Resumos
Objetivo estudar a prevalência de alterações da linguagem oral em crianças de quatro a seis anos e verificar sua associação com as variáveis idade, sexo, presença de alterações de motricidade orofacial e presença de alterações de processamento auditivo.
Métodos realizou-se avaliação da linguagem oral (teste de avaliação de linguagem ABFW – Fonologia), avaliação de motricidade orofacial e avaliação simplificada do processamento auditivo. Os dados foram armazenados em formato eletrônico para análise estatística. Para comparação de proporções foi empregado o Teste Qui-Quadrado e para comparação de médias foi empregada a análise de variância. Foi considerado valor de 5% (p< 0,05) como limiar de significância estatística.
Resultados foram avaliadas 242 crianças de 4 anos a 6 anos e 11 meses de idade. Observou-se prevalência de 36,0% (n=87) de alterações de linguagem oral, e associação com faixa etária com significância estatística (p=0,009). Verificou-se associação entre desvio fonológico e faixa etária (p<0,001); entre a presença de desvio fonético e alterações de motricidade orofacial (p<0,001) e presença de desvio fonológico e alterações do processamento auditivo (p<0,001).
Conclusão a alta prevalência de alterações verificada aponta para a necessidade de elaboração de ações em atenção primária à saúde, de maneira a prevenir o aparecimento destas alterações, melhorar o acesso à intervenção e possibilitar a prevenção de problemas escolares mais graves. A maior ocorrência de alterações da linguagem oral na faixa etária de quatro a cinco anos sugere que esta seja uma boa fase para identificação e prevenção destes desvios.
Fonoaudiologia; Saúde da Criança; Desenvolvimento Infantil; Atenção Primária à Saúde; Linguagem Infantil; Distúrbios da Fala
Purpose to verify the prevalence of oral language disorders in children from four to six years old and its association with variables age, gender, orofacial motor skills impairments and auditory processing disorders.
Methods three evaluation protocols were used: stomatognathic system protocol adapted from the Myofunctional Evaluation Guidelines, the Phonology task of the ABFW – Child Language Test and a simplified auditory processing evaluation. Data were statistically analyzed using the chi-square test to compare proportions and analysis of variance to compare means and 5% (p<0.05) was considered as a threshold of statistical significance.
Results 242 children from 4 years to 6 years and 11 months old were assed. The prevalence of 36.0% (n=87) of oral language disorders and an association with age group with statistical significance (p=0.009) were found. We observed a statistically significant association between phonological deviation and age (p<0.001); between the presence of phonetic deviation and orofacial motor skills impairments (p<0.001) and the presence of phonological deviation and auditory processing disorders (p<0.001).
Conclusion the high prevalence of deviations observed shows the need for developing actions in primary health care in order to prevent the onset of these disorders, improve access to intervention and enable prevention of more serious problems in school. The highest occurrence of oral language disorders at the age group of four to five years old suggests that this is a good stage for the identification and prevention of these deviations.
Speech, Language and Hearing Sciences; Child Health; Child Development; Primary Health Care; Child Language; Speech Disorders
INTRODUÇÃO
A comunicação tem por objetivo a transmissão de mensagens. Ela pode ocorrer por diversos canais como a escrita, os gestos e os sons. Para que ela ocorra, é necessário que exista uma mensagem, um emissor e um receptor, além de um canal, um código e um referente (contexto, situação e objetos reais aos quais a mensagem remete). O principal canal de comunicação humana é a fala, ou seja, a transmissão de uma mensagem por meio da produção e recepção dos sons que a constituem1.
A fala pode ser definida como o ato motor ou evento físico que expressa a linguagem. Para que a fala ocorra é necessária a integridade de estruturas do sistema nervoso central e periférico e das estruturas envolvidas em quatro funções que devem agir de maneira integrada: respiração, fonação, articulação e ressonância. Além disso, os desenvolvimentos cognitivo e fonológico devem estar adequados2-4.
A linguagem falada tem diversas implicações no desenvolvimento cognitivo da criança: ela possibilita a comunicação com outras pessoas, iniciando a socialização; a internalização da palavra para a formação do pensamento; e a formação das imagens mentais, representações dos significados dos signos5. Por sua vez, estas representações permitem que as experiências ocorram de maneira mais rápida, levando ao desenvolvimento da linguagem6.
A inteligibilidade da fala, ou melhor, o fato de as palavras serem bem pronunciadas é um fator decisivo para o processo de transmissão da mensagem. Para que a fala seja inteligível, a criança precisa aprender a produzir bem os sons constrastivos que fazem parte da sua língua2.
A fase pré-escolar é o período de maior desenvolvimento do sistema fonológico, durante o qual se observam mudanças quantitativas e qualitativas. A princípio as crianças apresentam um inventário limitado de sons da fala e, aproximadamente aos cinco anos, já existe um sistema fonológico completo. Este momento representa também o início do desenvolvimento sintático, quando ocorre uma expansão significante do vocabulário chegando a aproximadamente 8000 palavras aos cinco anos. Neste período, as formas gramaticais da língua já estão presentes e os sujeitos são capazes de usar a língua para se comunicar efetivamente7.
Estudos sobre a aquisição fonológica de falantes da língua portuguesa no Brasil mostram que crianças com aproximadamente quatro ou cinco anos já adquirem os contrastes do sistema fonêmico adulto e a fase de aquisição das regras fonológicas termina por volta dos seis anos, com a aquisição dos últimos sons8-13.
A detecção em tempo oportuno de alterações da comunicação oral e das habilidades e estruturas que estão associadas a essas alterações é a melhor maneira de aumentar as chances de acesso ao tratamento adequado, no momento mais propício, e diminuir as chances de que estas alterações possam influenciar de maneira negativa nas relações sociais do indivíduo. Desta forma, é possível proporcionar ao indivíduo melhor qualidade de vida14.
Assim, frente ao exposto, o presente trabalho tem por objetivo estudar as alterações da linguagem oral, especificamente a fala, e verificar sua associação com a idade, o sexo e a presença de alterações do processamento auditivo e de motricidade orofacial em crianças de quatro a seis anos, matriculadas na rede de ensino infantil da área de abrangência de um centro de saúde de Belo Horizonte.
MÉTODOS
Este projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (parecer ETIC 263/08 de 18/06/2008).
Trata-se de um estudo transversal realizado entre setembro/2009 e maio/2010. Foram estudadas crianças de quatro anos a seis anos e 11 meses de ambos os sexos, matriculadas em seis escolas da rede pública na área de abrangência de um Centro de Saúde, em Belo Horizonte. Esta área compreende uma população de aproximadamente 12.500 habitantes, sendo o centro de saúde responsável pela saúde dessa população.
Foi constituída amostra aleatória representativa estratificada por escola e faixa etária tendo por base um universo de 664 crianças matriculadas nas escolas selecionadas para o estudo. Foram tomados como base para cálculo da amostra os seguintes parâmetros: 40% de prevalência de alterações da linguagem oral, margem de erro de 5%, intervalo de confiança de 95% e acréscimo de 10% de perdas, totalizando 261 crianças3,15-18.
As crianças foram sorteadas por meio das listas de alunos matriculados e a data de nascimento dos mesmos. Foram considerados critérios de inclusão: idade entre quatro e seis anos e 11 meses, estar matriculada em uma das escolas ou creches incluídas na pesquisa e apresentar a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por um dos pais ou responsável legal pela criança, concordando com a participação do menor. Foi critério de exclusão a presença de comorbidades graves que impediriam a realização dos testes como encefalopatia crônica não-progressiva, trissomia do cromossoma 21 e fissura labiopalatina.
Cada criança sorteada foi identificada por um número e informações sobre data de nascimento, idade, escola e período escolar. As avaliações tiveram duração de aproximadamente 30 minutos e foram realizadas no próprio ambiente escolar, em uma sala cedida pela direção da escola. O horário de aulas e a disponibilidade de cada turma, assim como da escola foram respeitados. Cada criança foi avaliada por uma fonoaudióloga treinada para o estudo, sendo três as pesquisadoras participantes da coleta das informações.
Para a avaliação da linguagem oral foi utilizado o Teste de Linguagem Infantil – ABFW – parte I – Fonologia e a análise foi realizada de acordo com os padrões de aplicação do teste19. A avaliação é constituída por duas provas: nomeação e imitação, nas quais a fala da criança é anotada por meio de transcrição fonética realizada pelo fonoaudiólogo durante a aplicação do teste para posterior análise19. As listas de palavras utilizadas são balanceadas para todos os fonemas e aparecem em todas as posições possíveis para cada fonema do Português Brasileiro.
A avaliação de Fonologia do Teste de Linguagem Infantil – ABFW é utilizada amplamente em clínica fonoaudiológica e em pesquisa para verificação da aquisição e desenvolvimento fonológico e do inventário fonético de crianças a partir dos três anos. Por ser de fácil aplicação e validado para a verificação das alterações da linguagem oral – aspecto fonético/fonológico para a população falante do português brasileiro, este teste foi escolhido para esta pesquisa19.
Optou-se pela utilização do termo ‘linguagem oral’ quando tratados de maneira conjunta os desvios fonéticos, caracterizados pelas alterações de articulação dos sons; e os desvios fonológicos que são alterações de linguagem caracterizadas pela presença de processos fonológicos produtivos assincrônicos (em faixa etária superior àquela de superação deste mesmo processo pela maior parte das crianças), e/ou pela presença de processos fonológicos incomuns (que não são observados na aquisição normal do sistema fonológico), na fala da criança.
Foram também realizadas avaliação da motricidade orofacial (MO) e avaliação simplificada do processamento auditivo com o intuito de verificar possíveis associações entre as diferentes alterações fonoaudiológicas estudadas. Para a avaliação de motricidade orofacial foi elaborado um protocolo para a verificação dos aspectos miofuncionais do sistema estomatognático, adaptado do Roteiro para Avaliação Miofuncional20. O protocolo de MO utilizado não define padrões de normalidade e critérios para a análise dos resultados, sendo as alterações definidas pela observação do fonoaudiólogo, a partir de sua experiência clínica. Sendo assim, os critérios para que a criança fosse considerada com alteração de MO foram definidos pelo consenso de quatro fonoaudiólogas, considerando o número de estruturas alteradas, as características de aspecto, tensão e mobilidade e suas possíveis repercussões em outras funções orofaciais. O resultado da avaliação foi definido por uma variável dicotômica: alterado ou não alterado.
A avaliação simplificada do processamento auditivo foi constituída pelos seguintes testes: (1) Teste de Memória Sequencial para Sons Não-verbais, (2) Teste de Memória Sequencial para Sons Verbais, (3) Teste de Localização Sonora 21,22. A escolha dos testes para a avaliação simplificada do processamento auditivo foi baseada na proposta de avaliação descrita na literatura 21,22. Os testes foram escolhidos por serem rápidos, de fácil aplicação, validados para a verificação das alterações estudadas e não necessitarem de equipamento sofisticado. Diante da impossibilidade de avaliação dos limiares tonais por meio de audiometria tonal limiar, optou-se pela realização da pesquisa do Reflexo Cócleo-Palpebral (RCP) para a exclusão das crianças com perda auditiva de moderada a severa. Os critérios de aplicação e análise do resultado respeitaram as regras definidas pelo teste 21,22. Os resultados foram classificados em uma variável dicotômica, sendo considerados alterados quando as crianças tiveram resultado alterado em pelo menos um dos três testes.
Os responsáveis pelas crianças sorteadas para participar do estudo foram esclarecidos e orientados sobre todos os procedimentos da pesquisa por meio de informações escritas (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). O TCLE foi entregue para as crianças na escola para a assinatura dos pais ou responsáveis. As crianças que não devolveram o documento assinado após duas tentativas de contato por meio de carta e uma por contato telefônico foram consideradas como excluídas do estudo.
Após o diagnóstico, foram realizadas devolutivas por meio de carta informativa para as crianças que não apresentaram alterações. Para as crianças que apresentaram alguma alteração, os responsáveis foram convidados a comparecer à escola para entrevista devolutiva, e as mesmas foram referenciadas ao centro de saúde para atendimento pediátrico, orientações e encaminhamentos quando necessários.
Para manter a confidencialidade, as escolas foram identificadas por números.
Os dados foram armazenados em formato eletrônico. Para comparação de proporções foi empregado o Teste Qui-Quadrado e para comparação de médias foi empregada a análise de variância. Para as variáveis contínuas que não apresentaram distribuição gaussiana foram comparadas as medianas pelo Teste de Kruskal Wallis. Foi considerado valor de 5% (p< 0,05) como limiar de significância estatística.
RESULTADOS
O cálculo amostral inicial incluiu 261 crianças. Foram avaliados e analisados os resultados de 242 crianças, o que representou 7,27% de perdas. Estas perdas incluíram crianças que não devolveram o TCLE assinado por um dos pais ou responsável, após três tentativas.
A idade das crianças variou entre quatro anos e seis anos e 11 meses. A mediana das idades foi 5,7 anos e a média foi 5,6 (±0,8). A Tabela 1 mostra as principais características das crianças avaliadas pelo estudo.
– Caracterização da população estudada quanto à faixa etária, sexo e escola no período de 2009/2010, Belo Horizonte
Verificou-se prevalência de 36,0% (n=87) de alterações da linguagem, 19,0% (n=46) de alterações de motricidade orofacial e 39,0% (n=92) de alterações de processamento auditivo.
Das 242 crianças avaliadas, 13,6% (n=33) apresentaram desvio fonológico, 16,1% (n=39), desvio fonético e a presença concomitante dos desvios fonético e fonológico foi observada em 6,2% (n=15) da amostra.
Entre as 87 crianças com presença de alteração da linguagem oral – fala, nota-se que 44,8% apresentaram desvio fonético, a mais prevalente das alterações encontradas. Além disso, 37,9% das crianças deste grupo apresentaram desvio fonológico e 17,3%, ambas as alterações (Tabela 2).
– Distribuição das alterações da linguagem oral/fala no período de 2009/2010, Belo Horizonte (N=87)
Entre as 39 crianças que apresentavam desvio fonético isolado, observou-se que mais da metade apresentou distorção do fone [s] (ceceio anterior ou ceceio lateral).
O processo de substituição foi o mais prevalente nas crianças com desvio fonológico isolado ou não. Das 33 crianças com desvio fonológico como única alteração, 24 (72,7%) apresentaram este processo. Observou-se também que das 15 crianças que apresentaram ambos os desvios, 12 (80,0%) apresentaram processos de substituição.
A Tabela 3 mostra a distribuição das alterações da linguagem oral em relação à faixa etária e sexo. Nota-se, na faixa etária de quatro a cinco anos, uma maior frequência de crianças com alteração da linguagem oral – incluídos os desvios fonéticos e fonológicos – com significância estatística (p=0,009). Observa-se que mais da metade (50,7%) destas crianças apresentavam essas alterações, o que não ocorreu nas demais faixas etárias. O mesmo foi observado quando analisada a presença de desvio fonológico isolado (p<0,001).
Quando investigada a relação entre os desvios da linguagem oral e outras alterações fonoaudiológicas, verificou-se associação significante entre desvio fonético e alterações de motricidade orofacial (p<0,001).
Observou-se também associação com significância estatística entre desvio fonológico e alterações do processamento auditivo (p<0,001).
A prevalência de falha na avaliação simplificada do processamento auditivo foi de 39,0% (n=92), de um total de 236 crianças, pois foram excluídas seis apenas para a análise do processamento auditivo: cinco crianças que se recusaram a realizar o teste por medo de colocar a máscara, o que impossibilitou a realização dos testes de memória sequencial não verbal e localização sonora, e uma criança que apresentou alteração da linguagem oral o que impossibilitou a realização do teste de memória sequencial para sons verbais. Verificou-se predominância de falha no teste de memória sequencial para sons verbais, observado em 58 (73,3%) destas 92 crianças.
Em relação à Motricidade Orofacial, observou-se 19,0% (n=46) de prevalência de alterações que representam as crianças que apresentaram inadequação de tensão, mobilidade e posicionamento dos órgãos fonoarticulatórios e os que apresentaram alteração de mordida e oclusão dentária, de forma concomitante ou não.
Observou-se que 80,0% (n=124) das crianças sem alterações de linguagem oral apresentaram um ou mais processos fonológicos produtivos considerados normais para a idade de acordo com a análise do teste de Fonologia do Teste de Linguagem Infantil – ABFW19. Os processos fonológicos produtivos mais frequentes nesta população foram simplificação de consoante final e simplificação de encontro consonantal.
DISCUSSÃO
Os resultados apresentados apontam alta prevalência de alterações da linguagem oral – nível fonético/fonológico em pré-escolares. Estudos em diferentes locais do território brasileiro que incluem total ou parcialmente a faixa etária de quatro a seis anos mostram prevalências que variam de 21,0% a 45,2% para alterações da linguagem oral3,16,18, 9,2% a 18,6% para desvios fonológicos16,23,24, e 2,10% a 22,5% para desvios fonéticos23-26. Essa grande variação, provavelmente, se deve a diferenças metodológicas e de idade das crianças que compuseram a amostra de cada estudo, dificultando a comparação entre os resultados.
Entre os desvios fonéticos, a distorção do fone [s] foi o mais predominante, o que também é citado pela literatura. Os sibilantes são os sons mais afetados por alterações oclusais sendo, em muitos casos, a causa de problemas de articulação da fala 13,27.
Os achados relativos aos processos fonológicos também são concordantes com os achados na literatura, onde os mais prevalentes foram os processos fononógicos envolvendo a substituição17,24,28. Verificou-se ainda alta prevalência de processos de simplificação, o que concorda também com o resultado de outros estudos29-31.
Na presente pesquisa não foi observada associação com significância estatística entre alterações da linguagem oral e a variável sexo. Alguns estudos apontam maior prevalência no sexo masculino, principalmente, em relação ao desvio fonológico15,16,29, enquanto outros referem proporção semelhante entre os sexos3,17,26.
Os resultados indicam maior número de crianças com alteração da linguagem oral na faixa etária de quatro a cinco anos. O mesmo foi observado quando analisada a presença de desvio fonológico. A literatura aponta maior possibilidade de falha das crianças mais novas nos testes de fala e nas habilidades auditivas. Mesmo diante da possibilidade de superação sem necessidade de intervenção, estudos indicam que estas crianças devem ser acompanhadas, pois estão aquém do esperado para a idade e existe a possibilidade de agravamento da dificuldade e acometimento de outras habilidades, como o domínio da linguagem na modalidade escrita. Estas crianças apresentam desempenho mais baixo que o padrão de normalidade verificado na população saudável7,12,19,21,30.
Na análise da relação entre os desvios da linguagem oral e outras alterações fonoaudiológicas, observou-se associação com significância estatística entre desvio fonológico e alterações do processamento auditivo. Esta associação foi verificada em outros estudos, que indicam que crianças com inadequação do processamento auditivo podem apresentar dificuldades na discriminação dos sons e no processamento temporal durante a aquisição da fala, levando a omissões e substituições dos fonemas, caracterizadas como desvio fonológico. Pesquisadores indicam que alterações na discriminação fonêmica, na memória de trabalho, no processamento auditivo e nos reflexos acústicos estão comumente associadas ao desvio fonológico32-35.
Foi verificado em outro estudo que 70% das crianças de quatro a seis anos que apresentavam desvio fonológico falharam em pelo menos uma das provas da avaliação simplificada do processamento auditivo, com predominância de falha no teste de memória sequencial para sons verbais, resultados semelhantes aos verificados nesta pesquisa33.
Afirma-se que a integridade e funcionamento adequado das estruturas auditivas são pré-requisitos para a aquisição e desenvolvimento da linguagem, dentro do padrão de normalidade. As funções de atenção, detecção, discriminação, localização, memória, ordenação e integração dos sons são essenciais para que a criança possa perceber os detalhes das informações sonoras, compreendê-las e produzir a fala. A escuta com qualidade é favorável ao bom desenvolvimento da linguagem assim como uma audição flutuante pode interferir no desempenho da comunicação oral e escrita1,7,12,21,29,35.
A articulação dos sons da fala está ligada ao desenvolvimento e maturação do sistema sensório-motor-oral e às funções estomatognáticas de respiração, sucção, mastigação e deglutição27. A ocorrência de alterações da linguagem oral em idade pré-escolar pode ser consequência de disfunções do sistema estomatognático, uma vez que a integração dos sistemas motor, sensório e auditivo é essencial para o desenvolvimento do controle motor da produção da fala, o que depende diretamente da maturação neuronal e do crescimento músculo-esquelético nos primeiros dois anos de vida36. Além disso, ressalta-se ainda que a presença prolongada de hábitos de sucção, com exceção do aleitamento materno, pode afetar o desenvolvimento da fala em crianças pequenas, pois as estruturas do sistema estomatognático são influenciadas por estes hábitos, podendo ocorrer alterações anatômicas que prejudicam a articulação dos sons37,38.
Outro achado interessante deste estudo foi o elevado número de crianças sem alteração da linguagem oral que apresentou algum processo fonológico produtivo sincrônico (considerado normal para a idade) de acordo com a análise do teste, com predominância dos processos de simplificação de consoante final e simplificação de encontro consonantal. Em avaliação da linguagem oral de 95 crianças, com idade média de cinco anos e quatro meses, da região Noroeste da capital mineira, verificou-se a presença do processo de redução do encontro consonantal em 24 crianças e o processo de simplificação da consoante final em 20 crianças17. Em algumas pesquisas, estas simplificações são consideradas variações linguísticas da população, pois aparecem também na fala dos adultos. Estudo realizado com crianças de 1ª a 4ª série, na mesma região onde foi realizado o presente trabalho, também apontou alta prevalência dos processos de redução do encontro consonantal e simplificação de consoante final nas crianças avaliadas. Estas alterações são descritas como variação linguística comum à população da região, pois as crianças participantes já não estavam em fase de aquisição destes sons26. No estado de Minas Gerais, a variação de simplificação de encontro consonantal é observada com frequência em adultos, o que poderia ser justificado pelo /r/ ser o som de maior dificuldade de produção39. As crianças têm os pais e familiares como modelos de fala e tendem a utilizar as palavras da mesma maneira que seus pares. Sendo assim crianças que convivem com adultos que apresentam essas características linguísticas referidas têm maior chance de apresentar os mesmos padrões de linguagem oral do que crianças que não têm esse convívio13,40. Entretanto, no presente trabalho, optou-se por não considerar que as inadequações apresentadas são variação linguística por estas crianças estarem ainda no período de aquisição destes processos fonológicos.
CONCLUSÃO
A alta prevalência de desvios de linguagem oral no nível fonético/fonológico verificada nesta pesquisa aponta para a necessidade de desenvolvimento de ações terapêuticas e de prevenção em crianças da faixa etária estudada. Para que isto ocorra, é essencial que exista boa comunicação entre professores e profissionais de saúde. Por estarem em contato constante com as crianças, os educadores são muitas vezes capazes de identificar as crianças com dificuldades na fala e podem estimulá-las.
Outros aspectos importantes observados foram as associações entre inadequações do processamento auditivo e alterações de motricidade orofacial com os desvios da linguagem oral. A metodologia utilizada não permite o estabelecimento de relação causal ou temporal entre estas variáveis. Por este motivo, maior atenção às crianças cujo desenvolvimento destas habilidades se encontre aquém do esperado é indicada.
O acúmulo de alterações da linguagem oral na faixa etária de quatro a cinco anos sugere que esta seja uma boa fase para identificação e prevenção destes desvios. Esta faixa etária é considerada um marco no processo de desenvolvimento da linguagem, envolvendo os aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos, de essencial importância para a compreensão e uso dos recursos da linguagem.
Sugere-se a realização de novos estudos tanto nesta quanto em outras áreas de Belo Horizonte, para a comparação dos resultados. Acredita-se que pesquisas que analisem os fatores associados a estas alterações possam complementar os resultados encontrados. Desta maneira, seria possível determinar que tipos de ações seriam mais benéficas a esta população, facilitando a adoção das medidas de prevenção das alterações da linguagem oral antes da interferência destes desvios no processo de aprendizagem das crianças em fase escolar. Garantir a qualidade de vida destes indivíduos deve ser o principal objetivo dos profissionais que lidam com estas crianças.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos colaboradores da pesquisa, ex-alunos de Medicina e Fonoaudiologia da UFMG, Maria Clara Assis Brito Alves, Tamara Rita Alves Januário e Mayra Lopes, que auxiliaram na etapa de coleta de dados; e também ao Centro de Saúde, escolas e alunos e seus familiares por participarem deste projeto.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Aug 2014
Histórico
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Recebido
20 Jan 2013 -
Aceito
23 Jul 2013