Resumo
Um aspecto de Grande sertão: veredas que tem sido pouco observado pela crítica diz respeito à utilização de estratégias que criam o efeito de suspense na narrativa. Riobaldo, o narrador-protagonista do livro, faz seguidamente afirmações descontextualizadas e ou vagas, sugerindo, ou mesmo afirmando, que elas se referem a acontecimentos determinantes de sua vida. Ao modo das narrativas de suspense, portanto, Riobaldo propõe mistérios e adia o seu esclarecimento. É o que ocorre em relação a Diadorim. Durante praticamente toda a narrativa, o ex-jagunço aponta comportamentos inusuais de seu companheiro dos tempos de jagunçagem e insinua, ou mesmo explicita, que este escondia segredos insuspeitáveis, de que só tardiamente teria tomado conhecimento. E promete que esses segredos serão revelados oportunamente. Esse suspense criado em torno da figura de Diadorim encontrará, ao final do livro, algum tipo de revelação, mas muito relativa. O esclarecimento oferecido não satisfaz o desejo do entendimento pleno, não fecha a questão; ao contrário, traz novas perguntas e mistérios. Este trabalho propõe-se a discutir alguns aspectos dessa estratégia e suas possíveis funções na narrativa.
Palavras-chave: Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; adiamento e suspensão de sentido; Diadorim
Abstract
One aspect of Grande sertão: veredas that has been seldom observed by criticism concerns the use of strategies which create the suspense effect in the narrative. Riobaldo, the protagonist-narrator of the book, constantly makes decontextualized and/or vague statements, suggesting, or even affirming, they refer to key events in his life. In the manner of suspense narratives, therefore, Riobaldo proposes mysteries and postpones their solutions. This is what happens in relation to Diadorim. Along practically the whole narrative, the former “jagunço” underscores unusual behaviors of his companion of “jagunçagem” and insinuates, or even expounds, that he hid unsuspected secrets, about which he only got to know too late. And Riobaldo promises that these secrets will be revealed in due time. This suspense created around the character of Diadorim will find some kind of revelation at the end of the book, but it will be a relative one. The explanation offered does not satisfy the wish for full understanding, it does not solve the question; on the contrary, it fosters new questions and mysteries. This paper discusses some aspects of this strategy and its possible functions in the narrative.
Keywords: Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; suspension and postponement of meaning; Diadorim
Resumen
Un aspecto de Grande sertão: veredas que ha sido poco observado porggggelaciona a la utilización de estrategias que crean el efecto de suspense en la narrativa. Riobaldo, el narrador-protagonista del libro, hace seguidamente afirmaciones descontextualizadas y/o vagas, sugiriendo, o hasta afirmando que ellas se refieren a acontecimientos determinantes de su vida. Por lo tanto, del mismo modo que se hace en las narrativas de suspense, Riobaldo propone misterio y aplaza su esclarecimiento. Es lo que ocurre con relación a Diadorim. Durante prácticamente toda la narrativa, el ex-jagunço señala comportamientos inusuales de su compañero de “jagunzaje” e insinúa, o hasta explica, que él se escondía secretos insospechables de que sólo tardíamente habría conocido. Y promete que estos secretos serán revelados oportunamente. Ese suspense que crea alrededor de la figura de Diadorim encontrará al final de libro algún tipo de revelación, pero muy relativa. El aclaramiento ofrecido no satisface el deseo de una comprensión plena, no cierra la cuestión. Al contrario, trae nuevas preguntas y misterios. Este trabajo se propone a discutir algunos aspectos de esa estrategia y sus posibles funciones en la narrativa.
Palabras clave: Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; aplazamiento y suspensión de sentido; Diadorim
Um aspecto de Grande sertão: veredas que tem sido pouco observado pela crítica diz respeito à utilização de estratégias que criam o efeito de suspense na narrativa. Como observou Roland Barthes, o suspense resulta da utilização de “procedimentos enfáticos de retardamento e de adiantamento” que
reforça[m] o contato com o leitor (ou ouvinte) (...); e, por outro lado, oferece[m]-lhe a ameaça de uma sequência inacabada, de um paradigma aberto (...), isto é, uma perturbação lógica, e é essa perturbação que é consumida com angústia e prazer (enquanto é sempre finalmente reparada). (BARTHES, 1976, p. 55-56) 1
É o que ocorre no romance de Guimarães Rosa. Riobaldo, o narrador-protagonista do livro, faz seguidamente afirmações descontextualizadas e ou vagas, sugerindo, ou mesmo afirmando, que elas se referem a acontecimentos determinantes de sua vida. Ele antecipa, portanto, aquilo que, em seguida, adia, pois não oferece nenhum esclarecimento sobre o afirmado. Pelo menos não imediatamente. Assim, ele desperta e aguça a atenção do leitor, sustentando seu interesse pela expectativa do que virá; e gera um “misto de incerteza, de intensa expectativa e, não raro, de ansiedade” (FURTADO, s/d, verbete SUSPENSE) - ou o prazer e a angústia, para usar os termos de Barthes - que uma sequência aberta produz.
Riobaldo antecipa e adia o fechamento da sequência, por exemplo, quando menciona pessoas, lugares e/ou acontecimentos de que ainda não falou e que, portanto, são incompreensíveis para o leitor no momento em que se colocam. Logo no início do livro, por exemplo, antes de ter começado a narração de sua vida, Riobaldo lista um grande número de jagunços que ainda não apresentou:
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério - foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro - grande homem príncipe! - era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó - severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o “Urutu-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi - que era um pobre menino do destino... (ROSA, 2006, p. 16-17).
Depois disso, sem dar qualquer explicação sobre os nomes que mencionou, Riobaldo prossegue com as reflexões que vinha fazendo sobre Deus e o diabo.
Em outro momento, declara: “Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.” (ROSA, 2006, p. 98).2 A menção a um arraial específico, embora não determinado (“aquele”), a uma “rua da guerra” e a fórmula “O demônio na rua no meio do redemunho”, ademais destacada em itálico, não fazem sentido para o leitor a essa altura da narrativa, pois o episódio da batalha do Paredão, que poderia esclarecê-los, pelo menos em parte, ainda não foi narrado - e, como sabemos, só o será nas últimas páginas do livro. No momento em que faz a afirmação, entretanto, Riobaldo não dá mais nenhuma explicação. Não diz de que arraial se trata, nem por que sua única rua “é a rua da guerra”; e também não explica por que associa “aquele” arraial, guerra e manifestação do demônio no mundo. Antes, ele vinha falando das andanças do bando, sob comando de Zé-Bebelo pelo sertão. Começa, então, uma digressão sobre a região na qual se encontravam naquele momento, perto das “Veredas Tortas3 - veredas mortas” - onde, saberemos bem mais tarde, teria se dado o suposto pacto que Riobaldo teria feito com o demônio. Ainda não sabemos, a essa altura, que se trata disso, mas a afirmação do ex-jagunço indica que o que ali ocorreu é algo muito sério e relevante, além de, aparentemente, difícil de formular (“coisas dessas não se perguntam bem”). E o doutor parece não ter prestado muita atenção, ou não ter dado a devida importância: “Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. (...) Agora, quando passei por lá, minha mãe não tinha rezado - por mim naquele momento?” (p. 97). Riobaldo reveste o ocorrido de uma aura de extraordinário, sugerindo, inclusive, que ele envolva algo de sobrenatural. Também porque ele diz que as “rezas de sua mãe” poderiam tê-lo evitado: se o que poderia protegê-lo do que ocorrera nas “Veredas Tortas - veredas mortas” seria o sobrenatural (por cuja intercessão clamariam as rezas de sua mãe, se tivessem ocorrido), é provável que o que ali se passou possa ser de mesma natureza, mas proveniente de força oposta, de caráter maligno. Há, portanto, algo de sinistro e aterrador nesse “lugar não onde” para o qual o ex-jagunço chama bastante a atenção do doutor, e, consequentemente, do leitor,4 e do qual, paradoxalmente, não quer sequer que se fale.
O artifício de propor mistérios e retardar o seu esclarecimento prossegue no parágrafo seguinte. Aí o assunto passa a ser o Paredão. Mais uma vez não é possível compreender, nesse momento, o motivo do destaque dado a essa outra localidade sertaneja, pois, a essa altura da narração, como foi dito, Riobaldo ainda não havia narrado o episódio da batalha final contra o Hermógenes. O leitor só compreende que há uma relação entre as Veredas Mortas - Tortas e o Paredão porque, depois de falar das primeiras, o ex-jagunço inicia o parágrafo seguinte, em que fala do arraial onde “ultimou o jagunço Riobaldo” (p. 600), da seguinte forma: “Assim, feito no Paredão.” (p. 97).
Esse procedimento de antecipar e adiar o fechamento da sequência é muito frequente no livro, e é utilizado no tratamento de diversos assuntos. Ele apresenta-se também, por exemplo, no que se refere à Otacília, que Riobaldo menciona pela primeira vez sem nada explicar. Depois de relatar o segundo encontro com o então Menino, e agora jovem jagunço, o Reinaldo, na casa do Malinácio, Riobaldo faz uma digressão e menciona a moradora da Fazenda de Santa Catarina: “Otacília, o senhor verá quando eu lhe contar”. Algumas linhas adiante, ainda sobre a moça, afirma: “Depois lhe conto; tudo tem seu tempo.” (140). Formulações como as apresentadas até aqui atuam de forma a alimentar as expectativas do leitor em relação ao esclarecimento de coisas diversas, como a importância para a trama de certas localidades do sertão e de uma determinada mulher na vida de Riobaldo. Há, entretanto, um assunto específico sobre o qual o ex-jagunço está sempre adiando o esclarecimento:5 os segredos e mistérios que cercam Diadorim, nas palavras de Riobaldo, sua “neblina” (p. 24).
É muito conhecida a importância do personagem na vida do ex-jagunço. Os sentimentos que experimentou no passado - e, em alguma medida, ou de alguma forma, ainda experimenta no presente - pelo antigo companheiro de jagunçagem é uma das questões que mais perturbam Riobaldo. Tendo sido sempre “homem muito homem (...), e homem por mulheres” (p. 146), em suas próprias palavras, não conseguia, e ainda não consegue, entender como pôde ter-se envolvido amorosamente com outro homem - que é como Diadorim apresentou-se para ele enquanto viveu - e de forma tão apaixonada. Em suas palavras: “nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito.6 Então - o senhor me perguntará - o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida” (p. 146). Riobaldo, como se vê, não consegue chegar a uma resposta satisfatória, só à constatação de que a “vida” - palavra, nesse contexto, de sentido muito vago, muito impreciso e muito amplo - tem mais poder do que a sua vontade. O mesmo ocorre neste outro trecho:
[...] Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos-vislumbre meu - que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. (...) Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! (p. 495).
O trecho evidencia o enorme fascínio que Riobaldo sentia por seu companheiro de jagunçagem, com seus olhos que “cresciam sem beira”, tornando tudo sombra e doçura. Contudo, também se evidencia no fragmento acima o conflito do personagem, sua tentativa de não ceder àquele fascínio: “repeli aquilo”; “De que jeito eu podia...?” Em sua percepção, há entre ele e Diadorim obstáculos intransponíveis, como indica o acúmulo de imagens de distância, de separação e de impossibilidade de encontro: o “fogueirão”, a cerca muito alta, o valo profundo e o rio muito largo, ademais, tomado por uma enchente.
Em outro momento, Riobaldo ratifica-o: “De Diadorim eu devia de conservar um nojo”. E explicita o motivo dessa imposição íntima: “As prisões que estão refincadas no vago, na gente.” (p. 316). Ao dizer isso, o ex-jagunço parece lamentar que seu desejo tenha de ser reprimido em função de limitações que não são “originalmente nossas” (o “na gente” de Riobaldo amplia a experiência), não nasceram conosco, são algo que veio de fora e se incorporou a nós (“estão refincadas” em nós). Ou, talvez mais propriamente, essas prisões nos precedem, nascemos dentro delas, e, assim, elas passam a fazer parte do que somos. Elas são culturais, sociais, grupais, e dizem que Riobaldo devia ter nojo, e não, de maneira nenhuma, apaixonar-se por outro homem. Entretanto, apesar dessa imposição exterior e ao mesmo tempo íntima, a vontade (a escolha racional, de acordo com a conveniência social e grupal) de Riobaldo não consegue sobrepor-se ao seu desejo: “Como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.” (p. 191).
Desde a primeira vez em que se encontraram, foi com um olhar de perplexidade e fascínio que Riobaldo, então com cerca de 14 anos, enxergou aquele a quem, incialmente, chamou somente de “o Menino”; e já nesse primeiro encontro, Diadorim apresentou-se como uma incógnita para Riobaldo. Ele era “muito diferente” (p. 103), muito fora dos padrões conhecidos pelo filho da Bigri, que se impressionou com a beleza, a independência (o Menino tinha dinheiro para comprar rapadura e queijo; para pagar ao barqueiro a travessia do São Francisco; e fez tudo isso sem sequer pedir permissão ao tio, a quem acompanhava na ocasião) e a coragem do Menino: ele não teve medo enquanto atravessavam o rio, mesmo sem saber nadar; e enfrentara, corajosamente, o intruso malicioso que quis se envolver em jogos eróticos com eles. Afirma Riobaldo sobre como se sentira junto do novo amigo:
[...] eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira - só meu companheiro amigo desconhecido. (p. 103).
Depois de reencontrá-lo, muito tempo depois, Riobaldo não conseguiu mais deixar Diadorim. Apesar de ter abandonado o bando de Zé-Bebelo porque não lhe agradava, em suas palavras, “aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade” (p. 135),7 acompanhou o jagunço Reinaldo e tornou-se jagunço também:
De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei. Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de um meu dever honesto. Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. (p. 141-142).
Riobaldo afirma várias vezes que não se sentia identificado com o modo de vida jagunço, como neste trecho: “eu não era jagunço completo, estava ali no meio executando um erro.” (p. 358). A despeito disso, permaneceu como tal até o fim. Ameaçou deixar o bando algumas vezes, mas nunca conseguiu. Numa dessas vezes, não chegou a sair, pois Diadorim seguiu-o e ele acabou voltando. Noutra, partiu com o companheiro Sesfrêdo a serviço de Medeiro Vaz, mas, devido à perseguição de soldados do governo, não puderam voltar imediatamente e acabaram se empregando numa lavra de mineração e por lá permaneceram por algum tempo. Durante esse período, pensou em abandonar de vez a jagunçagem e mudar de vida:
Por que não ficamos lá? Sei e não sei. Sesfrêdo esperava de mim toda decisão. [...] eu podia rever proveito, caçar de voltar dali para a casa-grande de Selorico Mendes, exigir meu estado devido, na Fazenda São Gregório. [...] Assim e silva, como em outro tempo, adiante, podia flauteado comparecer no Buritis Altos, por conta de Otacília - continuação de amor. Quis não. Suasse saudade de Diadorim? (p. 70).
Mesmo tendo a oportunidade e as condições para dar um outro rumo em sua vida, Riobaldo acabou preferindo voltar para o convívio de Diadorim. E por ele, para vingar a morte de seu pai, acabou se tornando, inclusive, chefe de bando. Como discuti em outra ocasião, Riobaldo buscou o pacto demoníaco porque o via como única maneira de vencer o Hermógenes e desobrigar Diadorim da vingança de Joca Ramiro.
Nessa mesma ocasião, argumentei que o sentimento de Riobaldo pelo companheiro tem muito de um tipo de amor tradicional na literatura do ocidente, o amor-paixão, aquele diante do qual todo bom senso e racionalidade sucumbem, pois que se impõe a qualquer custo, a despeito dos obstáculos que entre os amantes se interponham. E é por ter sido tomado por esse sentimento irresistível e inexplicável que Riobaldo continuou seguindo Diadorim “feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho” (p. 141). Quando Riobaldo conheceu Otacília e enxergou nela a possibilidade de uma vida tranquila, longe das guerras e dos conflitos que vivia no bando,8 pergunta - e responde ele mesmo: “Por que era que eu precisava de ir por adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus? Destino preso.” (p. 198). A expressão “destino preso” indica a impossibilidade de impor sua vontade contra uma fatalidade, uma força contra a qual toda resistência é vã. Devido àquelas “prisões que estão refincadas no vago, na gente”, Riobaldo anseia por encontrar explicações para esse sentimento “sem preceito”. E encontra algumas, mas elas estão longe de constituírem-se em respostas conclusivas. Riobaldo afirma, por exemplo: “O corpo (...) muito sabe, adivinha se não entende.” (p. 29). E pergunta-se: “Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso?” (p. 66). O ex-jagunço parece acreditar (ou deseja acreditar) que teria se apaixonando por Diadorim porque intuía o “verdadeiro” que a aparência masculina “falsa” esconderia e seu corpo (de Riobaldo) adivinharia. Isso explicaria, de forma tranquilizadora para ele, o fato de o então jagunço desejar vivamente Diadorim, como explicita em momentos como este: “Eu, no gozo de minha ideia, era que o amor virava senvergonhagem. Turvei, tanto. (...). Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido.” (p. 314). Ou este:
Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou - os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi - ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do corpo dele. (p. 182).
Nos dois trechos supracitados, avulta o desejo e o conflito: no primeiro, eles evidenciam-se na frase que aproxima “gozo” e “senvergonhagem”, no desejo de tocar Diadorim e na expressão “súbitas outras vontades” - as “outras” seriam as vontades novas para Riobaldo, diferentes das que ele tivera antes, em relação a mulheres. No segundo fragmento, o desejo está explícito na primeira frase: “Meu corpo gostava de Diadorim”; e apresenta-se também no impulso de Riobaldo para tocar o companheiro, como no trecho anterior. Já o conflito se verifica no medo que Riobaldo tem de uma reação negativa e reprobatória de Diadorim, caso manifestasse o seu desejo. É o que demonstra o “gelo” que sentiu diante do olhar sério do companheiro.
Vejamos ainda um último trecho:
[...] eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente - tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. [...] O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois. (p. 147).
Aqui também se evidencia o desejo de Riobaldo por Diadorim: na “vontade de chegar todo próximo”, na “ânsia de sentir o cheiro do corpo dele” e no pensamento recorrente em partes do seu corpo, mais especificamente, os braços. O mesmo verifica-se quando o ex-jagunço chama de “tentação” o que o “cheiro do corpo” e o pensamento nos braços de Diadorim provocavam nele. Daí que o termo “rijo”, nesse contexto, tenha, pelo menos, dois sentidos: pode ser pensado como a atitude “rígida” que Riobaldo assume para consigo mesmo ao “renegar” o que sente por Diadorim; mas também sugere excitação sexual. O conflito entre o desejo e as “prisões que estão refincadas na gente” fica, mais uma vez, evidente nesse enunciado: “E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não.” A formulação paradoxal é a forma que assume aqui o conflito interior.
Um último ponto que interessa ressaltar em relação a esse trecho refere-se às suas duas frases finais, nas quais se verifica, mais uma vez, o adiamento de sentido que tem sido discutido aqui: “O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.” Mais uma vez o ex-jagunço cria a expectativa de que haverá um esclarecimento posterior; ou, nos termos de Barthes, que a perturbação lógica será reparada.
O pensamento em Diadorim, feito “feitiço”, “coisafeita”, nunca abandonou Riobaldo. Muitos anos depois, décadas, muito provavelmente, seus sentimentos pelo companheiro dos tempos de jagunçagem ainda o afligem, pois não consegue responder à questão que o perturba sobremaneira: “De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?!” Ele apresenta, como foi dito, uma explicação possível - pressentira “o verdadeiro no falso” -, mas apresenta-a sob a forma de pergunta, ele tem dúvidas quanto a isso. O fato de estar sempre retornando à questão também demonstra que ela não está resolvida para ele. Na verdade, a narrativa decorre, em boa medida, dessa necessidade íntima de Riobaldo de compreender seus sentimentos por Diadorim.9 O que o perturba é que há também a possibilidade de que seus sentimentos pelo companheiro de armas possam ser considerados homossexuais - o que seria inaceitável para um jagunço e na sociedade sertaneja em geral -, uma vez que Riobaldo sempre enxergou um homem em Diadorim. Impactado pelo Menino, apaixonou-se, mais tarde, pelo jagunço Reinaldo. Apaixonou-se, portanto, por um homem; ou por quem acreditava ser um homem. Jamais suspeitou que Diadorim pudesse ser de “natureza igual” à sua. Riobaldo provavelmente aventou a possibilidade de que no “querer bem” do companheiro pudesse haver alguma “viciíce”, mas logo rechaçou essa ideia:
Diadorim - dirá o senhor: então, eu não notei viciíce no modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, que não - fio e digo. [...] O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça: boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto do campo, brabejando; cobra jararacuçu emendando sete botes estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... (p. 158).
Diadorim é extremamente ambíguo: era muito feroz na guerra, mas também podia assumir uma doçura e uma delicadeza não condizentes com o comportamento usual dos jagunços:
a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser - e tudo num homem-d’armas, brabo bem jagunço - eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. (p. 143).
Também diferentemente de todos os demais, Diadorim vê beleza na natureza, e desfruta-a com deleite, faculdade que Riobaldo não conhecia, e que acaba desenvolvendo também:
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: - “É formoso próprio...” - ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. - “Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava mais. [...] “É aquele lá: lindo!” Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea - às vezes davam beijos de biquinquim - a galinholagem deles. - “É preciso olhar para esses com um todo carinho...” - o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. (p. 143).
Diadorim apreciava “essas belezas sem dono” e “ensinou” (p. 26) Riobaldo a fazê-lo também. Que ele aprendeu-o, demonstram os diminutivos de valor afetivo e a riqueza de detalhes, físicos e comportamentais, com que descreve o casal de manuelzinhos-da-croa nesse trecho. O próprio Riobaldo diz que acabou desenvolvendo pela natureza o mesmo apreço que Diadorim neste fragmento: “‘É preciso olhar para esses com um todo carinho...’ - o Reinaldo disse.” Riobaldo confirma: “Era.”.
Também diferenciava Diadorim dos demais jagunços o fato de nunca se relacionar sexualmente com ninguém, enquanto os outros aproveitavam todas as oportunidades que apareciam para estar com mulheres - mesmo que isso implicasse no uso da violência. Já Diadorim não só não agia da mesma forma que os demais, como também se mostrava sensível ao sofrimento das mulheres violentadas pelos companheiros de bando:
Com não terem mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. - “Saindo por aí”, - dizia um - “qualquer uma que seja, não me escapole!” Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. - “Mulher é gente tão infeliz...” - me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. (p. 172).
A forma como Diadorim conduz10 seu relacionamento com Riobaldo também é absolutamente inusual. Ele demonstra, repetidas vezes, ciúmes do companheiro de bando. Esses sentimentos tornam-se explícitos, por exemplo, em relação à Nhorinhá, a meretriz das Aroeirinhas, com quem Riobaldo estivera antes de o bando tentar, sob o comando de Medeiro Vaz, a travessia do liso do Sussuarão.11 Na verdade, Diadorim sentia ciúmes sempre que Riobaldo fugia dele para estar com mulheres, mas é em relação à Otacília que seus ciúmes se manifestam mais intensamente. Afirma o ex-jagunço sobre o dia em que se encontraram pela primeira vez: “Desde esse primeiro dia Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúmes.” (p. 191) Vale observar que a recíproca também é verdadeira (“vi que ela (Otacília) não gostava de Diadorim” - 191), como se ela intuísse que havia mais que amizade entre os dois jagunços.
Devido à antipatia que o jagunço Reinaldo demonstrou em relação à moradora da Fazenda de Santa Catarina, causou espanto a Riobaldo que, pelo menos uma vez, Diadorim tenha “repassado carinho” ao falar da vida que ele e Otacília poderiam ter juntos. Trata-se deste momento:
- “... Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...” Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia - o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. [...] De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. [...] Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez - alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. (p. 377-378).
Diadorim falava “com carinho” e doçura (“melar mel de flor”) de um eventual futuro casamento que imaginava entre Otacília e Riobaldo, descrevendo o que ambos os jagunços consideravam os encantos da vida conjugal - pois as imagens que o rival de Otacília evocava enlevavam o “ouvinte”, que se “embebia” nas palavras do outro e “descambava numa sonhice”.
O ex-jagunço, entretanto, explicita que, na ocasião, percebeu algo que o intrigou - e para o qual ele chama a atenção de forma a intrigar também o leitor: o desamparo e a “estranhez” que Diadorim manifestou repentinamente, como se houvesse “alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir.” Nesse trecho, Riobaldo mais que sugere o mistério, ele afirma que Diadorim guardava um grande e grave segredo.
Apesar de todos os comportamentos inusuais para um jagunço, incluindo os ciúmes que demonstrava de seu companheiro de bando, que poderiam sugerir alguma “viciíce” de sua parte, Diadorim sempre repeliu os impulsos eróticos do companheiro. Este é um dos trechos que o confirmam:
E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra. [...] Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, [...] por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei. -... Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... [...] Diadorim se pôs pra trás, só assustado. - O senhor não fala sério! - ele rompeu e disse, se desprazendo. “O senhor” - que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. - Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... - eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. (p. 576-577).
Riobaldo teria pressentido o verdadeiro sobre o falso ou teria mesmo se apaixonado por um homem? Há bons argumentos para defender ambas as posições, e, justamente por isso, não parece possível optar por nenhuma delas. “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza” (p. 417), afirma o ex-jagunço a certa altura da narrativa. E, se não há resposta fácil para Riobaldo, também não as há para o leitor. A validade das duas possibilidades indica que a questão não pode ser equacionada em termos binários. A lógica do “isto ou aquilo” costuma ser muito questionada na obra rosiana. Logo nas primeiras páginas de Grande sertão: veredas, avisa Riobaldo: “E, e não é. O senhor ache a não ache. Tudo é e não é...” (p. 11).12
Seja como for, a lembrança de Diadorim continuou assombrando Riobaldo. A narrativa como um todo dá testemunho dessa ânsia do ex-jagunço de dar um sentido a essa “mandante amizade” (p. 146). E não só a ela, mas também ao enigmático personagem a quem ela é endereçada, portador de insondáveis mistérios. De forma muito recorrente, Riobaldo descreve muitos outros comportamentos e/ou ações do companheiro que contrastavam com os dos demais jagunços. Vale lembrar, ainda, que Diadorim tomava todos os cuidados para que não vissem seu corpo: ele só usava camisas de manga comprida e não tomava banho de rio junto com os demais jagunços; quando soube da morte de Joca Ramiro, sofreu tal impacto que desmaiou, mas voltou logo a si quando os companheiros começaram a lhe desabotoar a camisa.
Diadorim é todo enigmas e mistérios. Ele até revela alguns de seus segredos a Riobaldo, mas não integralmente; ou, melhor dizendo, sempre de forma a criar novos enigmas e mistérios. Diadorim diz ao companheiro de jagunçagem, por exemplo, que Joca Ramiro era seu pai, o que, tudo indica, não era de conhecimento de ninguém mais do bando - a não ser, provavelmente, o grande chefe.13 Também disse a Riobaldo, em outra ocasião, que, ao contrário do que pensavam todos, não se chamava Reinaldo, e pediu ao amigo que passasse a chamá-lo, quando estivessem a sós, pelo seu nome verdadeiro, só revelado ao amigo - justamente, Diadorim (p. 156). Trata-se de um nome próximo ao que recebeu ao ser batizado, como saberemos ao fim da narrativa: Deodorina (p. 604). Vale notar, também, que falta a desinência de gênero no nome “revelado” a Riobaldo. Trata-se de uma apócope, uma modificação fonética da forma diminutiva muito comum no norte de Minas, mas também é uma forma de sugerir a impossibilidade de enquadrar Diadorim num gênero único.
Os segredos revelados pelo personagem não são muito esclarecedores. Na verdade, eles trazem novas perguntas: Por exemplo: por que tantos segredos? Por que o jagunço conhecido como Reinaldo tinha de usar um nome falso? E por que ninguém poderia saber que ele era filho de Joca Ramiro? Não temos essas respostas. No primeiro caso, porque Riobaldo, satisfeito com a distinção que Diadorim fizera ao dizer-lhe, e somente a ele, seu “verdadeiro” nome, nada perguntou. No segundo, porque, depois de experimentar um “rebate contente” ao notar que Diadorim tinha ciúmes de Nhorinhá (o que significava que ele “lhe queria bem”), Riobaldo diz ter voltado a sentir “aquela outra vergonha”, o “estúrdio asco”; e, naquele momento, foi mais importante para ele tentar se impor aos seus sentimentos “asquerosos” do que pedir ao amigo maiores esclarecimentos.
A estratégia aqui utilizada consiste na revelação de um segredo, de forma incompleta, salientando o fato de ele estar incompleto. Ao dizer que não pediu esclarecimentos, Riobaldo chama a atenção para o fato de as informações fornecidas deixarem lacunas. Trata-se de outra forma de sugerir mistérios, adiar a sua revelação e criar a expectativa de que, em algum momento, haverá o esclarecimento reparador.
Algumas vezes, essa promessa de esclarecimento fica implícita na proposição do mistério, mas, em muitos momentos, ela é feita explicitamente. É o que ocorre, por exemplo, quando o ex-jagunço narra a forma como se deu a escolha do novo chefe depois da morte de Medeiro Vaz. Antes de fechar definitivamente os olhos, o então chefe indicara com o olhar que desejava ser substituído por Riobaldo. Diadorim também percebera o desejo de Medeiro Vaz e propôs aos demais jagunços o nome do então jagunço Tatarana para comandar o grupo. Riobaldo, entretanto, recusa-se a assumir a chefia. O filho de Joca Ramiro, então, propõe, ou melhor, impõe, seu próprio nome para o posto, com o que Riobaldo, afrontosamente, também não concorda. Depois de relatar a tensão que sua atitude criara no grupo, o ex-jagunço diz o que se segue:
O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tolo! (p. 64, grifo nosso).
Nesse trecho Riobaldo diz, explicitamente, que há um mistério assombroso e que ele lhe foi revelado “no último derradeiro”. Assim, cria-se, mais uma vez, a expectativa de que ele, ao final, revele o que se revelou para ele quando, enfim, “clarearam a sala”. Num outro momento, em que também falava de Diadorim, Riobaldo afirma: “Ao quando bem não me entender, me espere.” (p. 145). E, mais adiante, num momento em que narra a hostilidade recíproca que notou quando Otacília e Diadorim encontraram-se, afirma o ex-jagunço: “O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro.” (p. 191, grifo nosso). Como se vê, Riobaldo, direta ou indiretamente, está sempre prometendo o esclarecimento, a revelação do segredo de Diadorim, que trará a reparação da perturbação lógica instaurada e mantida pela abertura da sentença.
Isso ocorre em parte. O final do livro traz uma revelação muito importante: Riobaldo descobre, depois da morte de Diadorim, que o corpo do companheiro de jagunçagem
[...] era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha... Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! (p. 599).
A assombrosa revelação tem fortíssimo impacto sobre Riobaldo: atingiu-o com a força e a brutalidade do coice da coronha de uma arma quando dispara. Nesse primeiro momento, a perplexidade é tamanha que suplanta a dor da perda. O que se revelava naquele momento para Riobaldo era inimaginável, quase inconcebível. Ele jamais pôde sequer cogitar que Diadorim fosse uma “uma mulher, moça perfeita”.
A revelação prometida e, enfim, exposta esclarece muitas posturas e comportamentos de Diadorim, como, por exemplo, sua extrema preocupação em esconder o corpo; sua compaixão pelas mulheres estupradas pelos companheiros de bando; os ciúmes que sentia de Riobaldo e o fato de “repassar carinho” na fala em que projeta o futuro conjugal de Riobaldo e Otacília. Nesse último caso, ele parece identificar-se com a mulher da situação que imagina - Diadorim deseja a vida que descreve. “Ela tinha amor em mim”, diz, devastado, o então grande chefe Urutu Branco diante do cadáver da moça nua (p. 600). Entretanto, muitas questões permanecem e surgem outras. Como observou pela primeira vez, salvo engano, Alcir Pécora, “quando surge, enfim, como Deodorina, Diadorim se torna um problema ainda maior” para Riobaldo (PÉCORA, 2013, p. 45).14
A revelação não elimina a tensão criada pela expectativa de esclarecimento porque traz novas questões, tais como: qual o motivo do travestimento de Diadorim? O que seria tão importante a ponto de ele - apesar de, como tudo indica, também amar Riobaldo e desejar uma vida em comum com o companheiro - jamais ter aberto mão de seu segredo? A que, ou a quem, Diadorim devotaria tamanha fidelidade a ponto de manter, com tamanha obstinação, o seu segredo sem jamais se descuidar, sem jamais deixar escapar alguma “impropriedade”? Não há respostas para nenhuma dessas perguntas. O que é possível saber sobre Diadorim, além do que já foi dito aqui, é que ele vinha de um lugar chamado “Os Porcos”; que não tinha mãe; que, por volta dos 14 anos, costumava acompanhar um tio em viagens e já se vestia e se comportava como um menino; e que seu pai lhe dissera que devia ser diferente de todos15 e ter sempre muita coragem.16 Sabe-se também que ele cumpria rigorosamente a determinação paterna, mesmo a custo de grandes padecimentos.17 Até o último minuto. Diadorim jamais abriu mão do seu segredo.
Entretanto, pareceu disposto a fazê-lo num certo momento, como, mais tarde, Riobaldo pôde perceber. Quando sentiu que estavam próximos de vencer o Hermógenes e de cumprir a vingança de Joca Ramiro, Diadorim disse ao companheiro:
- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” - ele disse; e de medo não tremia, que era de amor - hoje sei.
- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...”
Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade. (p. 510).
Tudo leva a crer que Diadorim, cumprida a vingança de Joca Ramiro, desobrigar-se-ia de dar continuidade ao legado paterno e revelar-se-ia a Riobaldo como Deodorina. E poderia esclarecer os mistérios que o envolvem. Entretanto, não teve a oportunidade de fazê-lo, e deixou sem resposta as novas questões que a revelação suscitou. Por isso, assim que se recuperou da doença que o abatera depois desses terríveis acontecimentos, Riobaldo partiu em busca de respostas:
Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. [...] A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem - dela lembrados quando tinha sido menina - e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Cru [...]. Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe - batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha? (p. 604-605).
Riobaldo, como se vê, não conseguiu obter nenhuma informação que ajudasse a explicar Diadorim e seu comportamento. Só conseguiu saber o nome de batismo de quem muito amou e, nesse caso, também sem gozo de amor. Não encontrando nenhuma velha ou velho que pudessem lhe explicar a “razão rastraz de muitas coisas”, Riobaldo não tem mais como prosseguir na procura; chegou ao fim da linha sem fechar a sentença, sem obter a explicação esperada. Sem conseguir, portanto, aplacar a angústia da ausência do sentido final, para sempre perdido.
Dito isso, uma questão se coloca: por que, mesmo sabendo que não havia solução final satisfatória para os mistérios que envolviam a figura de Diadorim, Riobaldo sugeriria, reiteradamente, que, ao final, os mistérios seriam esclarecidos? Por que criaria essa expectativa sabendo que não poderia satisfazê-la? O que o suspense que não revela, revelaria?
Em primeiro lugar, é preciso observar que Riobaldo não faz apenas promessas de revelação. Na verdade, em alguns momentos, ele sugere que as respostas que tem a oferecer podem não ser satisfatórias. O ex-jagunço afirma, por exemplo, a certa altura: “O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível.” (p. 140, grifo nosso) Esse é um dos momentos em que Riobaldo enuncia explicitamente que pode não haver respostas que satisfaçam o desejo do entendimento pleno. Afirmações desse tipo, entretanto, são bem mais raras do que aquelas que prometem o esclarecimento.
Riobaldo dá uma resposta para o motivo de proceder dessa forma, propondo mistérios e, por fim, suspendendo o esclarecimento prometido. Ele fá-lo justamente quando “revela” o mistério de Diadorim: “Eu conheci! Como em todo tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube.” (p. 599, grifo nosso). Nessas palavras, é possível reconhecer um desejo de representação, não propriamente do acontecimento, mas, principalmente, de sua repercussão íntima: o que o ex-jagunço quer comunicar é o “travo”, o sabor amargo da revelação. E é justamente por isso que ele diz deixar a espantosa revelação sobre Diadorim para o final: a essa altura, depois de já conhecer todos os fatos, o doutor (no plano da narração) e o leitor (no plano do livro) já têm as informações que lhes permitem compreender o impacto que uma revelação como esta poderia ter sobre Riobaldo. Porque o conhecimento prévio desse segredo poderia ter mudado tudo: poderia ter aplacado os sofrimentos de Riobaldo, aliviado seus conflitos; e, fundamentalmente, poderia ter tornado possível a relação amorosa. Tragicamente, entretanto, essa possibilidade só passa a existir quando uma impossibilidade definitiva é instaurada.
A morte de Diadorim talvez seja ainda mais terrível para Riobaldo porque ele parece sentir-se, em alguma medida, culpado pelo desfecho terrível de sua história de amor. Como foi dito, tudo indica que o filho de Joca Ramiro resolvera desobrigar-se de seguir o caminho paterno assim que consumada a vingança contra o Hermógenes. E, na ocasião em que dissera a Riobaldo que lhe faria uma revelação depois da batalha final, o agora chefe Urutu-Branco não dera muita atenção às palavras do companheiro. Estava desatento, preocupado com outras coisas (“Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade”). “Mesmo fui muito tolo”, afirma o ex-jagunço em outro trecho transcrito anteriormente neste trabalho, em que relata a hostilidade que percebeu no primeiro encontro entre o jagunço Reinaldo e Otacília. Depois da perda de Diadorim, Riobaldo pôde perceber que tivera muitos índices, durante o tempo em que estiveram juntos, de que o companheiro não era exatamente (ou somente) o que parecia e ele não soubera enxergar. Os comportamentos e atitudes extravagantes do jagunço Reinaldo estavam todo o tempo lhe dizendo a “verdade” e Riobaldo não pudera perceber. Afirma ele a certa altura: “Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.” (p. 35). Entretanto, como ele também disse, em outra ocasião, e já foi citado aqui, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Riobaldo não pôde enxergar “o real” que se dispunha, para ele, “no meio da travessia” e sua narração busca traduzir algo dessa espécie de logro em que foi enredado. A disposição, ao longo de toda a narrativa, dos índices de que Diadorim não era exatamente o que parecia, atende, entre outras coisas, a esse objetivo. Já foram apresentados muitos desses índices, mas vale a pena mencionar mais um, em que Riobaldo é absolutamente explícito na exposição da “verdade” que revelaria ao fim da narração:
Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (p. 191).
Trata-se de um trecho com alta voltagem emocional. Refere-se, ainda, ao encontro entre Diadorim e Otacília e dos ciúmes que o companheiro de jagunçagem demonstrou em relação à moça da fazenda de Santa Catarina (e vice-versa). Nele, Riobaldo cobra-se por não ter suspeitado do que hoje, depois de tudo transcorrido, parece-lhe tão obvio. Riobaldo talvez se sinta, em alguma medida, culpado por não ter podido enxergar o que estava diante de seus olhos (“Como foi que não tive um pressentimento?”) a tempo de, talvez, poder mudar o rumo dos acontecimentos. Daí que busque construir situação análoga na narrativa. A introdução da imagem do cadáver ensanguentado da moça virgem, que explicita o segredo de Diadorim num momento em que ainda não pode ser compreendida, tem, entre outros, esse propósito. Ela parece descontextualizada, pois sua conexão com o contexto foi omitida.18 Assim, também para o doutor, e o leitor, em outro plano, a “verdade” sobre Diadorim - que só lhes será revelada diretamente ao final da narrativa - estivera presente desde muito antes. Desde sempre, na verdade, em se considerando os comportamentos e atitudes extravagantes de Diadorim relatados por Riobaldo ao longo do livro.
De formas diversas, portanto, em Grande sertão: veredas, antecipa-se e adia-se o fechamento da sentença. Isso ocorre quando Riobaldo traz à luz fragmentos de cenas aparentemente desconexos e ou descontextualizados; quando faz referências a personagens, situações e ou lugares relevantes na trama que ainda não foram apresentados na narrativa; e/ou quando chama a atenção para lacunas e nexos elididos. Ao modo das narrativas de suspense, portanto, temos no romance de Guimarães Rosa a proposição de mistérios e a promessa de elucidação futura. Ao contrário delas, entretanto, no caso de Grande sertão: veredas, quando a revelação, enfim, se dá, ela traz consigo tanto respostas como questões, novas questões, e essas ficarão para sempre sem esclarecimento. O objetivo de narrar dessa maneira, segundo o próprio Riobaldo, é enredar seu interlocutor numa situação análoga àquela que experimentou na vida, numa tentativa de comunicar a aterradora perplexidade por que foi tomado diante da espantosa e terrível revelação sobre Diadorim.
Talvez, entretanto, ele tenha ainda outras motivações para isso. O enredamento do destinatário na trama talvez possa se constituir também numa tentativa de aplacar o sentimento de culpa que Riobaldo parece sentir por não ter percebido antes que Diadorim era uma mulher. Se seu interlocutor não puder enxergar os sinais disseminados na narrativa - de forma análoga à forma como apareceram disseminados em sua vida ao longo do tempo em que conviveu com Diadorim - o ex-jagunço possa talvez ter algum alívio, uma vez que lhe daria a confirmação de que teria sido, realmente, muito difícil para qualquer um em sua situação, “pressentir” o que se revelaria mais tarde sobre Diadorim. Ainda que, ao final, o que tenha realmente se revelado seja a insondável complexidade do outro, mesmo daquele que está todo o tempo ao seu lado. Refletindo sobre Zé-Bebelo, uma pessoa que Riobaldo considera, no mínimo, muito interessante, pergunta (retoricamente) o ex-jagunço: “O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos?” (p. 357). Se a resposta é difícil em se tratando das pessoas em geral, é ainda mais difícil quando se trata de um personagem que praticamente encarna a ideia de ambiguidade, de indeterminação. Diadorim-Deodorina será para sempre mistério, neblina - para Riobaldo e para o leitor de Grande sertão: veredas.
Referências
- BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES, Roland et al Análise estrutural da narrativa Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1976. P. 19-60.
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FURTADO, Filipe. Suspense. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Coordenação de Carlos Ceia. Disponível em: Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/prefix:sus Acesso em: 23 jun. 2020.
» https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/prefix:sus -
PÉCORA, Alcir. Aspectos da revelação em Grande sertão: veredas. Remate de Males, Campinas, n. 7, 1987, p. 69-73. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636325/4034 Acesso em: 23 jun. 2020.
» https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636325/4034 - PÉCORA, Alcir. Uma tese idiota. Cult, v. 183, São Paulo, 2013, p. 44-46.
- ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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SOARES, Claudia Campos. Ponteando opostos e especulando ideias: Riobaldo e a angústia da falta de sentido. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 42, n. 74, p. 163-173, maio/ago. 2017. Disponível em: Disponível em: Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/signo Acesso em: 23 jun. 2020.
» http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
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1
Segundo Barthes, a “distorção” [“o distender (d)os signos ao longo da história”] é um dos “poderes” da narrativa em geral; e o suspense é “uma forma privilegiada (...) [ou “enfática”] da distorção”. (BARTHES, 1976, p. 54-55).
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2
De agora em diante, as referências ao romance de Guimarães Rosa virão indicadas no texto somente pelo(s) número(s) de página na edição referida.
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3
O itálico é do autor.
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4
O leitor de Grande sertão: veredas vê-se colocado nesse (não) lugar do doutor, com quem Riobaldo pretensamente conversa.
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5
Na verdade, há, pelo menos, dois. O segundo é o pacto demoníaco, mas esse é um assunto para outra ocasião.
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6
Riobaldo busca respostas baseadas na lógica do isso ou aquilo, das delimitações rígidas. É o que afirma também num trecho muito citado do livro: “eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...” (p. 221). Riobaldo fica angustiado diante da mistura do mundo, que causa ambiguidade, indeterminação, pois gostaria de encontrar respostas unívocas, inequívocas para as questões que o preocupam. Entretanto, está sempre se deparando com o “sem preceito”: justamente o que não se enquadra em nenhuma categorização precisa e ao qual não se aplica nenhuma regra ou padrão estabelecido.
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7
E lembremo-nos que, àquela altura, ele sequer praticava essa violência, pois era somente o professor do chefe.
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8
Segundo o próprio Riobaldo, Otacília representava para ele a possibilidade de uma vida tranquila e sem conflitos. Ele a associa a “um significado de paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras.” (p. 197).
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9
A certa altura, afirma Riobaldo: “Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.” (p. 229) O narrador de Grande sertão: veredas, agora velho e retirado da vida aventureira, está de “range rede”, e “se inventou nesse gosto de especular ideia” (p. 10) em busca de compreender a experiência vivida - e entre suas grandes questões, obviamente, inclui-se Diadorim - e espera, para isso, a ajuda do doutor, com sua “suma doutoração”. (p. 14)
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10
Os termos e limites desse relacionamento são determinados por Diadorim, como será discutido a seguir.
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11
Na casa de Nhorinhá, Riobaldo ouvira da mãe da moça, Ana Duzuza, que Medeiro Vaz pretendia atravessar o liso. Ao voltar para o convívio do bando, mente sobre o motivo de ter estado na casa de Nhorinhá e questiona Diadorim sobre o plano de Medeiro Vaz. Sobre a primeira parte da fala de Riobaldo, Diadorim silencia; mas reage violentamente quando o companheiro de jagunçagem lhe diz que soubera por Ana Duzuza do plano de Medeiro Vaz, e ameaça matá-la. Riobaldo, então, defende a mãe de Nhorinhá; e o texto prossegue dessa forma: “Diadorim me adivinhava: - ‘Já sei que você esteve com a moça filha dela...’ - ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.” (p. 37).
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12
Cf. nota 6.
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13
Tudo indica que se trate de uma paternidade reconhecida. Na primeira vez em que se encontra com Joca Ramiro, Riobaldo observa que o grande chefe dedica a Diadorim “um calor diferente de amizade. A quantia que ele gostava de Diadorim!” (p. 249). O jagunço Reinaldo era “querido e escolhido de Joca Ramiro”, embora ficasse “de longe, por ninguém se queixar, não acharem que ali havia afilhadagem” (p. 250). Muito provavelmente em função da afeição especial que seu filho dedicava a Riobaldo, Joca Ramiro acaba distinguindo esse último dando-lhe um rifle de presente.
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14
Pécora discutiu a questão pela primeira vez num texto de 1987 e depois a retomou no texto acima citado, de 2013.
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15
É o que Diadorim diz a Riobaldo por ocasião de seu primeiro encontro: “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” (p. 109). Na mesma ocasião, ele disse a Riobaldo que não tinha mãe.
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16
Diadorim-Menino também diz isso a Riobaldo quando percebe o medo do companheiro durante o passeio de barco. Trava-se, entre eles, o seguinte diálogo: “- ‘Que é que a gente sente, quando se tem medo?’ [...] - ‘Você nunca teve medo?’ - foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: - ‘Costumo não’... - e, passado o tempo dum meu suspiro: - ‘Meu pai disse que não se deve de ter...’” (p. 106).
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17
O que vemos de Diadorim através dos olhos de Riobaldo, é que, preso a um compromisso que não conhecemos, o enigmático personagem sentiria a dor, por exemplo, de desejar e ter a possibilidade de ter uma vida diferente e não poder. É o que sugere, por exemplo, a cena em que projeta o casamento futuro de Riobaldo e Otacília, já aqui comentada.
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18
Dessa forma apresentada, a imagem só suscita questões, tais como: quem seria essa moça? O que teria ocorrido com ela? O que isso teria a ver com o que Riobaldo vinha falando antes? Como ele falava da indisposição mútua entre Diadorim e Otacília, é possível supor que o cadáver da moça virgem estaria, de alguma forma, relacionado a uma ou a outro. Provavelmente a Diadorim, uma vez que o ex-jagunço termina o parágrafo mencionando seu amigo-amor. Não é, entretanto, possível ir muito além dessas hipóteses nesse momento.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
29 Jun 2021 -
Aceito
16 Nov 2021