Open-access Limiares auditivos tonais, emissões otoacústicas e sistema olivococlear medial de ex-usuários de drogas

Resumos

Objetivos  analisar se o uso de drogas ilícitas pode interferir nos sistemas auditivos periférico e central.

Métodos  a amostra foi composta por 17 indivíduos distribuídos conforme o tipo de droga mais consumida: 10 indivíduos no grupo maconha (G1) e sete no grupo crack/cocaína (G2). Os grupos foram subdivididos segundo o tempo de uso de drogas: um a cinco, seis a 10 e mais que 15 anos. Foram avaliados por meio de anamnese, audiometria tonal liminar, imitânciometria, emissões otoacústicas transientes (EOAT) e efeito supressor das EOAT.

Resultados  comparando os limiares tonais do G1 e G2, observaram-se limiares elevados para o G2, com diferença estatisticamente significante no grupo de um a cinco anos para 250, 500, 6000 e 8000Hz na orelha direita e de seis a 10 anos para 4000 e 8000Hz na orelha esquerda. Para usuários por mais que 15 anos, observou-se limiares superiores a 25dBNA de 3000 a 8000Hz na orelha direita. Nas EOAT e efeito supressor das EOAT não houve diferença estatisticamente significante entre G1 e G2 e entre os tempos de uso das drogas. O G1 apresentou relação sinal/ruído das EOAT superior ao G2. O efeito supressor das EOAT esteve presente em 79% das orelhas avaliadas.

Conclusão  na amostra estudada, o crack/cocaína apresentou efeito mais deletério sobre o sistema auditivo do que a maconha. O maior tempo de uso de drogas influenciou nos resultados do G1. O uso de drogas ilícitas não provocou alterações no SOCM.

Audição; Emissões Otoacústicas Espontâneas; Drogas Ilícitas; Cannabis; Cocaína; Cocaína Crack


Purpose  to analyze whether the use of illicit drugs may interfere with the peripheral and central auditory system.

Methods  17 subjects were divided according to the kind of consumed drug: 10 individuals in the cannabis group (G1) and seven in the group of crack/cocaine (G2). The groups were subdivided according to the time of drug use: five, six to 10 and more than 15 years. They were evaluated by anamneses, pure tone audiometry, tympanometry, transient evoked otoacoustic emissions (TEOAE) and TEOAE suppression effect.

Results  comparing the pure tones of G1 and G2, the worst results were observed in the G2, with a statistically significant difference in the group of one to five years at 250, 500, 6000 and 8000 Hz in the right ear and six to 10 years of about 4000 and 8000 Hz in the left ear. For the users of for more than 15 years, there are pure tones above 25 dBHL from 3000 to 8000 Hz in the right ear. In TEOAE and TEOAE suppression effect, any statistically significant difference was found between G1 and G2 and between the time of drug use. The suppressive effect of TEOAE was present in 79% of the tested ears.

Conclusion  the use of crack/cocaine has more deleterious effect in the auditory system if compared to marijuana. The time of use of the drug only influenced the results of the G1. The use of illicit drugs did not cause disorders in the medial olivocochlear system.

Hearing; Otoacoustic Emissions; Spontaneous; Street Drugs; Cannabis; Cocaine; Crack Cocaine


INTRODUÇÃO

A maconha (Cannabis sativa) tem como principal componente o alucinógeno tetraidrocanabinol (THC) e seus efeitos sobre o organismo dependem da quantidade de THC presente na folha1. A ação da maconha no corpo humano concentra-se principalmente no sistema nervoso central, provocando alterações de memória, aprendizagem, atenção, velocidade de processamento e funções executivas2-4.

O crack e a cocaína (Erythroxylum coca) são quimicamente idênticos, porém eles têm modos de preparo diferentes5. Enquanto a cocaína é um alcalóide na forma de sal solúvel em água, o crack é elaborado pela dissolução de cloridrato de cocaína na água misturado com bicarbonato de sódio. Os efeitos alucinógenos do crack são rápidos, porém duram menos do que os da cocaína, o que resulta em uso mais frequente e na dependência da droga6. As manifestações clínicas decorrentes do uso destas drogas incluem alterações cardíacas, pulmonares, psiquiátricas, gastrointestinais e endócrinas7.

Os efeitos do uso de drogas ilícitas sobre a audição foram descritos em relatos de casos de surdez súbita após overdose por cocaína e heroína. Especula-se que tais alterações auditivas tenham sido provocadas por algum dos seguintes mecanismos fisiopatológicos: hemorragia coclear, toxemia sistêmica, reação autoimune, hipóxia coclear por vasoconstrição ou bloqueio temporário dos canais de potássio das células ciliadas externas (CCE)8-10. Em estudos com cobaias, repetidas injeções de cocaína causaram diminuição do fluxo sanguíneo na cóclea e consequentemente lesão desta estrutura11.

Apesar das teorias existentes sobre a fisiopatologia da droga no sistema auditivo periférico, não são claros os efeitos do uso de maconha, crack e cocaína na audição em longo prazo.

A audiometria tonal liminar (ATL) é ainda o método padrão para o monitoramento da audição. Porém, ela não avalia de forma consistente o local mais vulnerável a lesões, a base da cóclea. As emissões otoacústicas transientes (EOAT) são mais sensíveis aos danos cocleares iniciais, pois detectam alterações na função auditiva antes de ocorrer mudança significante no limiar tonal12. Nas perdas auditivas de origem coclear, as CCE são as primeiras a sofrer dano. Assim, a ausência de EOA em orelhas com audição normal indica alteração do amplificador coclear13.

O sistema olivococlear medial (SOCM), responsável pela modulação das CCE, pode ser avaliado com a apresentação de estímulo sonoro competitivo na orelha contralateral durante a captação das EOA. A integridade do SOCM está relacionada com a capacidade de detectar sinal no ruído, no afinamento da seletividade sequencial, na proteção contra superestimulação acústica e na focalização de atenção para um fenômeno acústico14.

O objetivo deste trabalho foi analisar se o uso de maconha, crack e cocaína pode ter efeitos sobre os sistemas auditivos periférico e central.

MÉTODOS

Esta pesquisa foi analisada e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, sob o número 23081.019003/2010-40.

Trata-se de um estudo transversal, descritivo, não-experimental e quantitativo. Este trabalho foi desenvolvido no ambulatório de audiologia do Hospital Universitário de Santa Maria no período de abril a julho de 2011.

A amostra foi composta por indivíduos que frequentam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) “Caminhos do Sol”; e “Cia do Recomeço”; e os grupos de apoio a ex-usuários de álcool e/ou outras drogas “Amor Exigente”; da cidade de Santa Maria/RS.

Aceitaram participar da pesquisa 32 indivíduos de ambos os sexos. Entretanto, compareceram para a avaliação 18 indivíduos do sexo masculino, com idade entre 15 e 35 anos. Os indivíduos envolvidos, pais e/ou responsáveis leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Somente foram incluídos na amostra indivíduos que não apresentavam nenhum fator causal de perda auditiva, como exposição a ruído ocupacional, histórico familiar de deficiência auditiva e uso de medicação ototóxica. Além disso, foram excluídos da amostra os indivíduos com idade superior a 35 anos, com presença de gap aéreo-ósseo na ATL e que não apresentaram curva timpanométrica do tipo A. Sendo assim, foi excluído um sujeito que apresentou curva timpanométrica tipo B em ambas as orelhas.

Desta forma, a amostra foi formada por 17 indivíduos, distribuídos em dois grupos, segundo o tipo de droga mais consumida: 10 indivíduos no grupo maconha (G1) e sete indivíduos no grupo crack/cocaína (G2).

Os grupos G1 e G2 foram divididos conforme o tempo de uso das drogas: um a cinco anos, seis a 10 anos, 11 a 15 anos e maior que 15 anos.

Salienta-se que quatro usuários do grupo maconha eventualmente consumiram crack e cocaína, porém em quantidade e tempo consideravelmente menores. Os usuários de crack e cocaína foram agrupados devido à semelhança química das duas substâncias.

Foram realizados os seguintes procedimentos: anamnese, meatoscopia, audiometria tonal liminar (ATL), medidas de imitância acústica (MIA) e emissões otoacústicas transientes (EOAT) sem e com ruído competitivo.

A anamnese buscou informações referentes às queixas auditivas, à história otológica e à dependência química (Figura 1). A meatoscopia procurou descartar alterações de orelha externa e média.

Figura 1
Anamnese

A ATL foi realizada com o audiômetro da marca Sibelmed, modelo AC50-D. Foram pesquisados os limiares auditivos de via aérea nas frequências de 250, 500, 1000, 2000, 3000, 4000, 6000 e 8000 Hz e de via óssea nas frequências de 500, 1000, 2000, 3000 e 4000 Hz, por meio do método descendente-ascendente. O grau de perda auditiva foi classificado conforme Lloyd e Kaplan (1978)15.

As MIA foram pesquisadas devido ao critério que exclui da amostra sujeitos com alterações de orelha média e/ou externa, porém não foram analisadas durante este trabalho. As MIA foram realizadas com o analisador de orelha média da marca Interacoustics, modelo AZ6. As curvas timpanométricas foram classificadas em tipo A, B, C, As e Ad16.

As EOAT foram pesquisadas por meio do analisador coclear da marca Intelligent Hearing Systems (IHS). As EOAT foram consideradas presentes quando a relação sinal/ruído (S/R) foi igual ou superior a 6 dB, a reprodutibilidade geral foi igual ou superior a 50% e a estabilidade da sonda foi igual ou superior a 70%. O estímulo utilizado foi do tipo não linear, na intensidade de 80 dBNPS ( decibéls Nível de Pressão Sonora).

Para verificar a presença do efeito supressor das EOA, a captação das EOAT foi realizada na ausência e posteriormente na presença de ruído na orelha contralateral. O estímulo utilizado foi o click do tipo não linear, na intensidade de 80 dBNPS. Foi utilizado como estímulo acústico supressor o ruído branco contralateral gerado pelo analisador coclear por meio do fone de ouvido TDH-39, na intensidade de 60 dB. O cálculo da supressão das EOAT foi realizado pela subtração da relação S/R das EOAT sem e com estimulação acústica contralateral. Valores positivos indicaram presença de supressão das EOAT e valores negativos ou zero indicaram ausência do fenômeno. O efeito de supressão das EOAT foi analisado por orelha.

Os indivíduos que apresentaram alterações em qualquer uma das avaliações aplicadas foram encaminhados para avaliação e conduta otorrinolaringológica.

Os dados coletados foram tabelados e analisados pela estatística descritiva e pelos testes não paramétricos Qui-quadrado e Mann-Whitney, tendo sido adotado o nível de significância estatística de 5% (p≤0,05).

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra a distribuição dos grupos G1 e G2 conforme o tempo de uso das drogas, evidenciando que. Não houve indivíduos que se enquadrassem no período entre 11 a 15 anos.

Tabela 1
– Distribuição da amostra, conforme tempo e tipo de droga consumida

Na anamnese, os indivíduos referiram de um mês a oito anos de abstinência, porém foi observado o uso de álcool e cigarro antes das avaliações.

Os dados obtidos na anamnese apontaram que apenas um indivíduo não expressou nenhuma queixa auditiva. A Tabela 2 mostra o número de indivíduos dos grupos G1 e G2 que apresentaram as queixas de perda auditiva, zumbido e dificuldade de compreensão da fala no ruído. Não houve diferença estatisticamente significante para a ocorrência de queixas entre os grupos (p = 0,985).

Tabela 2
Presença de queixas auditivas nos grupos G1 e G2

A dificuldade para compreender a fala em ambientes ruidosos foi a queixa mais frequente nos dois grupos. Oito dos 10 indivíduos do G1 e cinco dos seis indivíduos do G2 apresentam essa queixa (Tabela 2). Considerando que o mesmo indivíduo poderia apresentar mais de uma queixa, essa tabela mostra um N maior que 17.

A maioria (70,6%) dos indivíduos apresentou limiares auditivos inferiores a 25 dBNA na ATL. No entanto, dois indivíduos apresentaram perda auditiva neurossensorial de grau leve na orelha direita, um apresentou perda auditiva neurossensorial de grau moderadamente severo na orelha direita e moderado na orelha esquerda e outros dois tiveram média tritonal normal, mas com perda auditiva a partir de 2000 Hz, um indivíduo com comprometimento unilateral e um com bilateral.

Em relação aos indivíduos de ambos os grupos que usaram drogas no período de um a cinco anos, verificou-se diferença estatisticamente significante nas frequências de 250, 500, 6000 e 8000 Hz na orelha direita (Tabela 3).

Tabela 3
– Média dos limiares tonais para G1 e G2 com um a cinco anos de uso de drogas

Em relação aos indivíduos que usaram drogas de seis a 10 anos, foi evidenciada diferença estatisticamente significante entre os grupos G1 e G2 para as frequências de 4000 e 8000 Hz na orelha esquerda (Tabela 4).

Tabela 4
– Média dos limiares tonais para G1 e G2 com seis a 10 anos de uso de drogas

O grupo dos indivíduos que usaram drogas em um período maior que 15 anos foi formado apenas por usuários de maconha, não sendo possível a comparação entre G1 e G2. A média dos limiares tonais para esse grupo encontra-se na Tabela 5.

Tabela 5
– Média dos limiares tonais para os 2 usuários de maconha (G1) por mais de 15 anos

Cerca de metade dos indivíduos apresentaram EOAT presentes: 59% na orelha direita e 53% na orelha esquerda.

Não houve diferença estatisticamente significante quanto à relação S/R das EOAT entre os grupos G1 e G2, tanto para os usuários de um a cinco anos, quanto para os usuários de seis a 10 anos (Tabela 6).

Tabela 6
– Comparação das médias da relação sinal/ruído das emissões otoacústicas transientes para G1 e G2 com um a cinco anos e com seis a 10 anos de uso de drogas

Apesar de não ser estatisticamente significante, o grupo G1 apresentou média da relação S/R das EOAT superior ao grupo G2. Considerando que as EOA estão presentes quando a relação S/R é superior a 6 dB, as EOAT estiveram presentes na orelha direita para os indivíduos do G1 com um a cinco anos de uso de drogas e em ambas as orelhas para o G1 com seis a 10 anos (tabela 6). Já os indivíduos do G1 com mais de 15 anos de uso de drogas não apresentaram EOAT em ambas as orelhas.

Observou-se que cerca de metade dos indivíduos com queixa de zumbido (58%) e com dificuldade de compreensão da fala em ambientes ruidosos (53%) apresentaram ausência de emissões otoacústicas (Tabela 7).

Tabela 7
– Relação entre as queixas auditivas e a ocorrência das emissões otoacústicas transientes

Dentre as 19 orelhas que apresentaram EOAT presentes, 79% delas tiveram efeito supressor presente.

A diferença da relação S/R das EOAT com e sem ruído supressor, encontra-se na tabela 8. Não houve diferença estatisticamente significante no nível de supressão das EOA entre os grupos G1 e G2 (p = 1,000).

Tabela 8
– Efeito supressor das emissões otoacústicas transientes para G1 e G2

A ausência do efeito supressor das EOAT foi mais frequente (75%) nos indivíduos com queixa de dificuldade de compreensão da fala em ambientes ruidosos do que nos indivíduos sem queixa (tabela 9), porém essa relação não foi estatisticamente significante (p = 0,834).

Tabela 9
– Relação entre a dificuldade de compreensão da fala em ambientes ruidosos e o efeito supressor das emissões otoacústicas

Na tabela 10, observou-se a relação entre os resultados da ATL e a ocorrência das EOAT, no entanto essa relação não foi estatisticamente significante.

Tabela 10
– Relação entre os resultados da audiometria tonal liminar e emissões otoacústicas transientes

DISCUSSÃO

Os efeitos do uso de drogas sobre a audição, mais especificamente sobre a cóclea, já foram descritos em relatos de casos isolados e em estudos com cobaias8-11,17,18.

A queixa auditiva mais frequente para ambos os grupos foi a dificuldade de compreensão da fala no ruído, seguida de perda auditiva e zumbido (tabela 2). Nigri et al. (2009)19 em pesquisa com 40 usuários de crack e múltiplas drogas, as queixas mais referidas pelos usuários foram zumbido, hiperacusia, alucinação auditiva e alterações no equilíbrio. Assim, o único sintoma em comum em ambos os estudos foi a queixa de zumbido.

Na presente casuística, foi encontrado 30% de indivíduos com algum grau de perda auditiva. De fato, a literatura em relatos de casos de surdez súbita após uso de cocaína e múltiplas drogas, os indivíduos apresentaram hemorragia intralabiríntica8, perda auditiva neurossensorial de grau moderado em ambas as orelhas9, perda auditiva neurossensorial de grau severo em ambas as orelhas10 e média tritonal normal, mas com perda auditiva nas frequências a partir de 2000 Hz18.

Independente do tempo de uso de drogas, o grupo G2 apresentou limiares tonais superiores ao grupo G1 em ambas as orelhas (tabelas 3 e 4). Estes resultados podem estar relacionados ao tipo de droga usada, já que estudos com cobaias demonstram que a cocaína provoca diminuição do fluxo sanguíneo na cóclea e, sendo esta estrutura sensível a hipóxia, o órgão de Corti e o gânglio espiral estariam suscetíveis a lesões degenerativas11,17,20.

Considerando que os indivíduos referiram abstinência por mais de um mês, os possíveis efeitos da maconha sobre a audição já poderiam ter sido recuperados neste período e por isso apresentaram limiares tonais normais e EOA presentes. Porém, aqueles que tiveram tempo de uso maior que 15 anos apresentaram perda auditiva na ATL e/ou EOAT ausentes.

Já em relação ao crack/cocaína, Ciorba et al. (2009)10 em estudo de caso de surdez súbita após overdose mostrou que na primeira avaliação, as EOA estiveram ausentes e 30 dias depois presentes, quando as células ciliadas externas recuperaram sua função. Neste caso, acredita-se que a cocaína provoca apenas uma perturbação da homeostase coclear, bloqueando os canais de potássio das células ciliadas externas.

Porém, nos casos de perda auditiva permanente, como os observados neste estudo, a lesão coclear possivelmente ocorre pela redução de oxigênio na cóclea, decorrente da vasoconstrição provocada pela droga10. Desta forma, a ausência de EOAT nos usuários de crack/cocaína, poderia ser explicada como resultado de uma deterioração das células ciliadas, decorrente da hipóxia prolongada (uso superior a 10 anos) causada pelo uso da droga11, 17.

Comparando os resultados encontrados em usuários de drogas ilícitas e lícitas, observa-se que, no presente estudo, mesmo os indivíduos com audição normal na ATL apresentaram ausência de EOAT (tabela 10), resultado contrário ao observado por Vinay (2010) 21 que investigou a ototoxidade do cigarro em 50 normo-ouvintes, em que todos os indivíduos apresentaram EOAT presentes, porém com menor amplitude das EOAT quando comparado ao grupo controle. O mesmo resultado foi observado quando avaliados com EOA por produto de distorção22.

Cerca de metade dos indivíduos que apresentaram queixas de dificuldade de compreensão da fala no ruído e zumbido tiveram EOAT ausentes. Tais resultados corroboram com pesquisas realizadas com indivíduos normo-ouvintes e com queixa de zumbido, que observaram a relação entre a presença da queixa e a diminuição da amplitude e da ocorrência das EOA23,24. Os achados semelhantes entre estes estudos mostram que, independente da amostra estudada, a presença deste sintoma geralmente está associada com a ausência de EOA.

O funcionamento adequado do SOCM evidenciado pela presença do efeito supressor das EOAT em 79% das orelhas avaliadas infere, nos sujeitos estudados, integridade da via auditiva eferente em ex-usuários de drogas ilícitas. No estudo de Perez, Kós e Frota (2006)25 com 29 mulheres normo-ouvintes sem história de uso de drogas o efeito supressor das EOAT esteve presente em 89,7% das orelhas direitas e 79,3% das orelhas esquerdas, o que concorda com os resultados desta pesquisa. Ressalta-se que o efeito supressor das EOAT só pode ser investigado nas 19 orelhas com EOAT presentes.

No presente estudo, 75% dos indivíduos que não apresentaram efeito supressor das EOAT tinham queixa de dificuldade de compreensão da fala em ambientes ruidosos (tabela 9). A relação entre tal queixa e alteração na via auditiva eferente foi demonstrada por Lautenschlager et al. (2010)26 em pesquisa com indivíduos 24 normo-ouvintes e com dificuldade de reconhecimento de fala no ruído.

Apesar de não ser estatisticamente significante, ao se comparar os resultados da ATL com a ocorrência das EOAT (Tabela 10), foi possível perceber que quatro orelhas com limiares auditivos alterados apresentaram EOAT ausentes, o que sugere que as perdas auditivas estão relacionadas com alterações de origem coclear13,27,28.

As 11 orelhas (32%) com ATL normal e EOAT ausentes (tabela 10), sugerem que o uso de drogas ilícitas provoca alterações no funcionamento da cóclea antes mesmo de modificar os limiares tonais. Em estudo com fumantes, os autores observaram que 13,9% dos indivíduos com limiares tonais normais tiveram EOA ausentes29, índice inferior aos resultados do presente estudo.

No presente trabalho pôde-se observar alterações significantes nas avaliações dos ex-usuários de crack/cocaína (G2): limiares auditivos elevados para as frequências de 250, 500, 4000, 6000 e 8000 Hz e ausência de EOAT. A concordância destes resultados com pesquisas com cobaias expostas à cocaína11,17 infere que o crack e a cocaína podem ser potencialmente ototóxicos para a cóclea.

Em geral, o grupo de ex-usuários de maconha (G1) apresentou respostas dentro dos padrões de normalidade tanto para a ATL como para as EOAT, exceto para aqueles que tiveram um período de uso de drogas maior que 15 anos. Tais resultados nos remetem aos estudos que comprovam que o efeito da maconha no organismo é transitório3 e, portanto, qualquer alteração no sistema auditivo pode ter sido recuperada após a abstinência.

Os resultados encontrados sustentam a necessidade de estudar o sistema auditivo de usuários de drogas ilícitas em longo prazo com casuística maior.

CONCLUSÃO

Os ex-usuários de crack/cocaína apresentaram limiares auditivos elevados e ausência de EOAT, independente do tempo de uso da droga. No entanto, para ex-usuários de maconha tais alterações só foram observadas com mais de 15 anos de uso da droga.

Na amostra estudada, o uso de maconha e crack/cocaína não teve efeito deletério sobre o sistema olivococlear medial, quando comparado os dois grupos investigados.

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  • Fonte de auxilio: CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2012
  • Aceito
    10 Dez 2012
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