Resumo:
Esta pesquisa tem o objetivo de identificar e classificar situações do tipo misto, associadas à função afim, presentes em provas do Enem. Foram analisadas as provas do Enem da edição de 2020 e foram identificadas 10 situações possíveis de serem escritas na forma . Cada situação foi analisada quanto à apresentação dos dados, estrutura de resolução e classificadas com base na combinação das classes dos campos conceituais aditivos e multiplicativos, conforme propostos na teoria dos campos conceituais, que embasa esta pesquisa. Dentre as classes identificadas, a mais frequente foi dupla proporção simples e composição de medidas, com três situações. Para parte dos estudantes que presta o Enem, o acesso ao saber matemático é oriundo da sala de aula, logo, conhecer as diferentes classes de situações do tipo misto é do interesse do professor para proporcionar a seus alunos a construção do conceito de função afim.
Palavras-chave: Ensino de matemática; Sistema nacional de avaliação; Ensino médio; Teoria dos campos conceituais
Abstract:
This research aims to identify and classify mixed-type situations, associated with the affine function, present in Enem tests. The 2020 Enem tests were analyzed and 10 possible situations were identified to be written in the form . Each situation was analyzed in terms of data presentation, resolution structure, and classified based on the combination of classes of additive and multiplicative conceptual fields, as proposed in the Conceptual Fields theory, which supports this research. Among the classes identified in the corpus, the most frequent one was simple double proportion and composition of measures, with three situations. For most students who take Enem, access to mathematical knowledge comes from the classroom; therefore, knowing the different classes of mixed-type situations is in the teacher's interest to provide students with the construction of the concept of the affine function.
Keywords: Mathematics teaching; National system of evalution; Secondary school; Conceptual fields theory
Introdução
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem a finalidade de avaliar competências e habilidades dos estudantes ao término da Educação Básica. A avaliação é produzida pelo Inep1 e destinada aos alunos concluintes ou que já concluíram o Ensino Médio. As provas do Enem são aplicadas, anualmente, em duas etapas, sendo que a prova de Matemática e suas Tecnologias compõe a segunda etapa. A partir de 2020, alunos de algumas cidades selecionadas tiveram a possibilidade de optar pela prova impressa (Enem regular) ou digital (Enem digital). Além dessas duas versões, há uma terceira versão da prova destinada a jovens sob medidas socioeducativas e pessoas privadas de liberdade (PPL). De acordo com o Inep (2021), provas realizadas na mesma data contêm as mesmas questões.
O bom desempenho nessa prova pode proporcionar aos estudantes oportunidades de vagas em universidades públicas e bolsas de estudo, por exemplo. Silva e Santos (2020) afirmam que a prova de Matemática e suas Tecnologias têm se tornado um obstáculo para isso, visto que é composta por “[...] um grande número de questões para um curto tempo de prova e algumas situações requerem dos alunos uma maior demanda de atenção para serem resolvidas” (SILVA; SANTOS, 2020, p. 1). Quanto às questões de Matemática, essa demanda de atenção pode estar relacionada à diversidade de estruturas das situações que compõem a prova, exigindo a mobilização de diferentes ideias, conceitos e esquemas pelos estudantes. Por esquema, assumimos a organização invariante da atividade pelo sujeito (VERGNAUD, 2009). Ao longo deste artigo usaremos a expressão situação, em vez de questões, para nos referir a problemas contextualizados das provas do Enem.
As situações ocupam lugar privilegiado na teoria dos campos conceituais (TCC), pois é a partir delas que se pode analisar os processos cognitivos e os esquemas mobilizados pelos sujeitos em suas resoluções. A TCC visa compreender o desenvolvimento da aprendizagem de competências complexas integrando aspectos das situações, conceitos e sujeitos (VERGNAUD, 1996).
De acordo com Vergnaud (1996), um conceito vai além de sua definição, mormente quando o interesse é sua aprendizagem. Além disso, para o pesquisador, um conceito não é construído de maneira isolada, mas em conexão com outros conceitos e com as situações que lhes atribuem significado. Nesta teoria, diversos conceitos, situações e operações de pensamento desencadeadas na atuação em situação compõem um campo conceitual (VERGNAUD, 1986, 1996).
Dentre os campos conceituais estudados por Vergnaud, dois alcançaram grande divulgação entre pesquisadores da Educação Matemática e entre professores que ensinam Matemática: o campo conceitual das estruturas aditivas e o campo conceitual das estruturas multiplicativas. Vergnaud (2009) também estudou situações que demandam, conjuntamente, operações desses dois campos conceituais, as quais nomeou problemas mistos; ou seja, os problemas mistos são aqueles que envolvem, pelo menos uma vez, a operação de adição ou subtração e, pelo menos uma vez, a operação de multiplicação ou divisão.
Essas situações são abordadas em pesquisas desenvolvidas por Cappelin e Rezende (2021), Miranda (2019) e Rodrigues e Rezende (2021), no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática da Matemática (GEPeDiMa). Essas pesquisadoras relacionaram as situações do tipo misto, que exigem pelo menos uma operação de adição e uma de multiplicação, com a expressão algébrica da função afim, , com a e b pertencentes ao conjunto R, sendo a ≠ 0, e classificam essas situações.
A análise de situações do tipo misto foi introduzida por Miranda (2019) ao fazer uma analogia com situações de função afim, à luz da teoria dos campos conceituais. A autora analisou livros didáticos e identificou nove classes de situações, que não esgotam essa tipologia, o que aponta a necessidade de ampliação de pesquisas incluindo novas fontes de dados. A partir disso, Rodrigues e Rezende (2021) mapearam situações mistas em livros didáticos do Ensino Fundamental Anos Iniciais e Cappelin e Rezende (2021) analisaram e classificaram situações de função afim em um livro didático do Ensino Superior.
A hegemonia de algumas classes de situações em livros didáticos, bem como a ausência de outras, de forma a não abranger todas as classes possíveis das estruturas relacionadas, não permite ao estudante a plena construção do conceito, dificultando o processo de conceitualização (VERGNAUD, 1996). A resolução de situações de diferentes classes exige dos estudantes a mobilização de diferentes esquemas, contribuindo para a construção do conceito, por isso Vergnaud (1996) afirma que as situações são a porta de entrada de um campo conceitual.
O interesse em pesquisar as situações do tipo misto é consonante com um dos objetivos do GEPeDiMa, que visa identificar, tipificar e delimitar um conjunto de situações que atribuem sentido ao conceito de função afim. Para isso, diversas fontes de pesquisa estão sendo analisadas, como livros didáticos, teses e dissertações e avaliações em larga escala, como a relatada neste artigo. Para além do interesse do GEPeDiMa, está o conhecimento do estudante em relação à função afim, que pode ser maximizado se o professor conhecer as diferentes classes de problemas mistos associados a este conceito.
Com base em Vergnaud (2003), 2009, 2014), assumimos ainda que, para que um conceito seja construído pelo aluno, há a necessidade de propor, em sala de aula, situações que variem tanto em seus contextos, como em suas estruturas de resolução. Essa ênfase de se trabalhar com situações diversas é reforçada por Gitirana et al. (2014, p. 9) ao assumir que “[...] um indivíduo não forma um conceito a partir da resolução de um único problema, nem tampouco de problemas similares”, e por Magina (2011) ao afirmar que é comum que professores trabalhem com problemas prototípicos, restringindo as potencialidades do conceito de função.
Ante ao exposto, neste artigo temos o objetivo de identificar e classificar situações do tipo misto, associadas à função afim, presentes em provas do Enem. O corpus da pesquisa foi constituído a partir da prova de Matemática e suas Tecnologias (amarela) do Enem, ano 2020, referente às três aplicações (Regular, Digital e PPL).
Na sequência, são apresentados aspectos da teoria dos campos conceituais considerados neste texto, os procedimentos metodológicos, as análises dos dados e as considerações finais.
A teoria dos campos conceituais
Proposta pelo psicólogo e professor francês Gérard Vergnaud, a teoria dos campos conceituais foi elaborada na década de 1980 e traz consigo contribuições para a Didática, sobretudo para a Didática da Matemática. Esta teoria busca compreender “[...] os problemas de desenvolvimento específicos no interior de um mesmo campo de conhecimento” (VERGNAUD, 1996, p. 11), tendo como objetivo estabelecer uma estrutura que torne possível a compreensão das filiações e das rupturas de ideias prévias entre os conhecimentos (VERGNAUD, 1993).
Para Vergnaud (1993), um sujeito adquire novas competências e compreende novos conceitos, progressivamente, por meio de diferentes situações vivenciadas ao longo de vários anos e relacionadas a problemas práticos ou teóricos. Essas situações e experiências, associadas a diversos conceitos, fazem parte do que o pesquisador denomina de campo conceitual.
De acordo com Vergnaud (2009, p. 29), um campo conceitual é “[...] ao mesmo tempo um conjunto de situações e um conjunto de conceitos: o conjunto de situações cujo domínio progressivo pede uma variedade de conceitos, de esquemas e de representações simbólicas em estreita conexão”. Um conceito é composto por três conjuntos (S, I, L) indissociáveis, em que: S é o conjunto de situações que dão sentido ao conceito; I são os invariantes operatórios (teoremas-em-ação e conceitos-em-ação) utilizados nos esquemas, na organização, desenvolvimento e resolução das situações; L é o conjunto constituído pelas formas linguísticas e simbólicas (VERGNAUD, 2009).
Vergnaud (1993, p. 9) afirma que a compreensão de um conceito ocorre por meio da interação do sujeito com diferentes situações, as quais podem ser analisadas a partir de uma combinação de tarefas “[...] cuja natureza e dificuldades específicas devem ser bem conhecidas”. Duas ideias estão relacionadas às situações: a primeira remete à variedade, no sentido de que um conceito pode estar relacionado a diversas situações; a segunda remete à história, aqui interpretada como experiências dos alunos, de maneira que a formação do sujeito se dá por uma sequência de situações experienciadas por ele (VERGNAUD, 2003).
Na TCC, as situações assumem o sentido de tarefas, e uma situação complexa pode ser analisada como uma combinação de tarefas, interpretadas como subtarefas de natureza específica bem conhecidas (VERGNAUD, 1990). As situações extraclasse vivenciadas pelos estudantes, embora contribuam para o desenvolvimento das noções matemáticas, não são suficientes, por si só, para dar sentido aos conceitos e procedimentos que se almejam ensinar. Portanto, sugere-se propor situações que variam não apenas o contexto e os números, mas que alternam a sua própria estrutura (VERGNAUD, 1993). Para propor situações diversificadas, o professor precisa conhecer as diferentes classes de situações que dão sentido ao conceito. Especificamente para a Matemática, Vergnaud (1996) estabeleceu e divulgou dois campos conceituais:
-
i. o campo conceitual das estruturas aditivas, que abarca situações que demandam, pelo menos, uma operação de adição ou de subtração para sua resolução. Neste campo estão estabelecidas seis classes de situações, a saber: composição de medidas; transformação de medidas; comparação aditiva; composição de transformações; transformação de relações; e composição de relações;
-
ii. o campo conceitual das estruturas multiplicativas contempla situações que envolvem, ao menos, uma operação de multiplicação ou divisão para resolvêlas. Tais situações foram classificadas por Vergnaud (2014) e Magina, Santos e Merlini (2014) em cinco classes: isomorfismo de medidas ou proporção simples; comparação multiplicativa; produto de medidas ou produto cartesiano; função bilinear ou proporção dupla; e proporção múltipla.
Além das situações aditivas e multiplicativas, Vergnaud (2009) caracterizou situações do tipo misto que associam em uma mesma situação uma ou mais operações de adição e/ou subtração e multiplicação e/ou divisão. Miranda (2019) classificou situações de função afim por meio de uma analogia com os as situações do tipo misto, combinando as classes aditivas e multiplicativas. Para exemplificar, apresentamos uma situação (figura 2) classificada por Miranda (2019).
A situação solicita que seja encontrada a taxa de serviço de entrega (t), composta por duas partes, um valor fixo de R$ 2,00 e um valor variável de R$ 0,80 por quilômetro percorrido. Para tanto, Miranda (2019) apresenta o seguinte esquema relacional das informações:
O objetivo inicial é descobrir o valor pago por quilômetros percorridos, situação que Miranda (2019) classifica como proporção simples da subclasse multiplicação um para muitos, que apresenta o esquema relacional disposto na figura 3.
Nesse caso, a autora visa calcular o valor pago por d quilômetros, algebricamente escreve 1/d = 0,80/v, de forma que v = 0,80d, com v sendo a variável que compõe a taxa de entrega. Assim, a taxa pelo serviço de entrega é composta pela taxa variável mais a taxa fixa de R$ 2,00, sendo representada pela composição presente no esquema relacional da figura 4.
Esse esquema resulta na expressão , situação do tipo misto.
Por meio desta organização e utilizando esquemas relacionais baseados na teoria dos campos conceituais, Miranda (2019) analisou situações de função afim em quatro livros didáticos de Matemática, sendo dois do 9º ano do Ensino Fundamental e dois do 1º ano do Ensino Médio.
Os livros analisados foram: Vontade de saber matemática (SOUZA; PATARO, 2015); Praticando matemática (ANDRINI; VASCONCELLOS, 2015), do Ensino Fundamental; Matemática: interação e tecnologia (BALESTRI, 2016) e #Contato matemática (SOUZA; GARCIA, 2016), do Ensino Médio. Estes livros foram aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático 2017-2018 e adotados por escolas do Núcleo Regional de Educação de Campo Mourão-PR.
Miranda (2019) classificou 83 situações, das quais 39 pertencem aos livros didáticos do Ensino Fundamental e 44 aos livros didáticos do Ensino Médio, cujas classificações, divididas por nível de ensino, são apresentadas na tabela 1.
A tabela 1 mostra que as situações analisadas por Miranda (2019) pertencem a nove categorias, das quais 3 são de estrutura aditiva, 32 de estrutura multiplicativa, e 48 são problemas mistos (relacionam ambas as estruturas, aditivas e multiplicativas).
As classes mais frequentes observadas pela autora são: proporção simples e composição de medidas (32 situações) e proporção simples (31 situações). As análises apresentadas por Miranda (2019) são um marco no sentido de relacionar função afim com os campos aditivo e multiplicativo, bem como os problemas mistos, e por isso norteiam esta pesquisa.
Há um movimento entre pesquisadores da teoria dos campos conceituais, no sentido de fundamentar as escolhas de situações desenvolvidas em salas de aula, diversificando as situações com vistas à conceitualização. Nesse sentido, Rodrigues e Rezende (2021) utilizaram as classes mais frequentes, observadas por Miranda (2019), para pesquisar invariantes operatórios mobilizados por estudantes ao resolver exercícios destas classes.
Nesse sentido, a próxima seção apresenta os encaminhamentos metodológicos da investigação, incluindo as concepções teóricas e o conjunto de técnicas que nos orientaram para a análise dos dados.
Aspectos metodológicos
Nessa investigação, buscamos identificar e classificar situações do tipo misto associadas à função afim, presentes em provas do Enem. Para isso, realizamos uma análise qualitativa das provas do Enem, referentes à edição do ano de 2020, por se tratar da prova mais recente no decurso desta pesquisa. Nesta edição, foram aplicadas três provas distintas (Enem Regular, Enem Digital, Enem PPL), pois foram realizadas em datas diferentes. Com isso, a composição do corpus desta pesquisa foi de 135 questões.
Para delimitar a composição do corpus da pesquisa, realizamos uma análise de cada situação, selecionando aquelas que podem ser modeladas na forma f(x) = ax + b, o que resultou em dez situações para a análise. Destas situações, duas são do Enem regular, quatro do Enem digital e quatro do Enem PPL.
Cada situação foi analisada quanto à apresentação dos dados, à estrutura de resolução e classificadas segundo a TCC, ancoradas em Vergnaud (1993), 2009, 2014), Magina, Santos e Merlini (2014) e Miranda (2019).
Antes de apresentarmos exemplos dessas classificações, observamos que Vergnaud (2014) utiliza em seus esquemas relacionais números naturais inseridos em retângulos, e números inteiros inseridos em círculos, dentre outros símbolos que representam as relações entre os números. Neste artigo, estendemos a utilização dos símbolos adotados por Vergnaud (2014) para o conjunto dos números reais, por tratarmos de situações de função afim, que tem como domínio esse conjunto numérico e, portanto, as medidas aqui consideradas são reais.
Análise das situações do tipo misto
Para atingir o objetivo estabelecido neste estudo, examinamos cada uma das situações que compuseram o corpus e classificamos com base nos campos conceituais aditivo e multiplicativo. Na sequência, apresentamos detalhadamente a classificação de duas dessas situações, juntamente com seus esquemas relacionais e cálculos adicionais.
Para a seleção das duas situações, levamos em consideração o tipo de representação utilizada em seus enunciados e alternativas. Observamos que quatro destas situações apresentavam aspectos gráficos, quatro apresentavam linguagem natural e algébrica, e duas apresentavam tabela. Selecionamos duas situações, de diferentes classes, sendo que uma delas apresenta os dados na forma de gráfico e a outra na forma de tabela, para exemplificar a classificação das situações do corpus da pesquisa.
A primeira situação é a questão 173 extraída da prova digital do Enem de 2020. Esta situação descreve, por meio de um gráfico cartesiano crescente, o custo da conta de água em função do consumo para uma residência, conforme o enunciado transcrito no quadro 1.
O objetivo desta situação é calcular o valor da conta de água para o mês de dezembro. De acordo com os dados fornecidos, podemos descrevê-la como uma situação mista, da forma , sendo a o custo por m³ de água consumida, x o consumo mensal em m³, b a taxa fixa mensal e y o valor mensal da conta. A partir de uma interpretação gráfica, é possível identificar o valor b = 17, que é o intercepto com o eixo Oy. Este valor corresponde a uma taxa fixa cobrada mensalmente na conta de água. Além disso, no problema, é mencionado que o consumo no mês de dezembro foi o dobro do mês anterior, ou seja, o dobro do consumo no mês de novembro. Com base na TCC, analisamos que a ideia de dobro remete a uma comparação multiplicativa (referente desconhecido), sendo representado pelo esquema relacional disposto no quadro 2.
Dessa forma, obtemos x = 14, o que corresponde a 14 m³ de água consumida no mês de dezembro. Utilizamos essa informação ao final da situação. A partir das informações do gráfico, determinamos o valor por m³ de água e, para isso, organizamos as informações no esquema relacional a seguir (figura 5).
Inicialmente, é necessário determinar o custo (c) do consumo de 7 m³ de água, a partir da taxa fixa e do custo total, por meio de uma composição de medidas (parte desconhecida), indicado no esquema do quadro 3.
Com a composição de medidas, foi possível determinar que, para o consumo de 7 m³, foram gastos R$ 25,20. Agora, basta calcularmos o custo de 1 m³ de água, o que nos remete ao valor a, da expressão . Para isso, utilizamos uma proporção simples (partição), evidenciada no quadro 4 e calculamos que a = 3,6.
Ao longo da resolução desta situação identificamos a taxa fixa (R$ 17,00) e calculamos o custo por metro cúbico (R$ 3,60). Representamos essas informações por meio da expressão algébrica . Como o objetivo era determinar o custo para o mês de dezembro, em que foram gastos 14 m³, podemos calcular: , este valor corresponde à alternativa a) da situação.
Em razão das estruturas necessárias à resolução da questão, classificamos essa situação como comparação multiplicativa, proporção simples e composição de medidas.
A segunda situação que apresentamos refere-se à questão 164 retirada da prova amarela do Enem Regular (quadro 5). Essa situação relaciona o tempo médio de estudo de brasileiros acima de 14 anos, no decorrer dos anos, apresentado em uma tabela, a partir do ano 1995. Essa questão representa uma situação mista que pode ser interpretada à luz da teoria dos campos conceituais.
Na situação mencionada consta que o tempo necessário para um estudante brasileiro realizar sua formação até a diplomação em um curso superior, é de 16 anos,
e que se pretende, a partir das informações, determinar o ano em que será atingido 70% desse tempo. Consideramos a subtarefa em que se busca 70% de 16, classificada como comparação multiplicativa (referente desconhecido), como evidenciamos no quadro 6.
Dessa forma, obtemos y = 11,2 e utilizamos essa informação ao final da resolução. Ao analisarmos os dados presentes na tabela da situação, é possível observar que a variação do tempo de estudo é constante em relação ao tempo, o que pode ser associada a uma função afim, descrita na forma , em que a é denominada taxa de variação, b o termo independente, t corresponde ao tempo em anos, e y o tempo de estudo. Estes valores, a e b, não estão explícitos na situação, mas podem ser calculados a partir dos dados fornecidos na tabela que compõe a questão. Para determinar o valor de a organizamos as informações no esquema da figura 6.
No enunciado da situação, os dados referentes ao tempo variam de quatro em quatro anos e, por esse motivo, é necessário determinar o valor de c que corresponde à variação nesse período. Para isso, utilizaremos uma transformação de medidas (transformação positiva desconhecida), resultando em c = 0,6 (quadro 7).
Na sequência, é necessário determinar a variação para o período de um ano, que corresponde à taxa de variação a, da expressão . Para isso, utilizamos uma proporção simples (partição) e obtemos a = 0,15 (quadro 8).
Como resultado, para calcular a taxa de variação da função, foram necessárias uma transformação de medidas e uma proporção simples. O próximo passo é determinar o valor de b, termo independente. Para isso, usamos uma proporção simples (um para muitos) para determinar a variação e para 1995 anos, sabendo que a variação para um ano é de 0,15 (quadro 9).
Segundo os dados presentes na tabela da situação, temos que o tempo de estudo em 1995 era de 5,2 anos. Então, utilizamos uma transformação de medidas (estado inicial desconhecido) para calcular o valor fixo b, que corresponde a b = –294,05 (quadro 10).
Com os valores de a e b, obtivemos a expressão , na qual y corresponde ao tempo de estudo referente ao ano t. Para obter o ano em que o tempo de estudo será de 11,2 anos (70% do tempo necessário à obtenção do curso superior), reescrevemos a expressão da seguinte forma: , consequentemente, t = 2.035, o que corresponde à alternativa d).
Portanto, a situação 2 representa uma situação mista, na forma , categorizada como dupla proporção simples e dupla transformação de medidas e comparação multiplicativa.
Apresentamos, no quadro 11, a classificação para as demais situações que compõem o corpus.
A partir dos dados apresentados, constatamos que as classes identificadas no corpus da pesquisa foram: dupla proporção simples e composição de medidas (3); proporção simples e composição de medidas (1); dupla proporção simples e dupla transformação de medidas (1); proporção simples e dupla composição de medidas (1); dupla proporção simples, dupla transformação de medidas e composição de medidas (1); proporção simples e transformação de medidas (1); dupla proporção simples, dupla transformação de medidas e comparação de medidas (1); comparação multiplicativa, proporção simples e composição de medidas (1).
A questão 165 do Enem PPL (quadro 11) apresenta a necessidade de cinco estruturas para sua resolução, sendo duas estruturas multiplicativas (proporção simples) e três estruturas aditivas (transformação e composição). A questão 164 do Enem Regular (Exemplo 1) também exige a resolução de cinco estruturas, sendo três multiplicativas (proporção simples e comparação multiplicativa) e duas aditivas (transformação de medidas). Outro ponto observado se refere às questões 155 do Enem PPL e 143 do Enem Regular (quadro 11), que exigem a resolução de cinco problemas mistos cada uma. Os aspectos mencionados podem implicar maior dificuldade de resolução destas situações, além de mobilização de vários esquemas pelos estudantes.
A classificação de cada situação do corpus de pesquisa envolveu várias classes de estruturas aditivas e multiplicativas, como descrito nos exemplos e no quadro 11. Esses resultados contrastam com as classes identificadas por Miranda (2019) em livros didáticos do 9º ano do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino Médio, em situações que compreendem apenas uma classe aditiva e uma multiplicativa, o que possibilita conjecturar que existe uma disparidade na complexidade do cálculo relacional das situações constantes no livro didático e aquelas propostas na prova do Enem de 2020.
Considerações
O objetivo central da pesquisa aqui relatada foi identificar e classificar situações do tipo misto, associadas à função afim, presentes em provas do Enem.
As análises mostram que a maioria das situações do corpus apresenta classificações distintas, com base na TCC, exceto a classe dupla proporção simples e composição de medidas que apresentou três situações. Essa diversidade de estruturas aditivas e multiplicativas em uma mesma situação, gerando outras classes, diverge dos resultados obtidos na pesquisa de Miranda (2019), na qual foram identificadas situações em livros didáticos que compreendem apenas uma estrutura aditiva e uma multiplicativa.
A divergência entre os resultados da análise de livros didáticos (MIRANDA, 2019) e das provas do Enem pode culminar uma maior dificuldade do sujeito ao realizar esse tipo de avaliação, pois exige, dos estudantes, esquemas mais complexos para a sua resolução. Defendemos que, se diferentes classes de situações fossem experienciadas em sala de aula durante o Ensino Fundamental e o Médio, possivelmente os alunos estariam mais bem preparados para resolver questões dessa complexidade durante a prova.
Nas situações analisadas, identificamos fatores que podem tornar a situação mais simples ou mais complexa para os estudantes, a saber: a necessidade de determinar duas ou mais equações para a resolução de uma mesma questão; a ausência de forma explícita da taxa de variação e do valor fixo; interpretação de gráficos ou tabelas; e utilização apenas de linguagem natural.
Dessa forma, salientamos a importância para o professor que ensina Matemática em ter conhecimento dessas diferentes classes e situações associadas à função afim, bem como ter ciência de fatores que possam acarretar maior ou menor dificuldade para cada uma dessas classes. Reiteramos a importância de o professor propor aos estudantes situações de diferentes classes, possibilitando ao aluno a construção do conceito de função afim ao longo do processo escolar, formalizando-o no 9º ano, e aprofundando no Ensino Médio.
Os resultados, aqui apresentados, apontam, pois, a possibilidade de se realizar um cotejamento das classes de situações de função afim, identificadas em outras edições do Enem, com as classes observadas em livros didáticos ao longo da Educação Básica e/ou Ensino Superior.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
03 Maio 2022 -
Aceito
17 Nov 2022