótese, acabava por inviabilizar as múltiplas subjetividades e formas de estar no mundo daqueles sujeitos a partir de um duplo processo: ora os subalterniza, tomando-os como habitantes de um Brasil profundo, arcaico e a-civilizado; ora os heroiciza, como sujeitos destemidos, críticos e revolucionários. À medida que a palavra circulava entre a banca, a hipótese ganhava consistência. Sabida ou inadvertidamente, a banca colocou em ato as críticas que a sua teoria ilumina, mas não aquece3.
O jovem pesquisador nordestino ousou colocar-se como sujeito da sua própria pesquisa, narrando a construção de uma identidade nordestina e do seu autorreconhecimento enquanto tal - quer dizer, enquanto nordestino, esse grande guarda-chuva identitário - a partir de uma violência que o confrontava com o outro que dele se diferia, ou seja, a sua construção identitária/ontológica só foi possível a partir de um espelho imposto pelo outro, que, ao mesmo tempo em que lhe oferecia um reflexo com o qual fosse possível produzir uma identificação, fazia-o a partir de uma imagem outra, externa a ele, de um semblante normativo em face ao qual só podia reconhecer-se como um retrato borrado, que mostrava, em cada ato, as insuficiências dos seus contornos. Afirmar-se nordestino passava por acolher as insígnias que lhe foram ofertadas, tanto como movimento possível de acolhimento quanto como ação necessária de discriminação - o nosso jovem pesquisador, como ato de batismo no campus fluminense, recebeu a alcunha de Sergipe, seu estado natal, com a qual fora nomeado, também, por sua banca.
Tal ousadia epistêmica rendeu-lhe algumas críticas. Dentre tantas, a de que a subjetividade do pesquisador, quando inserida na pesquisa, “pode ser tão opressora quanto a opressão que denuncia”4. Para completar a mise-en-scène, a orientadora tomou a palavra para explicar a sua colega professora, sudestina e branca, autora da crítica, que, embora tivesse advertido o jovem pesquisador-sujeito-opressor incontáveis vezes, ele não renunciou em dar nome e sotaque ao seu texto, ao que finalizou a orientadora: “sabe como é, né!?, nordestino, quando se intelectualiza, puta que pariu!, não para de falar nunca mais”5.
Colonialidade: colonização do imaginário e repressões simbólicas
Frantz Fanon (2020), em Peles negras, máscaras brancas, faz alusão a alguns exemplos de preconceitos contra o “homem de cor” promotores do racismo epistêmico, isto é, quando a capacidade de produção de conhecimento e o corpo teórico de saber que o orienta são colocados em xeque, seja pela origem geográfica e/ou metafórica desse saber ou em decorrência dos marcadores raciais, étnicos e culturais do sujeito que o enuncia. Fanon nos oferece a sua experiência como recurso didático: expõe que, certa vez, ao concluir uma conferência em Lyon na qual traçava um paralelo entre a poesia negra e a poesia europeia, ouviu de um francês entusiasmado: “no fundo, você é um branco”, ou seja, “O fato de ter estudado por intermédio da língua do branco um problema tão interessante me conferia o estatuto de cidadania” (FANON, 2020, p. 52).
Para Fanon, a colonização não requer apenas - e já é muito - a subordinação material de um povo; ela também fornece apoios discursivos a partir dos quais as pessoas são capazes de se expressar e se entender. Na linguagem, estaria, portanto, a promessa de reconhecimento, isso porque “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quiser ser branco tanto mais o será quanto mais tiver assumido como seu o instrumento cultural que é a linguagem” (FANON, 2020, p. 52): estão dadas as condições para a alienação e a perpetuação do colonialismo epistemológico.
Conforme nos mostra Aníbal Quijano (1992; 2005), o desaparecimento do colonialismo histórico não implicou o desaparecimento do colonialismo como forma de sociabilidade baseada no pressuposto de uma inferioridade étnico-cultural e ontológica do outro, de modo que seríamos regidos por uma “colonialidade” (QUIJANO, 1992, p. 13), sustentada pela imposição de uma classificação étnico-racial da população, e da qual, portanto, o conhecimento seria um instrumento privilegiado de opressão.
Em primeiro lugar, a colonialidade opera a partir de uma colonização do imaginário, produzida, segundo o autor, por uma poderosa repressão, a qual incidiu, em primeiro plano, sobre “os modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos, modos de significação”6 (QUIJANO, 1992, p. 12) , e cujo objetivo não se coloca apenas como modo de inibir a produção cultural dos colonizados, mas também como meio de controle social e cultural, dado o arrefecimento da dominação direta e brutal. A repressão dos modos e da produção do conhecimento dos dominados foi e continua sendo uma das estratégias de dominação. No entanto, não fora/é a única, na medida em que precisou se apoiar na mistificação das normas de produção de conhecimento e significação dos dominadores: primeiro, deixando-os longe do acesso dos dominados; depois, franqueando o acesso parcial e seletivo a alguns poucos privilegiados capturados dentre os dominados, como modo de participação em instâncias de poder dos dominadores; por fim, a cultura dominante tornou-se objeto de sedução, posto que dava acesso ao poder” (QUIJANO, 1992, p. 12).
Se o apoio discursivo fora imprescindível às estratégias de dominação colonial, o foi ancorando-se não apenas nos pressupostos da tese da escravidão natural, defendida por Aristóteles (2002) e reorganizada pelo tomismo medieval (AQUINO, 1996), mas, principalmente, nas fileiras da racionalidade luminosa. A constituição de um método científico que pudesse dar acesso de modo claro e distinto aos objetos do conhecimento a partir de um conjunto de regras e fundamentos exigiu uma racionalidade sistematizada, que expurga de si tudo que não se mostra como evidente - claro e distinto - ao método (DESCARTES, 2018). Assim, entre o cogito cartesiano (DESCARTES, 1973), como certeza assegurada após a aplicação do método aos objetos da metafísica, e o sujeito transcendental kantiano (KANT, 2015), como a síntese entre o diverso sensível e o entendimento, o que se afigurou foi a relação de exterioridade entre o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido; aquele, como opacidade imperscrutável, mas que, no entanto, funda um princípio de identidade, já que fundamento do próprio conhecimento; este, como dado a ser analisado, ordenado, categorizado, conhecido e dominado, posto que radicalmente distinto do sujeito que o toma como objeto.
Tal paradigma forjou a ideia de uma subjetividade individualizada, para cuja constituição não concorreriam as relações intersubjetivas e sociais. Em sua radicalidade, esta propositura financiou o não reconhecimento de qualquer alteridade que não partilhasse dos sistemas de signo da racionalidade nascente, de modo a se estabelecer uma relação de contiguidade entre modernidade e colonialismo (QUIJANO, 1992; DUSSEL, 1993). Frente às abundantes diferenças encontradas no além-mar, os colonizadores europeus se afirmaram enquanto identidade estabelecendo desigualdades de natureza, que reifica o outro negando-lhe a condição de sujeito:
[...] En consecuencia, las otras culturas son diferentes en el sentido de ser desiguales, de hecho inferiores, por naturaleza. Solo pueden ser” objetos” de conocimiento y/o de practicas de dominación. En esa perspectiva, la relación entre la cultura europea y las otras culturas, se establecio y desde entonces se mantiene, como una relación entre “sujeto” y “objeto”. (QUIJANO, 1992, p. 16).
Nesta perspectiva, Boaventura de Souza Santos (2010) afirma que o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal, posto que opera por binarismos baseados na construção de linhas radicais, visíveis e invisíveis, que cortam a realidade social entre territórios metropolitanos e territórios coloniais. Assim, o pensamento abissal produz e radicaliza distinções: “as distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha baseiam-se na invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha” (SANTOS, 2010, p. 30). Tal separação se dá a nível epistemológico, no qual a distinção se faz entre ciência moderna - como única forma de acesso à verdade, pertencente ao lado de lá da linha - e pensamentos mágicos, crenças e opiniões, como o que resta a esse lado de cá. No entanto, tais distinções se referem também a modos de exclusão: exclusões não-abissais, pertencentes ao mundo metropolitano, as quais incidem sobre as condições materiais da existência, e, do outro lado, exclusões abissais, como aquelas que negam o direito ao reconhecimento do outro como humano, e, portanto, negam-lhe o direito à existência. Uma, exclusão social; a outra, ontológica. Por conseguinte, enquanto do lado da linha metropolitana o campo social é constituído pela tensão entre regulação e emancipação, o outro lado, colonial, é regido pela tensão entre apropriação - assimilação, cooptação e incorporação dos modos de vida dominantes - e violência - destruição física, material, cultural e humana. Portanto, conclui o autor, “a humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna” (SANTOS, 2010, p. 34), na qual a negação de uma parte da humanidade adquire caráter sacrificial. Vale ressaltar que estas linhas não são geográficas, mas metafóricas; esquadrinham os espaços sociais do Norte ao Sul global, embora praticamente se sobreponham abaixo do Equador.
Deste modo, para além da dominação física brutal, o colonialismo, sob a forma da colonialidade, foi e continua a ser uma dominação epistemológica que suprimiu conhecimentos e saberes dos povos e locais colonizados, relegando-os à condição de subalternidade, quando não os destruiu. Essa destruição sistemática dos saberes localizados do outro lado da “linha abissal”, quer dizer, no mundo colonizado, “desarmou tais sociedade, tornando-as incapazes de representar o mundo como seu e nos seus próprios termos”, e, portanto, como possível de mudança pelos seus próprios meios. A essa violência epistemológica, Boaventura chamou epistemicídio; assim, em seu entender, “a colonialidade [conforme formulada por Quijano] é a continuação do colonialismo por outros meios”, isso porque o fim do colonialismo político apenas significou a substituição deste por um outro, como o colonialismo interno, o racismo e a xenofobia (SANTOS, 2010, p. 27).
Estar despossuído de predicados
À pergunta-título do ensaio Pode o subalterno falar?, Gayatri Spivak (2010), pensadora indiana feminista pós-colonial, oferece-nos uma resposta dura: para ela, o subalterno não pode falar porque ele não pode ser ouvido, pois articular um discurso de resistência implica o uso das representações dentro do discurso hegemônico, implica que haja o outro da enunciação. Se o sujeito subalterno já é o outro da enunciação, precariamente constituído como subjetividade - o ser da falta -, então ele está apartado da troca simbólica, restando-lhe o papel de objeto do saber sobre ele, portanto, de um saber que lhe escapa. Disto decorre, para Spivak, a posicionalidade privilegiada do intelectual como figura legitimada dentro das estruturas de poder a falar pelo subalterno para representá-lo. Ocorre que essa posição ambígua do intelectual que se julga capaz de falar em nome do outro, para ela, não é representação, mas silenciamento. Quando o Outro precisa ser ocultado para ser apreendido, estamos nos registros de uma violência epistêmica (SPIVAK, 2010), mas também ontológica (MALDONADO-TORRES, 2022) e societária (FANON, 2020).
Voltemos ao nosso jovem pesquisador. Caído o véu7 (DU BOIS, 1999), foi possível a ele o reconhecimento enquanto sujeito pelos pares, mas, para isso, fez-se necessário o abandono da sua subjetividade-estrangeira - étnica, exótica, folclórica, carente e confusa, posto que não-intelectualizada -, e, mesmo assim, com uma advertência cravada como nome próprio que não lhe permite o esquecimento, mesmo que temporário, da sua procedência geográfica, como um resto não assimilado pela cultura dominante, como as linhas abissais que o seccionam produzindo sulcos através dos quais a geografia ontológica lhe desenha ausências, como uma mancha de sangue no umbral da porta: Sergipe, SER-gente, mas não como “nós”. Identificação que o acorrenta à sua imagem, aprisiona-o, “vítima eterna de uma essência, de uma aparência pela qual ele não é responsável” (FANON, 2020, p. 49).
Ao ingressar na ordem do discurso dominante, sua absorção enquanto sujeito se efetua, e só pode se efetuar, se ele recusa as suas marcas e inscrições em um mundo cuja apreensão só é possível enquanto objeto do conhecimento, como instrumento de um saber que lhe é externo. O problema é que esse sujeito, “quando se intelectualiza”, ou seja, quando passa da natureza - símbolo do Outro - à cultura - signo do eu -, insiste em dizer que há um resto inapreensível pela cultura dominante, pela língua dominante, pela forma-sujeito dominante. Para apreendê-lo é necessário que esse resto se converta no próprio sujeito de enunciação a partir de um ato de fala que desarticula as chaves de interpretação que buscam representá-lo, donde só ser possível como uma “opressão” ou como um choque, tal qual o produzido em uma criança pela figura de Fanon nas ruas de Paris.
Se insisto neste exemplo doméstico é para dizer que as violências epistêmicas não são apenas fruto do colonizador. Quando manejamos conceitos, estamos falando e descrevendo modos de vida, estamos distribuindo precariedade de forma diferencial. A violência epistêmica e ontológica também pode ser resultante da nossa mente subordinada ou da nossa autoalienação intelectual, frutos de uma incorporação acrítica das ideologias/discursos/saberes dominantes, os quais tomam o sujeito europeu como norma universal que nos esquarteja para que caibamos nas suas caixinhas simbólicas. Como nos lembra Quijano (2014), o eurocentrismo não é exclusivo dos europeus ou dos dominantes do capitalismo, mas também dos educados sob a sua hegemonia.
Para concluir, ou como gaguejar na própria língua
Como, então, articular uma fala de resistência que não seja atravessada pelo discurso dominante? Como pensar, problematizar e resistir às formas de sujeição ancoradas nos discursos e formas de conhecimento que nos foram impostos como modelo de racionalidade, operadores de uma fratura entre nós e eles, entre sujeitos que conhecem e objetos a serem conhecidos? Qual a importância, se há, dos marcadores identitários nas lutas de emancipação social, política, epistêmica e psíquica? Como romper com a menoridade (KANT, 1985) que nos querem imputar, seja através da determinação dos temas relevantes para a pesquisa ou na invisibilidade do que produzimos, seja na desarticulação do nosso discurso ou na exigência que ele esteja conforme aos pressupostos epistemológicos que o antecederam?
Se a colonialidade depende do papel ativo dos colonizados através da sua reiteração, é porque sujeição não se dá apenas pela coerção, mas pela internalização e reprodução de termos e normas que garantem a nossa existência. Esta conclusão está na base do argumento sustentado por Judith Butler (2017) em A vida psíquica do poder. Para a autora, a constituição do sujeito expõe a sujeição psíquica como modalidade específica de sujeição, uma vez que a vulnerabilidade psíquica própria à nossa condição de desamparo nos expõe às normas sociais, as quais configuram e produzem o desejo como desejo de sujeição. Isso porque o sujeito pode ser considerado como uma volta do poder sobre si mesmo, ou seja, o sujeito é o efeito da produção de sentido nas voltas do poder, por isso, não está referido a um ente a priori, mas a um efeito discursivo pré-ontológico, um “efeito do poder em recuo” (BUTLER, 2017, p. 15). Segundo Butler, o paradoxo da sujeição resulta no paradoxo da referencialidade, uma vez que falar da constituição do sujeito na e pela sujeição é falar daquilo que ainda não existe. Butler lança então a questão:
O que então se deseja na sujeição? Seria o simples amor pelos grilhões, ou existe um cenário mais complexo em ação? Como manter a sobrevivência se os termos de garantia da existência são justamente aqueles que exigem e instituem a subordinação? Nessa perspectiva, a sujeição é o efeito paradoxal de um regime de poder em que as próprias “condições de existência”, a possibilidade de continuar como ser social reconhecível, requer a formação e a manutenção do sujeito na subordinação. (BUTLER, 2017, p. 36).
Davi Kopenawa, em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), nos faz um relato comovente do seu processo de aproximação e assimilação da cultura branca:
[...] Eu queria mesmo conhecer os brancos. Por isso eu os escutava com muita atenção. [...] me esforçava para capturar suas palavras uma por uma, para fixá-las em mim. Mas não era nada fácil. Custou-me muito reunir algumas delas em minha mente. Mas, pouco a pouco, as que eu conseguia reconhecer aumentaram. Eu continuava mudo, mas estava começando a compreender o que o pessoal do posto me dizia. Aí, minha boca acabou perdendo o medo. Então, me arrisquei a proferir algumas daquelas palavras estranhas com a língua torcida. (KOPENAWA, 2015, p. 2820-283).
Davi Kopenawa fala de um longo processo de aproximação e hesitação que se faz às bordas de si e no reconhecimento do outro, de um desejo de aprender e apreender a alteridade que o confronta consigo mesmo enquanto identidade e, neste processo o captura e o agencia: “[...] Por que não imitar os brancos e virar um deles? Eu só queria uma coisa: parecer com eles. Por isso, observava-os o tempo todo em silêncio, com muita atenção. Queria assimilar tudo o que diziam e faziam” (KOPENAWA, 2015, p. 289). Davi assimilou os costumes do branco, as roupas, os acessórios, as mercadorias, que fixaram o seu pensamento; assimilou as suas doenças e os seus modos de padecimento. Após conhecer as doenças, que quase o levaram à morte, e “as palavras do branco” (KOPENAWA, 2015, p. 289), Davi resolveu voltar para a floresta, mas não sem a compreensão de que “eles [os brancos] nos maltratam somente porque somos gente diferente deles. Por isso, se tentarmos imitá-los, as coisas vão ficar mesmo ruins para nós” (KOPENAWA, 2015, p. 289). Kopenawa, através da sua advertência, expõe os riscos de uma identificação autofágica que só se processa a partir do esmagamento do Eu e dos seus predicados. No entanto, frente ao risco, não nos propõe a abolição do outro: “Também é verdade que conheço a língua dos brancos. Porém, imito-a de maneira desajeitada, apenas quando vou à cidade ou para conversar com eles na floresta” (KOPENAWA, 2015, p. 290, grifo nosso).
Torcer a língua, imitá-la como uma paródia, como modo de subverter a sujeição. Kopenawa desajeita, desarma aquilo cuja potência poderia emudecê-lo enquanto sujeito de enunciação. Partilha o sintoma da língua, ou a língua como sintoma, não como lei. Produz uma gagueira que desarticula os signos que o fixam enquanto identidade outra, despossuída dos predicados garantidores de igualdade, e, assim, reingressa na ordem do discurso como sujeito da enunciação a partir da afirmação da potência de uma língua e de uma “identidade imprória”, que transforma “a identificação alienante em gesto político de insubmissão” (RIVEIRA, 2020, p. 14). Da autofagia à antropofagia, como totemização ou violação do tabu; em sua leitura do Manifesto antropófago (ANDRADE, 1928), a psicanalista Tania Riveira explicita que é na “própria questão do outro, ou do eu posto em questão como outro e com o outro - e um modo de identificação que, ao mesmo tempo, constitui uma assimilação extrema e uma destruição da suposta superioridade do outro, por meio da irrelevância e da paródia” (RIVEIRA, 2020, p. 15, grifos da autora) que se encontra, para a antropofagia, o traço definidor do Brasil, que, acrescento, envolve uma brasilidade sem a construção de uma identidade.
Retomo, pois, a pergunta que inicia este tópico: como articular uma fala de resistência que não seja atravessada pelo discurso dominante? Contra a ordem do discurso, a gagueira da língua com suas fissuras e brechas, nas hiâncias e fabulações. Gaguejar na própria língua, como estrangeiro, é se deixar atravessar pelas intensidades, pelos afetos, pela história e pelo que ela silencia; é incorporar as ausências que coatam a voz e faz dela mero aparelho fonador; é ter a ousadia de interpor aos discursos dominantes um discurso próprio livre de medo; um discurso fortemente marcado pela revolta contra as dominações, pois forjado nas batalhas reais a que somos convocados cotidianamente: um discurso capaz de questionar o próprio estatuto ontológico a que estamos vinculados, que reverbere nas palavras o afeto indicado (DELEUZE, 2011) como modo de fazer emergir o sujeito apartado do seu discurso, um discurso que aponte, ao mesmo tempo “a tensão na língua e o limite da linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 144). Não se trata, portanto, da abolição dos signos, das racionalidades, dos sistemas simbólicos e imagéticos que constituíram as nossas formas de representar o mundo, mas de operar tensões, torções e expansões no próprio interior desta racionalidade.
No Sul Global, tal ousadia precisa estar atenta às complexidades da nossa configuração histórico-social e das nossas precariedades. Precisa vir acompanhada da desconfiança de que todo o saber é local e situado (KILOMBA, 2019), ou seja, reflete as configurações, os preconceitos, as vivências e saberes de um espaço delimitado por um tempo específico. Ailton Krenak nos ensina que a resistência dos povos originários do Brasil a quinhentos anos de colonização só foi possível porque “a gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais”. Se conseguirmos afirmar a diferença, “se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (KRENAK, 2020, p. 31).
Autores contemporâneos brasileiros, como Birman (2000; 2013) e Safatle (2016), vêm insistindo na dimensão produtiva do desamparo - essa ferida narcísica que não cessa de nos mostrar, como testemunha abonatória, as nossas insuficiências -, como operador social a partir do qual é possível a abertura ao campo da alteridade. Assim, a construção de projetos políticos de emancipação passaria necessariamente pela assunção do desamparo, “já que aquele é a resultante na subjetividade de um mundo que não se funda mais sobre ideias totalizantes e universalizantes” (BIRMAN, 2000, p. 95), e pela recusa a modelos subjetivos fortemente ancorados no senso de identidade pessoal:
Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me identificam. Por isso, afeto que me confronta com uma impotência que é, na verdade, forma de expressão do desabamento de potências que produzem sempre os mesmos atos, sempre os mesmos agentes. (SAFATLE, 2016, p. 21).
Em detrimento de uma alteridade autofágica, que se processa pela incorporação acrítica dos ideiais, dos totens e tabus, das racionalidades, dos discursos e saberes alheios e alhures, que acabam por mutilar a capacidade de composição e expressão de outros mundos possíveis, transfigurando-se em meras réplicas tornadas pálidas pelo sol dos trópicos, uma alteridade antropofágica, que viola o tabu (ANDRADE, 1970/1928), deglute, regurgita e incorpora, mas a partir de um corpo - teórico, político, ético, cultural - situado: “Só a antropofagia nos une!” (ANDRADE, 1970/1928),brada o poeta. Nem ensimesmado, tampouco dissolvido em uma suposta totalidade oceânica (nacional/cultural/linguística/regional) dos iguais. Antropofagia, cujo princípio fundamental é o reconhecimento de si e do outro em sua radical singularidade.
REFERÊNCIAS
- ANDRADE, O. Manifesto antropófago Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Oswald de Andrade Obras Completas, 4)
- AQUINO, T. Tomás de Aquino São Paulo: Abril Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores)
- ARISTÓTELES. A Política São Paulo: Martins Fontes, 2002.
- BIRMAN, J. Estilo e modernidade em psicanálise São Paulo: Ed. 34, 1997.
- BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
- BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
- BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
- DELEUZE, G. Gaguejou. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica São Paulo: Editora 34, 2011.
- DESCARTES, R. Discurso do método Rio de Janeiro: Vozes de Bolso, 2018.
- DESCARTES, R. Meditações metafísicas São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)
- DUSSEL, E. 1492, O encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
- DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda ed., 1999.
- FANON, F. Peles negras, máscaras brancas São Paulo: Ubu Editora, 2020.
- FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1905). In: FREUD, S. Obras incompletas de Freud: As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
- FREUD, S. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9)
- FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)
- FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Obras incompletas de Freud: cultura, sociedade, religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
- FREUD, S. Rascunho G Melancolia(1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)
- FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)
- KANT, I. Crítica da razão pura Petrópolis: Vozes, 2015.
- KANT, I. Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? In: KANT, I. Textos seletos Petrópolis: Vozes, 1985.
- KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
- KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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- LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1963). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
- MALDONADO-TORRES, N. Sobre a colonialidade do ser Rio de Janeiro: Via Verita Editora, 2022.
- PESSOA, F. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
- QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B, S.; MENESES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul São Paulo: Cortez Editora, 2010.
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QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-racionalidad. Perú Indíg, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Disponível em: Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf Acesso em:20 nov. 2023.
» https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf - RIVEIRA, T. Psicanálise do outro (para nela tomar lugar). In: RIVEIRA, T. Psicanálise antropofágica: identidade, gênero, arte. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2020.
- SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
- SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B, S.; MENESES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul São Paulo: Cortez Editora, 2010.
- SPIVAK, G. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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Este artigo é resultado de discussões iniciadas no doutorado e aprofundadas na pesquisa de pós-doutorado. Contou com os financiamentos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), sob a modalidade de Bolsa de Programa Pós-Doutorado Nota 10, código do processo E26/205.790/2022, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior (CAPS), sob a forma de bolsa de doutorado.
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No que pese a visada antropocentrista de Freud ao se referir a um suposto arcaísmo da mente do “homem primitivo”, bastaria ao autor olhar para as práticas mágicas presentes na cultura europeia, como a crença da onipotência divina, na Santíssima Trindade, na ressurreição etc.
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Ao apresentar, em seu Três ensaios sobre a sexualidade (2017/1905), os destinos aos quais as pulsões estão sujeitas, Freud estabelece a existência de três polaridades que governam a vida mental, quais sejam, a oposição: entre sujeito (eu) e objeto (mundo); entre o desprazer e o prazer; e, por fim, entre o ativo e o passivo. A trama complexa destas polaridades será decisiva para a posicionalidade do sujeito no mundo, isso porque ele assimilará o eu àquilo que é prazeroso, introjetando, pela atividade pulsional, os objetos do mundo que se lhe afigurem com tal e, de igual modo, perceberá como estranho a si tudo que lhe seja fonte de desprazer, projetando-o para o mundo. Portanto, a partir da introjeção do que percebe no outro é que o indivíduo atribui a si mesmo um lugar no mundo. Passivo em relação ao mundo externo e ativo todas as vezes que buscar modificá-lo, o eu constitui-se (percebendo-se), por meio desta atividade pulsional, como um “eu-prazer purificado” (FREUD, 1996/1905, p. 55), inteiramente dominado pelo princípio de prazer. Podemos localizar o eu ideal como correspondente a esse eu-prazer purificado dos Três ensaios, dado que aqui há uma cisão, tanto do eu quanto do mundo, entre uma parte vivida como estranha e expelida do eu e uma parte do mundo introjetada e incorporada ao eu, posto que fonte de prazer. O eu, como instância, passa a coincidir com aquilo que é prazeroso, mesmo que localizado fora do indivíduo biopsicológico; e o objeto, com o desprazer, ainda que o desprazer seja oriundo de uma fonte pulsional. Borram-se as fronteiras entre o interno e o externo. Se recordarmos o sentimento oceânico, a sensação de dissolução do indivíduo no mundo nada mais é que a incorporação do mundo pelo eu, sua indistinção, ou seja, um retorno ao eu ideal, como eu-prazer purificado, que contém em si todas as perfeições: “reconhecemos como a primeira dentre essas fases [de desenvolvimento das pulsões] a de incorporar ou devorar, como uma forma de amor incompatível com a suspensão da existência em separado do objeto” (FREUD, 1996/1905, p. 61, grifos do autor).
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3
Devo essa metáfora da teoria-neon, que ilumina, mas não aquece, à leitura de A cidade dos sábios, de Luiz Antonio Baptista (1999).
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4
Todos os trechos entre aspas presentes neste tópico reportam ao discurso direto da banca de avaliação em questão, mantida sob anonimato para preservar a identidade dos envolvidos, posto que o nosso objetivo não é individualizar uma questão, antes problematizar o funcionamento da lógica colonial presente, inclusive nos circuitos que intentam combatê-la.
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5
Cfr. nota anterior.
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6
Em tradução livre: “los modos de conocer, de producir conocimiento, de producir perspectivas, imagenes y sistemas de imagenes, simbolos, modos de significacion”.
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7
Du Bois se utiliza da metáfora do véu para explicar a situação racial nos Estados Unidos, seu país de origem. Para ele, há um véu entre brancos e negros, que, paradoxalmente, os faz habitarem mundos distintos, embora partilhem o mesmo mundo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
30 Set 2023 -
Aceito
15 Nov 2023