CARTA AO EDITOR LETTER TO EDITOR
Contribuição do estudo molecular de hemoglobinas S-like para o conhecimento da diversidade genética da população brasileira
The contribution of molecular studies of S-like hemoglobins to knowledge of the genetic diversity of the Brazilian population
Ana R. Chinelato-FernandesI; Claudia R. Bonini-DomingosII
IBióloga, Doutora pelo programa de Pós-graduação em Genética do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Ibilce - Unesp
IIProfª Dra. responsável pelo Laboratório de Hemoglobinopatias e Genética das Doenças Hematológicas (LHGDH) - Ibilce - Unesp
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Claudia Regina Bonini-Domingos Laboratório de Hemoglobinopatias e Genética das Doenças Hematológicas LHGDH - Ibilce - Unesp Rua Cristóvão Colombo, 2265 - Jardim Nazareth 15054-000 - São José do Rio Preto - SP E-mail: claudiabonini@yahoo.com.br
ABSTRACT
Over 900 hemoglobin variants have already been described, with more than 100 having electrophoretic migration similar to Hb S in alkaline pHs. In the analysis of 98 samples that presented with this migration pattern, Hb D-Los Angeles in heterozygosis was prevalent and associations with Hb S and Hb Lepore were identified, a previously unpublished fact and with beta-thalassemia, which is also rare. In addition, carriers of Hb Korle-Bu and Hb Hasharon were found amongst other hemoglobinopathies. This heterogeneity reflects the special colonization conditions and the high racial admixture in Brazil. The correct laboratorial diagnosis is very important for hemoglobinopathy carriers because of the many associations of hemoglobin alterations and the variants with co-migration. An accurate identification of hemoglobin variants is essential for genetic counseling and appropriate therapy.
Key words: Hemoglobin variants; S-like hemoglobins; Co-migration
Senhor Editor:
As variantes de hemoglobinas são originadas por diferentes mecanismos que resultam em mudanças nas propriedades físicas, químicas ou funcionais da molécula de hemoglobina. Mais de 900 variantes de hemoglobinas já foram descritas,1 sendo que mais de uma centena apresenta migração semelhante à Hb S em pH alcalino; dentre essas, as hemoglobinas D-Los Angeles, Hb Korle-Bu, Hb G Philadelphia, Hb Lepore e Hb Hasharon estão entre as mais freqüentemente encontradas. A população brasileira formou-se a partir de três grupos étnicos: os indígenas, os caucasianos e os afro-descendentes. Entre os caucasianos destacam-se os italianos, espanhóis, alemães, além dos japoneses, ampliando e diversificando ainda mais a formação étnica da nossa população. Atualmente, a população brasileira caracteriza-se por apresentar grande heterogeneidade genética, que se reflete nos polimorfismos de hemoglobinas.
O objetivo deste trabalho foi identificar e caracterizar as variantes de hemoglobinas que apresentam migração eletroforética semelhante à Hb S em pH alcalino, relacionando-as com as diferentes populações que contribuíram para a diversidade genética da população brasileira.
Durante o período de julho de 2000 a fevereiro de 2003 foram analisadas 220 amostras de sangue periférico de indivíduos com suspeita de serem portadores de hemoglobinas variantes, provenientes de oito estados do Brasil (Figura 1). Desse total, 98 amostras apresentaram uma fração hemoglobínica com padrão de migração semelhante à Hb S em eletroforese alcalina em acetato de celulose.
Foram utilizadas amostras de sangue periférico colhido com EDTA, após consentimento informado. Para o correto diagnóstico e caracterização dessas hemoglobinopatias, foram realizadas metodologias clássicas e moleculares, que incluíram:
Resistência globular osmótica em solução de NaCl a 0,36%2
Análise da morfologia eritrocitária a fresco3
Eletroforese alcalina - pH 8,64
Eletroforese ácida - pH 6,2 5
Eletroforese de cadeias globínicas em pH alcalino6
Cromatografia líquida de alta pressão (HPLC)*
Análise molecular por PCR-RFLP7
PCR-ASO
Seqüenciamento8
A associação dos resultados obtidos nos diferentes procedimentos citológicos, eletroforéticos e cromatográficos permitiu a indicação da suspeita de cada amostra e posterior definição da estratégia para confirmação molecular. A tabela 1 ilustra o número de mutantes encontrados e a estratégia utilizada para confirmação molecular.
O Brasil foi inicialmente colonizado por portugueses no século XVI, período em que teve início a miscigenação entre colonizadores e ameríndias nativas e, a partir da segunda metade do século 16, com escravas africanas. O fim do tráfico de escravos provocou o desembarque maciço de imigrantes europeus no País. Entre 1884 a 1945, recebemos cerca de quatro milhões de imigrantes europeus, em particular italianos, portugueses, espanhóis e alemães, além de mais de 100 mil russos e quase 200 mil japoneses. Outras nacionalidades, como poloneses, austríacos, gregos, armênios, holandeses, suíços, húngaros, libaneses, sírios, jordânios e palestinos somaram, nesse mesmo período, mais de 500 mil imigrantes.9 Atualmente, o Brasil é um país altamente miscigenado e apresenta intensa heterogeneidade entre suas diferentes regiões. Essa heterogeneidade reflete o padrão peculiar de colonização dessas regiões, uma vez que variou o número de indivíduos que compuseram o estoque genético de cada grupamento étnico parental.
Dentre as amostras analisadas molecularmente, notou-se uma prevalência de Hb D-Los Angeles em heterozigose. Essa variante originou-se na Índia, mas devido à dispersão para outras regiões do mundo pelos movimentos migratórios, atualmente apresenta ampla distribuição mundial. Também foram encontrados casos de associações entre a Hb D-Los Angeles e outras variantes e talassemias. Os indivíduos com a associação entre Hb D-Los Angeles e Hb S, conhecida como doença de Hb SD, podem desenvolver alterações graves, semelhantes clinicamente aos homozigotos para Hb S. A interação entre Hb D-Los Angeles e talassemia beta é bastante rara e foram relatados um caso no Canadá, três em Portugal, um na Inglaterra, um na Espanha, três no Kuwait, um na Índia, um na Rússia e dois na Arábia Saudita.10 Além disso, foi possível a descrição inédita na literatura da associação de Hb D-Los Angeles e Hb Lepore. A associação de Hb D-Los Angeles com outras variantes, como as descritas acima, não são inesperadas, se levarmos em consideração a grande miscigenação ocorrida no Brasil.
A Hb Korle-Bu é encontrada principalmente em famílias provenientes de Gana e Costa do Marfim, países africanos que contribuíram para a formação da população brasileira através do tráfico de escravos. Entretanto, os dados históricos sobre o tráfico indicam que os indivíduos dessa região foram levados preferencialmente para a região da Bahia. As amostras aqui descritas foram provenientes de indivíduos das regiões sudeste, sul e centro-oeste. Isto pode ser explicado pelo intenso fluxo migratório interno de indivíduos nordestinos para outros estados, em busca de novas oportunidades de emprego. A Bahia foi o segundo estado que mais contribuiu com trabalhadores para o estado de São Paulo.11
A Hb Lepore é uma variante originada pela fusão de cadeias delta e beta encontrada principalmente em italianos, mas pode ser encontrada também em ingleses, mexicanos, turcos, romenos, gregos e cubanos. A Hb Hasharon é uma variante de hemoglobina descrita principalmente em italianos e judeus Ashkenazi. A análise desses resultados confirmou os dados históricos que indicam a grande influência dos italianos na formação da população paulista, já que o estado de São Paulo transformou-se em um dos mais importantes pólos de atração de fluxos migratórios. Todos os indivíduos portadores de Hb Lepore e a grande maioria dos indivíduos portadores de Hb Hasharon amostrados residem no estado de São Paulo.
Apesar da maior parte das amostras analisadas ser proveniente dos estados da região sudeste, acredita-se que essa população apresente características encontradas por todo o país, uma vez que o padrão regional de miscigenação foi consideravelmente alterado pelas correntes de migração interna, fazendo da região sudeste o principal destino de grande contingente desses migrantes.
O correto diagnóstico laboratorial é de grande importância para os indivíduos portadores de hemoglobinopatias, especialmente no Brasil, tendo em vista os inúmeros casos de associação de alterações de hemoglobinas, além de variantes que apresentam co-migração, como os casos aqui descritos. A ocorrência de tais associações exige, portanto, que todos os recursos diagnósticos, em nível laboratorial, sejam utilizados em benefício do paciente e seus familiares. O esclarecimento diagnóstico destes casos é fundamental, tanto para a correta orientação genética quanto para se evitarem tratamentos inadequados ou desnecessários dos seus portadores.
Referências Bibliográficas
1. Wajcman H et al. Abnormal hemoglobins: laboratory methods. Hemoglobin 2001;25(2):169-181.
2. Silvestroni E and Bianco I. Screening for microcytemia in Italy: analysis of data collected in the past 30 years. Am J Hum Genet 1975;27:198-212.
3. Bonini-Domingos CR. Prevenção das hemoglobinopatias no Brasil - Diversidade Genética e Metodologia Laboratorial. 1993. 144f. Tese (Doutorado em Ciências) - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Unesp, São José do Rio Preto- SP.
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9. Ministério das relações Exteriores. Reforma Agrária: compromisso de todos. Disponível em http://www.mre.gov.br Acesso em 29 maio 2003.
10. Ahmed M, Stuhrmann M, Bashawri L et al. The b-globin genotype E121Q/W15X (cd121GAA à CAA/cd15TGG à TGA) underlines Hb D/b-(0) thalassemia marked by domination of haemoglobin D. Ann Hematol 2001;80:629-633.
11. Governo so Estado de São Paulo. Site Oficial. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br. Acesso em 29 maio 2003.
Recebido: 21/06/2005
Aceito após modificações: 14/09/2005
Avaliação: Editor e dois revisores externos.
Conflito de interesse: não declarado
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Abr 2006 -
Data do Fascículo
Set 2005