Open-access Construindo a linguagem gráfica em uma aula experimental de física

Constructing graphical language in a physics experimental class

Resumos

Analisa-se a construção da linguagem gráfica em uma sequência de aulas sobre calor e temperatura, inserida em um laboratório investigativo. A pesquisa foi desenvolvida a partir de filmagens em uma turma do segundo ano do Ensino Médio de escola pública da rede estadual de ensino de São Paulo. Destaca-se o papel do professor na medida em que ele articula as linguagens à sua disposição (oral, escrita, representações visuais entre outras), pelos processos de cooperação e especialização, com o objetivo de traduzir a linguagem coloquial e fenomenológica em linguagem científica, ressaltando as características tipológicas e topológicas de cada linguagem, tornando o fenômeno visível ou transparente no gráfico e vice-versa aos olhos dos estudantes. Com isso, contorna-se o mecanicismo matemático das aulas tradicionais de física, em que a linguagem matemática torna-se um obstáculo à aprendizagem dos conceitos físicos, no lugar de ser uma forma de estruturar e interpretar os fenômenos naturais.

Ensino de Ciências; Laboratório; Linguagens e Matemática


We have analyzed the construction of graphic language in a sequence of classes concerning the phenomena of Heat and Temperature within laboratory inquiry. The research was developed at a High School in a public school of São Paulo State, using the class videos. We pointed out that the teachers' responsibility is to articulate the language of his teaching (oral, written and visual representations among others), by a process of cooperation and specialization, with the objective of translating the colloquial and phenomenological language into scientific language, showing the typological and topological characteristics of each language and how it clarifies students understanding. Therefore, it is possible to define the mathematical difficulty of the traditional physics classes, where the mathematical language becomes itself an obstacle to the learning of the physical concepts, instead of being a way to structure and interpret natural phenomena.

Science teaching; Laboratory; Languages and Math


Construindo a linguagem gráfica em uma aula experimental de física*

Constructing graphical language in a physics experimental class

Alex Bellucco do CarmoI,1; Anna Maria Pessoa de CarvalhoII

IMestre em Ensino de Ciências. Docente, Rede Estadual de Ensino de São Paulo. São Paulo, SP. alexbellucco@gmail.com

IIDoutora em Educação em Ciências. Docente, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. ampdcarv@usp.br

RESUMO

Analisa-se a construção da linguagem gráfica em uma sequência de aulas sobre calor e temperatura, inserida em um laboratório investigativo. A pesquisa foi desenvolvida a partir de filmagens em uma turma do segundo ano do Ensino Médio de escola pública da rede estadual de ensino de São Paulo. Destaca-se o papel do professor na medida em que ele articula as linguagens à sua disposição (oral, escrita, representações visuais entre outras), pelos processos de cooperação e especialização, com o objetivo de traduzir a linguagem coloquial e fenomenológica em linguagem científica, ressaltando as características tipológicas e topológicas de cada linguagem, tornando o fenômeno visível ou transparente no gráfico e vice-versa aos olhos dos estudantes. Com isso, contorna-se o mecanicismo matemático das aulas tradicionais de física, em que a linguagem matemática torna-se um obstáculo à aprendizagem dos conceitos físicos, no lugar de ser uma forma de estruturar e interpretar os fenômenos naturais.

Palavras-chave: Ensino de Ciências. Laboratório. Linguagens e Matemática.

ABSTRACT

We have analyzed the construction of graphic language in a sequence of classes concerning the phenomena of Heat and Temperature within laboratory inquiry. The research was developed at a High School in a public school of São Paulo State, using the class videos. We pointed out that the teachers' responsibility is to articulate the language of his teaching (oral, written and visual representations among others), by a process of cooperation and specialization, with the objective of translating the colloquial and phenomenological language into scientific language, showing the typological and topological characteristics of each language and how it clarifies students understanding. Therefore, it is possible to define the mathematical difficulty of the traditional physics classes, where the mathematical language becomes itself an obstacle to the learning of the physical concepts, instead of being a way to structure and interpret natural phenomena.

Keywords: Science teaching. Laboratory. Languages and Math.

Introdução

É comum, nas salas de aulas de Física, um predomínio de uma linguagem técnica desde o primeiro dia de aula, focada em uma comunicação essencialmente matemática. Deste modo, geralmente, dedica-se boa parte do curso à revisão de conceitos considerados triviais como: funções e confecção de gráficos.

Em contrapartida, recentes pesquisas mostram que a linguagem usada pelos cientistas tem uma construção bem diferente dessas aulas, e que este processo de edificação da linguagem precisa ser adaptado à sala de aula com o objetivo de promover uma aprendizagem mais sólida da Ciência (CAPECCHI, 2004; ROTH, 2003; SUTTON, 2003; ROTH, LAWLESS, 2002; ALMEIDA, 2001, 1995; MÁRQUEZ, IZQUIERDO, ESPINET, 2003; LEMKE, 1998a, 1998b).

Esses trabalhos deixam claro o uso de diferentes linguagens no processo de construção dos significados científicos e que a natureza de cada uma delas deve ser considerada na sala de aula. Logo, consideramos importante que o ensino de Física leve em conta essas características em suas atividades.

Centramos nossas atenções na linguagem gráfica, a qual trabalhamos em Bellucco (2006), deixando a algébrica para artigos posteriores. Pretendemos responder a seguinte questão: "Como, em uma sequência de ensino por investigação, alunos e professor articulam a linguagem gráfica com as outras linguagens para construir os significados científicos?"

Optamos pelo estudo de uma sequência de ensino construtivista e investigativa, denominada ensino por investigação (CARVALHO et al., 1999), especificamente em uma atividade de laboratório aberto realizada em uma turma do segundo ano do Ensino Médio de uma escola pública do Estado de São Paulo, que descreveremos mais adiante.

Essa proposta concentra diversos aspectos da cultura científica, além de desenvolver a habilidade de argumentação dos estudantes (CAPECCHI, 2004), e ainda desenvolve uma visão coerente do trabalho científico (NASCIMENTO, 2004) proporcionando, também, a aquisição desses conteúdos (MOREIRA, 2005).

Para analisar a atividade de laboratório selecionada, realizamos uma revisão sobre como funcionam as linguagens científicas, que adquirem um sentido mais completo dentro de uma concepção cultural da Ciência. Desse estudo bibliográfico, emerge a importância da linguagem matemática e algumas implicações para o ensino de ciências.

A cultura científica e sua linguagem

Nas últimas décadas, muitos trabalhos têm apontado a Ciência com uma forma de cultura, com suas diversas práticas, valores, regras, linguagens etc. Consequentemente, aprender Ciência é participar dessa cultura (CAPECCHI, 2004; KOMINSKY, GIORDAN, 2002; ROTH, LAWLESS, 2002; REIGOSA et al., 2000; COBERN, AIKENHEAD, 1998; MORTIMER, MACHADO, 1996; ZANETIC, 1989).

Dentro desta perspectiva, adotamos a concepção de aprendizagem como enculturação, ou seja, aprender Ciência é se envolver na cultura científica, apreendendo parte de suas lingua-gens, métodos, processos e práticas, adquirindo novas visões de mundo e ampliando as antigas (CAPECCHI, 2004; CAPECCHI, CARVALHO, 2002; DRIVER et al., 1999; MORTIMER, MACHADO, 1996).

Nessa visão, aprender Ciência é se engajar nas formas de os cientistas construírem seus conhecimentos, o que envolve o trabalho em grupo, e, também, um processo individual de atribuição de significados e construção de conhecimentos (DRIVER et al., 1999). Esse trabalhar em grupo e individual envolve o uso de linguagens especiais, com características próprias que detalhamos a seguir.

Linguagem das Ciências e a Matemática

Nas diferentes formas de comunicação da cultura científica, encontramos diversas linguagens, que vão desde a escrita ao uso de tabelas, gráficos, equações, simulações, esquemas etc. Isso implica que a matemática não é a única linguagem da Ciência e, mesmo ela, é constituída de outras linguagens, tal como a gráfica e a algébrica, sendo que este fato não a torna menos importante.

O uso simultâneo de escrita, tabelas, gráficos, equações, representações visuais, animações etc, para construir conhecimentos, é uma importante característica da atividade científica (LEMKE, 1998a). Vale ressaltar que essas linguagens não aparecem isoladas (primeiro uma, depois outra), mas são associadas por dois processos distintos de construção de significados: cooperação e especialização (MÁRQUEZ, IZQUIERDO, ESPINET, 2003).

Na cooperação, duas ou mais linguagens são usadas para construir um mesmo significado sobre um conceito ou fenômeno, realizando funções semelhantes. Por exemplo, ao dizer que a temperatura de um gráfico aumentou linearmente, o falante pode usar simultaneamente um gesto que representa a curva do gráfico, ou, mesmo, apontar diretamente o local de aumento. Logo, fala, gesto e curva são usados de forma cooperativa para expressar a mesma idéia.

Na especialização, duas ou mais linguagens atribuem um significado para um conceito ou fenômeno, realizando funções distintas. Por exemplo, quando se explica a variação de uma entidade num gráfico, pode-se usar a fala para apontar aumento ou decrescimento, enquanto a curva pode mostrar como se deu a variação - linear, exponencial, logarítmica etc. Assim, essas duas linguagens são usadas de forma especializada para a construção do significado.

Dessa maneira, no primeiro caso, uma linguagem reforça a outra para pontuar certos fenômenos ou conceitos, o que está relacionado, sobretudo, a conceitos estabelecidos. Já no segundo caso, uma linguagem adiciona um significado novo ao fenômeno em estudo, o que está relacionado especialmente ao conhecimento em construção.

Outra característica importante da ciência é que ela não é construída e nem comunicada somente pela linguagem oral ou escrita, pois a sua linguagem é híbrida, contendo, ao mesmo tempo, um componente verbal-tipológico e outro matemático-gráfico-operacional-topológico. Portanto, o universo científico é uma combinação do discurso verbal, da escrita, de expressões matemáticas, representações gráficas e visuais, e operações motoras no mundo natural (LEMKE, 1998a, 1998c).

Nesse processo, destacamos os recursos tipológicos e topológicos, que pertencem às diversas linguagens, com a ressalva de que cada um deles predomina em uma linguagem específica. Por exemplo, a escrita e a oralidade têm ênfase no tipológico, e a matemática e as representações visuais no topológico.

Recursos tipológicos das linguagens são usados para classificar por oposição os contextos culturais (LEMKE, 1999). Assim, quando usamos "quente" ou "frio" para definir a temperatura de um objeto, nossa fala possui meios que, ao classificar, definem condições excludentes. Dessa forma, esses recursos tipológicos são marcados, em muitos casos, por ausência de precisão. São exemplos de tais categorias: longe e perto; alto e baixo; momento angular e momento linear; condução, convecção e irradiação etc.

Recursos topológicos representam variações contínuas (ou quase) nas propriedades dos fenômenos naturais, tais como: temperatura, pressão, momento angular, momento linear,calor etc. É importante destacar que cada uma dessas entidades pode variar dentro da topologia dos números reais (LEMKE, 1999), o que implica uma interpretação bastante precisa dos fenômenos físicos e a dependência funcional de variáveis. São também alguns exemplos desses recursos: desenhos, gestos, gráficos e qualquer tipo de representação visual.

Inspirados em Lemke (2002), sistematizamos esses recursos na Tabela 1.

Deste modo, a linguagem oral e a escrita não dão conta de descrever, de uma forma precisa: o movimento de um projétil no espaço, a variação da temperatura de um líquido, a topologia de uma montanha, o movimento de uma molécula num gás, e assim por diante.

Gestos, desenhos e outros tipos de representações topológicas são mais eficientes neste tipo de representação. Entre estas linguagens, repousa a matemática, que faz uma ligação entre elas, dando precisão às asserções sobre o mundo.

Interpretando os escritos científicos - gráficos e funções

Nos textos científicos, predominam o uso de tabelas, gráficos e representações visuais, como, por exemplo: esquemas, desenhos, diagramas e gráficos abstratos (LEMKE, 2002).

Este tipo de constituição determina outra característica importante: os textos científicos não são necessariamente lineares (LEMKE, 1998a). Existem diversos caminhos nos quais a leitura pode seguir: a leitura das notas de rodapé, das figuras e dos cabeçalhos antes do texto em si. Dessa maneira, quando um leitor experiente lê primeiro gráficos, tabelas, equações e seus cabeçalhos, ele consegue construir um texto de forma muito semelhante ao original. Portanto, o texto científico é uma espécie de hipertexto primitivo.

Isto acontece porque gráficos e funções condensam tabelas e permitem visualizar tendências e dependências entre variáveis, possibilitando extrair padrões que não eram evidentes nos dados puros e tabelas. As funções matemáticas são responsáveis pela abstração desses padrões (LEMKE, 1998a; ALMEIDA, 2004; PIETROCOLA, 2002; PATY, 1995).

Roth (2003) apresenta outro aspecto importante para o presente trabalho: os cientistas tendem a não separar fenômeno, a coleta de dados e os resultados gráficos e funcionais, tratando-os como se fossem a mesma coisa, enxergando o fenômeno no gráfico e na função, ao mesmo tempo, esquecendo os passos que os produziram. Assim, para o uso competente dessas linguagens é necessária a familiarização com os processos que levaram à sua construção.

Logo, segundo o autor supracitado, quando um cientista fala sobre um gráfico ou uma função, por exemplo, ele discorre mais sobre o fenômeno do que sobre a linguagem matemática em questão, deixando de lado todo o processo de sua construção.

Linguagens da Ciência na sala de aula

Como a Ciência utiliza diversas linguagens para construir seus conhecimentos, é importante aprender não somente nas suas linguagens, mas também sobre elas (LEMKE, 1998b).

É relevante, também, retomar na sala de aula o processo de produção das diversas formas da escrita científica, incluindo a matemática. Dessa forma, podendo fazer com que nas tabelas, gráficos, diagramas, funções etc, o fenômeno em estudo fique "transparente" ao olhar do aluno (ROTH, 2003). Silva et al. (2006) mostram que a visualização de imagens depende do contexto sócio-histórico-cultural em que o sujeito observador está inserido; logo, diferentes observadores podem ter diversas interpretações da mesma imagem, que depende de conhecimentos que vão além do que ela mostra de imediato, o que os autores chamam de "não transparência das imagens". Por isso, decorre a necessidade de deter-se sobre gráficos e outras representações visuais, para que elas "transpareçam" o fenômeno com que os estudantes se deparam, evitando que eles construam significados alternativos aos científicos.

No caso da linguagem matemática, é importante explicitar quais recursos pertencem à mesma. Por exemplo, ao trabalhar um gráfico o professor necessita deixar claros os recursos tipológicos e topológicos dessa linguagem. Dentre os recursos tipológicos, temos, por exemplo, as variáveis, como energia, tempo e temperatura. Já os recursos topológicos são os valores das variáveis, a forma da curva com suas inclinações e a organização visual que o gráfico proporciona.

Explicitando esses recursos, faz-se um "link" entre o fenômeno e a representação matemática do mesmo. Esse processo ocorre, sobretudo, com o uso dos recursos topológicos, que são característicos dos fenômenos estudados na Física e que são típicos da linguagem matemática.

Especificamente sobre a linguagem gráfica, Roth (2003) mostra que as pesquisas de ensino tratam esse assunto focando em dimensões psicológicas do aprendizado. Porém, o autor afirma que a elaboração de gráficos é uma prática de construir sinais, e que usar competentemente os gráficos requer familiarizar-se com as formas de construí-lo na Ciência.

Na aprendizagem da linguagem matemática, também é relevante o estudante utilizar, primeiro, sua linguagem natural (incluindo oral, escrita e visual), para, depois, desenvolver uma linguagem mais simbólica, tal como nos mostra Klüsener (1998). Nesse processo, argumenta a autora, o aluno pode adquirir uma percepção geométrica do mundo, possibilitando que essa nova visão seja traduzida numa linguagem gráfica e algébrica. Ela ainda destaca que os educandos apresentam mais dificuldades nesta última, e para que elas sejam superadas, é imprescindível uma tradução da álgebra em linguagem natural.

Isto é relevante, pois, para aprender a Matemática das Ciências, é desejável que o aluno tome conhecimento da geometria dos fenômenos por meio dos recursos topológicos das linguagens. Processo em que deve ocorrer uma tradução da linguagem natural/fenomenológica para a linguagem gráfica/algébrica, possibilitando que o fenômeno possa tornar-se transparente ao olhar do educando.

Destacamos que o estudante não é um cientista e, portanto, não está familiarizado com boa parte das linguagens científicas. Isso implica ficar atento à forma como elas cooperam e especializam - processos essenciais para a elucidação dos fenômenos em estudo - e, em especial, aos recursos tipológicos e topológicos das mesmas.

Quando, por exemplo, um professor cita um aumento linear, não é suficiente apenas dizê-lo; é necessário mostrá-lo cooperativamente (ou especializadamente, se for o caso) com um gesto ou gráfico, explicitando o significado matemático de diferentes formas e proporcionando ao estudante uma visão mais completa do fenômeno (crescimento linear) na linguagem matemática em questão (gráfica ou algébrica).

Metodologia

Para resolver o problema proposto, analisamos, com base no referencial apresentado, gravações, feitas no ano 2000, de uma aula de laboratório aberto2, realizadas em uma escola pública da cidade de São Paulo, numa turma do 1º ano do Ensino Médio.

Essas aulas se encontravam dentro de uma sequência de ensino sobre calor e temperatura, e o laboratório foi realizado para responder a pergunta: "Como a água aquece?". O objetivo principal era encontrar a equação fundamental da calorimetria.

A sequência contava com dez aulas duplas (ou vinte aulas de cinquenta minutos). A atividade de laboratório se iniciou na quarta aula, e a análise dos dados coletados nessa atividade, que está relacionada aos aspectos matemáticos da Física mencionados, na metade da sexta aula.

Direcionamos nossas atenções à etapa do laboratório aberto de análise dos dados, na qual os valores de uma tabela foram transformados em um gráfico (sétima aula), já que a primeira não foi suficiente para testar todas as hipóteses levantadas e responder a pergunta proposta pela professora.

As gravações das aulas foram transcritas e classificadas em momentos expressivos da construção da linguagem matemática, que foram, ainda, divididos em episódios e microepisódios, constituindo, assim, os dados de pesquisa (CARVALHO, 2006).

Análise da aula 7 - Transformando a Tabela em Gráfico

Segue um resumo da aula na qual ocorre a análise do gráfico:

Tabela 2 - clique para ampliar

Nos momentos 4 e 6, encontram-se os aspectos matemáticos da Física discutidos. O momento 5 apenas relaciona-se a conteúdos matemáticos fora da Ciência, não sendo importante para nossos propósitos.

Neste trabalho analisamos somente o momento 4, em que os aspectos gráficos da Ciência estão mais presentes3.

Momento 4 - Análise do Gráfico

O momento 4 foi dividido em episódios que foram decompostos em microepisódios para facilitar a análise:

Episódio 1 - Identificação da curva

O episódio inicia-se com uma discussão sobre os gráficos confeccionados com base nos dados da tabela (tempo de aquecimento e temperatura) do laboratório aberto sobre aquecimento da água.

Anteriormente, foram discutidas as várias características do gráfico e foi determinado que cada dois centímetros no eixo do tempo (horizontal) correspondiam a dois minutos e, para o eixo das temperaturas (vertical), era necessário começar a partir dos 18 graus, marcando de dois em dois graus para caberem todos os valores no gráfico. A professora também enfatizou a necessidade de não se unirem os pontos. Depois das explicações, ela passou em cada grupo, ajudando seus alunos a montarem seus gráficos.

Após todos confeccionarem os gráficos, a docente iniciou a discussão a seguir:

Microepisódio 1.1 – Natureza do gráfico científico

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No turno 1, a professora chama atenção para a natureza do gráfico usado na Física - "[...] nós não estamos fazendo um gráfico de matemática [...]", enfatizando que, na pesquisa científica, não se tem certeza dos resultados que serão obtidos. Isso mostra sua preocupação em tratar o gráfico de forma aproximada à usada no cotidiano científico.

Além disso, ela ressalta que o conjunto de pontos obtidos por todos tem uma forma parecida. Nesse instante, o significado da linguagem oral é respaldado pela visual, uma vez que a primeira não dá conta de representar a idéia em questão, por isso ela desenha os pontos do gráfico na lousa. Sendo assim, o gráfico e seus pontos especializam o significado que a docente planejou para seus alunos construírem ao mostrar a forma da curva, ou seja, um significado topológico, que dificilmente seria construído com a linguagem oral.

Microepisódio 1.2 - Reconhecendo as características da curva obtida

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Na sequência (turno 8), a professora tenta ilustrar melhor as idéias anteriores, apontando as características da curva obtida. Para tal fim, ela utiliza cooperativamente a linguagem verbal e a gestual (simulando uma reta ascendente e acompanhando os pontos no gráfico), sendo que esta melhor representa as características variacionais ou topológicas do fenômeno estudado. E, também, indica quais partes do gráfico podem ser aproximadas a uma reta e quais não podem - atitude amparada pelas retas desenhadas no gráfico, as quais são mais eficientes para representar as características topológicas do fenômeno (aumento linear e constância da temperatura em certo período de tempo), especializando os significados.

Os estudantes atendem a demanda da professora ao responder sua pergunta (turno 9), porém, há uma certa desconfiança (turnos 10, 19 e 20), o que leva a uma explicação mais precisa: "Não vai dar uma reta [...]", "mas tudo mostra [...]", na qual o gesto coopera para indicar a linearidade do aumento, o que se estende no próximo turno.

Microepisódio 1.3 – Ajustando uma reta aos pontos obtidos

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A solução do impasse encontrada pela professora - exercendo um papel de "coordenadora do grupo de pesquisa" - é mostrar que a reta (que carrega os significados topológicos especializados) é a melhor opção para o que está disposto no plano cartesiano da lousa (turno 21) - fato comum em matemática (demonstrar por absurdo); por isso, as dúvidas dos alunos, ou seja, eles não visualizavam como uma reta poderia se ajustar a pontos desalinhados. Ainda nesse turno, os desenhos usados por ela dão o respaldo especializado necessário a sua fala, trazendo uma impressão visual de como seria se o aquecimento não fosse linear, ou um significado topológico, pois esse aumento não estava claro para os alunos até esse momento (nos próximos diálogos, verificamos que a idéia de um aumento linear foi aceita pela turma). Nesse momento, inicia-se uma explicação do porquê de os pontos não se enquadrarem em uma reta precisa.

Em todo o episódio 1, a docente chama atenção para as características topológicas do fenômeno em estudo por meio da utilização de gestos e desenhos, tornando, assim, explícitos os significados matemáticos em questão, ou seja, a forma linear com que a temperatura da água aumenta. Com isso, começa a ser construída uma ligação entre o fenômeno e o gráfico.

Episódio 2a - Discussão sobre imprecisões

Depois de identificado o tipo de curva, iniciou-se uma discussão sobre o que causou as flutuações nas medidas, fazendo com que não se conseguisse uma reta perfeita. Discutir as imprecisões nas medidas e, ao mesmo tempo, interpretar o fenômeno a partir do recurso da linguagem matemática disponível faz parte da cultura científica.

Microepisódio 2a.1 - Entendendo as flutuações nas medidas

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A professora, no turno 23, solicita uma explicação mais completa do porquê de os pontos não formarem uma reta perfeita, e mantém o foco nos significados topológicos e na ligação entre gráfico e fenômeno. O aluno 17 esboça uma explicação com base nas suas observações (T.24), porém ela, no turno 25, insiste em estimular uma explicação mais rigorosa ("como variada?"), novamente enfatizando os significados topológicos.

Nos dois turnos seguintes, o aluno 17 e o aluno 22 continuam a explicação com base em suas observações, sendo que o primeiro usa um gesto especializado para amparar sua fala, que não é tão boa para expressar a natureza dos significados que ele deseja passar (topológicos): "ela num segue [...] os números certinhos [...] ela [...] ela [...] pula de um número pra outro[...]". A atitude desse estudante mostra como o fenômeno começa a ficar transparente no gráfico para ele, pois o mesmo associa as mudanças de temperatura às mudanças nos pontos do gráfico.

No turno seguinte, a fala do aluno 22 evidencia que ele também começa a associar as mudanças de temperatura à mudança nos pontos do gráfico, na medida em que completa/ especializa o significado (topológico) da fala do seu colega.

As explicações dadas pelos alunos ainda estão longe da científica, por isso a docente novamente os convida a elaborarem uma explicação mais completa (T.28), valorizando a fala do aluno 22 - "mas por que [...] que [...] ela sobe e desce [...]" - criando um ambiente participativo e, ao mesmo tempo, fixando a idéia de que os pontos devem ser aproximados a uma reta: "[...] que será que [...] pode ter influenciado [...] a nossa medida [...] pra num ficar uma reta bonitinha [...]". Portanto, ela continua a chamar atenção para os significados topológicos em questão, os quais dão condições de visualizar o fenômeno no gráfico.

Microepisódio 2a.2 - Influência do observador na medida

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Ao repetir a mesma pergunta, a professora retoma seu raciocínio iniciado no turno 28, mostrando, mais uma vez, qual o foco que ela deseja manter: os significados topológicos ("que que a gente pode ter [...] ahn [...] facilitado [...] ou ajudado um pouquinho [...] a que num ficasse tudo alinhadinho?"). Além disso, ela acrescenta mais um elemento à discussão (o termômetro) com o objetivo de debater possíveis imprecisões nas medidas (T.34 e T.37).

Nos turnos subsequentes (T.33, T.35, T.38 e T.39), os alunos recusam-se a falar sobre as imprecisões, provavelmente, por considerá-las um erro.

Em resposta à afirmação do aluno 5 no turno 40, a docente - a representante da cultura científica - diz que a posição teórica da Física vai explicar essas diferenças (T.41 e T.43). Nesse último turno, ela ainda questiona seus alunos sobre as possíveis imprecisões nos procedimentos de medida: "a hora da leitura cês tão garantindo que foi perfeito [...]". E o aluno 17 continua a negar medidas imprecisas: "foi [...]".

A professora insiste nessa discussão tentando fazer com que o fenômeno transpareça nas medidas e chamando atenção para os significados topológicos, inserindo questionamentos nos seus comentários (turno 45). O aluno 4 diz que sim, mas o sinal toca e os estudantes saem para o intervalo de cinco minutos. Vale lembrar que se trata de uma aula dupla; assim, o microepisódio continuou depois desse período.

Durante todo o episódio, o gráfico na lousa serviu de suporte para o tema da discussão ("por que as medidas não deram uma reta perfeita?"), possibilitando uma impressão visual/ topológica do fenômeno.

Episódio 2b - Discussão sobre imprecisões (continuação depois do intervalo)

Após o intervalo, a professora retoma a discussão sobre o que influenciou as medidas do aquecimento da água.

Microepisódio 2b.1 - Arredondando medidas

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Os alunos não assumiram que arredondaram as medidas; percebendo o receio deles em errar, a professora retoma a discussão mostrando que isso é normal (T.1) e utiliza, concomitantemente, a sua fala e um desenho com significado especializado para expressar essa idéia de uma forma visual (topológica), que é mais eficiente do que a linguagem oral, além de servir depano de fundo para as explicações posteriores. É importante notar que esse significado especializado/topológico também está contido no gráfico da lousa, ou seja, são as variações nos pontos que não dão uma reta precisa. Dessa maneira, começa-se a construir uma relação direta entre gráfico e fenômeno, ao relacionar incerteza na medida com flutuação dos pontos obtidos a partir das medidas.

Na sequência, a professora mostra outra forma de imprecisão comum nas medidas que envolvem mais de uma pessoa: a sincronia (T.2). Sua fala é complementada corretamente pelo aluno 12 no turno seguinte, mostrando seu envolvimento.

Microepisódio 2b.2 - Sincronia das medidas - tempo de reação

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No turno 4, um aluno usa o termo correto da Ciência para explicitar esse fenômeno: imprecisão. A docente aproveita essa fala para mostrar que isso é diferente de erro, evidenciando como as ações dos alunos podem afetar as medidas, influenciando, assim, os aspectos topológicos do gráfico.

Nos turnos seguintes, ela explica como o tempo de reação humana pode interferir na imprecisão. Depois, a professora procura enfatizar como o próprio processo de aquecimento pode interferir na medida.

Microepisódio 2b.3 - Interpretando o fenômeno usando o conceito de convecção

No turno 9, a docente continua a discussão sobre o que pode ter influenciado a medida com a pergunta: "[...] como é que a água esquenta?". Isso contribui para retomar a atividade, criando um contexto para a discussão e para centrar-se no fenômeno durante a interpretação do gráfico. Com o objetivo de obter uma resposta mais precisa do que a do turno 10, ela enfatiza a topologia do processo de aquecimento (T.11). Assim, os alunos 24 e 1 complementam, respectivamente: "as moléculas se agitam [...]" (T.14) e "então [...] as quentes vão pra cima [...]" (T.16). Esses alunos já haviam estudado o modelo cinético dos gases e convecção; dessa forma, puderam usar seus conhecimentos para atender a demanda da professora.

Ela continua a valorizar as respostas dos alunos (T.15 e T.17), criando um espaço para participação, revisando o que foi falado e, ao mesmo tempo, focando as atenções em como os aspectos topológicos do fenômeno são transcritos no gráfico. No último turno, ela utiliza um gesto especializado para expressar o fenômeno de convecção, o que traz um significado adicional a sua fala, pois mostra como a posição das moléculas da água varia no espaço, possibilitando um melhor entendimento dos alunos (T.18) e articulando, assim, os significados tipológicos (a fala) com os topológicos (o gesto), que é uma característica dos significados matemáticos, ainda não formalizados.

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Para ilustrar as idéias em questão, a professora mostra o termômetro e faz um gesto que deixa claro espacialmente como a água mais ou menos quente pode ter entrado em contato com o bulbo de forma a dar diferenças na medida (T.18), remetendo-se ao fenômeno estudado anteriormente (convecção) por meio de uma pergunta. Nesse caso, também há uma especialização dos gestos, articulando os significados tipológicos da fala (água quente ou fria) com os topológicos, que mostram de qual maneira a água se movimenta dentro do frasco. Ela obtém um feedback de seus alunos (T.20, T.21 e T.22), o que evidencia um envolvimento dos mesmos. Quanto à diferença ser grande ou não, a docente recorre ao gráfico na lousa, mostrando que as diferenças nos pontos são pequenas (resultado experimental) - novamente, o gráfico, como recurso visual, é mais eficiente para destacar os significados topológicos em questão, possibilitando uma impressão mais clara dos conteúdos que estão sendo explicados e, também, trazendo um significado adicional ou especializado a sua fala.

É importante destacar que, ao insistir nessa discussão, ela cria um contexto para que os alunos possam ver quais fenômenos interferem nas medidas e, portanto, nos pontos do gráfico. Com isso, são enfatizados os significados topológicos dessa linguagem especializada e é criado um ambiente em que pode ser construído um link entre gráfico e fenômeno.

Como no segmento anterior, a professora continua a fazer uma ligação entre os fenômenos e os pontos no gráfico, mostrando que este é uma forma de representação dos primeiros.

Episódio 3 - Definição de Desvio Experimental e Reta Média

Nesse episódio, que se iniciou imediatamente após a discussão precedente, a professora introduz dois conceitos para interpretar o fenômeno a partir da linguagem gráfica: desvio experimental e reta média.

Microepisódio 3.1 - Definindo "Desvio Experimental"

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Nesse momento, a docente revisa o que foi discutido até então a fim de introduzir um conceito novo no final do T.28. Para debater o que é erro ou imprecisão, sua fala é apoiada de forma especializada pela escala indicada no gráfico, que melhor representa as variações do fenômeno de aquecimento da água. Ela ainda usa o gráfico e mostra, no mesmo, como ficariam discrepantes medidas realmente erradas; sendo assim, essa linguagem ajuda a construir significados topológicos, que seriam difíceis de formar somente com o discurso oral, relativos a flutuações nas medidas. Sendo assim, ela pôde definir desvio experimental, havendo cooperação entre fala e escrita para dar ênfase a esse conceito. Como alguns alunos não compreenderam bem (T.29 e T.30), a professora detém-se, no turno seguinte, em uma exposição mais detalhada sobre o tema.

É importante destacar que, ao definir desvio experimental, ela sistematiza a tradução da linguagem natural/fenomenológica em linguagem gráfica (que posteriormente pode ser traduzida em linguagem algébrica), mostrando como cada fator influencia nas medidas e, consequentemente, na linguagem gráfica.

Microepisódio 3.2 - Definindo "Reta Média"

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A linguagem oral é usada inicialmente para esclarecer aos alunos o que é esse desvio experimental, mas no decorrer da discussão, a professora utiliza o gráfico para explicar a posição teórica da Física, dando uma impressão visual-topológica do novo conceito introduzido (reta média), que, por sua vez, é escrito na lousa para dar sentido às explicações que vieram sendo construídas. Assim, no primeiro caso, o desenho (reta) especializa o significado de forma topológica, ou seja, como é ajustada espacialmente essa reta; e, no segundo, a linguagem escrita coopera com a fala para enfatizar o termo científico em uso (reta média).

A docente explica, ainda, que a reta será ajustada manualmente, e estabelece os critérios para traçar a reta média (tal como é feito na Ciência). Para isso, ela usa, simultaneamente, a linguagem oral, gestos (simula uma reta e mostra a escala da régua) e ações (coloca a régua sobre o gráfico) que especializam os significados científicos construídos, mostrando espacialmente, ou melhor, de forma topológica, como ajustar a reta que representa o aquecimento da água, além de usar a escrita (escreve na lousa reta média), que coopera com a fala para a fixação do termo científico. Logo, os significados e os recursos matemáticos (gráfico) aparecem para dar precisão às observações, trazendo uma visão mais clara do fenômeno no gráfico.

Microepisódio 3.3 - Aprendendo a traçar a reta média

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No turno 33, a professora reforça a explicação com as características topológicas da linguagem gráfica, ao atender a solicitação de um aluno no turno anterior: "tentando [...] se não der [...] a gente pode deixar - - por exemplo - - um mais longe [...] que vai equilibrar com dois mais pertinho" - novamente, ela desenha um ponto discrepante no gráfico, que carrega o significado visual/ topológico que sua fala não pode dar precisamente, especializando seu significado. Voltando à explicação (T.35), a docente ressalta que todos vão traçar a reta média, demonstrando o compromisso (assumido por um estudante no turno seguinte) de todos com a atividade.

Antes de os alunos começarem a traçar suas retas, ela fornece as últimas instruções (T.37), usando a régua para mostrar as diferentes inclinações possíveis, o que traz um significado topológico especializado. A professora também usa o gráfico para apontar onde é mais fácil traçar as retas, pois ele dá uma impressão visual do fenômeno que, apenas com uma tabela ou a linguagem verbal, seria praticamente impossível de se imaginar sem experiência prévia; dessa maneira, outra vez o gráfico especializa os significados topológicos em questão. Finalizando, ela expõe como deve ficar o gráfico, apontando para a lousa, e vai até as carteiras dos alunos para ajudá-los a traçar suas retas.

Novamente, é importante o papel das explicações da professora ao construir uma "ponte" entre os resultados do gráfico e os fenômenos, tornando explícitas as causas das imprecisões e possibilitando que o gráfico se torne transparente ao olhar dos alunos.

Segue resumo do momento 4, com seus respectivos episódios e algumas conclusões:

Resumo da aula 7 - Análise do Gráfico T x t - Tabela referente ao momento 4

Tabela 4 - clique para ampliar

Como é observado na análise, as diversas linguagens são importantes na construção dos significados sobre o aquecimento da água e sobre as incertezas na medida. Os gestos, os desenhos e os objetos usados possibilitam articular as características tipológicas (quente e frio) usadas para descrever o fenômeno com a topologia da natureza (movimentação das moléculas de água no espaço).

Na passagem da tabela para o gráfico dos dados extraídos pelos alunos, a especialização das linguagens mostrou-se necessária, uma vez que os significados topológicos precisavam ser construídos, pois a primeira forma de representação (tabela) não foi suficiente para explicar as relações entre as variáveis usadas para interpretar o fenômeno. Essa limitação também ficou explícita no trabalho de Capecchi (2004), no qual a autora analisou a discussão sobre essa tabela, e ficou evidente a carência de informações desse recurso para observar como a temperatura da água varia em função das diferentes condições de experimentação.

Portanto, houve todo um processo em que a professora construiu uma tradução entre o fenômeno e os dados da tabela transformados no gráfico, fato importante para a aprendizagem da matemática. Isso pode ser observado na última coluna da tabela anterior, ou seja, as diversas linguagens representativas dos significados topológicos (gestos, representações visuais e gráfico) foram integradas à fala para especializar seus significados, mostrando como varia o aquecimento da água e como isso pode ser lido no gráfico.

Dessa maneira, os poucos momentos de cooperação das linguagens ocorreram para enfatizar a forma topológica da reta (ascendente) e, sobretudo, para fixar os novos termos científicos desenvolvidos (desvio experimental e reta média).

O gráfico foi usado em todo o episódio para organizar/sistematizar as observações em torno de suas características (topológicas); foi empregado por todos que participaram da discussão para sustentar suas asserções sobre o que aconteceu durante o aquecimento da água, como pode ser observado na fala do aluno 22, no episódio 2a, no turno 27: "ela sobe e desce [...]", que também remete à forma como água aquece ou à topologia do fenômeno. Além disso, apoiado no conhecimento desenvolvido em outras aulas (convecção), nas quais alguns alunos acompanharam o raciocínio da professora (T.20, T.21 e T.22 do episódio 2b); foi usado para indicar como ocorre o aquecimento.

As constantes perguntas da professora mantiveram as atenções nas características topológicas do fenômeno: "que será que [...] pode ter influenciado [...] a nossa medida [...] pra num ficar uma reta bonitinha [...] se tem toda a cara de que aquilo devia ser uma reta?", "outra coisa [...] como é que a água esquenta?" etc.

Consequentemente, durante todo o evento, foi importante o trabalho que a professora desenvolveu para chamar a atenção dos estudantes para as características topológicas relevantes ao aquecimento da água, mostrando como elas apareciam no recurso matemático que estava sendo construído (o gráfico), e criando condições para que o fenômeno transparecesse no gráfico.

Isso foi feito de duas formas: primeiro, pontuando o que era importante olhar (termômetro, diferenças, pontos não formam uma reta precisa etc), e, em segundo, convidando os alunos a participarem ("que que a gente pode ter [...] ahn [...] facilitado [...] ou ajudado um pouquinho [...] a que num ficasse tudo alinhadinho?", "a gente teve precisão [...] o suficiente na leitura" etc); além de valorizar a fala deles ("pode ter dado uma diferencinha [...] é uma IMPRECISÃO [...] não é um ERRO [...]", "as moléculas se agitam [...]" etc) e, ao mesmo tempo, direcionando a conversa para os aspectos importantes dos significados topológicos: "mas porque [...] que [...] ela sobe e desce [...] será::: que [...] se a gente conseguisse condições melhores de trabalho [...]". Assim, foi estabelecido um ambiente participativo, no qual os estudantes podiam contribuir dentro dos limites estabelecidos pela professora, ou seja, construindo os significados topológicos.

Em suma, a professora, em todo o momento 4, faz uma tradução dos resultados obtidos com a linguagem gráfica e a fenomenológica, explicitando como a primeira remete à última e promovendo uma percepção geométrica da situação de estudo com o auxílio dos recursos topológicos das diferentes linguagens usadas. Esse é o primeiro passo para a tradução da linguagem natural (oral, escrita e visual) para a matemática, oferecendo condições para que os estudantes possam olhar o gráfico da mesma forma que os cientistas, ou seja, como se o fenômeno transparecesse no gráfico.

Considerações finais

O papel do professor ficou evidente por meio da necessidade da especialização das linguagens para a construção dos significados topológicos. Isso proporcionou o desenvolvimento de uma "visão geométrica" do fenômeno, além de uma tradução da linguagem fenomenológica para as linguagens matemáticas (no momento analisado, a gráfica), necessária para a aprendizagem da matemática.

Ainda, foi possível, nessa tradução, fazer com que o fenômeno do aquecimento da água pudesse ficar "visível" no gráfico. Isso é evidenciado nas falas dos alunos 17 e 22 nos turnos 26 e 27 do episódio 2 (A17: "ah:: [...] num tem:: [...] é::: [...] ela num segue [...] os números certinhos [...] ela [...] ela [...] pula de um número pra outro [...]" e A22: "ela sobe e desce [...]").

Dessa forma, podemos afirmar que a partir do trabalho desenvolvido pela professora - explicitando as diversas facetas do fenômeno por meio dos recursos tipológicos e topológicos, além de usar simultaneamente as diversas linguagens mencionadas, com suas relações de cooperação e especialização - foi possível o desenvolvimento de diversas características da atividade científica (em especial da Física), a mencionar: natureza do gráfico científico, reconhecer as características da curva obtida, ajustar uma reta aos pontos obtidos, entender as flutuações nas medidas, verificar a influência do observador na medida, arredondamento das medidas, sincronia das medidas - tempo de reação, interpretar o fenômeno usando conceitos apreendidos, definir conceitos úteis ("Desvio Experimental" e "Reta Média") e ajuste de curvas.

Nesse processo, a professora criou condições para que os estudantes olhassem as diversas linguagens matemáticas das quais a Física se apropria, da mesma forma que fazem os físicos, ou seja, como se fosse uma "lente" para enxergar o fenômeno.

Portanto, podemos afirmar que o nível de enculturação científica promovida pelas aulas de laboratório aberto vai além da simples aquisição de algumas práticas e conceitos da Ciência. Essas aulas, junto com a forma de trabalho da professora, criaram condições para uma enculturação que inclui os aspectos mencionados junto com as linguagens científicas e, dentro dessas, a linguagem gráfica. Assim, podemos falar em uma enculturação na matemática da Ciência.

Uma importante implicação deste trabalho é destacar, em trabalhos de formação inicial e continuada de professores, a importância do uso das linguagens oral, escrita, visual, gestual e matemática, com seus recursos tipológicos e topológicos, e a necessidade da cooperação e da especialização entre elas para promover uma visão do fenômeno nelas.

Artigo recebido em fevereiro de 2008 e aceito em novembro de 2008

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  • *
    Apoio: FAPESP e CNPq.
  • 1
    Av. Parada Pinto, 3420, bl.7, ap.137 Vila Nova Cachoeirinha - São Paulo, SP, Brasil 02.611-000
  • 2
    O Laboratório Aberto é uma atividade experimental que parte de um problema levantado pelo professor e que envolve os estudantes. A partir daí eles levantam suas hipóteses, fazendo a elaboração de um plano de trabalho, montando um arranjo experimental e coletando dados, partindo para análise dos mesmos (testando suas hipóteses), e elaboram conclusões com ajuda do professor. Sendo que a análise de dados é uma das etapas mais trabalhosas e duradouras da atividade, na qual há um forte desenvolvimento da linguagem matemática de forma aproximada à usada na Física, com suas diversas características, tais como: desenvolvimento de aproximações, discussão sobre incertezas, elaboração e discussão de gráficos e tabelas etc. Essa atividade é desenvolvida geralmente em um tempo correspondente a um mês de aulas nos padrões brasileiros (duas aulas de cinquenta minutos por semana).
  • 3
    A análise completa é encontrada em Bellucco (2006). Disponível em: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2008
    • Recebido
      Fev 2008
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