Em seu primeiro número de 2018, Sociologias traz ao leitor o dossiê Sociologia dos intelectuais, organizado por Enio Passiani. Este tema é, pela primeira vez, apresentado na revista. Os artigos que o integram expressam, metodológica e epistemologicamente, algumas das principais questões em torno do nascimento e da trajetória do “intelectual moderno”, suas crises e transfigurações que sofreu a partir de uma série de transformações históricas. Destaca-se, nesse sentido, a presença e importância crescente da figura do intelectual não europeu, aquele que alguns autores intitulam como “intelectual periférico” - oriundo daquelas nações que foram colonizadas pelas “potências” europeias, particularmente alguns casos latino-americanos e africanos, a exemplo do horizonte que o dossiê abrange. Este tipo de intelectual, cujas características, disposições e posicionamentos (culturais, políticos, científicos, ideológicos e estéticos) conduzem a pensá-lo contemporaneamente a partir de outros parâmetros, parece indicar, inevitavelmente, uma reformulação das ciências sociais e suas formas de abordar o tema.
As variações no conceito e entendimento da palavra intelectual têm nitidamente conotações históricas particulares. Segundo Eco (2017), ela foi utilizada pela primeira vez em 1864 em Chevalier des touches, de Barbey d’Aurevilly, depois em 1879 por Maupassant, e em 1886 por Léon Bloy (Eco, 2017, p. 208). O organizador deste dossiê, em seu texto de apresentação, concordando com Umberto Eco dentre outros autores, reconhece que este termo passa a ser sistematicamente usado a partir do Caso Dreyfus, em 1898, quando um grupo de escritores, doravante denominado de “intelectuais”, integrado por Proust, Anatole France, Sorel, Monet, Renard, Durkheim e Zola (Eco, 2017; Passiani, nesta edição), declaram-se convictos de que Dreyfus havia sido vítima de uma conspiração, “em grande parte antissemita”, e pediram a revisão do processo (Eco, 2017, p. 208). O J’accuse de Zola constitui um momento fundador do intelectual moderno, aquele que, exercendo a sua autonomia e sua possibilidade de crítica, passa a intervir na arena pública. O momento histórico era propício e as bases de possibilidade de emergência do intelectual moderno se encontravam no ápice de um processo iniciado ainda no século XVII.
A crítica antidreyfusista aos intelectuais acabou por criar um estereótipo que, de alguma forma, ainda hoje perdura, ou seja, o de alguém que vive em meio a seus livros e abstrações nebulosas e com pouco ou nenhum contato com a realidade concreta. Contemporaneamente, como afirma o organizador deste dossiê, fruto de um processo mais longo, o intelectual passa a cristalizar uma nova figura social difícil de ser definida, visto que enraizada numa classe social que a ela, eventualmente, pode se opor. Constitui uma espécie de profissão que frequentemente a transcende, por sua posição crítica, por seu engajamento em torno de certas questões públicas, por sua inclinação ao debate e que, em conjunto, forma grupos que não se confundem com outros conjuntos sociais, mas que a eles, invariavelmente, se referem e se reportam (Passiani, nesta edição).
É neste contexto que se manifestam as mencionadas transfigurações do “intelectual moderno”, redefinindo constantemente seus papéis e sua importância na contemporaneidade. Os artigos deste dossiê, de um ponto de vista sociológico e com seus olhares diferenciados, procuram auscultar essas transformações, seus imaginários sociais e buscam entender o intelectual nas sociedades presentes.
Fora do dossiê, na seção Artigos, Zaira Vieira discute as novas leituras da "obra madura" de Marx, representadas pelos pensamentos de Backhaus e Postone, que não se fixam apenas no aspecto de classe e de exploração, sublinhando o caráter amplo da teoria marxiana do valor no que diz respeito à sua caracterização da sociedade moderna. Em um ensaio, Mara Zélia B. Rocha trata da relação verdade-saber científico na perspectiva foucaultiana. Para tanto, destrincha uma “analítica da verdade”, percorrendo a senda trilhada pela razão ocidental em busca da verdade e demonstrando como o saber ocidental se constitui como verdade e, portanto, como conhecimento científico. Pablo Holmes explora a diferença entre estrutura e semântica como chave explicativa para as reivindicações da teoria dos sistemas acerca de suas vantagens como autodescrição sociológica da sociedade moderna. O argumento central do autor é o de que a teoria dos sistemas se utiliza dessa diferença para explicar como estruturas sociais desencadeiam semânticas específicas. Guy Tapie (com tradução de Cristina de Araújo Lima) aborda como a sociologia tem considerado o espaço e sua arquitetura como uma criação original, marcada por características sociais e históricas, situando, sob o prisma do território e do espaço vivido, a conceituação de práticas sociais, de processos de socialização, de mecanismos de decisão como sinais do funcionamento das sociedades.
Na seção Interfaces, Fagner Carniel e Bruno Luiz Américo pretendem contribuir para o debate sobre os modos de produção do conhecimento científico no Brasil, por meio da análise dos fluxos e das mobilizações que ajudaram a constituir uma especialidade na área da Administração, a disciplina de Aprendizagem Organizacional. Para tanto, os autores propõem seguir os fios que conectam pessoas, ideias e instituições em torno de uma rede acadêmica em expansão no país.
Na seção Resenhas, Sérgio da Mata oferece uma avaliação ampla de um dos mais recentes livros de Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira, enfatizando as contradições internas de sua teoria crítica da modernização e, em especial, a sua visão a respeito do uso de Max Weber na sociologia brasileira.
Esperamos que este dossiê possa servir aos leitores como um verdadeiro convite e uma provocação para (re)pensar o papel dos intelectuais no mundo atual. Ao mesmo tempo, desejamos que as discussões propostas possam instigar reflexões sobre o nosso papel como intelectuais e nossas práticas na academia e nas sociedades.
Por fim, gostaríamos de destacar que, após um período de transição, uma nova editoria assume a revista a partir deste ano, composta por Jalcione Almeida, Cinara L. Rosenfield e tendo Marcelo Kunrath Silva como editor assistente. Entre alguns outros objetivos não menos importantes, pretendemos continuar garantindo a pluralidade e qualidade editorial da revista Sociologias, expandindo sua circulação nacional e internacional. A opinião dos leitores e suas constantes contribuições serão de suma importância.
Tenham todos uma boa e agradável leitura.
Referências
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018