Resumos
OBJETIVO: analisar as variações semânticas do enunciado de crianças em processo de desenvolvimento da linguagem. MÉTODOS: participaram deste estudo 10 crianças em processo de desenvolvimento da linguagem, entre três e quatro anos, e sem queixa e/ou alterações auditivas e cognitivas. A coleta de dados foi realizada por meio de observação e registro, em áudio e vídeo, de situações de interação lúdica. RESULTADOS: nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos, observou-se que houve maior ocorrência da superextensão apenas em relação à subextensão (p=0,039) e que houve tendência a maior ocorrência quando comparada com a proximidade fonológica (p=0,053), dêitico (p=0,053) e relação de contiguidade (p=0,083). Nos enunciados das crianças na faixa etária de 4 anos, houve maior ocorrência da perífrase em relação à subextensão (p=0,012) e proximidade fonológica (p=0,012). Não houve diferença entre as variações semânticas estudadas entre as faixas etárias de 3 e 4 anos. CONCLUSÃO: as variações semânticas mais frequentes foram a superextensão e a perífrase.
Linguagem Infantil; Semântica; Simbolismo; Desenvolvimento da Linguagem; Intenção
PURPOSE: to analyze the semantics of the statement of changes were in the process of development of language. METHODS: the study included 10 children in the process of development of language, between three and four years, without complaint and / or hearing and cognitive impairments. Data collection was performed through the observation and recording, audio and video, playful interaction situations RESULTS: in the statements of children aged 3 years, it was observed that there was a higher occurrence of super-extension only in relation to sub-extension (p=0,039) and that there was a trend to higher incidence when compared with the proximity phonologic (p=0,053), deitic (p=0,053) and relation of contiguity (p=0,083). In the statements of children aged 4 years, there was a higher occurrence of periphrasis in relation to sub extension (p=0,012) and proximity phonologic (p=0,012). There was no difference between the semantic changes studied between the ages of 3 and 4 years. CONCLUSION: the variations were most frequent semantic super-extension and periphrasis.
Child Language; Semantics; Symbolism; Language Development; Intention
ARTIGOS ORIGINAIS
Variações semânticas nos enunciados de crianças em processo de desenvolvimento da linguagem oral: estudo preliminar
Tatiana Rocha SilvaI; Denise Brandão de Oliveira e BrittoII
IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Tatiana Rocha Silva Rua Boninas, 1070 - Pompeia Belo Horizonte - MG - Brasil. CEP: 30280-220 E-mail: tatiana.rochas@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO: analisar as variações semânticas do enunciado de crianças em processo de desenvolvimento da linguagem.
MÉTODOS: participaram deste estudo 10 crianças em processo de desenvolvimento da linguagem, entre três e quatro anos, e sem queixa e/ou alterações auditivas e cognitivas. A coleta de dados foi realizada por meio de observação e registro, em áudio e vídeo, de situações de interação lúdica.
RESULTADOS: nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos, observou-se que houve maior ocorrência da superextensão apenas em relação à subextensão (p=0,039) e que houve tendência a maior ocorrência quando comparada com a proximidade fonológica (p=0,053), dêitico (p=0,053) e relação de contiguidade (p=0,083). Nos enunciados das crianças na faixa etária de 4 anos, houve maior ocorrência da perífrase em relação à subextensão (p=0,012) e proximidade fonológica (p=0,012). Não houve diferença entre as variações semânticas estudadas entre as faixas etárias de 3 e 4 anos.
CONCLUSÃO: as variações semânticas mais frequentes foram a superextensão e a perífrase.
Descritores: Linguagem Infantil; Semântica; Simbolismo; Desenvolvimento da Linguagem; Intenção
INTRODUÇÃO
O ser humano detém um léxico mental, e este é acessado quando há o desejo de representar, por meio de palavras, um objeto, uma ação, um atributo, um evento. O aprendizado de palavras e como utilizá-las adequadamente é um aspecto fundamental do desenvolvimento da linguagem 1,2.
O processo de aquisição lexical é complexo e a sua investigação requer um olhar sob diferentes perspectivas. A aprendizagem de palavras mais do que qualquer outro aspecto da aquisição linguística se encontra na interseção do desenvolvimento cognitivo e linguístico. Entender como as crianças aprendem palavras novas é fundamental para a compreensão do processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem 2.
A semântica é o revestimento intelectual e racional da linguagem. É a responsável pela compreensão do valor das coisas do mundo. Depende muito mais do enunciatário/interlocutor do que do enunciador/locutor. A semântica é a grande responsável pelo entendimento e desentendimento entre as pessoas. É também a responsável pela expansão da língua por meio do recurso da polissemia. Esta é a atribuição de muitos sentidos a uma só palavra. O sentido diferente apresentado pela mesma palavra depende do contexto em que ela é empregada ou para o qual ela é dirigida 3,4.
A linguagem humana é polissêmica, pois os signos, tendo um caráter arbitrário e ganhando seu valor nas relações com os outros signos, sofrem alterações de significado em cada contexto. A polissemia depende do fato de os signos serem usados em contextos distintos 5,6.
A semântica estuda não só o sentido das palavras, mas também o dos enunciados e textos. A semântica é totalmente dependente do contexto. Como existe linguagem silenciosa, só de pensamento, o comportamento e a personalidade são externalizados por uma linguagem que pode ser interpretada adequada ou inadequadamente à intenção do falante 7.
Os estudos sobre o desenvolvimento semântico têm a finalidade de compreender o processo de aquisição do significado das palavras pelas crianças. Além disso, estes estudos permitem compreender como as crianças ampliam seu vocabulário, com que velocidade e, principalmente, quais os fenômenos que caracterizam o uso das palavras durante o período de desenvolvimento lexical. A aquisição lexical relaciona-se com a capacidade de compreender e produzir diversos tipos de significados 1,7,8.
Percebe-se que, entre os pesquisadores, há uma tendência em destacar que o princípio que rege a categorização e a formação de conceitos é a analogia ou raciocínio analógico. Compreende-se por analogia o recurso que permite colocar dois conceitos em relação, sejam eles mais próximos ou mais distantes. Ao transferir conceitos de um domínio semântico para outro, pode-se produzir o que a linguística cognitiva denominou de metáfora 4.
No entanto, a linguística cognitiva revolucionou o estudo das metáforas ao propor que a metáfora é conceitual, relacionada às funções de pensamento e de linguagem e, por isso, inerente à cognição humana. Por integrar a cognição, pensar e falar metaforicamente seriam habilidades independentes de intencionalidade e consciência, podendo ser emitidas sem esforço por pessoas comuns. Além disso, o sistema conceitual é, em parte, metaforicamente estruturado, ou seja, a metáfora tem uma importante função na formação dos conceitos e da linguagem 6.
A noção de semântica introduz o domínio da língua em emprego e em ação, assim observa-se na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo; e em resumo, organizando toda a vida dos homens. É a língua como instrumento da descrição e do raciocínio. Somente o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo, e por consequência a normalidade do pensamento e o desenvolvimento da consciência 9-11.
Todos os estímulos do ambiente são geralmente interessantes para a criança pequena. E para um bom desenvolvimento da linguagem a curiosidade pelo novo e a experiência são essenciais para que todas as informações sejam acrescentadas e integradas às mais antigas e assim interiorizadas. Desta forma, a maioria das informações deve, posteriormente, resultar em comunicação e em linguagem. Assim, descobrir, reconhecer, conhecer, compreender e responder a emoções, afetos expressos na face de outros, em diferentes entonações da voz e por último discernir o significado de cada palavra e do discurso produzido pelas pessoas constituem uma tarefa que depende tanto de fatores externos como de possibilidades internas de cada sujeito 11-15.
Existem diferenças individuais no desenvolvimento da linguagem tanto nos períodos nos quais determinadas características devem aparecer como na velocidade e na qualidade dessa linguagem. Esses fatores estão relacionados a capacidades internas de cada indivíduo e ao ambiente, que deve ser rico em estímulos e possibilitar diversas experiências 16,17.
A linguagem se mostra por uma clara ligação entre gestos, palavra, sintaxe e a intenção comunicativa ou o desejo e o querer transmitir a uma ou várias pessoas uma mensagem para que esta seja retribuída. Sem dúvida, desenvolver linguagem é mais do que falar. É ser um interlocutor ativo nas diferentes relações sociais e isso quer dizer que a linguagem deve comunicar sobre o que o indivíduo deseja, quer, conhece e sente. Essa linguagem também deve refletir que o indivíduo compreendeu, o sentido nela implicado e nem sempre explicitado, ou melhor, as intenções, desejos, vontades, necessidades dos outros devem ser interpretados para que a criança possa interatuar 18,19.
O ato individual pelo qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno 20.
Aprender e saber uma língua implica conhecer os significados acordados de determinadas cadeias de sons, sabendo combinar estas unidades noutras mais vastas, também portadoras de significados. A importância da semântica na aquisição e desenvolvimento da linguagem afirma-se na medida em que a realidade de uma língua existe por meio do conteúdo que esta transmite, uma vez que a criança aprende sob seus aspectos pragmáticos e semânticos antes de se centrar nos aspectos morfológicos e sintáticos 21,22.
Sabe-se que há um forte sincronismo entre o desenvolvimento lexical e o sistema fonológico. Há crianças com repertório fonético pequeno que tendem a ter relativamente poucas palavras armazenadas no léxico, e crianças com vocabulário amplo e repertório relativamente completo. Se uma criança tem poucos fonemas à disposição e tenta produzir grande número de palavras diferentes, ela simplesmente não consegue, pois não tem sons suficientes para produzir estas palavras, produzindo, então, formas homônimas, o que torna seu discurso difícil de ser compreendido 22.
As aquisições semânticas da linguagem dependem do grau de compreensão do sujeito (nível de experiências e da organização interna do mundo que o rodeia). As coisas e os objetos vão, por meio da função simbólica, adquirir uma "consistência" diferente. Passam a ter uma existência própria, independentemente da influência que é exercida sobre eles. O nome confere ao objeto um novo poder, uma nova estrutura que associa um conceito a um significante, situação que irá despertar na criança o prazer de nomear. Ela sabe que o objeto permanece igual a si próprio e que a palavra, esta associação entre significado/significante, permanece inalterável 23.
Não basta haver um desejo de comunicar, há também necessidade de haver algo a ser comunicado, isto é, um conteúdo. Todos têm ideias, sentimentos, conceitos, desejos e emoções, e é exatamente sobre isso que falam: sobre as coisas, sobre as suas experiências, ideias e desejos. Este é o conteúdo que a linguagem expressa por meio das relações semânticas ou dos significados que as palavras possuem. Há uma busca pelas palavras que podem expressar tudo o que se passa na mente, e isto deve ocorrer de uma forma significativa, isto é, de modo que seja comunicável, que faça sentido para o interlocutor 24.
Portanto, essa pesquisa justificou-se pela possibilidade de compreender o processo de construção semântica e sua relação com o desenvolvimento da linguagem oral. Sendo assim, o objetivo do estudo foi analisar as variações semânticas do enunciado de crianças no processo de desenvolvimento da linguagem oral.
MÉTODOS
Os procedimentos desta pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob protocolo nº CAAE 0083.0.213.000-11 (conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde - CONEP).
Esta pesquisa caracterizou-se por um estudo piloto, de tipologia descritiva, de análise qualitativa e quantitativa. Foram convidados a participar da pesquisa 10 crianças entre 3 e 4 anos, sendo 5 na faixa etária de 3 anos e 5 na faixa etária de 4 anos.
Os participantes da pesquisa foram selecionados no Centro Clínico de Fonoaudiologia da PUC Minas. Os sujeitos dessa pesquisa foram selecionados por meio da técnica de amostragem não aleatória, do tipo amostragem por conveniência.
Foram utilizados como critério de inclusão, para construir o grupo de estudo, crianças em processo de desenvolvimento da linguagem, sem queixa de e/ou alterações auditivas e cognitivas comprovadas. Para tanto, foram observados os prontuários das crianças.
As crianças foram selecionadas nos Ambulatórios de Voz, de Motricidade Orofacial, de Fala e de Linguagem Oral do Centro Clínico de Fonoaudiologia. Ressalta-se que as crianças selecionadas estavam em acompanhamento fonoaudiológico semanal por apresentar queixas diversas, como por exemplo, rouquidão, respiração oral e trocas na fala.
Os responsáveis pelas crianças que chegam ao Centro Clínico de Fonoaudiologia da PUC Minas autorizam previamente, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a observação e registro de procedimentos em atividades acadêmicas e científicas. Portanto, este foi utilizado como autorização para a coleta de dados.
As variações semânticas do enunciado das crianças foram analisadas por meio da observação e registro, em audio e vídeo, do atendimento das mesmas no Centro Clínico de Fonoaudiologia da PUC Minas. Para a coleta de dados utilizou-se filmadora digital da marca Samsung, modelo SMX-C200BNXAZ.
Cada registro teve, em média, de 20 a 30 minutos de duração. O material registrado foi assistido e as situações de interações lúdicas, com os terapeutas, foram transcritas e o conteúdo das produções analisado baseando-se no discurso das crianças, ou seja, foram analisadas as relações semânticas ou os significados que as palavras possuem em seu respectivo conteúdo comparando-se a capacidade de compreensão e expressão semântica.
Após a transcrição das situações de interações lúdicas as variações semânticas encontradas foram classificadas em relação de contiguidade, superextensão, subextensão, proximidade fonológica, perífrase, semiótica não verbal, dêitico e variações não classificadas 17,19.
Entende-se por relação de contiguidade a substituição da palavra esperada por outra, envolvendo relações de sentido. Essas relações podem ser a parte pelo todo, o contingente pelo conteúdo, a matéria pelo objeto, o lugar pela marca, o produto pela marca, o gênero pela espécie, o possuidor pelo possuído, e vice-versa. Exemplo: policial por "homem" 17,19.
A superextensão é a utilização de palavra do mesmo campo semântico da palavra esperada, atribuindo-lhe um traço de significação que não possui. Dessa forma, há uma ampliação do campo semântico da palavra. Exemplo: "cachorro" para gato. A subextensão é a utilização de uma palavra para representar somente um subconjunto de traços de significação que a palavra possui. Assim, há uma redução do campo semântico da palavra. Exemplo: "ursinho" para os ursos de pelúcia 17,19.
A proximidade fonológica é a utilização de uma palavra que tem fonologia semelhante à palavra esperada. Exemplo: "empalhado" por empanado. A perífrase é a substituição da palavra esperada por frase ou palavras que designam função, ação ou lugar. Exemplo: girafa - tem lá no zoológico. A semiótica não verbal é a utilização de gestos ou onomatopeias para designar a figura. Exemplo: igreja - coloca as mãos justapostas. O dêitico é a utilização de um pronome ou advérbio para nomear a figura. Exemplo: trem - aquilo. 17,19.
Consideraram-se variações não classificadas aquelas que não corresponderam as classificações acima e/ou não foram encontradas na literatura consultada. Exemplo: quando a criança não nomeia, ou diz que não sabe, ou quando diz "quadro" para janela.
Em seguida os dados coletados foram tabulados e submetidos à análise estatística. A análise estatística foi realizada por meio do software MINITAB 14. Inicialmente foi realizada a análise descritiva da amostra em relação ao número de ocorrências de variações semânticas considerando todos os participantes. Essa análise descritiva compreendeu medidas de tendência central (média e mediana), de dispersão (desvio padrão) e de posição (máximo e mínimo).
Além da estatística descritiva foi realizada a estatística inferencial por meio do teste não paramétrico Mann-Whitney. Esse teste foi realizado com o objetivo de comparar a ocorrência de variações semânticas entre os grupos (3 e 4 anos), além de comparar essas variações em um mesmo grupo, visando determinar se a diferença é estatisticamente significante. Foi adotado o nível de significância de 5% (p < 0,05). Considerou-se como tendência a significância estatística os resultados significantes ao nível de 10% (p < 0,10).
RESULTADOS
A média de idade da população estudada foi de 3,5 anos (desvio padrão de 0,71), sendo 8 (80%) do sexo masculino e 2 (20%) do sexo feminino.
Na análise descritiva de toda a amostra observou-se que a superextensão foi a variação semântica com maior ocorrência, seguida das variações não classificadas. Em contrapartida, a subextensão e a proximidade fonológica foram as variações semânticas com menor ocorrência. A média de ocorrência de superextensão foi de 2,4 vezes, enquanto que a média de ocorrência de subextensão e proximidade fonológica foi de 0,4 vezes, ou seja, a média de ocorrência de superextensão foi maior que a média de ocorrência das demais variações semânticas encontradas nos enunciados das crianças independente da faixa etária (Tabela 1).
Na análise estatística inferencial de toda a amostra observou-se que houve maior ocorrência da superextensão quando comparada com a subextensão (p=0,027) e proximidade fonológica (p=0,038). Verificou-se também que houve menor ocorrência da subextensão em relação à superextensão (p=0,027), perífrase (p=0,013), semiótica não verbal (p=0,037) e tendência à menor ocorrência quando comparada com as variações semânticas não classificadas (p=0,059). Observou-se que houve menor ocorrência da proximidade fonológica em relação à superextensão (p=0,038), perífrase (p=0,014) e tendência à menor ocorrência quando comparada com a semiótica não verbal (p=0,060) e com as variações semânticas não classificadas (p=0,081) (Tabela 2).
Nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos verificou-se que a superextensão foi a variação semântica mais frequente. A subextensão, a proximidade fonológica e o dêitico foram as variações que apresentaram menor ocorrência. A média de ocorrência de superextensão foi de 3,8 vezes, enquanto que a média de ocorrência de subextensão, proximidade fonológica e dêitico foi de 0,6 vezes, ou seja, a média de ocorrência de superextensão foi maior que a média de ocorrência das demais variações semânticas encontradas nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos (Figura 1).
Apesar da superextensão ser a variação semântica de maior ocorrência, nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos, observou-se que houve maior ocorrência da superextensão apenas em relação à subextensão (p=0,039) e que houve tendência a maior ocorrência quando comparada com a proximidade fonológica (p=0,053), dêitico (p=0,053) e relação de contiguidade (p=0,083). Para as variações semânticas menos frequentes, observou-se que houve menor ocorrência da subextensão apenas em relação à superextensão (p=0,039). Verificou-se também que houve tendência à menor ocorrência da proximidade fonológica e do dêitico apenas quando comparados com a superextensão (p=0,053) (Tabela 3).
A perífrase foi a variação semântica mais frequente nos enunciados das crianças na faixa etária de 4 anos, seguida das variações não classificadas. As variações menos frequentes foram a subextensão e a proximidade fonológica. A média de ocorrência de perífrase foi de 3 vezes, enquanto que a média de ocorrência de subextensão e proximidade fonológica foi de 0,2 vezes, ou seja, a média de ocorrência de perífrase foi maior que a média das demais variações semânticas encontradas nos enunciados das crianças na faixa etária de 4 anos (Figura 1).
Por meio da análise estatística inferencial observou-se que, nos enunciados das crianças na faixa etária de 4 anos, houve maior ocorrência da perífrase em relação à subextensão (p=0,012) e proximidade fonológica (p=0,012). Em contrapartida, houve menor ocorrência da subextensão e da proximidade fonológica quando comparadas com a perífrase (p=0,012), com as variações semânticas não classificadas (p=0,044) e com a semiótica não verbal (p=0,019) (Tabela 4).
Na análise comparativa das variações semânticas nos enunciados das crianças na faixa etária de 3 anos e de 4 anos observou-se que não houve diferença entre as variações relação de contiguidade (p=1,000), superextensão (p=0,110), subextensão (p=1,000), proximidade fonológica (p=0,518), perífrase (p=0,113), semiótica não verbal (p=0,452), dêitico (p=0,432) e variações não classificadas (p=0,330).
DISCUSSÃO
Adquirir palavras não é apenas falar, mas compreender a palavra dita e procurá-la na memória. Além disso, é utilizar as habilidades metalinguísticas para concluir algo a respeito dos vocábulos ouvidos. Não se pode ser passivo no que diz respeito à linguagem. É imprescindível que o indivíduo utilize sua capacidade cognitiva para compreender e interferir no mundo. Sem um repertório amplo de palavras, torna-se difícil para a criança criar novas categorias conceituais. Com poucas categorias, a busca de significado e compreensão torna-se mais lenta, dificultando a aquisição de regras para a formação de palavras ou para acompanhar as situações comunicativas 13,14.
Há diversos estudos investigando o processo de aquisição lexical, porém ainda não há um consenso sobre como as crianças conseguem associar corretamente uma palavra nova a um conceito, visto que existem tantas possibilidades para o significado de uma palavra. Apesar das divergências, os pesquisadores concordam que a tarefa de aquisição lexical apresenta, por um lado, inúmeros desafios e, por outro, pode ser facilitado por fatores linguísticos e sociais 2.
As teorias sobre o desenvolvimento lexical sugerem que o desenvolvimento dos conceitos ocorre em etapas ou estágios sucessivos de maior complexidade à medida que o desenvolvimento cognitivo avança. Portanto, estruturas cognitivas mais desenvolvidas possibilitam a formação de conceitos cada vez mais abstratos e elaborados 10,11.
No presente estudo observou-se que no enunciado das crianças na faixa etária de 4 anos a perífrase foi a variação semântica de maior ocorrência enquanto que na faixa etária de 3 anos a superextensão foi a variação de maior ocorrência. Em outro estudo que avaliou o desempenho de crianças em uma prova de vocabulário os desvios semânticos mais frequentes na faixa etária de 3 e 4 anos foram a superextensão e a relação de contiguidade, sendo que as crianças menores apresentaram um número maior de ocorrência que as maiores nos dois desvios 8.
Vários estudos buscaram compreender como os conceitos são construídos e organizados. Benedict 1 mostrou que a memória semântica está organizada por relações analógicas entre diferentes conceitos e que os conceitos relacionados que estão mais próximos tendem a ser recuperados em um tempo menor. Esse autor ainda destacou que o mecanismo que permite acessar conceitos relacionados é o raciocínio analógico. Posteriormente, Tonietto, Parente, Duvignau, Gaume e Bosa 10 mostraram que o sistema conceitual organiza-se em categorias 1,10.
Tonietto, Parente, Duvignau, Gaume e Bosa 10 também relataram que as categorias conceituais não são classes fechadas. Ao contrário, parecem ser mal definidas. Por essa razão, na dinâmica linguística, conceitos de uma categoria ou domínio semântico são facilmente utilizados em outro domínio, evidenciando a flexibilidade linguística e cognitiva 10.
Neste estudo não se observou, nos enunciados das crianças, a utilização de conceitos de um campo semântico que fossem utilizados em outro campo semântico. Ressalta-se que foram observadas variações não classificadas e que a média de ocorrência dessas variações foi maior na faixa etária de 4 anos. Em estudo similar observou-se, também, que não houve a utilização de conceitos de um campo semântico em outra categoria, porém houve itens que não foram nomeados na prova de vocabulário e a ocorrência de não nomeação foi maior na faixa etária de 3 anos 8.
Durante a aquisição inicial do léxico, essa possibilidade de colocar dois conceitos ou termos em relação suscita, às vezes, produções linguísticas julgadas fora da norma. Em efeito, no processo de desenvolvimento lexical, o locutor aprendiz produz enunciados desviantes em relação ao uso adulto 10.
Neste estudo as variações semânticas observadas foram a relação de contiguidade, superextensão, subextensão, proximidade fonológica, perífrase, semiótica não verbal e dêitico. Em outro estudo com uma amostra de 400 crianças na faixa etária de 3 a 6 anos foram observados os desvios semânticos por relação de contiguidade, superextensão, proximidade morfológica, proximidade fonológica, antonísia, dêitico, perífrase e designação não verbal 8. Percebe-se que apenas as variações subextensão, proximidade morfológica e antonísia não foram comuns aos dois estudos. Este fato pode ser justificado pela diferença de faixa etária das crianças estudadas e pela pequena casuística.
As crianças em processo de aquisição lexical podem cometer diversos desvios semânticos em função de não terem ainda bem organizado o conjunto de traços de significação que diferenciam o uso de uma palavra de outra nos diferentes contextos linguísticos. Sendo assim, o termo desvio é utilizado com a finalidade de representar a falta de correspondência entre o significado da palavra da linguagem adulta e o significado dessa mesma palavra na linguagem da criança 8,17.
Os desvios semânticos podem ocorrer por uma série de fatores. Alguns ocorrem porque a criança não consegue resgatar da memória a forma fonológica correta da palavra, outros por analogia, outros em função das palavras serem usadas sempre num mesmo contexto. Entretanto, desvios como a superextensão, por exemplo, podem ocorrer pelo fato das palavras compartilharem traços perceptivos ou funcionais. E, ainda há os desvios que ocorrem por propósitos comunicativos, ou seja, a criança superextende ou subextende o significado de uma palavra pelo fato de não ter adquirido uma mais apropriada 19.
As crianças começam a balbuciar por volta dos 6 aos 9 meses e as primeiras palavras surgem em torno dos 10 aos 15 meses, sendo que as palavras curtas são adquiridas primeiro do que as mais extensas. Os desvios semânticos fazem parte do processo de aquisição lexical inicial, desaparecendo ou diminuindo conforme a criança aumenta seu vocabulário 9,22.
Neste estudo não se observou diferença entre a faixa etária de 3 e 4 anos para as variações semânticas estudadas. Porém em outro estudo observou-se diferença entre a faixa etária de 3 e 4 anos e não observou-se diferença entre a faixa etária de 5 e 6 anos. Os autores verificaram ainda que quanto menor a idade maior a ocorrência de itens não nomeados e que quanto maior a idade menor a ocorrência de desvios semânticos. Ao estabelecer uma relação entre as idades e os diferentes tipos de desvios os autores observaram que a partir dos 4 anos nenhuma criança fez uso de designações não verbais e a partir dos 5 anos nenhuma fez uso de perífrases 8.
Há, entretanto, a questão de como a influência do meio tem um efeito na tarefa de aquisição de palavras. Existem autores que investigaram como as crianças solucionam as formas homônimas das palavras, ou seja, como elas aprendem a distinguir, linguística e conceitualmente, conceitos diferentes que têm o mesmo nome. Estes autores, concluíram que a influência do meio, no qual as crianças estão inseridas, pode ser um facilitador nesta tarefa. Afinal, o crescimento social da criança implica sua inserção e participação em grupos que provêm situações de interação que estruturam seu ambiente e criam para ela necessidades cada vez mais avançadas de comunicação 15.
A partir deste pressuposto percebe-se que inúmeras variáveis caracterizam o desenvolvimento lexical. Assim, torna-se difícil apresentar marcos evolutivos do desenvolvimento semântico e das habilidades linguísticas.
Os estudos sobre a aquisição lexical revelaram bastante como as crianças começam a adquirir um léxico. Porém, até o momento, sabe-se relativamente pouco sobre como as crianças constroem seus primeiros insights à medida que aprendem novas palavras 19.
CONCLUSÃO
Apesar do pequeno número de participantes no estudo, os dados obtidos merecem algumas considerações. É, de fato, difícil estabelecer procedimentos que possam, efetivamente, dar conta da evolução do desenvolvimento semântico. Entretanto, qualquer procedimento não esgotará as possibilidades de produção e, consequentemente, de uso das palavras que alguém é capaz de produzir e compreender, mas poderá caracterizar o desempenho em determinada situação linguística. Assim, a elaboração de procedimentos para avaliação da semântica torna-se possível.
A partir dos resultados do presente estudo, pode-se concluir que as variações semânticas apresentaram média de ocorrência diferente nos grupos estudados. Porém, na comparação entre os grupos não foram observadas diferenças significantes.
O número de estudos similares é reduzido, confirmando a dificuldade metodológica e logística deste tipo de estudo. Sendo assim, outros estudos devem ser realizados com uma maior casuística e tendo critérios de inclusão diferentes que incluam crianças em diferentes etapas do desenvolvimento linguístico.
Recebido em: 23/08/2012
Aceito em: 13/02/2013
Conflito de interesses: inexistente
Trabalho realizado no Centro Clínico de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC MG - Belo Horizonte, MG, Brasil.
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Endereço para correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
23 Ago 2012 -
Aceito
13 Fev 2013