carta ao editor
Psicanálise na esquizofrenia
No artigo sobre tratamento de pacientes esquizofrênicos, publicado por Itiro Shirakawa na Rev Bras Psiquiatr 2000;22(supl 1):56-8, no item Psicoterapia, o autor diz: "Não se recomendam psicoterapias baseadas em interpretações, com várias sessões por semana e por longos anos". Como utilizo a psicanálise que tem essas características - muitas vezes aliada a outras aproximações como psicofarmacoterapia -, e observo um acentuado desenvolvimento emocional em muitos dos meus pacientes, tal colocação contrasta com minha experiência clínica. Ele também não leva em conta importantes contribuições de autores clássicos como Melanie Klein, Bion e Rosenfeld, entre outros, e desenvolvimentos técnicos recentes como os propostos por Hedges.1,2
Sei que a posição do autor é referendada por toda uma literatura psiquiátrica recente que, baseando-se na provável mas ainda não comprovada etiologia biológica da doença, só reconhece intervenções quantificáveis e que visam uma redução sintomatológica. No desenvolvimento científico, no entanto, muitas verdades, teorias e tratamentos de um dado momento histórico são depois desmentidos ou modificados com a ampliação do conhecimento. Em relação à esquizofrenia, por exemplo, disfunções dopaminérgicas que seriam causais há algumas décadas, são agora vistas como provavelmente secundárias a patologias estruturais ou de desenvolvimento cerebral.3
Colocações como as do autor que levam em conta apenas uma tecnologia privilegiada, no atual momento histórico, marginalizam importantes contribuições das ciências humanas no lidar com a complexidade do homem e suas doenças mentais".
Isac G Karniol
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, FCM/
Unicamp e Serviço de Psiquiatria da Unisa, Faculdade de
Medicina de Santo Amaro, São Paulo
Rua Tiradentes, 289/cj. 32. Cep13.023-190 Campinas, SP.
Tel.: (0xx19) 233-6360/ Fax: (0xx19) 231-0408
E-mail: karniol_i_g@uol.com.br
Referências
1. Spillius EB. Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1991.
2. Hedges LE. Working the organizing experience. London (UK): Jason Aronson Inc.; 1994.
3. Knable MB, Kleinman JE, Weinberger DR. Neurobiology of Schizophrenia. In: Schatzberg AF, Nemerof CB, editors. Textbook of Psychopharmacology. 2nd ed. Washington (DC): American Psychiatric Press, Inc.; 1998. p. 589-608.
4. Roudinesko E. Por que a Psicanálise. São Paulo (SP): Jorge Zahar Ed.; 1999.
Resposta:
Em resposta às objeções do ilustre Isac Germano Karniol, gostaria de reafirmar meu ponto de vista contrário à indicação de psicanálise para pacientes esquizofrênicos:
1. Até onde sei, as contribuições de autores clássicos, particularmente Melanie Klein, Frida Fromm Reichmann e Rosenfeld sobre a esquizofrenia, foram elaboradas antes do início da psicofarmacologia e muito antes da padronização dos critérios diagnósticos para esquizofrenia. São conhecimentos importantes para o profissional encarregado do tratamento, mas nem sempre aplicáveis à prática clínica.
2. Concordo que no "desenvolvimento científico (...) muitas verdades (...) são depois desmentidas ou modificadas com a ampliação do conhecimento." O conhecimento atual sobre a esquizofrenia, realmente, vem mostrando que ocorrem alterações do neurodesenvolvimento, anomalias estruturais e, principalmente, disfunções cognitivas importantes demonstradas por Pet/Scan e testes neuropsicológicos.1 Esses estudos têm comprovado que existem comprometimentos importantes das funções executivas, de atenção, de concentração e de memória. Andreasen2 vai além: mostra que há alteração no circuito córtex-tálamo-cerebelo-córtex pré-frontal, e refere que o comprometimento cognitivo é, talvez, o que representa o sintoma central da esquizofrenia. Ela refere, então, que na esquizofrenia ocorre uma "dismetria cognitiva".
3. A minha experiência no acompanhamento psiquiátrico de mais de 200 pacientes com esquizofrenia e as supervisões de outros tantos pacientes no Proesq da Unifesp/EPM permitem reafirmar que se trata de uma doença grave, que compromete muito a vida do indivíduo, o que acarreta a recomendação do manejo de caso, visando a reabilitação desses pacientes.
4. Em se tratando de casos graves, creio que o profissional deve planejar o tratamento, visto ser uma doença crônica que necessita de cuidados contínuos por muitos anos.
5. É importante que o psicoterapeuta leve em conta que numa doença crônica o paciente e a família precisam ser esclarecidos, orientados, apoiados e ajudados a enfrentar uma enfermidade que é real, existe e causa prejuízos a ele e aos familiares. Daí a minha convicção de que as psicoterapias baseadas em interpretações não orientam, não promovem a adesão ao tratamento farmacológico e criam falsas expectativas. Ainda recentemente, a mãe de um paciente hebefrênico queixou-se de um psicoterapeuta que, após três anos de psicoterapia, não aceitou reduzir o número de sessões semanais de 4 para 2. A família foi percebendo que a melhora era lenta e pequena, mas não queria interromper a terapia abruptamente. As queixas se relacionaram aos custos do tratamento e ao uso do poder do terapeuta na indicação das sessões semanais. Tinham receio de que, com a interrupção da terapia, o paciente piorasse e tivesse uma recaída. Mudaram o terapeuta, que passou a ajudar o paciente nas atividades da vida diária. O paciente obteve uma melhora na sua qualidade de vida.
6. Não desconheço o papel da psicanálise em ajudar uma pessoa a se conhecer. Contra-indico-a para a esquizofrenia que afeta apenas 1% da população. Considero que uma técnica interpretativa tem um alcance limitado para ajudar pacientes que não conseguem planejar o que fazer no dia seguinte ou que assistem à TV o dia todo, e não sabem contar o que estavam assistindo.
7. A globalização tornou custosos os novos medicamentos para a esquizofrenia. Considero que R$ 500,00 por mês para um bom tratamento farmacológico é caro para os pacientes brasileiros. O que falar então de 4 sessões semanais ao preço mínimo de R$ 100,00/sessão em São Paulo, totalizando R$ 1.600,00 ao mês? É importante que o profissional, eticamente, leve em consideração o custo e o benefício da indicação de um tratamento. Será que vale a pena um tratamento 3 vezes mais caro do que o melhor tratamento farmacológico, de 2, 3, 4 a 5 anos e que também não é etiológico, não vai fazer a doença desaparecer?
8. Com relação à medicação, ela também não cura a doença. Entretanto, discordo que seja meramente sintomática como o analgésico na enxaqueca. Estudos controlados mostram claramente que a medicação previne recaídas e evita a deterioração. Além disso, a clozapina e alguns dos novos antipsicóticos melhoram as funções cognitivas afetadas pela doença.
9. O cuidado com pacientes portadores de doenças graves e crônicas como a esquizofrenia deve ficar acima de polêmicas acadêmicas. Creio ser útil enfatizar que as nove recomendações da APA (American Psychiatric Association) em suas diretrizes para o tratamento de pacientes com esquizofrenia, particularmente a nona, conclui: "facilitar o acesso do paciente aos diversos serviços e coordenar os recursos destinados a saúde mental, tratamento, reabilitação, defesa do paciente, lazer etc". Então, cabe ao profissional avaliar o custo-benefício de toda intervenção e orientar o paciente na busca do caminho mais adequado para sua recuperação.
Itiro Shirakawa
Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM
Rua Mário Cardim, 168. Cep 04019-000 São Paulo, SP
Tel.: (0xx11) 574-0905
Referências
1. Liddle PF. The Multidimensonal Phenotype of Schizophrenia. In: Tomminga CA, editor. Schizophrenia in a molecular age: Review of psychiatry series, u. 18, n 4. Washington (DC): APA Press Inc.; 1999. p. 1-28.
2. Andreasen NC. Unitary Model of Schizophrenia: Bleuler's "Fragmented Phrene" as Schizencephaly. Arch Gen Psychiatr 1999;56:781-7.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Out 2000 -
Data do Fascículo
Set 2000