Resumo
O presente artigo tem por objetivo investigar sentidos possíveis para o deserto no romance Os detetives selvagens (1998), de Roberto Bolaño. Partindo de um olhar direcionado à exegese do deserto enquanto paisagem natural e imagem retórica concomitantemente, procura-se entender o papel latente que esse espaço tem na jornada utópica empregada por Ulises Lima e Arturo Belano em busca da poeta Cesárea Tinajero. Com isso, é possível aferir uma crítica à modernidade na obra de Bolaño pautada por uma representação do paradoxal cenário cultural latino-americano.
Palavras-chave: Roberto Bolaño; Os detetives selvagens; deserto; utopia
Abstract
This article aims to investigate possible meanings of the desert in the novel The Savage Detectives (1998) by Roberto Bolaño. Starting from a look directed at the exegesis of the desert as both a natural landscape and a rhetorical image, we seek to understand the latent role that this space has in the utopian journey undertaken by Ulises Lima and Arturo Belano in search of the poet Cesárea Tinajero. From this, it is possible to assess a critique of modernity in Bolaño's work based on a representation of the paradoxical Latin American cultural scenario.
Keywords: Roberto Bolaño; The Savage Detectives; desert; utopia
Resumen
Este artículo tiene como objetivo investigar posibles sentidos del desierto en la novela Los Detectives Salvajes (1998) de Roberto Bolaño. A partir de una mirada dirigida a la exégesis del desierto como paisaje natural e imagen retórica concomitantemente, buscamos comprender el papel latente que tiene este espacio en el viaje utópico emprendido por Ulises Lima y Arturo Belano en busca de la poeta Cesárea Tinajero. Con esto, es posible señalar una crítica a la modernidad en la obra de Bolaño a partir de una representación del paradójico escenario cultural latinoamericano.
Palabras clave: Roberto Bolaño; Los Detectives Salvajes; desierto; utopia
No ano de 1962 chega às telas dos cinemas ingleses e estadunidenses uma das experiências fílmicas mais impactantes que se registra na história do cinema de massa. A montagem, com quase quatro horas de takes nos desertos da Jordânia, do Marrocos e da Andaluzia rendeu ao já consagrado diretor David Lean e a Columbia Pictures a hegemonia nas conquistas das principais categorias do BAFTA, do Oscar e de diversas outras premiações de prestígio pelo épico drama de guerra Lawrence of Arabia. Ainda que sua longa duração fosse um obstáculo para a comercialização da película, suas gravações em planos abertos das paisagens áridas do Velho Mundo consolidaram imagens definitivas do deserto no imaginário popular do século XX, até então dominado pelos desertos de cactos, arbustos e cânions do Centro-Oeste estadunidense dos filmes de caubói. O filme trata das aventuras de guerra de um oficial inglês no deserto árabe, e, a despeito de críticas sobre a retratação de Lawrence no filme, o sucesso do longa revitalizou o interesse sobre a obra, a qual foi baseada no livro escrito por T. E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom, que já era considerado um clássico da literatura britânica.1 A obra, popularizada como um relato autobiográfico de Lawrence a partir de sua experiência como oficial britânico na Revolta Árabe de 1916, “narrativa pessoal extraída de memória”, nas palavras do autor (Lawrence, 2015, p. 8), descreve com contundência em seus capítulos finais um processo de perda do senso de individualidade e de fragmentação do Eu, conforme expõe o trecho a seguir:
Agora, sentia-me como que dividindo-me em partes. Havia alguém, em mim, que continuava a marchar prudentemente, poupando ou auxiliando cada passo do camelo cansado. Havia outro alguém, outro “eu”, pairando por cima e para a direita, curiosamente curvado, e que perguntava pelo que a carne estava fazendo. A carne não dava resposta, pois, de fato, ela só tinha consciência do impulso normativo para se manter de pé; mas havia um terceiro “eu”, tagarela, que conversava e se maravilhava, criticando o labor que o corpo infligia a si mesmo e reprovando a razão do esforço. (Lawrence, 2015, p. 558).
Segundo nos indica o teólogo David Jasper no capítulo dedicado aos poetas e viajantes de seu livro The Sacred Desert, essa fragmentação, relatada de forma direta por Lawrence, pode ser verificada no livro pela comparação de afirmações de diferentes fragmentos. A partir das análises comparativas de trechos do texto, Jasper constata a existência de elaborações discursivas que se contradizem (Jasper, 2004, p. 79). Ao que essa contradição textual poderia ser entendida como um ponto de incoerência na obra, o teórico britânico opta por reivindicar um caráter múltiplo do conceito de verdade: “In the end, The Seven Pillars is indeed a narrative on many different levels, a story told of which there is not just one truth but appearance and reality, both of them in their way truthful” (Jasper, 2004, p. 79). E no que segue discorrendo sobre essa ideia, ele afirma ainda mais categoricamente a possibilidade de uma sobreposição entre verdade e ficção:
Both of these are true, the story embracing all, and both are also fictions, mere words, and yet they are magnificent. Lawrence revised and rewrote his text, often as many as nine or ten times, and, paradoxically, as the writing is refined so it becomes closer to the sand of the desert; the more literary so the more real, and the “story” becomes “true” (Jasper, 2004, p. 79, grifo nosso).
Recorrendo, portanto, a (já não mais paradoxal) aproximação entre verdade e ficção, David Jasper enxerga no clássico livro de T. E. Lawrence algo que diz respeito aos debates sobre autoficção, psicanálise e memória: reforça a existência de pontos de convergência entre o que é ficcional e o que é fato vivido, que destronam a Verdade de seu caráter absoluto e abrem espaço para o perspectivismo, que existe tanto em uma relação de alteridade (Eu - Outro), quanto do Eu para si mesmo, sendo este Eu também uma expressão da Verdade, que se mostra uma construção fragmentária (“Eu é um outro”, versa Rimbaud). Todavia, nesse caso, Lawrence não lança mão de uma narrativa modernista por deliberadamente articular esses aspectos da experiência dentro de sua literatura: o que parece interessante é que isso parece vir à tona como desdobramento involuntário da experiência do deserto. Não à toa, David Jasper relaciona a ficcionalização da história de Seven Pillars of Wisdom (que a torna “mais real”) com se aproximar da areia do deserto.
No que se trata de ficcionalização da própria vida, o escritor Roberto Bolaño deu ao mundo literário uma contribuição que se agiganta cada vez mais desde o lançamento de Los detectives salvajes, em 1998, com o refinamento da crítica sobre sua obra até então. O livro mais consagrado do autor chileno narra as aventuras de uma geração de literatos no México dos anos 1970 e posteriormente na Europa das décadas subsequentes, em uma narrativa dividida no diário de García Madero, jovem aspirante a escritor que se junta ao grupo conhecido como real-visceralistas, e nos relatos de múltiplos personagens que se conectam pela recordação de episódios com a presença (rastros) de Ulises Lima e Arturo Belano, dois jovens poetas fundadores do movimento autodenominado real visceralismo e que, no meio da década de 1970, saíram em busca da poeta desaparecida Cesárea Tinajero junto com Madero. Se algumas conexões da narrativa apresentada no livro já podem ser traçadas de forma geral com alguns fatos conhecidos da vida de Bolaño,2 até então se carece de uma biografia oficial do autor que permita atestar com qual precisão o que é vivido por seu personagem Arturo Belano é retirado da vida de Bolaño e, a partir disso, investigar para que direções Bolaño molda os braços ficcionais de sua obra.
Ainda que o autor admita que Belano era uma representação de si mesmo, como a personagem de Ulises Lima era de seu amigo Mario Santiago Papasquiaro,3 ele também não deixou de registrar em depoimentos informações contraditórias sobre a própria vida (Maristain, 2014). Como exemplo temos o caso de sua prisão e fuga do Chile no ano do golpe militar do país. Sabe-se que isso aconteceu, mas os detalhes se embaralham pela comparação dos diferentes depoimentos do escritor e, ainda, da retratação desse episódio em seus livros. É como se ele intencionalmente buscasse estender as margens do real na ficção de Los detectives salvajes para além do livro em si.4
Bolaño pretende, portanto, evocar na busca pelos fatos uma impossibilidade de precisão total. Essa impossibilidade se dá por conta da natureza da memória, que se reflete na linguagem em lapsos individuais de incerteza e na variação da percepção compartilhada sobre um mesmo fato, tanto por pessoas reais quanto por seus personagens. Esses fenômenos da memória se multiplicam, na medida em que se torna mais densa a complexidade de fatores e de relatos envolvidos.5 E, com isso, o autor faz da história da sua vida uma extensão da investigação que se emprega no livro: Arturo e Ulises buscam Cesárea Tinajero, alguém está à procura de Arturo e Ulises, o leitor busca todos: o leitor busca Bolaño. E conforme essa busca se refina, ganha diferentes níveis, ela então também “se aproxima das areias do deserto” em que o real se realiza no literário. Não parece, portanto, uma obra do acaso que Os detetives selvagens terminem sua jornada no “Deserto de Sonora”, última parte do livro. Mas para investigar esse fato de forma mais completa, precisamos também compreender outras implicações suscitadas pela representação do deserto na modernidade.
Adentrando o deserto
Na introdução de seu livro The desert in the modern literature, Aidan Tynan enfatiza que, mesmo para a geografia, a definição de deserto escapa de uma precisão absoluta, e que a concepção do mesmo passa por uma estetização da natureza que começa no Romantismo e que influencia a ecologia moderna de forma determinante (Tynan, 2020). A construção do arquétipo desse ambiente passa inevitavelmente pela sua construção retórica, afirma Tynan:
First, it is not at all obvious where the distinction between the real and rhetorically constructed desert lies. Even scientists have noted the problem of comprehensively determining what a ‘real’ desert is - as one scientific text puts it, ‘no single, conclusive ecological definition of the term “desert” has been accepted’. In any case, all places are, to one extent or another, rhetorical or semiotic constructions. (Tynan, 2020, p. 2).
Nesse sentido, Tynan explica que, com efeito da formação de uma consciência ambiental do Ocidente moderno, essa estetização da natureza ocorreu em oposição à modernidade industrial. Para tal, se imaginou um mundo que fosse desprovido de vida ou que a vida fosse reduzida à mera sobrevivência, como consequência da devastação provocada pelo mundo industrial ao consumir essa natureza estetizada (Tynan, 2020). Com isso, foi atribuído ao deserto uma carga negativa de desolação, sendo ele a imagem possível desse mundo arrasado, suas ruínas, em contraponto às imagens idealizadas do campo e da floresta, que remetem à fertilidade e abundância de um mundo ainda não tocado pelos males da modernidade. O deserto seria o ponto final do processo de aniquilação da vida.
Por outro lado, a paisagem desértica não deixou de conservar um caráter irredutivelmente dúbio. A flexibilidade que o deserto possui enquanto categoria estética é entendida enquanto efeito do potencial abstrato causado pelo seu vazio6. Esse vazio (emptiness) que é descrito na natureza fenomenológica do deserto, de algum modo se conecta com a complexidade interna do indivíduo em toda sua vastidão existencial. “A imensidão no deserto vivido repercute numa intensidade do ser íntimo” (Bachelard, 2008, p. 330), é o que nos aponta Bachelard no capítulo A imensidão íntima de sua obra A Poética do Espaço. Nele, o filósofo busca descrever, através da interpretação de determinados poemas, uma experiência de imensidão que ocorre no interior do ser, entendendo a imensidão como “uma ‘categoria’ da imaginação poética e não apenas uma idéia geral formada na contemplação de espaços grandiosos” (Bachelard, 2008, p. 326). A imensidão íntima bachelardiana, ainda que com essa sua autonomia indicada em relação ao espaço físico, não deixa de ter seu acesso possibilitado por efeito da percepção desse espaço imenso, ao que Bachelard escolhe exemplificar especificamente através da imagem vazia do deserto, compreendendo uma relação entre a vastidão espacial do mundo e a vastidão subjetiva do ser:
Para Diolé, “esses restos de montanhas, essas areias e esses rios mortos, essas pedras e esse sol causticante”, todo esse universo que está sob o signo do deserto é “anexado ao espaço interior”. Por essa anexação, a diversidade das imagens é unificada na profundeza “do espaço interior”. Fórmula decisiva para a demonstração que queremos fazer da correspondência da imensidão do espaço e da profundidade do “espaço interior”. (Bachelard, 2008, p. 330).
Essa conexão pode ser observada desde o início das religiões abraâmicas, em que o deserto era lugar de provações, jejum, isolamento e, simultaneamente, era o lugar mais propício a se romper barreiras terrenas e entrar em contato direto com Deus, onipotente, onipresente, onisciente: uma imensidão pura. O deserto leva as pessoas até (e além) dos seus limites físicos e espirituais (Jasper, 2004, p. 16). Na modernidade, se a desertificação pode ser encarada como uma consequência da devastação propagada pelo mundo industrialista globalizado com a escassez de recursos naturais, o aumento do desequilíbrio econômico e as mudanças climáticas incontornáveis causadas pela exploração e pelo consumo de combustíveis fósseis, ao indicar que esse mundo se faz ruína pela natureza autodestrutiva de seu sistema - e a subjetividade Ocidental frequentemente enxerga no deserto a imagem de sua própria ruína como pode-se constatar pela representação desse espaço no período Romântico7 enquanto lugar de confrontação com a morte e a finitude - essa imagem desértica também sinaliza para o fim de todas as coisas que configuram um cenário negativo, um afastamento do excesso de informações e imagens que caracteriza o mundo moderno e uma possibilidade de novo começo a partir do que se pode construir desse “vazio”. Além disso, nesse cenário árido, a única fronteira que se estabelece é o próprio horizonte, de modo que toda sua homogeneidade preserva um domínio particular que escapa à tendência de controle e demarcação espacial (e identitária) violenta dos nossos dias.
Em todo caso, ainda é hoje um caminho irreversível associar ao deserto a ideia de crise, e justamente por isso sua imagem permanece potente: vivemos em um mundo parido pela crise. Desde a crise moral anunciada por Nietzsche e que se sucede nas duas Guerras Mundiais às crises econômicas cíclicas que renovam a estrutura capitalista, e ainda o colonialismo e a situação terceiro-mundista que se forma a partir dele como crise perpétua de uma terra economicamente devastada, as crises identitárias individuais e coletivas que são consequência de todas essas outras crises e, em suma, a chamada crise da modernidade, ou mesmo a ideia da modernidade enquanto crise e busca por sentido8. Para tudo isso é possível encontrar narrativas que recorrem ao deserto enquanto alegoria e literalidade simultânea: o deserto pode ser a crise (material) do corpo, a fome, a pobreza, a violência, e ao mesmo tempo a crise (subjetiva) do espírito, a solidão, a loucura, o absurdo, a busca por sentido. Mas, afinal, que crise está em jogo nos “Detetives Selvagens” que nos conduz ao Deserto de Sonora? Que crise faz Belano e Lima empreenderem como resposta a busca por Cesárea Tinajero até Sonora? E antes, o que faz Cesárea decidir ir para Sonora?9
De todo modo, e não poderíamos deixar de estar aqui alicerçados na força do paradoxo, o deserto é também onde se procura a resposta para a crise. É a incerteza gerada pela crise que abre margem para uma possibilidade de resposta diferente daquela que condena a manutenção da crise em si (abre margem para uma crise da crise: para uma crítica). E é isso que buscam os personagens de Bolaño10. É no vazio do deserto, alheio às imagens já contaminadas com o pessimismo moderno que se pode imaginar e extrair ainda o desejo pela utopia.
Utopia
Em uma parte dos “Detetives Selvagens” é possível encontrar emergindo dos relatos uma atmosfera de esperança utópica, um stimmung, ou seja, uma ambiência carregada com vontades radicais. Principalmente, naqueles relatos que se encontram ainda na década de 1970 no México, em contraponto aos relatos de meados dos anos 1980 e nos anos 1990 na Europa, em que esses anseios parecem não estar tão presentes na mente dos personagens. Isso se deve em partes à mudança de contextos que ocorre nesse recorte temporal. No final dos anos 1960 temos o espírito utópico vibrando com os desdobramentos do Maio de 68 e adentrando a década de 1970 e, já em outro momento, no final dos 1980, temos a dissolução dos resquícios desse espírito com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Também se deve ao fato de que, em paralelo, a geração retratada por Bolaño cresceu e, como padrão, parte dela estabilizou sua vida dentro de um panorama comum de classe média. Isso está indicado com clareza no relato de Ernesto García Grajales, no final (Capítulo 26) da segunda parte do livro:
Quase ninguém mais se lembra deles. Muitos já morreram. De outros não se sabe nada, desapareceram. Mas alguns continuam ativos. Jacinto Requena, por exemplo, agora faz crítica de cinema e cuida do cineclube de Pachuca. Devo a ele meu interesse por esse grupo. María Font vive no DF. Não se casou. Escreve, mas não publica. Ernesto San Epifanio morreu. Xóchitl García trabalha em revistas e suplementos dominicais da imprensa da capital. Acho que não escreve mais poesia. Rafael Barrios desapareceu nos Estados Unidos. Não sei se está vivo ou morto. Angélica Font publicou faz pouco seu segundo livro de poesia, um volume de não mais de trinta páginas, o livro não é mau, uma edição muito elegante. Pele Divina morreu. Pancho Rodríguez morreu. Emma Méndez se suicidou. Moctezuma Rodríguez anda metido em política. Dizem que Felipe Müller continua em Barcelona, está casado e tem um filho, parece que é feliz, de vez em quando os amigos daqui publicam algum poema dele. Ulises Lima continua morando no DF. (Bolaño, 2006, p. 563).
Em outras palavras, o fim da juventude representa o fim da utopia real-visceralista de implodir as dinâmicas sociais enrijecidas da literatura mexicana. As utopias cedem espaço maior aos sonhos individuais que se apegam cada vez mais a uma realidade palpável conforme se desgasta o ímpeto juvenil de mudar a realidade como um todo. As lutas para sobreviver na sociedade mexicana que estavam ali desde o início passaram a exigir centralidade em relação às lutas para alterar a literatura que ganharam força em um momento coletivo específico. Isso fica claro em passagens como a fala a seguir do personagem Jacinto Requena: “Quando foram para Sonora, intuí que o grupo estava em vias de desaparecer. É como se a brincadeira houvesse perdido a graça. Não me pareceu má ideia. Meu filho estava a ponto de nascer, e eu havia conseguido, por fim, um trampo” (Bolaño, 2006, p. 190).
Contudo, antes que esse momento chegue, quando os real-visceralistas ainda se reúnem no DF para gozar de uma vida em que se entende como parte do fazer literário experienciar uma conduta boêmia desregrada, o anseio de uma mudança radical está no cotidiano do núcleo em torno de Belano e Lima, como mostra o trecho a seguir: “Depois fomos todos jantar num café chinês e ficamos até as três da manhã andando e falando de literatura. Concordamos plenamente que é preciso mudar a poesia mexicana. Nossa situação é insustentável, entre o império de Octavio Paz e o império de Pablo Neruda” (Bolaño, 2006, p. 32). Esse anseio utópico real-visceralista só poderia estar mesmo nessa rotina do dia a dia, isto porque o visceralismo tem por base pôr na realidade da vida pública de cada um que ao grupo pertence, aquilo que se entende por um radicalismo necessário para tornar esse meio ele próprio uma construção utópica. Ainda que no fim essa premissa não seja totalmente consistente, por não haver realmente um entendimento consensual do que seria essa utopia da poesia mexicana, para além da destruição dos grupos esteticamente e ideologicamente organizados nas formas já consolidadas dentro desse microcosmos, a energia visceral do grupo se põe a agitar o cenário poético com o que seus esforços permitem. Eles seguem a premissa de Barthes que nos diz que “la marque de l’Utopie, c’est le quotidien” (Barthes, 2005, p. 23).
Isto é, o real-visceralismo não fixa uma ideia bem elaborada sobre sua prática e sobre o que pretende criar, mas faz sua presença ser sentida e cumpre o papel momentâneo de marginalidade incômoda dos intelectuais “civilizados”, que gozam dos privilégios e contatos reconhecidos naquela esfera11. Na verdade, buscam um lugar singular de marginalidade em relação a todos os grupos e essa fagulha de impertinência coletiva os distingue e ao mesmo tempo os torna parte de uma mesma geração:
(...) em todo caso os real-visceralistas não eram de nenhum dos dois bandos, nem estavam com os neopriístas nem com a alteridade, nem com os neo-stalinistas nem com os deliciosos, nem com os que viviam do erário público nem com os que viviam da universidade, nem com os que se vendiam nem com os que compravam, nem com os que seguiam a tradição nem com os que convertiam a ignorância em arrogância, nem com os brancos nem com os pretos, nem com os latino-americanistas nem com os cosmopolitas. (Bolaño, 2006, p. 363).
Esse trecho da fala de Sebastián Rosado apresenta o típico humor bolaniano ao levar ao extremo essa dialética da oposição. É nesse ato de humor através do exagero, da listagem desmedida de diferentes grupos que o autor simultaneamente (1) impõe ao discurso sua crítica a essa organização estrutural ideológica e identitária rígida na qual ele particularmente sempre se negou a participar12, (2) aponta para a variedade de grupos que compõem um mesmo cenário cultural e que na sua multiplicidade lhe conferem potência. Ao real-visceralismo de Lima e Belano cabe perfeitamente essa frase de Meschonnic: “Mesmo quando o sujeito se opõe ao social, ele é poeticamente, do começo ao fim, social” (2017, p. 43). Ou seja, como foi colocado acima, mesmo a oposição pressupõe uma dialética e, portanto, uma necessidade dos grupos aos quais se opõe, porque no fim se guarda interesse sobre eles. Em outros termos: é indispensável aos visceralistas haver Paz e Neruda e seus seguidores, todavia, há também a urgência de um abalo no ordenamento das posições dentro da constelação da poesia latino-americana e na aniquilação dos pontos beatificados e seguros daquele momento.
Para isso é preciso incluir nesse cenário algo que não estava ali. Para Belano e Ulises a resposta é Cesárea Tinajero. Talvez em certa medida haja por parte dos dois uma espécie de busca messiânica, fazer de carne e osso a ideia de salvação, algo que é incompatível com a postura que os mesmos adotam para com os grandes nomes da literatura latino-americana já citados. Mas essa incoerência não parece ser mesmo algo que acreditavam, Cesárea talvez fosse no olhar deles, como o próprio deserto, um vazio a ser preenchido com o significado que viria a convir pelo fim da busca. Se em algum momento esperavam encontrar uma salvadora era de uma forma menos cristã e talvez mais como um Clint Eastwood vagando sozinho pelo deserto, um cowboy certeiro e silencioso, uma pistoleira solitária da literatura.
Cesárea
A narrativa de Los detectives salvajes provoca no leitor de Bolaño uma sensação de incerteza quanto a possibilidade de determinar um motivo sólido pelo qual Cesárea tenha decidido dar rumo a sua vida em direção a Sonora. Parte da força dos relatos de Amadeo Salvatierra que o livro traz está na construção de uma Cesárea calorosa, mas de certa forma distante, uma Cesárea oculta, quieta, em uma rotação particular e que não se pode decifrar totalmente. Uma das passagens do romance que melhor exprimem esse caráter indecifrável de Cesárea é de quando Amadeo recorda o dia em que foi em um baile e terminou por aprender a dançar com Cesárea:
O salão de baile era uma tenda armada num terreno baldio lá para as bandas da Lagunilla. Antes de entrar disse a ela: sou seu acompanhante, Cesárea, mas não me obrigue a dançar, porque não sei nem me interessa aprender. Cesárea riu e não disse nada. Que sensação, rapazes, que acúmulo de emoções. Lembro das mesas, pequeninas, redondas, feitas de um metal levíssimo, como alumínio, mas era impossível que fossem de alumínio. A pista era um quadrado irregular erguido com grossas tábuas. A orquestra, um quinteto ou um sexteto que tocava do mesmo modo uma rancheira, uma polca ou um danzón. Pedi duas sodas, e, quando voltei à nossa mesa, Cesárea já não estava lá. Onde você se meteu?, pensei. Foi então que a vi. Onde vocês acham que ela estava? Sim, na pista, dançando sozinha, algo que hoje em dia é para lá de normal, nada do outro mundo, a civilização progride, mas naquela época era quase uma provocação. De modo que eu me vi ali com um dilema dos grandes, rapazes, disse a eles. E eles perguntaram: e o que você fez, Amadeo? E eu lhes disse ai, rapazes, o mesmo que vocês teriam feito no meu lugar, ora, fui para a pista e dancei. E você aprendeu a dançar na hora?, perguntaram. Olhem, a verdade é que aprendi, sim, foi como se a música houvesse me esperado a vida toda, vinte e seis anos de espera, como Penélope a Ulisses, não? E de repente todas as barreiras e todas as reservas se tornaram coisa do passado, eu me mexia, sorria, olhava para Cesárea, tão bonita, como aquela mulher dançava bem, era fácil perceber que estava acostumada a fazê-lo, se você fechasse os olhos ali na pista poderia imaginá-la dançando em casa, à saída do trabalho, enquanto preparava seu café de olla ou enquanto lia, mas eu não fechei os olhos, rapazes, eu olhava para Cesárea com os olhos bem abertos, eu sorria para ela, e ela também olhava para mim e sorria, os dois felizes da vida, tão felizes que por um momento me passou pela cabeça a idéia de lhe dar um beijo, mas na hora da verdade não me atrevi, afinal de contas já estávamos bem como estávamos, e eu não sou o apressadinho clássico. (Bolaño, 2006, p. 303).
Cesárea, na visão da memória de Salvatierra é claro (não podemos ignorar esse fator), não fala, apenas reage a sua fala, Cesárea age por impulso e se coloca a dançar, de forma autônoma, consigo mesma e depois com Amadeo, que ressalta a naturalidade de seus movimentos. O gesto dela ele intui ser parte de sua rotina, dançar sem propósito, a tautologia do gesto em Cesárea ganha um valor específico. O motivo da ida a Sonora não me parece ser mais rigoroso que o impulso de dançar sozinha. Seria um impulso evidente e ao mesmo tempo que só fica claro na mente inacessível da personagem. Há no texto de Bolaño uma possível dubiedade na relação da poeta com Encarnación Guzmán, uma amiga próxima, que ao se casar, segundo Amadeo Salvatierra, afetou negativamente Cesárea. Seria por ela recusar para si o laço matrimonial e ver seus amigos constituindo casamentos e uma vida ordinária que desprezava? Ou haveria uma possível atração de Tinajero por Guzmán? Bolaño põe sombras em qualquer brecha de certeza nesse caso.
Em sua última conversa com Salvatierra, Cesárea Tinajero demonstra firmeza em sua decisão de se mudar para Sonora. Cesárea parece sempre firme em suas ações, exceto por um estranho lapso em sua despedida:
Depois Cesárea parou como se de repente se lembrasse de algo muito importante e que havia esquecido, ficou quieta, olhou para o chão, ou talvez tenha olhado para os transeuntes daquela hora, mas sem os ver, franzindo o cenho, rapazes, disse a eles, depois olhou para mim, primeiro sem me ver, depois me vendo, sorriu e me disse adeus, Amadeo. (Bolaño, 2006, p. 475).
O que significa esse lapso? É algo além de um efeito enigmático de Bolaño? Mais sombras sobre a persona de Tinajero. Antes, nessa mesma conversa, em que Amadeo tenta convencer Cesárea a desistir do que para ele soa como uma loucura, ele apela ao senso de propósito dela e coloca como propósito das duas correntes de vanguarda divergentes sobre as quais os dois comentam, o estridentismo e o realismo visceral (e no fundo de todas as correntes de vanguarda) um mesmo objetivo:
(...) todos os mexicanos somos mais real-visceralistas do que estridentistas, mas e daí, o estridentismo e o realismo visceral são apenas duas máscaras para chegar aonde queremos chegar. E aonde queremos chegar?, ela perguntou. À modernidade, Cesárea, respondi, à porra da modernidade. (Bolaño, 2006, p. 474).
Se o objetivo é chegar à modernidade, Tinajero caminha em uma direção oposta. Ela se nega a caminhar para a construção de um grande projeto, enraíza sua vida no interior, no deserto, em que numa perspectiva de progresso histórico corresponde a um passado presentificado, como ruínas de uma civilização que não aconteceu. Atrela sua vida a esse destino no que soa como um gesto de apelo existencialista, sugere entender que há em qualquer lugar a possibilidade de congregar sentido a sua existência. Quando o ímpeto de partir vem, seu cisma com o mundo moderno a leva ao deserto, que é contraparte desse mundo: em Sonora, a pluralidade de signos da grande cidade e do meio literário dá lugar à simplicidade de uma vivência rural, que encara o vazio do deserto e que por isso permitiria talvez uma acepção nova da própria vida e da literatura no árido estado de Sonora.
Sonora
O modo como Bolaño descreve Sonora na terceira parte dos “Detetives Selvagens” é sucinto quanto à descrição de paisagens naturais.13 Ele nomeia muitos lugares e muitas rotas com acuidade e pontua a condição das estradas, geralmente quando se atenta à paisagem não traça um panorama geral, fala ligeiramente de alguns detalhes, ou descreve construções específicas dentro das pequenas cidades ou povoados. Isso talvez se deva ao fato de que Bolaño nunca esteve realmente no Norte do México e o conhece somente por sua escuta, sua leitura e consulta a mapas.14 Ao mesmo tempo, a concisão de descrições paisagísticas junto a uma narrativa econômica como um todo gera o efeito de deserto. A sensação de deserto está lá.
Pouca coisa é narrada além de atravessarem estradas e pararem em cidades, as conversas, de início, são distrações para ocupar o tempo. Há uma escassez de emoções que só se altera quando a busca começa a gerar cansaço e frustração e a tensão pelo possível fracasso da jornada parece atingir o estado de ânimo dos personagens. Me parece certo afirmar que é a parte mais silenciosa do livro, tanto em termos formais, pensando em frequência de diálogos e como são as falas, principalmente aquelas com os habitantes locais e nos sons efêmeros da estrada e do vento. Mas mais do que isso, em construções discursivas, em elaboração de cenários e detalhamento de imagens. A vida dos personagens está voltada para aquela busca que, cabe ressaltar, é também uma fuga, já que junto a Belaño, Ulises e García Madero está Lupe, garota de programa protegida do grupo, escapando do cafetão Alberto. E nessa fuga/busca, os personagens que acompanhamos vão se fundindo psicologicamente a Sonora no afetamento de sua percepção temporal pelo ritmo das cidades e povoados em um paradigma cultural diferente do DF (Cidade do México): “Quando voltávamos a Hermosillo, tive a sensação de não só já ter percorrido estas terras mas de ter nascido aqui” (Bolaño, 2006, p. 605).
Finalmente, o momento em que a busca é concluída é também o momento em que a fuga acaba. Arturo, Ulises, Garcia Madero e Lupe encontram Cesárea e são encontrados por Alberto e seu comparsa, há um confronto armado onde os dois perseguidores morrem pelas balas disparadas por Belano, mas também morre Cesárea, que com seu corpo imenso acaba protegendo Garcia e Lupe. Aí, temos um rompante de violência que nos lembra que esse espaço não dominado também abre margem para a brutalidade, é onde a morte pode acontecer mais livremente sem que haja um controle estatal sobre ela, sem que haja a camada de jurisprudência que muito provavelmente não a impediria nesse caso, mas poderia dar a ela o véu de alguma insignificante dignidade. Essa violência evidentemente tem origem na metrópole da Cidade do México, de onde partem os personagens de Los detectives salvajes e de onde toda questão envolvendo Lupe e Alberto se inicia, mas ela se consuma no espaço do deserto, sem a regulação de uma lei que observe esses fatos. Nesse caso o vazio do deserto é um espaço do Estado ausente. Conforme indicado pelo pesquisador Javier Uriarte na introdução de seu livro The Desertmakers, para Deleuze e Guattari o Estado se constrói em relação a uma externalidade autoconstruída e que, ao mesmo tempo, esse mesmo Estado tenta internalizar (Uriarte, 2020, p. 27). É o que mostra o Capítulo 12 de Mil Platôs:
(...) o Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. A lei do Estado não é a do Tudo ou Nada (sociedades com Estado ou sociedades contra o Estado), mas a do interior e do exterior. O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente. (Deleuze; Guattari, 2011, p. 445).
Sonora faz parte do Estado mexicano, ao mesmo tempo que sua realidade mostra que ele não está realmente presente, na medida em que o crime acontece e a vida daqueles que o cometeram e o testemunharam continua sem que haja uma intervenção legal determinando a justiça que deve ser feita nesse caso e os próprios atores da situação decidam sobre o encaminhamento do ocorrido na medida em que nenhum estado regulador vai. O paradoxo nesse caso se aproxima ao que se percebe ao tratar-se do fenômeno do estado de exceção, em que a Gewalt (palavra alemã que pode ser traduzida como violência ou como poder) é manifestada a partir da suspensão do ordenamento jurídico por ele mesmo, segundo uma lógica situacional de impossibilidade de manutenção do direito e da justiça dentro do próprio regimento que deve fazê-lo. Aqui pode se pensar na crítica de Benjamin a polícia, por exemplo:
É verdade que a polícia é um poder para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização de ela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar decretos). A infâmia dessa instituição - sentida por poucos, por que raramente a competência da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis - consiste em que ali se encontra suspensa a separação entre poder instituinte e poder mantenedor do direito. Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder instituinte do direito - cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito - e um poder mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade, o “direito” da polícia é o ponto em que o estado - ou por impotência ou devido às interrelações imanentes a qualquer ordem judiciária - não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal ao longo de uma vida regulamentada por decretos. (Benjamin, 2011, p. 135-136).
A polícia transgride o estado de direito como um instrumento do Estado intervindo no limite em que esbarra a jurisprudência. A polícia não deixa de fazer parte do sistema jurídico, ainda que tenha legitimidade desse mesmo sistema para atuar em uma prática que vai além do que é previsto por ele15. No deserto de Sonora, a vivência dos reais-visceralistas é em si uma subversão da sua norma, que seria o projeto coletivo de busca por uma condição de modernidade artística que superasse o status quo do qual os visceralistas entendem que a literatura mexicana é refém. É uma subversão na medida em que ali ocorre uma vivência que não se ergue sob os valores de uma vida metropolitana que pauta a literatura enquanto um instrumento possível de sublevação ou manutenção cultural. Se em Sonora se busca encontrar a solução para o embate literário que ocorre na Cidade do México, ali também se encerra a pertinência do próprio debate que os leva àquele território, na medida em que ele não tem nenhum valor naquele espaço.
E por não ter nenhum valor, a literatura tem ali sua chance de redenção radical (na busca por Cesárea) que esbarra ao mesmo tempo na potencialização da violência que acaba por tornar Belano e Ulises assassinos. É ali que se encerra a juventude de Ulisses e Belano (ao menos em termos de utopia poético-vanguardista) quando se tornam assassinos para sobreviver e quando junto a imagem idealizada de Cesárea padece algo muito mais essencial, Cesárea ela mesma, em sua carne e seus ossos. Isto é: Belano e Lima encaram a morte da juventude como era, nas mortes que os convocam para uma realidade inevitável, que não pode ser mais tangenciada pelo sonho visceralista, ao mesmo tempo a vida deve ganhar então outra busca por sentido16. Dessa tragédia, fica a certeza de que essa condição visceral da existência, da vida mortal e física, não pode ser contida no sonho de uma utopia coletiva de um grupo específico que ignore a violência corporal da qual estão sujeitos aqueles que compõem a constelação social que os cerca. No deserto os caminhos são revistos.17
O vazio do deserto é produto de uma dialética que o contrapõe em relação a tudo aquilo que se coloque como espaço de produção de significados consolidados e centrais para a modernidade. Se a natureza verde é vista como espaço de manutenção das condições da vida humana no planeta, o deserto é o espaço que atesta imageticamente a escassez consequente da aniquilação dessas condições. Se as metrópoles são o ápice de tudo aquilo que se constitui enquanto característica da civilização moderna (alta densidade populacional e demográfica, desenvolvimento de aparato tecnológico avançado e em larga escala, consolidação dos Estados nacionais, sistema capitalista neoliberal), o deserto é a representação do fim dessa realidade (da escassez populacional, da ausência do Estado, da falta de um aparato tecnológico, etc.). Esse “vazio”, portanto, não pode ser pensado como absoluto. Ele representa não um vazio em si, mas um “espaço de exceção”, ao modo que se caracteriza o conceito de estado de exceção. Parafraseando Agamben, o deserto não seria nem interior nem exterior a cultura e o problema de sua definição diria respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam (Agamben, 2004, p. 39).
Como posição em que se encontram simbolizados tantos paradoxos - utopia e distopia, unidade e fragmentação, interioridade subjetiva e exterioridade espacial, crise e redenção, Estado e estado de exceção - talvez o deserto possa ser também como uma janela sem bordas, um espaço que instiga a enxergar algo além de si mesmo, do que ele enquadra, ainda que o que esteja enquadrado por ele seja sua própria totalidade (ver Figura 1). O que há detrás da janela (quando não há janela)? (Quando a janela é o próprio horizonte que se estende)?
Referências
- AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
- ARECO MORALES, Macarena Luz. Bolaño no íntimo o la novela de la intemperie. In: MORENO, Fernando (org.). Roberto Bolaño: La experiencia del abismo. Santiago: Ediciones Lastarria, 2011.
- BACHELARD, Gaston. A imensidão íntima. In: BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
- BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2005.
- BENJAMIN, Walter. Para a crítica da violência. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921) Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011.
- BOLAÑO, Roberto. Os Detetives Selvagens Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011. Volume único.
- DI PALMA, Vittoria. Wasteland: A History. New Haven; New York: Yale University Press, 2014.
- JASPER, David. The Sacred Desert Religion, Literature, Art, and Culture. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.
- LAWRENCE, Thomas Edward. Os sete pilares da sabedoria Tradução de C. Machado. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
- MARISTAIN, Mónica. Bolaño: a biography in conversation. Tradução de Kit Maude. Brooklyn: Melville House, 2014.
- MESCHONNIC, Henri. Modernidade, modernidade Tradução de Lucius Provase. São Paulo: Editora da USP, 2017.
- TYNAN, Aidan. The desert in modern literature and philosophy: Wasteland Aesthetics. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2020.
- URIARTE, Javier. The Desertmakers: Travel, War, and the State in Latin America. Nova York: Routledge, 2020.
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1
“Seven Pillars is a tale of war and adventure and a profound epitome of all that the Arabs mean to the world. It will take its place at once as an English classic. The richness and energy of the theme, the quality of the prose, the sense of the mystic, immeasurable personality lying behind it, raise the work at once and decisively above the level of contemporary productions. It ranks with Pilgrim’s Progress, Robinson Crusoe, and Gulliver’s Travels as a model of lucid, forcible, fascinating narrative.” (Churchill, Winston. An English Classic, The Daily Mail, Londres, 29 de julho de 1935).
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2
São exemplos de fatos da vida de Bolaño que estão ficcionalizados na narrativa dos Detetives Selvagens: a volta ao Chile quando é deflagrada a Ditadura Militar, sua prisão e sua fuga de volta ao México, a divisão das fases da vida, passando a juventude no México e posteriormente indo para Barcelona.
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3
Luis Felipe Fabre: “‘I think that Ulises Lima is Mario Santiago and he isn’t,’ said Fabre, who discovered the poet after reading The Savage Detectives, ‘because that’s what happens with Roberto’s novel: he makes a reference to his life or anything else, and we readers become detectives’” (Maristain, 2014, p. 204).
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4
E aqui compreende-se “margens do real” em um sentido perspectivista: Bolaño quer registrar fatos prismados por múltiplas visões, de modo a se tornar parte de sua obra e ao mesmo tempo detonar a possibilidade de coerência de qualquer relato, seja narrativo ou não, uma vez que esses relatos, estando intertextualmente ou interdiscursivamente conectados, vão sempre dar margem para constatações contraditórias sobre as minúcias de um mesmo acontecimento que se interpõem.
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5
Parece-me importante ressaltar que na lista de seus livros favoritos requerida para uma edição da Playboy Mexico em 2002, Bolaño coloca em décimo segundo lugar o “Tractatus Logico Philosophicus” (Maristain, 2014, p. 94). Talvez seja pertinente que seja escrita em algum momento uma análise de Los detectives salvajes ou de outra obra de Bolaño sob a ótica da filosofia da linguagem de Wittgenstein.
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6
“The emptiness that is the core characteristic of the wasteland is also what gives the term its malleability, its potential for abstraction” (Di Palma, 2014, p. 3).
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7
É o que nos aponta Tynan: “Underwriting Romantic conceptions of nature as refuge, as aesthetically distanced object of a contemplative consumption, is a vision of ruin and waste. The consumption of nature cannot be separated from the by-products of this consumption. Nature as refuge is a correlate of nature consumed, used-up and exhausted. With Romanticism, then, the desert and wasteland begin to take on a new aesthetic resonance. No longer do they relate to the moral degeneracy of the uncultivated wilderness - as they did for the land improvers of the seventeenth and eighteenth centuries - but to a new set of values located precariously on the shifting boundaries between the cultural and the natural” (Tynan, 2020, p. 37-38).
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8
“Não há sentido único da modernidade, porque a modernidade é, ela mesma, uma busca de sentido” (Meschonnic, 2017, p. 51).
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As perguntas são meramente um instrumento retórico para a construção do texto nesse caso, sabemos que no fundo a razão de todas essas crises é uma mesma crise, de modo que estas podem ser separadas em camadas diferentes, mas nunca deixam efetivamente de se conectar. A crise que está posta no livro e que é parte do que torna Los detectives salvajes grandioso e que faz Ulises Lima acelerar o Ford Impala de Quim Font pelo deserto são todas essas crises.
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10
“(...) los personajes de Bolaño dejan su casa, su familia, sus países, sus ciudades, sus amigos, para internarse en lo no-familiar, en lo anti-íntimo, en lo incierto” (Areco Morales, 2011, p. 56).
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Mas até nisso, o grupo não adquire um direcionamento concreto. Podemos observar um relacionamento positivo entre reais-visceralistas e poetas que são colocados como de outros grupos, o livro entrega que a realidade é dividida com menos rigor do que se gostaria que parecesse: “e bem quando Pele Divina dizia ‘o bando de Octavio Paz’, sua mão subiu do meu ombro à minha nuca, pois eu era sem dúvida nenhuma um dos que era do bando de Octavio Paz, se bem que o panorama fosse mais matizado” (Bolaño, 2006, p. 362).
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Mesmo porque o próprio real-visceralismo (que na vida real se chamava infrarrealismo) era uma identidade como uma autodeterminação vaga e que partia de pressupostos bastante individuais.
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13
Listei as seguintes passagens: “Quando saímos o céu era de um azul profundo, como poucas vezes vi (...)” (Bolaño, 2006, p. 580, grifo nosso); “Dos lados da estrada, às vezes víamos se erguer uma pitaia, nopais e urumbebas no meio da reverberação do meio-dia” (Bolaño, 2006, p. 581, grifo nosso); “(...) demos voltas e mais voltas por paragens que às vezes pareciam lunares e que às vezes exibiam pequenos trechos verdes, mas que eram sempre desoladas” (Bolaño, 2006, p. 592, grifo nosso); “O céu de Hermosillo é vermelho-sangue” (Bolaño, 2006, p. 605, grifo nosso); “(...) olhando a estrada, os poucos carros que de vez em quando passavam, as nuvens branquíssimas que o vento arrastava do Pacífico” (Bolaño, 2006, p. 607, grifo nosso); “Às vezes nos perdemos por morros pelados. Às vezes o caminho corre por entre pirambeiras e penhascos, e logo descemos de novo para o deserto” (Bolaño, 2006, p. 614, grifo nosso). Interessante notar como metade dessas descrições se refere ao céu, que no seu caráter plano o deserto agiganta e aproxima.
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14
“He had never been to the north of Mexico and yet was able to write—and even foretell—the hell of Ciudad Juárez, its story multiplied a hundred times over in so many other areas of poor, bloody Mexico.” (Maristain, 2014, p. 145).
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15
Agamben complementa: “Mas, na verdade, em que consiste a lacuna em questão? Será ela, realmente, algo como uma lacuna em sentido próprio? Ela não se refere, aqui, a uma carência no texto legislativo que deve ser reparada pelo juiz; refere-se, antes, a uma suspensão do ordenamento vigente para garantir-lhe a existência. Longe de responder a uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal” (Agamben, 2004, p. 48).
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16
Que mais tarde os levará para Europa, Israel e para África.
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17
Para García Madero restaria a companhia de Lupe e os cadernos de Cesárea. Como indicam seus últimos vestígios, escritos no diário dos dias 10 a 12 de fevereiro em que aparecem somente nomes de cidade, a trilha que parece fazer com Lupe é em direção ao mar do Golfo da Califórnia. Tracei uma rota incompleta, ela conecta Curcupe, a primeira sede municipal que García Madero cita na página 621, com Las Maravillas, a penúltima.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
14 Set 2023 -
Aceito
03 Out 2023