Open-access Farmacogenômica: oportunidades e desafios

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Editorial

Farmacogenômica: oportunidades e desafios

Todos nós diariamente cuidamos de pacientes que respondem de maneira variada ao mesmo tratamento. Ao receber dose equivalente de uma mesma medicação, alguns pacientes não têm a menor resposta, outros apresentam efeitos colaterais graves, e outros respondem muito bem com remissão completa do quadro clínico. Em alguns casos, o clínico tem como prever a resposta terapêutica baseado na história pessoal ou familiar dos pacientes e na relação entre eficácia, efeitos colaterais e interações medicamentosas. Porém, em número enorme de casos não há como prever a resposta clínica a uma determinada droga.

A farmacogenômica é uma nova área da medicina, que tem uma interface com a farmacologia clássica e a nova ciência da genômica. A farmacogenômica tem dois campos de interesse altamente relacionados. Primeiramente, há o estudo de como marcadores genômicos podem ser usados para identificar tipos de resposta ao tratamento farmacológico. Essa é a grande promessa do tratamento individualizado. O objetivo final dessa linha de trabalho é usar marcadores genômicos para prever a resposta às drogas. Para que isso ocorra, é necessário que vários estudos clínicos sejam desenvolvidos analisando de maneira estatisticamente rigorosa a relação entre fenótipo e genótipo. Ou seja, ao se tratar o paciente em estudos bem conduzidos, a resposta clínica favorável ou desfavorável é descrita de maneira estruturada e relacionada ao genótipo do paciente para a identificação de genótipos que respondam de maneira específica ao tratamento. Isto facilitará muito a escolha de drogas para determinado paciente e certamente revolucionará a prática da medicina.

Outro aspecto importante da farmacogenômica é a possibilidade de usar a evolução genômica para a identificação de novos genes que são regulados por drogas. Muitos dos tratamentos usados hoje foram descobertos por experiência clínica, e não se sabe seu mecanismo de ação. Por exemplo, os antidepressivos agem nas monoaminas em questão de horas, enquanto seu efeito clínico é tardio, demorando várias semanas para se manifestar. Vários grupos de pesquisa, inclusive o nosso, estão testando a hipótese de que o tratamento crônico com antidepressivos afeta a regulação de genes ainda não identificados. Qual a importância disso? Em termos clínicos e econômicos, os avanços terapêuticos são manifestados pelo desenvolvimento de novas classes de drogas. Ou seja: a primeira droga de uma classe (por exemplo, o primeiro bloqueador seletivo de captação de serotonina, no caso, a fluoxetina) representa um avanço clínico e econômico maior do que outras drogas que simplesmente têm o mesmo mecanismo de ação. O uso de técnicas genômicas identificará genes que servirão como alvos terapêuticos para o desenvolvimento de novas classes de drogas que terão novos mecanismos de ação e, possivelmente, menos efeitos colaterais e maior tolerabilidade.

Em futuro não muito remoto, todo clínico terá de ter conhecimentos de farmacogenômica para poder prescrever as drogas ideais para seus pacientes. Isto causará um grande impacto na prática e no ensino da medicina. No entanto, a necessidade de fazer testes genéticos para determinação da conduta terapêutica abrirá uma série imensa de problemas éticos, legais, sociais e econômicos.

Inicialmente, em termos éticos, precisam-se estabelecer mecanismos adequados para a coleta e o armazenamento do DNA do paciente, além de garantir segurança e sigilo em relação ao genótipo obtido. Quem terá acesso a esses dados? O paciente, o médico, o hospital, o governo, as companhias farmacêuticas, as companhias privadas de seguro médico? O custo do seguro-saúde será mais alto para aqueles indivíduos classificados como não respondedores a drogas usadas para o tratamento de doenças comuns como o diabetes e a hipertensão? Além disso, há a parte legal. Se uma droga é recomendada para pessoas com um genótipo específico, o que ocorre se o médico precisar usar essa droga em pessoas que não têm o genótipo certo, mas não respondem a outras intervenções? Quem pagará por tal tratamento? As companhias de seguro podem usar motivos farmacogenômicos para bloquear o reembolso de certos tratamentos, dizendo que não são recomendados pela análise de genótipo. Além disso, há agora um processo legal nos Estados Unidos iniciado por um paciente que sofreu efeito colateral causado por um medicamento. Trabalhos publicados em revistas científicas mostram que uma certa percentagem de pessoas com um polimorfismo específico não se deram bem com aquela droga. O paciente teve seu genótipo testado, confirmou possuir o tal poliformismo e agora processa a companhia farmacêutica que não registrou na bula uma contra-indicação farmacogenômica. Como se pode ver, a farmacogenômica e a individualização de tratamento farmacológico não serão só um avanço científico e clínico – haverá certamente uma imensa revolução na prática da medicina e também em suas conseqüências econômicas, sociais e legais.

Outra área complicadíssima é a do envolvimento das minorias étnicas nesse tipo de trabalho. Alelos que influenciam resposta a medicamentos, como os genes da superfamília do citocroma P450, que são responsáveis pelo metabolismo de grande parte dos psicotrópicos, têm poliformismos com distribuição variada em diferentes populações. Para se estudar isto, é necessário investigar vários grupos étnicos. A inclusão de pessoas, em estudos clínicos, não só por causa de seu diagnóstico mas também devido à cor de sua pele ou à sua origem geográfica abre uma série enorme de questões éticas que só agora estão sendo abordadas.

Em conclusão, a farmacogenômica tem o potencial de individualizar o tratamento farmacológico e de descobrir novos alvos terapêuticos para o desenvolvimento de novas classes de drogas. Tais avanços repercutirão imensamente na prática e no ensino da medicina e também afetarão de maneira profunda os aspectos éticos, econômicos e legais da profissão. A psiquiatria estará entre as primeiras especialidades afetadas pela farmacogenômica, de modo que é importante que os psiquiatras se mantenham a par dos avanços dessa nova área da medicina do século XXI.

Julio Licinio

Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, Los Angeles, EUA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2001
  • Data do Fascículo
    Set 2001
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