Resumos
O artigo apresenta os resultados parciais de pesquisa sobre Homicídios na Área Metropolitana de Brasília (AMB). O foco da análise são as representações sociais dos delegados de Polícia, promotores de justiça e magistrados. Se as representações sociais revelam, ainda que parcialmente, as práticas sociais, indaga-se: como os atores que integram diferentes organizações do sistema de justiça criminal descrevem suas funções? Como avaliam as condições de trabalho disponibilizadas? De que forma avaliam como são implantadas as políticas de segurança pública nas diferentes cidades que integram a Área Metropolitana de Brasília?
Justiça Criminal; Área Metropolitana de Brasília; elites; representações sociais
The article discusses the results of a research concerning murders committed in the metropolitan area of Brasilia, DF, the capital of Brazil. The analysis is focused on the social representations of Police chiefs, prosecutors and judges. Conceding that social representations indicate, at least in part, the social practices, the study inquired: how do the agents within the various organizations of the criminal justice system represent their duties? How do they evaluate their working conditions in the area? How do they evaluate the policies applied in the cities of Brasilia metropolitan area of Brasilia?
C riminal justice system; Brasilia metropolitan área; Elites; Social representations
Introdução
O debate, recorrente nos estudos da sociologia criminal, sobre as causas da criminalidade ou dos comportamentos ditos desviantes relaciona-se a fenômenos de grande complexidade, sobretudo dado seu caráter polissêmico e plural, o qual aponta, igualmente, para sua relatividade: o que se nomeia ou rotula como crime e desvio pode variar de sociedade para sociedade ou ainda segundo quem impõe as normas ou quem as faz cumprir (Becker, 1985). Nesse sentido, o crime é uma construção social e torna-se fundamental compreender os processos sociais que levam à criminalização, direcionada preferencialmente a um grupo de indivíduos mais do que a outros. Um processo que Misse propõe compreender a partir de quatro níveis analíticos interconectados: criminalização, criminação, incriminação, e sujeição criminal; este último representaria a forma como sãoselecionados preventivamente os supostos sujeitos que irão compor um tipo social, tipo esse socialmente considerado como 'propenso a cometer um crime' (Misse, 2008, p 14).
No Brasil, o campo de estudos na área de segurança pública não se restringiu aos enfoques criminológicos e passou por inquestionável expansão nos últimos anos. O interesse inicial, circunscrito ao paradigma da reação social, em iniciativas isoladas e fruto de nichos específicos e configurações acadêmicas, foi certamente expandido. Cada vez mais, a atuação das agências do sistema de justiça criminal vem se tornando objeto de atenção das ciências sociais. As acusações de desorganização e pouca efetividade ocupam espaço nos meios de comunicação. Multiplicam-se as narrativas de ineficiência, descontrole e conflitos entre os atores que integram organizações como a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário (Machado, 2014)1. As críticas às políticas de segurança pública não se resumem às dinâmicas organizacionais. A ausência e a deficiência de instrumentos de avaliação e enfrentamento da violência urbana são alvo de críticas das pesquisas recentes na área (Sapori, 2007).
Este artigo relaciona-se ao tema, na medida em que tem como objetivo apresentar alguns dos resultados da pesquisa sobre Homicídios na Área Metropolitana de Brasília (AMB), financiada pelo MJ - SENASP. Considerando a proximidade e o grau de dependência em relação ao Distrito Federal, a pesquisa concentrou-se nos oito municípios goianos mais dependentes do Distrito Federal: Águas Lindas de Goiás, Cidade Ocidental, Formosa, Luziânia, Novo Gama, Planaltina de Goiás, Santo Antônio do Descoberto e Valparaíso de Goiás. A pesquisa utilizou-se de diferentes técnicas de pesquisa, conforme fases previamente estabelecidas. O ponto de partida foi a análise georreferencial das mortes registradas no ano de 2010. Esta análise permitiu mapear a concentração dos homicídios nos bairros que compõem as referidas cidades da AMB. O relatório contrastou a realidade observada nas cidades da AMB com a estrutura de serviços públicos do Distrito Federal, o que evidenciou a carência de recursos humanos e materiais na área de segurança pública na AMB. Grande parte dos municípios conta com apenas uma Delegacia de Policial Civil ou CIOPS - Centro Integrado de Operações em Segurança. Luziânia é o único município com um Núcleo Regional da Polícia Técnico-Científica, que abrange também os municípios de Águas Lindas de Goiás, Cidade Ocidental, Novo Gama, Mimoso de Goiás, Santo Antônio do Descoberto e Valparaíso de Goiás (Costa et al., 2013).
De acordo com o relatório de pesquisa, os dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública de Goiás apontam que Valparaíso de Goiás, Luziânia e Águas Lindas de Goiás estão entre os municípios mais violentos do país. Ressalte-se que tais municípios contam com 54% da população da AMB e englobam 62,8% das mortes violentas. A AMB destaca-se nacionalmente pelo crescimento acentuado do número de homicídios. Entre 2000 e 2010, registrou-se elevação de 59,3% das taxas de homicídios. Destacam-se Valparaíso de Goiás (168%) e Águas Lindas de Goiás (137%) (Costa et al., 2013).
A partir desse marco, computadas as 565 mortes registradas, foi realizado o estudo do fluxo do sistema de justiça criminal em três cidades selecionadas: Luziânia, Cidade Ocidental e Águas Lindas de Goiás. Conforme destacado no relatório de pesquisa, no item dedicado à análise do fluxo dos homicídios identificados na área e ano base da pesquisa (AMB, 2010), evidenciou-se que 8,1% dos casos de homicídios foram denunciados pelo Ministério Público. Com base nos dados registrados e documentados no relatório de pesquisa, dirigiu-se o foco aos processos criminais instaurados em Águas Lindas de Goiás, Luziânia e Valparaíso de Goiás. Identificados 30 registros no TJGO, constatou-se que sete deles não haviam sido denunciados. Observou-se, ainda, que todas as sentenças proferidas nas cidades estudadas foram condenatórias (Costa et al., 2013). A pesquisa foi complementada com a avaliação da evolução sócio-urbana da Área Metropolitana de Brasília (AMB).
Finalmente, foram realizados grupos focais com atores (peritos, agentes de Polícia, Delegados de Polícia, promotores de Justiça e magistrados) que integram diferentes organizações do sistema de justiça criminal nas diferentes cidades que integram a região (Costa et al., 2013). O presente artigo limita-se à análise das representações sociais dos delegados de Polícia, promotores de justiça e magistrados, com base no material colhido nos grupos focais, realizados com os referidos profissionais, entre 2012 e 2013. Cada grupo contou com um número entre três e seis profissionais em cada uma das categorias. Se as representações sociais revelam, ainda que parcialmente, as práticas sociais, indaga-se: como os atores que integram diferentes organizações do sistema de justiça criminal descrevem suas funções? Como avaliam o fluxo do sistema de justiça? Como avaliam as condições de trabalho disponibilizadas? De que forma avaliam a implantação das políticas de segurança pública nas diferentes cidades que integram a AMB?
As representações sociais como categoria sociológica e dispositivo metodológico de análise
A Teoria das Representações Sociais - TRS - constitui-se em categoria/ dispositivo metodológico relevante para a análise sociológica. Pensar os saberes a partir da análise de representações sociais é produzir conhecimento que poderia ser classificado como de segundo grau, ou de 'segunda mão', não por ser menos relevante ou importante, mas por se viabilizar na medida em que se interroga a realidade através do que se pensa sobre ela. Exemplificando, ao invés de centrar a análise nos dados brutos produzidos em relação ao sistema da justiça criminal, torna-se relevante interrogar o(s) imaginário(s) que determinados segmentos sociais constroem sobre este fenômeno. Ou seja, a linguagem é privilegiada em sua condição de dispositivo analítico; os discursos e narrativas são priorizados como matéria prima da análise.
Trata-se de uma dinâmica que busca entender um dado fenômeno perguntando-se como segmentos da população alvo da análise 'explicam-no' produzindo 'teorias do senso comum', ou seja, representações sociais. Quando fenômenos sociais são capturados pelo viés das representações sociais, o que se coloca como conteúdo para a análise sociológica são os sentidos empíricos, formulados pelo senso comum, permeados por julgamentos de valor tais como sustentados pelos agentes sociais, levando o(a) pesquisador(a) a se interrogar sobre o conteúdo destes valores e sobre como estruturam e presidem a vida social. Assim, abordar a realidade pela análise das representações sociais dela elaboradas significa, em última análise, privilegiar a reinserção de crenças e valores na condição de dispositivos disponíveis à explicação sociológica. Em outras palavras, significa questionar o papel e o lugar da subjetividade na teoria, objetivando compreendê-la em sua relação com o requisito da objetividade, procedimentos demandados para a produção de conhecimento válido e relevante para a compreensão sociológica.
Em consonância com esta abordagem, valores e crenças constituem a matéria prima do fazer sociológico; tal pressuposto segue de perto a trilha weberiana, segundo a qual a objetividade do conhecimento nas ciências sociais vincula-se ao fato do empiricamente dado estar em permanente relação com 'ideias' de valor, o que recoloca valores e crenças no interior da explicação sociológica (Weber, 1986). Esses são analisados por intermédio das representações sociais e apreendidos em seu caráter (ou função) pragmático(a) de orientador(a) de condutas, procedimento por meio do qual se destaca o papel do ator e de sua agência na vida social.
Não se pretende aqui recuperar toda a trajetória da teoria das representações, a qual, nascida com Durkheim (1970, 1971, 1985), como Representações Coletivas foi re-trabalhada, re-visitada e sistematizada pela Psicologia Social, mais precisamente por Serge Moscovici que, ao se debruçar sobre a formulação durkheimiana foi também responsável pela construção da Teoria das Representações Sociais, TRS (1976). Para Moscovici, representar é edificar uma doutrina que facilite a tarefa de descobrir, de predizer ou de antecipar ações. Segundo Jodelet, Doise, Abrix, Farr, para mencionar apenas os mais conhecidos:
(...) a representação social é um corpo organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam a realidade física e social inteligível, se inserem em um grupo ou relação quotidiana de trocas e liberam os poderes de sua imaginação (Moscovici, 2012, p. 28).
Essa ideia de inteligibilidade está presente também em Jodelet (2001). A necessidade que, segundo esta autora, os indivíduos sentem com relação a se situarem no mundo e explicarem-no, ao mesmo tempo em que buscam se explicar nesse mundo, aponta para as representações sociais como a forma para concretizarem tal necessidade. E assinala que este conhecimento, ao se viabilizar na condição de orientador de condutas, tem sentido prático: contribui para criar a realidade da qual fala e sobre a qual se refere . A possibilidade de que representações sociais construam, reconstruam, orientem e informem condutas é a contribuição mais significativa que a TRS tem aportado à análise e à explicação sociológicas.
A apropriação que aqui se faz desta teoria embora guarde uma grande proximidade com a abordagem proposta pela psicologia social, dela também se distingue. Seu percurso empírico, 'utilitarista' em certo sentido, não tem como objetivo principal percorrer passo a passo o caminho daqueles que, na psicologia social, se dedicaram ao tema. Também não privilegia os aspectos propriamente cognitivos da formação e da constituição das representações sociais e de seus mecanismos de difusão. Nem se propõe a dissecar uma dada representação, distinguindo núcleo central e periferias. Sobretudo porque não intenta distinguir centro e periferia, pois trabalha a categoria como um todo plural. Antes, assume-se que representações sociais formam blocos de sentido articulados, sintonizados ou em oposição, e em competição com outros blocos de sentido, compondo uma teia ou rede de significações que permite ao analista avançar no conhecimento da realidade social analisada, por meio da compreensão de como tais blocos de sentido orientam condutas. Ou seja, a ênfase é sociológica e não psicológica, na medida em que persegue a forma como dadas representações sociais participam das relações e interações sociais e chegam, pragmaticamente, a manter ou transformar determinadas condutas. Tais ressalvas não significam desacordo ou crítica à teoria enquanto potencial explicativo, mas pontuam as diferenças entre o olhar sociológico e a ótica da psicologia. Ganha relevo e prioridade o caráter social do processo de construção das representações sociais face ao aspecto propriamente cognitivo das mesmas, como se pode deduzir dos pressupostos abaixo apresentados.
Ressalta-se, assim, a importância da Teoria de Representações Sociais para a sociologia: seu caráter (ou função) pragmático(a) de orientadora de condutas, não apenas individuais mas de grupos e de instituições públicas (a elaboração de políticas pode ser efeito de determinadas representações) ou privadas. Ou seja, da mesma forma como justificam e orientam práticas dos atores sociais, assim também, a depender de como são apropriadas pelas instâncias institucionais, representações sociais podem justificar e orientar políticas públicas. O que pode se constituir em instrumento relevante para compreensão, por exemplo, de políticas de segurança pública.
Com base nessas considerações, sugere-se que interrogar a realidade a partir do que se diz sobre ela, utilizando-se da categoria representações sociais, significa assumir, como pressupostos, que estas: a) são formulações que embora resultantes da experiência individual, (...) são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indivíduos que as produzem; b) expressam visões de mundo objetivando explicar e dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam; c) por sua condição de representação social, participam da constituição desses mesmos fenômenos; d) apresentam-se, em sua função prática, como máximas orientadoras de conduta; e) admitem a existência de uma conexão de sentido (relação de solidariedade) entre elas e os fenômenos dos quais se ocupam; não sendo, portanto, nem falsas nem verdadeiras mas a matéria prima do fazer sociológico. Sob tal perspectiva não se situam como ponto chegada, resultado da investigação, mas constituem-se em ponto de partida, a partir do qual o investigador inicia sua análise (Porto, 2010).
Da perspectiva aqui adotada, seria profícuo considerar que indivíduos e sociedade configuram uma relação de interdependência, dialeticamente conflituosa em alguns contextos, relativamente harmoniosa em outros e que o indivíduo, longe de ser um mero suporte de estruturas tem que ser tomado em sua condição de agente ou ator, capaz de fazer escolhas, tomar decisões, mesmo que de modo limitado (Giddens, 2003). Com Durkheim, autor que inicialmente trabalhou a noção de representações (coletivas) como categoria sociológica de análise e conhecimento da realidade, a dialética ou tensão dessa relação indivíduo/ sociedade, pode ser captada, por exemplo, pela distinção entre representações individuais e representações coletivas: as primeiras, vinculadas à experiência individual, seriam mais variáveis e incomunicáveis e as representações coletivas, produto da consciência coletiva, se afigurariam mais impessoais e resistentes à mudança, mesmo que não imutáveis (Durkheim, 1985).
Adota-se, aqui, a leitura que faz Moscovici (2001, 2003) para quem, em Durkheim, predomina uma grande homogeneidade nas/das representações coletivas, as quais, sem serem eternas são bastante permanentes. O realce dado à homogeneidade torna-se então um componente problemático se a análise pretende contemplar a pluralidade valorativa das sociedades contemporâneas. Muitas das dificuldades com as quais se confrontou o sociólogo francês tiveram origem na insistência na ideia da homogeneidade do conteúdo das representações coletivas, espécie de ênfase na noção de totalidade que persegue sua reflexão, sobretudo quando trata de consciência coletiva e de representações coletivas. A ideia de perseguição não é aqui uma força de expressão: seria possível admitir que a quase obsessão com a qual Durkheim reifica, por assim dizer, o social decorreria (paradoxalmente?) da percepção que teve o autor do surgimento e do crescimento do fenômeno da individualidade e de seus desdobramentos em termos da prevalência do que ele definiu como individualismo egoísta nas sociedades modernas. Paradoxos durkheimianos que abrem espaço para leituras menos deterministas- poderíamos quase dizer, menos durkheimianas- de sua proposta.
Ainda assim e apesar das brechas, o enfoque metodológico durkheimiano afasta-o das correntes orientadas para a sociologia compreensiva que, como ensina Weber (1991), priorizam o ator social em sua condição de único portador de sentido das máximas orientadoras das condutas que constituem a vida social. Tais máximas podem ser resultantes da elaboração de um único indivíduo - ou de um indivíduo único, diria Weber, - se portador de carisma. Mas podem ser - e são na maioria das vezes- originárias de instituições sociais, como igrejas, Estado, grupos, associações, que produzem, sob a forma de leis, convenções, usos, costumes, hábitos, os valores que consumimos e que dão sentido ao cotidiano das modernas sociedades (Weber, 1991, p. 9). As representações, de que fala Weber, constituem-se em valores, costumes ou normas jurídicas que o ator precisa levar em consideração. Não seria incongruente argumentar-se que, da perspectiva weberiana, as representações funcionariam como situação, condição, ambiente, para as ações sociais podendo facilitá-las, dificultá-las, inviabilizá-las, ou serem apenas um dado que o sujeito precisa levar em consideração no agir social. Além de também potencializarem a apreensão do caráter fragmentado do social, assim como a pluralidade e a relatividade dos conteúdos valorativos que demandam do ator escolha e seleção.
Pensando, pois, em termos da relação estrutura/ator, não parece de todo incongruente afirmar que é no interior da construção teórica de Weber, mais do que na de Durkheim, que abordagens analíticas centradas em representações sociais poderiam ser mais confortavelmente inseridas, já que a perspectiva analítica weberiana permitiria captar os sentidos que os atores (protagonistas ou vítimas de uma dada ação) atribuem a suas representações, sem desconsiderar o sistema (ambiente, contexto, situação, estruturas) no qual esses atores agem e interagem. Privilegiaria a subjetividade das representações sabendo, no entanto, que elas só se constroem em relação a um dado contexto ou ambiente objetivamente dado.
Uma análise centrada nas representações sociais privilegia a contribuição substantiva que crenças, valores, ditados populares e ideologias, tomados nesta condição de representações, aportam ao conhecimento do social e descarta sua definição como algo irracional, ausente de vínculos lógicos com o real (Moscovici, 1994a; Moscovici, 1994b). Ao fazê-lo, reforça o pressuposto segundo o qual ação social e representação social são fenômenos solidários: as subjetividades presentes nas representações sociais interferem, direta ou indiretamente, nos processos de organização das ações e relações sociais, ou seja, nos espaços nos quais o social se produz e se reproduz como espaço de interação. Afirma-se a relevância de centrar o foco da compreensão nos indivíduos, sem desconhecer que eles não pairam no ar: movem-se e movem suas práticas sociais em contextos específicos (Porto, 2010). Não sendo, pois, racionais ou irracionais, representações sociais são existenciais, ontológicas, respondem por uma lógica e uma racionalidade que as constituem em objeto do conhecimento a serem, portanto, submetidas, enquanto objeto da análise sociológica, ao crivo da ciência. Sua racionalidade é de natureza totalmente distinta do científico. Analisar as relações entre o fenômeno e suas representações não significa considerar que as últimas sejam sinônimo de real e sim assumi-las como um dado de realidade que precisa ser submetido à análise científica como condição de produção de um conhecimento pertinente.
Uma última informação é relevante para a escolha metodológica da TRS. No trabalho de coleta de informações desta pesquisa, os dados coletados originam-se de distintas modalidades, incluindo, entrevistas, questionários, grupos focais, além de pesquisa documental, recursos e técnicas bem próximas às escolhas feitas por Moscovici (2012), quando apresenta sua opção sobre a coleta de dados em sua pesquisa seminal sobre a psicanálise:
a enquete que concerne à população de indivíduos e a análise de conteúdo sobre a 'população' de documentos são as técnicas atuais mais adequadas ao exame científico das representações sociais e ideológicas. Essas técnicas são suficientemente simples e muito flexíveis para fornecer resultados válidos sobre os pontos particulares que nos interessam (Moscovici, 2012, p. 31).
No contexto desta pesquisa, grupos focais desempenham a função de enquete junto à população pesquisada: das discussões nos grupos é possível extrair-se conteúdo rico de sentido e significações sobre as representações que os atores se fazem sobre o Sistema de Justiça Criminal.
Imagens e representações sociais sobre a investigação policial, a persecução penal e o julgamento dos homicídios na região metropolitana de Brasília2
Os homicídios no discurso dos delegados de polícia: Investigação policial e sistema de justiça
Várias categorias conduziram a investigação sobre as representações sociais dos delegados. Duas, no entanto, revelaram-se centrais para a compreensão de como estes atores, informados por suas representações, constroem suas rotinas e práticas de trabalho; a primeira diz respeito ao sentido da vida e da morte: como eles os percebem e correlacionam aos atores sociais com os quais interagem na profissão. A segunda, desdobramento desta, é o preconceito que informa as leituras referentes ao porque de certos comportamentos. Medo, condições de trabalho e interação entre os setores da segurança pública são categorias também relevantes para a compreensão das representações e práticas de delegados participantes da pesquisa.
No grupo focal realizado com três delegados lotados em diferentes delegacias de cidades que compõem a AMB, uma delegada e dois delegados, os relatos deixam transparecer a banalidade da violência na região do entorno. Não são raros os ajustes de contas pelo não pagamento de drogas ou disputas pelo ponto. Mas não se limitam a isso. As mortes em bares, decorrentes de brigas corriqueiras, a vingança. Na imagem descrita pelos delegados, haveria uma espiral de assassinatos. O autor de homicídio, não raramente, teria sido vítima de anterior tentativa de homicídio. Relata a delegada: "O autor já tinha sido vítima, a testemunha tinha sido vítima, no inquérito todo mundo, em questão de uma ano, já tinha morrido... em um ano todo mundo morreu" (Delegada 1).
As representações sociais sobre as populações locais surgem repletas de estereótipos difundidos no senso comum: "(...) Santo Antônio, Novo Gama, Valparaízo, aqui mesmo, se você for analisar a raiz dessas pessoas é o retirante nordestino; o cara vem prá cá querendo ter uma melhora de vida, uma melhoria, e não vem sozinho, vem com a mulher, com cinco, seis filhos..." (Delegado 3). A precariedade da estrutura urbana, a falta de condições mínimas de saneamento, o desemprego. Os relatos não divergem entre si: "é uma questão de comportamento, de educação, a pessoa é, geralmente, é uma pessoa mais rude, mais rústica, e aí gera esse tipo de coisa. (...) tem uma coisa de faca...." (Delegado 3). Delegada 1: "Bem nordestino". Delegado 3: "Bem animal". As representações são de cidades invadidas por um "povo diferente, cheio de vícios. Os relatos prosseguem: "(...) vício de bebida, vício de droga, vício de mulher, aí dá problema. É sempre assim. Então, nesse ponto aí da discussão, da briga de bar que acontece com faca, peixeira..." (Delegado 3). Nessas distintas falas evidencia-se a necessidade de lançar mão sempre de um 'outro' a quem acusar, responsabilizar, transformar no indivíduo da sujeição criminal de que fala Misse (2008). São falas que situam, para distinguir, o eu e o outro, deixando a este último a acusação de violento, de comportamento animal, de não humanidade, atributos que, em última instância, acabam por objetificar os indivíduos.
Quando os homicídios envolvem o tráfico de drogas, as mortes ocorrem muitas vezes pela necessidade urgente de dinheiro. Nas imagens sobre a lógica das mortes violentas: matam para roubar e manter o negócio. A precariedade da educação e assistência social aos jovens também seria um elemento importante. Muitas crianças sozinhas, em casa, expostas e sem o cuidado necessário.
À exceção dos casos que envolvem brigas em bar ou violência doméstica, os demais casos de homicídio seriam de difícil solução. Predomina o medo em testemunhar. O programa de proteção à testemunha nem sempre seria de fácil acesso, e muitas vezes envolve sacrifícios grandes. Raramente haveria interesse. Mas o medo não seria o obstáculo mais importante no relato dos delegados. O grande obstáculo seria a ausência de recursos materiais e humanos para a investigação de todos os fatos. A investigação é complexa, demorada, o que demanda estratégias para gerenciar a escassez. Existem vários fatores que interferem nas rotinas das delegacias, os fatores políticos, pressões. Um dos delegados relata a pressão do Ministério Público para a atuação da Polícia: "(...) muito homicídio a gente investiga na delegacia por questão de cobrança do Ministério Público; às vezes tem que parar tudo, aquele monte de ofício cobrando (...)" (Delegado 3).
Os relatos sugerem que os grupos de extermínio, especialmente envolvendo policiais, não seriam comuns atualmente. Sugere-se que há algum tempo, a imagem era de que tanto a Polícia Civil quanto a Militar "matavam muito". Mas nos últimos dez anos, fruto de uma renovação importante, os procedimentos teriam melhorado. Os casos envolvendo a polícia seriam raros, ultimamente.
As perícias são avaliadas como fundamentais e que ajudariam a esclarecer a autoria dos fatos. As perícias conclusivas são elogiadas. Mas surgem também as críticas de que a estrutura seria precária. "Você não pode contar muito com a nossa Perícia, nós podemos contar com eles pra fazer o local do crime" (Delegado 2). Pouquíssimos casos seriam concluídos da forma ideal, como provas conclusivas, tanto técnicas quanto testemunhais. Tanto a prova técnica quanto a pericial seriam relevantes e complementares. Na prática, diante da deficiência da prova técnica, a prova testemunhal seria a predominante.
Na interação com os promotores de justiça, ressente-se pela cobrança do Ministério Público, e indiferença sobre as condições para conduzir um inquérito policial. As rotinas da investigação demandariam diferentes estratégias e o sigilo seria muito importante. um dos relatos aponta que nem sempre tudo pode ser "explicitado". As falas dos sujeitos da pesquisa guardam relações íntimas com a utilização do segredo (Simmel, 1991) como estratégia de concentração de poder. Ou com as relações entre saber e poder. Saber é poder, na forma descrita por Foucault (1993):
(...) estas relações de "poder-saber" não devem (então) ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder - saber e de suas transformações históricas (Foucault, 1993, p. 30).
Voltando à questão das interações, estas variam segundo relações pessoais. Nem sempre há compreensão das enormes dificuldades materiais e humanas da Polícia Civil. A estrutura material do Ministério Público seria muito superior, mas haveria pouco esforço para melhorar as condições da polícia. Além disso, poucos compreenderiam as questões envolvidas na investigação, que envolve expertise, e um saber especializado. As técnicas para obtenção de confissões nem sempre seriam bem compreendidas, muitas vezes paira a suspeita de tortura ou excesso por parte da polícia. Nem sempre a existência de uma promotoria especializada seria suficiente para uma maior interação. A exigência de rapidez e a expectativa de alguns promotores revelariam desconhecimento da complexidade da investigação.
O elevado volume de flagrantes por crimes diversos demandaria uma estrutura maior. Além disso, a delegacia supõe também o gerenciamento de pessoal, o que concorre com a direção da investigação. Muitos casos acabariam na fila, à espera. Os flagrantes por homicídios seriam raros. Para contornar as dificuldades geradas pelo medo das testemunhas uma solução seria um disque-denúncia que funcionasse de fato. Não relatam desconfiança ou animosidade da população, mas seriam poucas as ligações espontâneas para noticiar algum fato.
Os relatos remetem, também, à omissão do Estado e indiferença ao crescimento da região. O Estado deveria investir na Polícia Civil e na Polícia Técnica, não haveria outro caminho caso se pretenda uma mudança das condições de investigação e esclarecimento dos homicídios no Entorno, avaliam os delegados de Polícia. Além disso, a capacitação e o treinamento são considerados problemáticos. Os oferecidos concentram-se em Goiânia, o que praticamente inviabiliza a participação de agentes policiais, com salários por volta de R$ 2.900,00. Os estímulos para a capacitação seriam escassos e os sacrifícios enormes.
A investigação e a persecução penal nos inquéritos por homicídio: Discursos dos promotores de justiça
O pequeno número de denúncias em relação aos registros de mortes violentas na AMB (8,1%) é objeto de preocupação dos promotores de justiça participantes da pesquisa. A falta de condições de trabalho, a ausência de interação entre as agências envolvidas e o medo são algumas das categorias orientadoras da análise tanto dos promotores de justiça quanto dos magistrados (cuja análise segue no próximo item). Os discursos deixam transparecer representações sociais sobre acirradas disputa de poder entre os diferentes setores da segurança pública, com acusações mútuas entre os agentes. Incompetência e falta de disposição para o trabalho são também categorias que ressaltam das representações dos promotores de justiça.
Na realização deste grupo focal, participaram cinco promotores de justiça com atribuições, em regra não exclusivas, para os crimes dolosos contra a vida (homicídios, entre outros crimes). Entre os promotores lotados no tribunal do júri nas cidades que englobam a AMB, apenas um dos promotores vivia anteriormente em Brasília. Os demais promotores de justiça são originários de outros Estados. Morar em Brasília, que conta com um aeroporto conectado com outras capitais brasileiras é um dos atrativos para quem elege as cidades próximas como lotação para o desempenho das atribuições. O tempo de carreira varia entre 4 e 14 anos.
Na descrição das diferentes cidades da AMB, Águas Lindas aparece como passagem para muitos promotores de justiça. Não porque faria parte do "desejo organizacional". Ao contrário, a razão seria a falta de interesse pela lotação, sobrecarregada e com condições de trabalho inadequadas. Há anos atrás, a precariedade predominava em diversas cidades, havia demanda reprimida e praticamente atuava-se em processos com réus presos. Os magistrados acumulavam comarcas e apareciam normalmente para audiências em casos urgentes (réus presos). Na fala dos promotores a escassez de juízes ainda seria um problema importante. Algumas comarcas não teriam juízes titulares, o que implicaria sobrecarga de trabalho, com efeitos na prestação jurisdicional. O tribunal do júri não atrairia tantos magistrados, pelo desgaste do plenário e peculiaridade do procedimento. Na avaliação de alguns dos promotores de justiça, a cobrança do CNJ também implica em pressão sobre os magistrados para a realização de plenários de processos antigos, represados. Da mesma forma, o júri suporia determinadas habilidades para comunicação com o público e uma pressão constante, o que tornaria a promotoria pouco atrativa para muitos promotores. O perfil exigido para o procedimento seria para poucos. O trabalho é desgastante, tanto física quanto emocionalmente. Os embates não são raros com os advogados.
Nas falas dos promotores aparecem as dificuldades para o desempenho das atribuições. O controle externo, especialmente nas cidades em que a promotoria criminal acumula o júri (regra, à exceção de Luziânia), é precário pelo enorme volume de trabalho. Apenas eventualmente isso aconteceria, em casos que despertam mais a atenção. As delegacias muitas vezes permanecem durante meses com os inquéritos policiais, sem qualquer diligência ou solicitação de retorno para a continuidade das investigações.
As representações generalizadas sugerem que a investigação praticamente não existe. Além disso, a regra é a de que, se não há a prisão em flagrante ou a autoria não é desvendada logo após o crime, o inquérito não chega a lugar nenhum. A prova pericial é precária. Os peritos são insuficientes e acumulam o trabalho em uma área extensa com enorme demanda. Alguns exames devem ser realizados em Goiânia, com enormes atrasos. Mas a deficiência e escassez da prova técnica não é o único entrave. Muitos inquéritos são instruídos, inclusive flagrantes, apenas com os policiais militares que realizam a prisão do autor. Não são raros os inquéritos sem testemunhas presenciais, o que acaba enfraquecendo a prova na fase de instrução e dificultando a sustentação em plenário. O medo também seria uma das razões para a ausência das testemunhas. Não são raras aquelas que retratam em juízo, movidas muitas vezes pelo receio e falta de confiança na proteção do Estado.
As hipóteses para as dificuldades para o esclarecimento são variadas e coincidem entre os promotores. Normalmente os casos de homicídios envolvendo gangues, acertos de contas, são os de investigação mais complicada. Dificilmente chega-se à autoria. Não exatamente porque seria de esclarecimento impossível, mas normalmente envolvem acertos, vinganças, retaliações, situações envoltas em clima de medo e de receio. Em regra não aparecem as testemunhas, ainda que existam pistas sobre a autoria e desconfianças em razão de conflitos passados. Os antecedentes da vítima também são relevantes. A Polícia acabaria conferindo menor interesse no esclarecimento quando a vítima supostamente encontra-se envolvida no mundo do crime.
Nos relatos sobre a interação com os delegados de Polícia, um dos promotores sugere dificuldades, "há delegados que não querem trabalhar". Na prática depende-se muito da boa vontade dos profissionais. "Há agentes policiais comprometidos". O compromisso pessoal seria fundamental para a interação. Apesar de exceções, profissionais com boa vontade, a formação de delegados e agentes é objeto de críticas. Nas críticas generalizadas, o relato do promotor de justiça com experiência anterior em outras cidades da Região Metropolitana, na época lotado em Luziânia, destaca a experiência de uma unidade especializada em homicídios dentro da delegacia. A especialização melhora a qualidade do trabalho, e o empenho da equipe, embora insuficiente e muito aquém das necessidades, sugere que é possível mudar a precariedade da investigação.
A interação entre delegados de Polícia e agentes também é objeto de críticas. Nas representações das rotinas policiais, os promotores relatam que o agente, quem de fato faria a investigação, é desprestigiado, e o delegado assume os louros pelo trabalho. Os agentes, na representação de um dos promotores, sentem-se desprestigiados. Os relatórios do delegado em regra seriam indiferentes. Eventualmente ajudariam, em casos mais complexos. Mas nos casos mais simples a regra seria ignorá-los. Na prática, a má interação entre delegado e agente geraria práticas diferenciadas de atuação. Um dos relatos sugere que, em uma oportunidade o agente procurou diretamente o promotor para que fossem requisitadas diligências, diante da inércia ou recusa do delegado em dar andamento ao inquérito policial; ou seja, na disputa de poder entre agentes e delegados, os primeiros acabam boicotando os delegados ao se dirigirem diretamente ao MP. Os delegados seriam representados pelos agentes, nas falas de alguns dos promotores de justiça, como espécie de outsiders (Elias; Scotson, 1994):sentados na cadeira, não vão a campo e, ainda assim, levam os créditos da investigação.
Nos últimos anos, narram os sujeitos da pesquisa, a grande rotatividade de delegados, oriundos de outras localidades, assim como de promotores e juízes, contrasta com a existência de agentes lotados há muitos anos nas delegacias. E muitas vezes existem desconfianças mútuas. Eventos envolvendo abuso policial também não seriam investigados. Os grupos de extermínio não seriam comuns, mas de fato existiram, e são de difícil elucidação. Quando elucidado o fato, é de difícil condenação, prevalecendo o senso comum da região: "Matou bandido. O policial matou bandido porque a justiça não está fazendo nada" (Promotor de Justiça 4). Quando a vítima tem antecedentes criminais a representação recorrente seria de que "fez um favor à sociedade. O estereótipo é esse e a gente nota que o que está por trás da decisão do jurado é essa imagem do policial justiceiro, matou bandido" (Promotor de Justiça 5). São representações que, na prática, desumanizam os que são percebidos como criminosos. Na representação dos sujeitos da pesquisa, o criminoso, não o crime, passa ser o "objeto" a ser extirpado.
O medo generalizado faz com que o "disque denúncia" se torne em importante instrumento de contato da população com a Polícia. O que já teria gerado várias ações importantes, inclusive prisões em flagrante. Em geral, porém, dificilmente conseguem testemunhas. Esse único elemento indicado pela Polícia nem sempre é suficiente para o convencimento, e não raramente os juízes denegam medidas cautelares fundamentadas apenas no disque denúncia. Nas representações sobre as dificuldades para a realização das investigações, os promotores concordam que o sucesso também depende muitas vezes do envolvimento da família da vítima e da pressão direta sobre a Polícia. Diante da infinidade de outros casos, muitas vezes semelhantes, a pressão seria um fator importante para que determinados casos avancem. O Programa de Proteção à Testemunha também é de difícil implementação pelas dificuldades impostas às testemunhas. Geralmente as vítimas decidem participar, muitas vezes pela absoluta falta de opção. Ou porque desejam a responsabilização do autor.
Nos relatos sobre a discricionariedade na atuação diária, a Polícia seria ator discricionário por excelência, discricionariedade representada com sinal negativo e não como característica da função policial. Quando o fato é levado à delegacia, muitas vezes a resposta "isso não é crime" significa o encerramento do caso, sem qualquer registro. A falta de acesso dos promotores à base eletrônica de registro de ocorrências e inquéritos dificulta o controle do MP. Critica-se até mesmo a base de dados do INI, pouco confiável.
Os mutirões para realização de júris são criticados. Normalmente realizados em salas pequenas, onde os réus ficam próximos dos jurados. Sem as formalidades e garantias necessárias. Muitas vezes realizados por promotores de justiça e magistrados designados para os casos, sobrecarregados e sem o cuidado necessário. Transmite-se imagem negativa para vítimas ou familiares. A política, avaliam, pode ter razão sistêmica, meramente atuarial, que atende à determinação do CNJ, mas que não seria positiva para a justiça. A experiência com as forças tarefas para conclusão das investigações também merecem críticas. Concentram-se em fatos antigos, anteriores a 2007, conforme relato de um dos promotores que acompanhou as equipes enviadas. Muitas vezes há um enorme esforço e grande produção de documentos para o arquivamento dos casos, sacrificando casos mais recentes que ainda poderiam ser elucidados, e que demandariam esforço e qualidade técnica da investigação.
A percepção sobre as motivações dos homicídios também varia entre os promotores. Diferentemente dos delegados, admitem que grande parte dos júris envolve brigas em bar, violência doméstica ou homicídio entre pessoas conhecidas. Os casos envolvendo drogas seriam escassos. Não porque não existiriam. Ao contrário, como retratam os promotores, essa seria a realidade da polícia que estaria próxima da investigação. Mas seriam poucos os casos com autoria esclarecida, o que explicaria a diferença de avaliação sobre os fatos que são levados ao Judiciário.
A investigação criminal e o julgamento dos homicídios na AMB: Discursos dos magistrados
A magistratura do Estado de Goiás, ao contrário do que aconteceu com o Ministério Público, que se especializou em diversas áreas de atuação, ainda enfrenta dificuldades com a escassez de magistrados e servidores para as inúmeras competências criadas nos últimos anos. Na AMB, os magistrados desempenham funções diversas na área criminal, não apenas nos crimes dolosos contra a vida. Ao longo dos anos, em razão da expansão urbana e do crescimento populacional, foram criadas novas comarcas. Apesar disso, o volume crescente de trabalho faz com que a estrutura das varas não seja plenamente adequada para a prestação jurisdicional. Entre os magistrados criminais das cidades consultadas, as mulheres são titulares de 5 das 7 varas criminais. Em Luziânia, constatamos que a vara que acumula competência para os crimes dolosos contra a vida e execução penal encontra-se vaga há mais de um ano. Os relatos iniciais apontam o déficit de mais de 100 magistrados e a existência de 154 unidades à espera de lotação.
No grupo focal realizado com magistrados, participaram duas magistradas e um magistrado. A proximidade de Brasília foi um atrativo importante para a escolha de uma das cidades da Região Metropolitana. Uma das magistradas relata a dificuldade em se deslocar semanalmente para atender outra comarca, em razão da falta de magistrados.
Na descrição e avaliação da atuação em processos criminais por homicídios, uma das magistradas, com 21 anos de experiência na magistratura, esclarece que houve uma mudança importante. Com a falta de juízes, os processos acumulam, à espera de julgamento. O TJGO busca suprir a deficiência com a realização de mutirões, convocando juízes de outras comarcas. Mas resumem-se, em regra, aos réus presos, prioridade para atuação jurisdicional. Há alguns anos, relata a magistrada, predominavam os casos envolvendo brigas em bar, vingança. Atualmente seria diferente, "(...) chegam ali, e se tem três, quatro no grupo, os quatro morrem. Então não dá nem pra saber quem era o alvo. (...) ninguém quer testemunhar, não tem testemunha, porque na realidade se a pessoa testemunhar ela também vai morrer, então não tem testemunha. Então os inquéritos policiais estão acumulando os homicídios, sem autoria" (Juíza 1).
Entre os magistrados aparecem as críticas à investigação. As delegacias são precárias, e se limitam aos flagrantes. Raramente haveria um caso com linha de investigação para encontrar autoria. Grande parte dos flagrantes envolveriam roubo, tráfico de drogas e violência doméstica. Os flagrantes por homicídio seriam escassos. Acumulam-se os inquéritos, muitos e intermináveis. Entre os relatos, critica-se que alguns inquéritos retornam à delegacia para novas diligências e permanecem anos, sem retornar. Descreve a magistrada: "Eu solicitei que ligassem para a delegacia e consultassem o inquérito. O agente que atendeu disse que não sabia onde estava o inquérito, ou seja, o inquérito não teve andamento. Esses inquéritos que não tem andamento são os inquéritos que não tem autoria" (Juíza 2). Com o estabelecimento de metas pelo CNJ, nota-se mais empenho para a finalização, há força tarefa. Mas raramente chega-se à autoria. Nos últimos anos houve uma piora, avaliam. As condições materiais são péssimas, na avaliação dos magistrados. Falta material básico, impressoras, os carros sempre estão estragados. Um dos magistrados avalia o que é a Polícia Civil: "A Polícia em Goiás não existe mais, ela faz o flagrante e entrega ao Judiciário, somente isso" (Juiz 3).
As críticas não se restringem unicamente à Polícia Civil. As perícias seriam precárias. A estrutura é inadequada para o atendimento de uma área extensa. Faltaria estrutura material e humana para a realização de exames básicos. As críticas não se restringem apenas às perícias centralizadas em Luziânia. Formosa também IML e estrutura básica para perícia técnica. Mas atende até 30 municípios, toda a região nordeste de Goiás, com um perito responsável, o que é avaliado como praticamente inviável.
Os laudos que instruem os processos são básicos, normalmente informam o óbvio. Não raramente, ao final da instrução, na fase de pronúncia, os laudos ainda não foram enviados. Alguns júris são realizados sem os laudos, sequer o exame de corpo de delito em casos de tentativa ou outros exames básicos. Assim: "Desses 100 júris que eu fiz, se eu não me engano, um ou dois tinha laudo de local de crime, um ou dois, laudo de confronto balístico nenhum. É comum se fazer júri também sem sequer laudo cadavérico (...) (Juiz 3).
A Polícia Militar é representada como muito melhor que a Civil, os policiais são mais dedicados. Um dos magistrados relata que há anos atrás notava muitos casos de abuso por parte da PM. A magistrada com mais experiência relata também a mudança: "Eu peguei também essa parte que a Polícia Militar batia..." (Juíza 1). Os abusos já não seriam tão frequentes.
Ao menos um dos magistrados relata a existência de muitos flagrantes, inclusive por homicídio. Em grande parte fruto da atuação da Polícia Militar. Nos relatos sobre os motivos para os homicídios predominam as representações acerca da "banalidade da violência". "A gente sempre brinca que está relacionado a cachaça e mulher. Em regra tem álcool e droga. (...) Muita banalidade. (...) nós, pessoas de classe média, a gente tem valores relacionados ao nosso dia a dia, ao nosso convívio na nossa sociedade e que a gente tem que entender que não são os mesmos dessas pessoas (...)" (Juiz 3). Nas falas dos outros magistrados, a ausência do Estado é recorrente. A população cresceu muito, não há estrutura urbana, escolas, serviço público básico. As crianças crescem nas ruas. As narrativas associam as realidades locais a um universo distinto daquele a que revelam pertencer os sujeitos da pesquisa. Ao residir em Brasília e se deslocarem às cidades com graves problemas sociais e de segurança pública, os magistrados evidenciam estar inseridos em contexto social com o qual pouco se identificam.
Os juízes criticam a atuação do Ministério Público. Ressente-se que, apesar da melhor estrutura das promotorias, com mais condições materiais e humanas, muitas vezes não se notaria uma atuação proativa. Não deveriam admitir o descaso do Estado de Goiás com a segurança pública e especialmente com o sucateamento da Polícia Civil. A gravidade do caso demandaria uma ação institucional, avalia um dos magistrados: "Mas o MP tinha que atuar... a cúpula do MP acionando o MP para que ele estruturasse a Polícia, só que a gente sabe que não funciona assim. (...)" (Juiz 3). Questões políticas também estariam envolvidas: "(...) o procurador anterior é irmão do Demóstenes, que era colado ao Marconi (...)" (Juiz 3).
A dificuldade para apuração dos homicídios, na avaliação dos magistrados, decorre também da peculiaridade dos casos, muitos envolvendo drogas, brigas entre gangues. A Polícia muitas vezes sabe ou desconfia quem seja o autor, mas não existem testemunhas. As pessoas não se sentem seguras, o medo é generalizado. O programa de proteção às testemunhas é de difícil implementação. Poucas pessoas aceitam integrá-lo, pelas dificuldades que supõem para quem decide participar.
A baixa efetividade das investigações que geram ações penais (8,1%) nos casos de homicídios também é objeto de discussão entre os magistrados. Os juízes confrontam, por outro lado, o número elevado de condenações naqueles casos que são levados à justiça. Em outras palavras, a "banalidade da violência" é associada aos elevados índices de condenação. Na visão retratada pelo magistrado: "A gente sente que a sociedade também está cheia... às vezes em algumas situações que até você chega a ficar com uma pontinha de dúvida, você leva ao júri e a pessoa é condenada" (Juiz 3). Uma das magistradas, lotada em cidade com elevado nível de criminalidade, relata recentes absolvições, no que avalia como decorrente do medo dos jurados. A impunidade seria outro fator recorrente, avaliam os magistrados. A reincidência na prática de homicídios passou a ser tornar mais comum, o que contrasta com o passado recente, em que o homicídio era, em regra, um fato isolado na vida da pessoa.
As condições para execução da pena também são criticadas pelos magistrados. O descaso do Estado fez com que fosse interditado o estabelecimento prisional de Planaltina. As fugas eram constantes, e não raramente, réus condenados por crimes graves fugiam e se envolviam em novos crimes. A falta de estrutura para a progressão de regime de penas também é criticada. Na falta de estrutura adequada para os doentes mentais, acabam em presídio, sem o tratamento idealizado para as medidas de segurança.
Apesar das péssimas condições prisionais, os magistrados justificam a necessidade de penas severas, a impunidade é vista como incentivo ao crime. Nos relatos emerge a representação de que a ideia é "excluir o cidadão da sociedade". Um dos magistrados justifica a aplicação de penas duras, ainda que elas sejam reduzidas em grau recursal. Os relatos sugerem os argumentos para punições duras: "Também, porque a pena não tem só esse caráter ressocializador, ela tem que ter um caráter de punir aquela conduta pra quem convive naquela sociedade (...)" (Juiz 3), imagem que sugere revisitar Durkheim (1984) na construção do campo da sociologia do direito penal: "Mas se você tirar também as pessoas do convívio, pelo menos naquele período você sabe que ela não vai praticar crimes" (Juiza 2). A ausência de políticas públicas para o psicopata também gera padrões de decisão diferenciados. Um dos magistrados justifica que em casos como esses, tem-se a convicção de que o criminoso voltará a matar, sendo necessária uma pena mais dura para afastá-lo do convívio social.
Conclusões
Uma das questões centrais no debate contemporâneo sobre a atuação das organizações do sistema de justiça criminal relaciona-se às distintas racionalidades de organizações que vivenciam trajetórias específicas e processos internos de profissionalização (Machado, 2014). A compreensão dos contextos locais em que se observa o crescimento da violência remete a múltiplos fatores que não foram objeto desta pesquisa. As informações disponibilizadas pela SSP/GO evidenciam que a escalada do número de homicídios na última década coincide com o crescimento urbano desordenado das cidades que compõem a AMB.
Os relatos dos sujeitos da pesquisa evidenciam dificuldades e entraves para o desempenho das funções e a precariedade das condições para a atuação dos atores que participam da divisão do trabalho jurídico-penal. As narrativas de promotores de justiça, delegados de Polícia e magistrado permitem, por outro lado, avançar considerações sob o enfoque da TRS. Sob esta perspectiva e sem desconsiderar que tais entraves, gargalos e dificuldades existem e não são apenas produto de uma leitura equivocada dos atores acerca realidade e do contexto, convém problematizar tais narrativas em sua condição de representações sociais. Assim, importa retomar aqui o que já expusemos acima sobre a perspectiva de Moscovici, para quem é função das representações tornar familiar o não familiar, valeria a pena ressaltar que, para além do que aparece nos relatos, há uma gama do não dito: neste sentido, é relevante questionar o que está subtendido nas representações sociais que insistem sobre dificuldades e entraves dos atores para o desempenho de suas funções. As representações explicitadas nos depoimentos não se resumem, pois, apenas à falta de recursos, ausência de infraestrutura, de equipamentos, pessoal, insuficiência enfim de condições de trabalho, como afirmam os participantes dos grupos focais, mas trazem, subtendidos, não-ditos e quem sabe até interditos: algumas destas narrativas permitiriam pensar na típica situação daqueles que, visando a se entender e se situar em realidades e contextos novos, ou não familiares (sobretudo face ao que consideram o crescimento da violência e da criminalidade) acabam por inseri-los no estoque de conhecimentos de que dispõem, tornando-os familiares.
Neste estoque de conhecimento, o lugar comum, o familiar, remete ao 'nada funciona' que, ao fim e ao cabo, permite aos atores se justificarem pela impossibilidade de levarem adiante o trabalho. Os conteúdos destacados das representações sociais configuram dispositivos, ou mecanismos, que encobrem aspecto substantivo e fundamental, ou seja, o fato de que esta é a forma de funcionamento do sistema, conforme paradigma discutido por Vargas (2014). Em outra leitura, dificilmente podem ser pensadas todas as organizações envolvidas na investigação, persecução penal e julgamento como integrantes de um sistema, pois decorrem de trajetórias diferenciadas, seguem dinâmicas e racionalidades próprias (Machado, 2014).
O ponto sobre o qual vale a pena insistir é o de que nas representações dos agentes esta dinâmica, ou este caráter frouxamente articulado que, como mostram os estudos e pesquisas, é uma característica do funcionamento do sistema é representado como sinal e sinônimo de 'nada funciona' a partir do qual Garland (2008, p. 155) discute "a onda de desmoralização e a descrença que segundo ele minaram a credibilidade nas instituições-chave do controle do crime e, pelo menos por certo período, de todo o sistema de justiça criminal. E o mais perceptível é que, na disputa pelo monopólio dos procedimentos, os próprios agentes operadores são muitas vezes peças importantes destes processos de descrédito, que uma(s) instância(s) impõe(m) às outra(s).
O "nada funciona" é, ou poderia ser um 'encobrimento' cujo sentido pretenderia, ainda que inconscientemente, ofuscar o fato de que o controle sobre o crime e sobre o funcionamento do sistema existe de acordo com determinadas prerrogativas, interesses e estratégias. Em outra leitura, o nada funciona remete a algo que atua segundo "certos interesses". As representações das inoperâncias, expressas em vários depoimentos sugerem, de fato, uma tentativa dos atores para "explicar" o que seria a ineficácia do sistema. Porém, de fato, remetem a uma forma possível de articulação entre as várias instâncias que concorrem entre si e disputam o poder e o monopólio da expertise penal. Saber ler o "invisível" das representações sociais permite compreender o sentido das práticas, captar os distintos níveis de tensão que perpassam as interações e as ausências de interação, as tensões e os conflitos, explicitados ou apenas latentes, entre os diferentes atores que compõem o sistema de justiça criminal.
Referencias
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-
1
Pesquisas evidenciam também que a investigação e a persecução penal dos delitos exercem efeito discutível sobre a taxa de criminalidade (Costa, 2004, p. 47-49).
-
2
Reproduzimos neste item grande parte do nosso relatório, de acordo com a interpretação do material produzido pelos grupos focais, por nós coordenados (Costa, Soria Batista, Machado, Zackseski, Porto, 2013).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2015
Histórico
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Recebido
30 Jan 2015 -
Aceito
10 Abr 2015