Resumo
O artigo discute a obra da jurista feminista Catharine MacKinnon e, em particular, sua recusa radical à noção liberal de “consentimento”. Para a autora, a sexualidade é a expressão da dominação masculina; de fato, ela se revela como “erotização da dominação”. Numa sociedade assim organizada, não há possibilidade de agência autônoma para mulheres. É necessário desfazer o trabalho de introjeção dos valores dominantes, para que uma consciência feminina genuína possa emergir. Este é o pano de fundo das polêmicas posições de MacKinnon sobre estupro, pornografia e prostituição. O artigo conclui que, embora ilumine aspectos importantes da dominação, ela simplifica em excesso a discussão sobre a autonomia na agência social.
Palavras-chave
Catharine MacKinnon; dominação; consentimento; autonomia; teoria feminista
Abstract
The article discusses the work of feminist legal scholar Catharine MacKinnon and, in particular, her radical rejection of the liberal notion of “consent”. For the author, sexuality is an expression of male dominance; indeed, it reveals itself as “eroticization of domination”. In such society, there is no possibility of autonomous agency for women. We must undo the work of the internalization of dominant values, so that a genuine feminine consciousness can emerge. This is the backdrop of her controversial views on rape, pornography, prostitution or abortion. The article concludes that, while illuminating important aspects of domination, she simplifies in excess the discussion of autonomy in social agency.
Keywords
Catharine MacKinnon; domination; consent; autonomy; feminist theory
É incontornável a contribuição que a jurista estadunidense Catharine MacKinnon deu, nas últimas décadas, à reflexão feminista.1 1 Este artigo foi produto da pesquisa “Teorias feministas da política”, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF). Agradeço os comentários dos pareceristas anônimos de Sociologias e também a leitura de Regina Dalcastagnè. Uma contribuição polêmica, porém. A radicalidade de seu pensamento, unida à preferência por um registro exaltado e provocativo ao expressá-lo, favorece uma interpretação simplificadora e, por vezes, folclorizante. A denúncia constante da violência subjacente a grande parte das relações heterossexuais e também a campanha em favor da criminalização da pornografia fazem com que MacKinnon seja isolada no gueto do “feminismo radical”. Mas tais caracterizações não fazem jus à complexidade e à sofisticação de sua teoria política.
A obra de MacKinnon se funda numa radicalização da crítica ao liberalismo e, em particular, à categoria do “consentimento”, que não pode ser aceita sem um exame das condições de sua produção. De maneira ainda mais enfática do que Pateman (1988)35 PATEMAN, Carole. The sexual contract. Stanford: Stanford University Press, 1988., ela aponta que “consentir” reveste, muitas vezes, a resignação diante de algo que se julga inevitável ou o efeito da introjeção de padrões de dominação. A compreensão de que a dominação é a espinha dorsal das relações entre os sexos na nossa sociedade impede qualquer tipo de compromisso com a ordem vigente. Há, portanto, um componente significativo de radicalidade no raciocínio.
Mas “feminismo radical” é um rótulo impreciso. Em algumas versões, remete a uma forma de separatismo feminino e misandria. A heterossexualidade seria condenável e mulheres que se envolvem em relações amorosas ou sexuais com homens estariam prestando um desserviço à causa de sua emancipação; segundo a frase atribuída à ativista Ti-Grace Atkinson, “feminismo é a teoria, lesbianismo é a prática”. Por vezes, é associado à ideia de que é necessário superar a forma sexuada de reprodução da espécie, como nas provocações do “feminismo ciborgue”. Muitas vezes, essa interpretação do feminismo radical funciona com um espantalho para o discurso antifeminista, “demonstrando” a veracidade do estereótipo da feminista-que-odeia-homens por meio de um punhado de frases (algumas autênticas, em geral retiradas de contexto, por vezes abertamente manipuladas) de suas líderes e teóricas.
Raramente, no entanto, há de fato uma posição tão simplista, mesmo entre as mais radicais das feministas radicais e a despeito de eventuais formulações hiperbólicas. O ativismo lésbico foi crucial na compreensão da “heterossexualidade compulsória” (Rich, 198037 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. Signs, v. 5, n. 4, p. 631-660, 1980.) e, assim, de como a opressão sobre lésbicas e gays passa por sua definição como “desviantes” e pelas tentativas de forçar sua “normalização”. Mas o remédio para isso não é uma “homossexualidade compulsória” reversa. O que há é a compreensão de que as relações íntimas não são externas às estruturas sociais e que desejo e sexualidade não são as pulsões inatas que algumas leituras psicanalíticas poderiam sugerir (Fulgencio, 200215 FULGENCIO, Leopoldo. A teoria da libido em Freud como uma hipótese especulativa. Ágora, v. 5, n. 1, p. 101-111, 2002. https://doi.org/10.1590/S1516-14982002000100008
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), mas práticas constituídas socialmente. O foco da crítica, portanto, está no fato de que a dominação masculina impregna a quase totalidade das relações heterossexuais – e, na verdade, se manifesta também, de forma transformada, em muitas relações homossexuais.
Neste artigo, busco fazer uma apresentação crítica das ideias de MacKinnon, iluminando as potencialidades e os limites de seu rechaço à noção liberal do “consentimento”. Na primeira seção, exploro o significado de seu conceito de “sexualidade” como expressão da dominação e a estratégia libertadora de conscientização, na qual ela aposta. Na segunda seção, discuto a compreensão de MacKinnon sobre a unidade da experiência feminina e seu enfrentamento, a respeito desta questão, com diferentes tradições do feminismo. Na terceira seção, a partir sobretudo da discussão da autora sobre prostituição e pornografia, indico como ela nega a possibilidade de consentimento legítimo sob condições de dominação. Na breve conclusão, por fim, apresento os impasses que a teorização de MacKinnon gera e é incapaz de solucionar.
A dominação erotizada
A posição de MacKinnon é exposta com clareza já nas primeiras páginas de sua obra mais ambiciosa, o livro Para uma teoria feminista do Estado. Como outras pensadoras feministas da época, ela busca aproveitar e ao mesmo tempo subverter o instrumental analítico marxista, alcançando uma compreensão materialista, mas que não reduza gênero a classe. O caminho é estabelecer uma homologia entre sexualidade e trabalho, que seriam os conceitos centrais para entender a dominação de classe, em um caso, e a dominação masculina, em outro. O esforço teórico, portanto, é dar um estatuto político à sexualidade, retirando-a dos campos em que normalmente esteve confinada – religião, moralidade, psicologia, biologia (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 112).
Sexualidade, no entanto, não é o mesmo que sexo. MacKinnon assume uma postura crítica à divisão sexo/gênero, que se tornou crucial para o pensamento feminista. De maneira simplificada, enquanto o sexo se referiria a uma realidade biológica (o fato de que os seres humanos, tal como muitos outros animais, se dividem em geral entre indivíduos dotados de um aparelho reprodutor feminino e outros dotados de um aparelho reprodutor masculino), o gênero se referiria às construções sociais que dotam feminino e masculino de significados estereotipados. Isso permite questionar os entendimentos convencionais e desnaturalizar a relação entre o sexo biológico e os papéis sociais associados a cada um deles.
O problema que algumas teóricas veem nessa percepção é que ela tenderia a manter um peso excessivo ao polo biológico que, dizem, precisaria perder seu caráter de “natural”, uma vez que seu sentido é também construído socialmente: “A biologia se torna o sentido social da biologia dentro do sistema de desigualdade de sexos” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. xiii). É possível questionar qual o ganho obtido com tal manobra. A distinção sexo/gênero permite uma abordagem direta e clara do caráter convencional dos papéis assumidos por mulheres e homens, o que, por sua vez, serve de base para contestar as hierarquias que eles definem. Mas os adjetivos “direto” e “claro” não se aplicam à démarche pós-estruturalista, muito pelo contrário. Se para o discurso conservador tudo é sexo (e as desigualdades entre mulheres e homens são simplesmente derivadas da diferença biológica), para essa nova compreensão é como se tudo fosse gênero (ao custo de anular o dimorfismo sexual da espécie).2 2 Apesar do que identifico aqui como um aceno às vertentes pós-estrutralistas, pela convergência no questionamento à dualidade sexo/gênero, a posição de MacKinnon é muito crítica à corrente (MacKinnon, 2006, cap. 5).
No caso de MacKinnon, a discussão leva a um conceito ampliado de sexualidade, que não se refere apenas às dimensões físicas e eróticas, correspondendo à “dinâmica do sexo como hierarquia social, seu prazer sendo a experiência do poder em sua forma generificada” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. xiii). A formulação, algo surpreendente pela vinculação sem mediações entre sexo e poder, revela um elemento central do pensamento da autora: a ideia de que a sexualidade (em sentido estrito) é inteiramente atravessada pelas relações de poder estabelecidas e, em particular, pelo poder que os homens exercem sobre as mulheres. É a erotização da dominação.
Trata-se do componente fundamental do imaginário erótico de nossa sociedade, atuante tanto nas relações sexuais e amorosas quanto, de forma transformada, fora delas: cada diferente hierarquia social tende a ser “erotizada na sexualidade masculina dominante” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 53). Provocadoramente, ela afirma que “talvez o gênero precise ser mantido como hierarquia sexual para que os homens possam ter ereções” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 145). Nas presentes relações de gênero, dominação e excitação sexual são indissociáveis. A sexualidade deve ser entendida como conceito político porque a dominação proporciona um gozo erótico em espaços sociais que estão muito distantes da alcova.
A denúncia da violência que seria inerente às relações heterossexuais deve ser entendida nesse contexto. O problema não está no encontro sexual entre homem e mulher, em si, mas no fato de que seu sentido é constituído por essa erotização da dominação. E as mulheres exercem seu papel, uma vez que, na economia geral da erotização da dominação, cabe a elas associar o prazer sexual à posição de dominadas.
O desejo expresso por mulheres, por relacionamentos sexuais que envolvem sua humilhação e subordinação, como seriam por regra as relações heterossexuais, é lido como uma forma de compensação inconsciente. Seriam estratégias para manter o respeito próprio e o orgulho, assumindo como um ato de vontade aquilo que, no entanto, é uma imposição (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 149-150). Um exemplo gráfico é o casamento, historicamente uma relação de subordinação, no entanto obrigatório para que as mulheres desfrutassem de uma posição social. O estereótipo, que se faz presente no comportamento de muitas delas, é que as mulheres anseiam pelo casamento e trabalham ativamente para obtê-lo, muitas vezes tendo que superar a reticência dos homens. Esta é a forma superior da dominação, para MacKinnon: aquela em que não é necessária nenhuma forma de coação externa, já que a “vontade” do agente é a expressão das relações sociais que o colocam na posição de dominado (Schaeffer, 200139 SCHAEFFER, Denise. Feminism and liberalism reconsidered. American Political Science Review, v. 95, n. 3, p. 699-708, 2001. https://doi.org/10.1017/S0003055401003082
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, p. 702).
Incluindo o desejo sexual na discussão, MacKinnon se opõe ao discurso, eminentemente liberal, mas partilhado por outras correntes do feminismo, de que a permissão para que cada um vivencie suas próprias fantasias é a própria definição da libertação. Pelo contrário: essas fantasias devem estar, elas próprias, sob escrutínio, uma vez que são produtos sociais e meios de reprodução das hierarquias dominantes. Tal compreensão é essencial para entender as posições polêmicas que ela assume em debates sobre temas como pornografia, prostituição ou estupro.
Há aqui uma crítica cortante à compreensão liberal de que as preferências expressas pelos indivíduos devem ser aceitas sempre como tal, ao pé da letra. De fato, esta compreensão ignora a relação entre as circunstâncias sociais e a formação das preferências, que é influenciada pelas privações e constrangimentos que limitam o horizonte de possibilidades, pelas visões de mundo dominantes, pelos incentivos institucionais ou informais à adoção de determinadas práticas e comportamentos (Miguel, 201831 MIGUEL, Luis F. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2017., cap. 5). Mas MacKinnon produz a crítica de uma forma que a sujeita aos mesmos questionamentos dirigidos ao conceito marxista de ideologia, quando entendida como “falsa consciência”. Parece que podemos descartar liminarmente a experiência e a compreensão subjetiva das pessoas, desprezadas como equivocadas, manipuladas ou fruto de mecanismos psíquicos compensatórios. Um observador externo, dotado de conhecimento superior, determina qual é a forma certa de pensar e sentir.
A resposta que ela dá a isso é complexa. Por um lado, ela resiste à tentação de sacralizar a experiência vivida, julgando que ela traz alguma verdade em si mesma. Opõe-se, assim, às versões mais ingênuas da chamada feminist standpoint theory, que julgam que a vivência da dominação dá às mulheres (bem como, mutatis mutandis, aos integrantes de outros grupos dominados) um “privilégio epistêmico” que lhes permite entender melhor a realidade (Hartsock, 198317 HARTSOCK, Nancy. Money, sex, and power. Nova York: Longman, 1983.; Collins, 19867 COLLINS, Patricia H. Learning from the outsider within. Social Problems, v. 33, n. 6, p. 14-32, 1986. https://doi.org/10.2307/800672
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Uma versão ainda mais vulgarizada do privilégio epistêmico dos dominados aparece em alguns usos atuais da ideia de “lugar de fala”.
Há, sim, um ponto de vista próprio das mulheres na sociedade machista, mas ele é fruto da própria dominação.
Ecoando a velha compreensão de que a mulher é constrangida a assumir seu corpo e sua relação com o mundo “através de consciências alheias” (Beauvoir, 19492 BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe. Paris: Gallimard, 1949. 2 vol., vol. II, p. 516), MacKinnon pergunta “o que, na experiência das mulheres, produz uma perspectiva distinta da realidade social?” E responde em seguida: “a objetificação sexual” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 127).
Isso não quer dizer que a experiência não seja valiosa. Mas precisa ser depurada dos significados a ela colados pelas relações de dominação, a fim de que possa servir de ponto de partida para uma reflexão emancipatória. É a “conscientização” (conscioussness raising), que MacKinnon define como sendo “o método feminista” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 83). Ela aposta na prática dos grupos de mulheres, relativamente comuns nos anos 1960 a 1980, que partilhavam vivências e, livres da presença masculina, podiam ressignificá-las. O projeto do feminismo, diz ela, é “desvelar e reclamar como válida a experiência das mulheres, cujo maior conteúdo é a invalidação da experiência das mulheres” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 116).
Ou seja: não é possível levar a sério a vivência das mulheres sem ter em mente que um de seus traços determinantes é a desvalorização permanente dessa mesma vivência. Afinal, seguindo a compreensão de Simone de Beauvoir, sintetizada na fórmula citada antes, as mulheres devem ver o mundo e a si mesmas a partir das lentes dominantes, masculinas. O ônus de recusá-las é sentido nos diferentes espaços sociais, levando à marginalização, à exclusão e à violência. Nos coletivos de mulheres, seria gerado um ambiente em que tais constrangimentos estariam afrouxados e as próprias mulheres encontrariam espaço para entender as relações de dominação às quais estão submetidas.
A dificuldade para escapar a esse círculo é uma característica dos sistemas de dominação vigentes, nos quais “as estratégias requeridas para a sobrevivência cotidiana são exatamente o oposto daquilo que é requerido para transformá-lo [o sistema]. Das mulheres se requer submissão sexual silenciosa, tal como dos trabalhadores se requer trabalho” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 16).4 4 Por isso, quando se diz que “se o Estado cumpre um papel na objetificação e opressão das mulheres, ele o faz por sua incapacidade de apreciar tal objetificação e opressão como formas de injustiça, mais do que por sua participação direta” (Laden, 2003, p. 136), há uma séria incompreensão de MacKinnon. Segundo ela, as instituições pressupõem e exigem a conformidade com a posição subordinada. É a reflexão coletiva, em espaços protegidos das pressões dominantes, que pode desatar o nó górdio. Fica claro que, para MacKinnon, o “privilégio epistêmico” das mulheres, enquanto grupo, não reside na experiência dominada em si, mas no esforço de transcender os sentidos associados a ela.
Mas a conscientização não é um fim: não é uma forma de “autoconhecimento” que permite algum tipo de pacificação interior, como nas visões new age (que não poderiam estar mais longe dos objetivos de MacKinnon). Como indica outra pensadora feminista, que aliás é mobilizada por MacKinnon em apoio à sua concepção, as mulheres precisam ver a si mesmas de uma forma libertada da visão machista dominante para, a partir daí, engajarem-se numa relação diferente com o mundo (Rowbotham, 197338 ROWBOTHAM, Sheila. Women’s consciousness, man’s world. Nova York: Penguin, 1973.). O feminismo é entendido como uma política revolucionária, similar ao movimento operário para o marxismo, que reconstrói o entendimento da realidade a fim de transformá-la radicalmente.
De alguma maneira, reflexões como a de MacKinnon antecipam a noção de “contrapúblico subalterno”, apresentada por Nancy Fraser (1992)14 FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere. In: CALHOUN, C. (ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge: The MIT Press, 1992. p. 109-142. em sua polêmica com o conceito habermasiano de esfera pública. São espaços em que, ao abrigo de posições adversárias, as visões dominadas podem estabelecer suas próprias narrativas. Um possível exemplo é a tipificação do crime de assédio sexual, que nasceu quando mulheres, construindo coletivamente novos sentidos de suas experiências no ambiente de trabalho, fizeram emergir o desrespeito, a humilhação e a violência que estavam presentes em práticas antes consideradas normais, inevitáveis e inofensivas. A inclusão do assédio sexual no rol dos comportamentos inaceitáveis nas relações laborais foi a vitória de uma empreitada feminista de construção de sentido. Nela, um papel destacado, na produção do linguajar jurídico que permitiu tal avanço, foi exercido pela própria MacKinnon (1979)29 MACKINNON, Catharine A. Sexual harassment of working women. New Haven: Yale University Press, 1979..
A unidade da experiência
O pressuposto da proposta de conscientização, tal como apresentado por MacKinnon, é o de que existe alguma unidade substantiva na experiência feminina em sociedades marcadas pela dominação masculina. Na discussão sobre o essencialismo – expressão pejorativa que já marca uma posição –, MacKinnon se alinha claramente ao lado da ideia de que há um conteúdo comum ao “ser mulher”, a despeito das diferenças entre trabalhadoras e burguesas, negras e brancas, lésbicas e heterossexuais, portadoras ou não de deficiências. Ela se opõe tanto à tradição marxista, que via a barreira de classe como intransponível, quanto ao feminismo negro, para quem a categoria “mulher” leva a um falso universalismo que anula as experiências daqueles que integram grupos minoritários.5 5 A emergência do feminismo transgênero acrescentou novas dimensões à questão do essencialismo. O feminismo radical, ao qual MacKinnon é associada, é por vezes acusado de “transfóbico”, com uma ênfase “ginocêntrica” no sexo biológico. Feministas radicais, no entanto, revertem a acusação, afirmando que é o transgenderismo que pressupõe uma “essência” de gênero, como psicologia e padrão de comportamento, que o feminismo sempre combateu (Jeffreys, 2014). MacKinnon, por sua vez, se posiciona como advogada dos direitos das mulheres trans. Citando a famosa frase de Simone de Beauvoir (“ninguém nasce mulher, torna-se mulher”), ela arremata: “Como alguém se torna mulher não é, acredito, nosso trabalho policiar” (MacKinnon, 2015).
De fato, ao apresentar a categoria “sexualidade” como uma forma de dominação dotada de efetividade própria, atravessando os diferentes espaços sociais, MacKinnon é levada a tratá-la como relativamente invariante – assim como o marxismo julga que a exploração capitalista funciona de maneira mais ou menos uniforme, ainda que as condições de vida dos trabalhadores sejam sensíveis também a determinantes de gênero, raça, colonialidade ou outros. A burguesa e a trabalhadora vivem vidas muito diferentes, assim como a negra ou a lésbica enfrentam obstáculos que não fazem parte da experiência de brancas ou de heterossexuais. Mas todas se defrontam com a erotização da submissão feminina, atuando em todas as relações interpessoais e na forma à qual elas são levadas a ver a si mesmas.
Não se trata, portanto, de negar a diversidade da condição feminina, mas de aceitar que a categoria “mulher” é capaz de englobar tal diversidade, uma vez que “nenhuma mulher deixa de ser afetada por aquilo que cria e destrói as mulheres enquanto tais, nenhuma mulher deixa de participar da situação das mulheres” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 38). Ou então: “constituído por todas as suas variações, o grupo ‘mulheres’ pode ser visto como tendo uma história social coletiva de desempoderamento, exploração e subordinação, que se estende até o presente” (MacKinnon. 200525 MACKINNON, Catharine A. Women’s lives, men’s laws. Cambridge: Harvard University Press, 2005., p. 25). A diversidade é apresentada como uma característica secundária, uma vez que o atributo “mulher” possui densidade suficiente para se sobrepor a ela.
No entanto, trata-se de uma questão que não se resolve por fórmulas retóricas. É uma questão empírica e, ainda mais, política. Se o foco é dirigido à violência sexual e à objetificação, como faz MacKinnon, a afirmação de uma unidade de base da experiência de todas as mulheres faz sentido. Mas se é dada atenção mais específica a temas como a divisão sexual do trabalho e as possibilidades de acesso à esfera pública, o quadro muda de figura. Por outro lado, a renúncia ao sujeito “mulher” unificado cria sérios impasses ao feminismo como movimento político, o que leva algumas autoras a defender um “essencialismo estratégico” (Spivak, 198541 SPIVAK, Gayatri C. Strategies of vigilance. Entrevista a Angela McRobbie. Block, n. 10, p. 5-9, 1985.). Mas o risco é que os avanços na condição das mulheres sejam medidos por pautas que beneficiam algumas poucas (acesso às posições de chefia em empresas e no Estado, por exemplo), mas quase nada afetam a vida das pobres, das trabalhadoras, das negras.
Na polêmica, MacKinnon assume posições que a afastam até mesmo da ideia de opressões cruzadas ou de interseccionalidade. Pelo contrário, ela identifica um sexismo universal e bastante uniforme; e, ainda mais, que as mulheres consideradas privilegiadas revelam sua forma paradigmática. Afinal, “a mulher branca que não é pobre ou operária ou lésbica ou judia ou deficiente ou velha ou jovem não divide sua opressão com nenhum homem” (MacKinnon, 200525 MACKINNON, Catharine A. Women’s lives, men’s laws. Cambridge: Harvard University Press, 2005., p. 30, ênfase suprimida).
Se o feminismo negro aparece sobretudo como comprometendo a necessária unidade das mulheres, o marxismo é alvo de uma avaliação crítica mais aprofundada, que ocupa toda a primeira parte de Para uma teoria feminista do Estado. Ela concede que, do ponto de vista de uma mulher pobre, “é difícil engolir que a dor, o isolamento e a coisificação de mulheres mimadas e acomodadas na posição de não pessoas são uma forma de opressão” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 8). Mas isso não justifica a cegueira do marxismo à especificidade da opressão sofrida pelas mulheres, que MacKinnon atribui, ao menos em parte, à compreensão convencional e conservadora que Marx tinha das relações entre mulheres e homens. Não apenas em obras de juventude, mas mesmo em O capital, ele indicaria que a exploração das mulheres no trabalho assalariado teria, como uma das principais consequências negativas, seu afastamento dos filhos. MacKinnon observa que “quando os homens trabalham, tornam-se trabalhadores, os seres humanos de Marx. Quando as mulheres trabalham, permanecem sendo esposas e mães, só que inadequadas”. E arremata: para Marx, a exploração das mulheres “é um problema de moralidade” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 17).
É possível ver tal veredito como injusto. Marx manteve um compromisso permanente com o ideal da emancipação feminina e, a despeito do que tenha falado sobre a relação entre mães e filhos, julgava que a incorporação das mulheres à força de trabalho, em condição de igualdade com o homem, era um progresso incontestável (Marx, 201330 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013[1867]. Livro I., p. 570). Ele não concedeu a atenção devida à especificidade da situação das mulheres e, também por isso, escorregou muitas vezes nos preconceitos correntes de sua época. Em especial, construiu sua teoria generalizando a partir do operário homem, sem se preocupar com os vieses que isso geraria. Mas não pode ser descrito como o defensor da conjugalidade tradicional que MacKinnon apresenta.
A interlocução crítica com A origem da família, da propriedade privada e do Estado, a obra de Engels (1985)11 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985[1884]. que se tornou a pedra de toque da reflexão marxista clássica sobre gênero, é mais bem embasada. Em linhas bem gerais, Engels, apoiado no conhecimento antropológico de sua época, afirma que o desenvolvimento das forças produtivas na pré-história permitiu que os seres humanos produzissem riqueza para além do seu consumo imediato. Abriu-se, assim, a possibilidade de acumulação, que gerou a propriedade privada e, por causa dela, a família (para permitir a transmissão dessa propriedade) e o Estado (para proteger a classe minoritária dos proprietários).
MacKinnon indica que o raciocínio de Engels se apoia num conjunto de pressupostos não problematizados – de fato, a naturalização de elementos da ordem social contemporânea, como se sua emergência fosse automática e não precisasse ser explicada. É o caso da equivalência entre produção de excedente e “riqueza”, no sentido social atribuído ao termo; da busca pela apropriação individual desse excedente, que aparece como se fosse um desejo inerente às pessoas; ou, então, da vontade de legar herança para seus próprios filhos, tão forte que geraria a família patriarcal, a exigência de monogamia feminina e a obsessão pelo controle das sexualidade das mulheres, tudo para evitar que um homem, ao perfilhar o rebento de outro, transferisse a ele seus bens (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 29).
Em particular, o relato de Engels não explica por que a primitiva divisão sexual do trabalho, responsável pelo aumento da produtividade, leva a que o homem se assenhore individualmente da riqueza que gera, ao passo que o trabalho da mulher continua servindo apenas para a garantia da reprodução do lar. A compreensão convencional de que só o trabalho extradoméstico é trabalho de verdade, gerador de valor, não é desafiada. O resultado líquido é que, como “o poder de classe é a origem da dominação masculina, segue-se que apenas aqueles homens que possuem poder de classe podem oprimir as mulheres dentro da família” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 31). Decorre daí a reticência de Engels e de muitos marxistas posteriores a investigar as relações de gênero nas famílias proletárias.
Engels não consegue superar o entendimento convencional de que as atividades “tipicamente femininas” estão mais próximas das necessidades básicas da espécie e seguem mais os ritmos naturais. Reapropriado por correntes do feminismo contemporâneo, pode levar a uma espécie de mística feminina, como na obra de Luce Irigaray (1977)18 IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’en est pas un. Paris: Minuit, 1977. e outras, ou à valorização de uma diferença moral que tal situação proporcionaria às mulheres, como nas correntes da “ética do cuidado”.6 6 Refiro-me às correntes que, inspiradas no trabalho da psicóloga moral Carol Gilligan (1982), afirmam que as mulheres se caracterizam pela maior atenção às necessidades concretas dos outros, adotando um padrão ético diverso – ou mesmo superior – à ética masculina, dominante, baseada em imparcialidade e observância de regras abstratas. Para um resumo crítico, cf. Miguel (2001). MacKinnon se pronuncia de maneira vigorosa contra tais ideias, que ela identifica – embora com o sinal valorativo trocado – já na obra fundadora de Simone de Beauvoir.
O segundo sexo atribui a origem da subordinação feminina ao fato de que, enquanto os homens foram conquistar o mundo, as mulheres não puderam “participar de sua maneira de trabalhar e de pensar” e ficaram “escravizadas aos mistérios da vida” (Beauvoir, 19492 BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe. Paris: Gallimard, 1949. 2 vol., p. 109).7 7 A tradução para o inglês citada por MacKinnon fala nos “processos misteriosos da vida” (MacKinnon, 1989, p. 55). É a percepção, que transparece em mais de um momento na pensadora francesa, de que os processos biológicos exclusivos das mulheres, como a gravidez e o aleitamento, funcionam como uma espécie de armadilha, afastando-as das atividades que permitiram aos homens conquistar sua supremacia. Para Beauvoir e, ainda mais, para autoras inspiradas por ela, como Sulamith Firestone (1970/2003)13 FIRESTONE, Sulamith. The dialetic of sex. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2003[1970]., a solução passa por anular a armadilha biológica, libertando a mulher dos “mistérios da vida” que a sujeitam. Para as feministas da diferença, ao contrário, o caminho é valorizar essa vinculação especial, que os homens não teriam como alcançar. MacKinnon recusa as duas opções. Para ela, o que é necessário é questionar o ponto de partida. Não há uma relação especial das mulheres com os processos naturais. O que há é uma significação diferente dada às atividades vistas como masculinas ou como femininas, que sustenta a construção da dominação dos homens sobre as mulheres.
Afinal, por que as atividades desempenhadas pelas mulheres não permitem a elas uma posição de supremacia ou de igualdade? As mulheres não compartilharam a maneira de pensar e trabalhar dos homens, mas o inverso também é verdadeiro: por que só no caso delas isso conta como uma carência? E o homem primitivo também está em relação íntima com a natureza, mas seus labores – a caça, por exemplo – foram interpretados como conquista, não como escravização (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 55).
Portanto, a relação das mulheres com a natureza, “tal como a do homem, é um produto social” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 15). É necessário investigar como os sentidos atribuídos a fatos da natureza contribuem para estabelecer hierarquias sociais e padrões de dominação:
A suposta força física superior dos homens não os confina à posição de bestas de carga. Homens também se reproduzem e mulheres também trabalham. Se a abordagem de Marx sobre a classe é aplicada ao problema do sexo, deveríamos tentar entender a conexão entre um fato físico – digamos, a força física masculina e a maternidade feminina – e as relações sociais que dão a esse fato um sentido restritivo e vivido. Poderíamos tentar identificar o interesse material daqueles que ganham com tal arranjo, em vez de abandonar a tarefa da explicação social no nível da observação fisiológica
(MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 16).
Embora o alvo da crítica seja Marx, ela serve também para embasar a recusa de MacKinnon às correntes feministas que, embaraçadas diante da maternidade e dos sentidos socialmente atribuídos a ela, não encontram outro caminho que a recusa ou a aceitação. O “padrão neutro” presente em Beauvoir mede as mulheres por sua aproximação com o comportamento dos homens; o “padrão da diferença”, pelo distanciamento dele – mas, num caso como no outro, o referente é a masculinidade (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 24).
O “padrão da diferença” criticado por MacKinnon é o das teóricas do cuidado. Ela aponta que não é possível saber se a valorização do cuidado, pelas mulheres, não passa de um reflexo do fato de que “os homens valorizavam as mulheres de acordo com o cuidado que elas forneciam”; se as mulheres pensam relacionalmente, talvez seja porque “sua existência social é definida em relação aos homens” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 51). Voltamos ao ponto de partida de MacKinnon: a dominação atravessa toda a experiência feminina na sociedade atual. O problema não é a diferença entre os sexos, mas a dominação de um sobre o outro (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989.). Ou, dito de outra forma: gênero é diferença “apenas derivadamente”; em primeiro lugar, “é uma desigualdade de poder” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 8).
Agência e consentimento
É nesse contexto que devem ser entendidas as polêmicas reflexões de MacKinnon sobre estupro (e sua relação com sexo heterossexual consensual) e pornografia. Ao lado de autoras como Brownmiller (1975/1993)5 BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. Nova York: Fawcett Books, 1993[1975]., ela contribuiu para compreender a dimensão do fenômeno do estupro, que não é algo episódico e marginal, mas uma experiência sofrida por um enorme contingente de mulheres, nas mais diferentes sociedades e classes sociais – e que, ao menos como ameaça difusa, faz parte da vivência da quase totalidade delas. Ao identificar uma série de formas disfarçadas ou socialmente invisibilizadas de coação, essa mobilização feminista pressiona por um entendimento mais rigoroso do que deve ser entendido como uma “relação consensual”.
No entanto, a posição de MacKinnon não é isenta de problemas. Ela tende a usar os dados de uma maneira que exagera seu significado. Por exemplo, afirma que “apenas 7,8% das mulheres nos Estados Unidos nunca foram agredidas ou assediadas sexualmente” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 6), mas só numa nota no final do livro explica que se baseia numa pesquisa feita em uma única cidade (San Francisco) e que a categoria “violência sexual” que ela usa não diferencia estupro de cantada na rua (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 232-233). Há aí enormes diferenças de grau.
É correto recusar o discurso fácil que afirma que “estupro é violência e não sexo [e assim] preserva a norma do ‘sexo é bom’ simplesmente distinguindo o sexo forçado como ‘não sexo’, ainda que seja sexo para o perpetrador” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 135). Mas há um longo caminho para passar daí à compreensão de que o consentimento da mulher ao sexo é apenas uma “qualidade metafísica” e pressupõe “uma impotência social mais fundamental” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 175). Na versão ainda mais imoderada de Andrea Dworkin, o ato sexual é, por natureza, um ato violento, invasivo e predatório do homem (Dworkin, A., 20078 DWORKIN, Andrea. Intercourse. Nova York: Basic Books, 2007[1987]., p. 79-80).
Dworkin foi uma importante parceira de MacKinnon, sobretudo na campanha antipornografia. Muitos de seus escritos têm forte carga autobiográfica. Ela conta ter sido abusada na infância, atacada sexualmente por guardas quando foi presa num protesto contra a guerra do Vietnã, casada com um homem violento que a espancava, caído na prostituição para se sustentar depois de fugir do marido, drogada e estuprada num hotel quando já era uma famosa escritora feminista. A veracidade deste último abuso foi posta em dúvida, mesmo por comentaristas feministas, levando a uma polêmica pública cujo foco logo passou da narrativa de Dworkin à denúncia de sua principal acusadora, a jornalista Catherine Bennett3 BENNETT, Catherine. Doubts about Dworkin. The Guardian, 8 jun. 2000, p. 12. Disponível em: http://www.theguardian.com/books/2000/jun/08/society
http://www.theguardian.com/books/2000/ju...
. Para uma acadêmica que se debruçou sobre a questão, as reações ao relato de Dworkin mostravam a existência de “dois diferentes padrões genéricos do ‘dizer a verdade’, um padrão legal com ênfase na verdade factual e possibilidade de verificação externa e outro feminista, com ênfase na verdade subjetiva ou experiencial e nos marcadores de autenticidade” (Serisier, 201540 SERISIER, Tanya. How can a woman who has been raped be believed? Andrea Dworkin, sexual violence and the ethics of belief. Diegesis, v. 4, n. 1, p. 68-87, 2015., p. 69).
A preocupação em preservar a credibilidade das vítimas de estupro é importante. Trata-se de um crime cometido em geral na ausência de testemunhas, em que a palavra da mulher é oposta à do seu agressor. O sistema policial e jurídico trabalha, muitas vezes, no sentido de anular a denúncia, para o que contribuem os preconceitos contra as mulheres e a identificação dos agentes da lei com os homens. A própria situação é marcada por ambiguidades, uma vez que o entendimento convencional da relação entre os sexos estipula uma coreografia em que cabe ao homem conquistar e à mulher resistir, sendo esperada uma “insistência” masculina que pode transitar para a violência. MacKinnon e Dworkin estiveram entre as feministas que contribuíram para iluminar a situação e estabelecer a regra de que o ponto de partida deve ser a aceitação da versão da vítima, não do agressor.
Mas se isso significa que a veracidade do estupro reside somente na experiência subjetiva da vítima, como afirma o “padrão feminista” da verdade apresentado por Serisier, há problemas não apenas com a possibilidade de perseguição criminal dos agressores, mas também com a própria construção teórica de Dworkin e MacKinnon. Afinal, para elas, trata-se de demonstrar o substrato de violência presente na sexualidade masculina. É uma característica dos homens – ou, ao menos, dos homens cuja masculinidade é constituída na sociedade sexista que temos –, não de como eles são lidos pela subjetividade feminina. Tanto quanto apagar a fronteira entre agressão e consentimento, abrir mão de afirmar a diferença entre agressão efetiva e sentimento subjetivo de agressão congela as mulheres na posição de vítimas e nega a elas a posição de agentes. Entender que tais fronteiras muitas vezes são pouco nítidas não é o mesmo que julgar que elas não existem.
O mesmo tipo de questão reaparece na discussão sobre pornografia. MacKinnon foi e ainda é uma fervorosa advogada da criminalização da pornografia, que ela vê como um dispositivo central para a reprodução da sexualidade como dominação. No caminho, estabeleceu uma controversa aliança com grupos religiosos conservadores, que também se opõem à distribuição de material pornográfico, embora por outros motivos. Associou-se ainda a Linda Boreman, que ficara famosa como atriz pornô sob o nome de “Linda Lovelace” e, em suas memórias, descrevera sua participação nas filmagens como fruto de abuso e intimidação – por vezes, estaria gravando sob a mira de um revólver.
A argumentação pela criminalização se desenvolve em duas linhas. Por um lado, a indústria da pornografia é sustentada por formas de violência aberta contra as atrizes, similares à tortura, das quais a história de Boreman seria um eloquente exemplo (MacKinnon, 200624 MACKINNON, Catharine A. Are women human? And other international dialogues. Cambridge, MA: Belknap, 2006.). Por outro, a pornografia é “central para a institucionalização da dominação masculina” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 146). Embora ela indique a “ligação óbvia” entre a coerção que obriga algumas mulheres a participar da pornografia e a coerção sobre as outras mulheres, resultado de seu consumo (MacKinnon, 199326 MACKINNON, Catharine A. Only words. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 21), as duas linhas de argumentação são quase independentes.
Quanto à coerção na produção da pornografia, se o relato de Boreman é verdadeiro, evidentemente foge daquilo que é aceitável mesmo no ordenamento jurídico atual. Mas toda a pornografia é produzida desta forma, com as atrizes sob ameaça de morte? Se não é assim – e MacKinnon não tem como sustentar que é –, a coerção exercida sobre elas torna-se mais psíquica e econômica. No limite, a possibilidade de que uma mulher opte pela pornografia como meio de vida é descartada aprioristicamente: o fato de ela optar já é, em si mesmo, a comprovação de que já está submetida a uma vontade que não é a sua. É similar à discussão sobre a prostituição. MacKinnon milita em favor da repressão à prostituição, observando, com razão, sua relação com o tráfico de mulheres e a exploração das mais pobres (MacKinnon, 201123 MACKINNON, Catharine A. Trafficking, prostitution, and inequality. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, v. 46, n. 2, p. 272-309, 2011.). Mas permanece a questão: não existe nenhuma possibilidade de que uma mulher escolha a prostituição ou a pornografia, a não ser sob constrangimentos tão fortes que anulam a legitimidade de sua decisão?
Feministas liberais e defensoras da legalização da prostituição em geral recusam tal conclusão.8 8 Para um resumo do debate, cf. Miguel (2014). Ao negar que uma mulher, em qualquer circunstância, possa significar o comércio do sexo de uma maneira diferente, esta posição relega as prostitutas à “condição de ‘vítimas absolutas’, que as reduz ao silêncio. Enquanto a menor palavra feminina vale ouro, a da prostituta não vale nada. Desde logo, ela é considerada mentirosa ou manipulada” (Badinter, 20051 BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 35). Em linha paralela de argumentação, Martha Nussbaum compara a prostituta a mulheres empregadas em outras atividades – operárias, massagistas ou mesmo à fictícia “artista da colonoscopia”, que seria cobaia de instrumentos médicos para exame do cólon. A prostituição não guardaria nenhuma diferença que a singularizasse das outras atividades (exceto, é claro, o caráter especial que quase todas as culturas concedem à intimidade sexual, mas isso não entra no cálculo de Nussbaum). Se as mulheres possuem outras alternativas de vida e preferem a prostituição, não haveria o que objetar; proibi-la é incorrer num paternalismo indefensável (Nussbaum, 199934 NUSSBAUM, Martha C. Sex and social justice. Oxford: Oxford University Press, 1999.). O mesmo valeria para a pornografia.
Chega-se assim à segunda linha de argumentação: o que esta ampla difusão implica. Mesmo que se admita a existência de um nicho de pornografia feminina, alternativa ou mesmo “feminista”, há pouca dúvida de que o grosso da produção, incluindo aquela que mulheres consomem, opera uma sobreposição entre a gratificação sexual dos homens e a humilhação de suas parceiras. Em suma, serve de ilustração perfeita para a ideia da erotização da dominação. Pensadores liberais reconhecem tal fato, mas afirmam que é uma das múltiplas consequências desagradáveis da liberdade de expressão. Um raciocínio um pouco mais complexo foi colocado em marcha pelo filósofo Ronald Dworkin, que se envolveu em polêmica com MacKinnon (e que não tinha nenhum parentesco com Andrea Dworkin). Para ele, não é a liberdade de expressão (que protege muito tenuamente discursos desprovidos de relevância pública, como seria o caso) que está em jogo e sim a independência moral dos indivíduos (Dworkin, R., 200510 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005[1985]., 20069 DWORKIN, Ronald. Women and pornography. In: SPECTOR, J. (ed.). Prostitution and pornography. Stanford: Stanford University Press, 2006[1993]. p. 296-310.). De todo modo, a censura é recusada.
É difícil sustentar restrições à liberdade de expressão. De todo o conjunto de direitos e liberdades que caracterizam as democracias liberais atuais, ela é certamente a mais emblemática e uma das que possui maior relevância política direta. Ainda que o discurso da liberdade de expressão seja frequentemente mobilizado por grupos conservadores como forma de maximizar as vantagens que advêm do controle dos meios de comunicação, não há dúvida de que a possibilidade de expressar opiniões dissidentes sem sofrer punições é valiosa sobretudo para os grupos dominados. Os aliados religiosos de MacKinnon podem se apoiar na velha recusa à obscenidade, que repousa na ideia de que existe uma única maneira aceitável para que as pessoas vivenciem a sexualidade, mas é claro que este caminho não está acessível para ela.
As leis tradicionais contra a obscenidade, preocupadas apenas com “vício e virtude”, não atentam para o que realmente importa, os danos causados a mulheres e crianças pela produção e circulação do material pornográfico (MacKinnon, 200624 MACKINNON, Catharine A. Are women human? And other international dialogues. Cambridge, MA: Belknap, 2006.). Ela procura, então, caracterizar a pornografia como uma forma do discurso de ódio – que é, hoje, a principal justificativa aceitável para impedir a difusão pública de discursos. Embora por vezes possa dirigir críticas ao princípio da liberdade de expressão em si, que funcionaria sobretudo para garantir e ampliar o poder de quem já tem acesso à fala (MacKinnon, 199326 MACKINNON, Catharine A. Only words. Cambridge: Harvard University Press, 1993.), o eixo de sua argumentação é que a pornografia não deve ser entendida primariamente como uma forma de expressão, mas como uma forma de ação e de indução de ação. Ela constrói uma forma de ver as mulheres e, assim, leva seus consumidores a tratá-las de acordo com essa construção (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987.). “Proteger a pornografia significa proteger o abuso sexual como fala, ao mesmo tempo em que tanto a pornografia quanto sua proteção privam as mulheres de fala, especialmente fala contra o abuso sexual” (MacKinnon, 199326 MACKINNON, Catharine A. Only words. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 9).
Há um esforço para vincular, de maneira direta, o consumo de pornografia ao abuso sexual. São mobilizados estudos psicológicos que mostram que consumidores de pornografia tendem a associar excitação sexual com violência (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 144). Ela estabelece uma relação direta entre a penetração da pornografia e o espancamento de mulheres, mas não apresenta dados que a corroborem (MacKinnon, 2006, p. 32). O ponto é menos inequívoco do que MacKinnon faz crer. Em paralelo com pesquisas que associam consumo de pornografia e propensão à violência sexual, há número equivalente de outras que afirmam o oposto (Ferguson; Hartley, 200912 FERGUSON, Christopher J.; HARTLEY, Richard D. The pleasure is momentary…the expense damnable? Agression and Violent Behaviour, v. 14, n. 5, p. 323-329, 2009. https://doi.org/10.1016/j.avb.2009.04.008
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).
A polêmica é, em grande medida, similar àquela a respeito do efeito da violência (não sexual) na indústria cultural: incentiva atos violentos, não tem impacto no comportamento ou mesmo serve de válvula de escape, reduzindo a agressividade? E, tal como ela, parece que a discussão está sendo vencida não pelo acúmulo de pesquisas, mas pelo cansaço diante da realidade. A violência na indústria cultural se tornou tão onipresente que parece inútil apontar seus eventuais efeitos nefastos. O mesmo, quase, se pode dizer da pornografia.
Mais do que na vinculação direta entre pornografia e agressão social, o ponto forte da argumentação de MacKinnon reside no reforço da objetificação da mulher e da erotização da dominação que ela promove. Talvez não seja verdade afirmar que “cedo ou tarde, de uma maneira ou de outra, o consumidor de pornografia quer vivê-la além, em três dimensões” (MacKinnon, 199326 MACKINNON, Catharine A. Only words. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 19). Mas não há dúvida de que ela fortalece a compreensão, própria da mentalidade hegemônica, de que a mulher é mais objeto do que sujeito, avaliada por sua disponibilidade para promover a gratificação sexual do homem. Relatos sobre as relações contemporâneas entre os sexos mostram como tais percepções permanecem atuantes entre os herdeiros da “revolução sexual” dos anos 1960 e 1970, nos rapazes e também nas moças – e como a pornografia é central nesse processo (Levy, 200521 LEVY, Ariel. Female chauvinist pigs. Nova York: Free Press, 2005.).
Conclusões
A exigência de controle sobre as condições da produção da pornografia, a denúncia das implicações de sua misoginia e a recusa à crescente naturalização da presença do conteúdo pornográfico em todos os espaços (e sua disseminação em forma “suavizada” no mainstream da indústria cultural e na publicidade) são aspectos valiosos da posição de MacKinnon. Sua campanha pela proibição, no entanto, é vulnerável a questionamentos. Ela leva a uma tutela sobre as decisões individuais que parece exigir uma posição autoritária. Ronald Dworkin tem razão ao apontar que, de uma posição diversa, “arte homossexual ou teatro feminista” podem ser considerados tão degradantes para as mulheres quanto a pornografia que MacKinnon condena (Dworkin, R., 20069 DWORKIN, Ronald. Women and pornography. In: SPECTOR, J. (ed.). Prostitution and pornography. Stanford: Stanford University Press, 2006[1993]. p. 296-310., p. 309). Em suma, não é tão fácil descartar o compromisso liberal com a autonomia moral dos indivíduos, mesmo em questões espinhosas.
Este é, de fato, o problema central de muitas das posições assumidas por Catharine MacKinnon – e que encontra uma manifestação particularmente intrincada em sua discussão sobre o direito ao aborto. Um dos muitos argumentos mobilizados pelo feminismo em favor da legalização do aborto é que sua proibição implica a negação do estatuto de agentes morais autônomos às mulheres. Elas seriam consideradas incapazes de tomar uma decisão da magnitude de prosseguir ou interromper uma gravidez, tendo que ser tuteladas pelos homens, pelas igrejas, pelo Estado. Há pontos ambíguos, como observou Anne Phillips: as feministas em geral se opõem ao aborto seletivo por motivo de sexo, que faz com que, dada a preferência por meninos em várias culturas, sejam descartados embriões do sexo feminino. Ao que parece, as mulheres seriam capazes de lidar com pressões econômicas e familiares, decidindo autonomamente quando ter ou não ter uma criança, mais tais pressões culturais invalidariam sua decisão (Phillips, 200836 PHILLIPS, Anne. Free to decide for oneself. In: O’NEILL, D.; SHANLEY, M. L.; YOUNG, I. M. (eds.). Illusion of consent: engaging with Carole Pateman. University Park: The Pennsylvania State University Press, 2008. p. 99-117., p. 110).
A despeito desta inconsistência pontual, o argumento da capacidade de agência moral é um importante elemento de sustentação da demanda pelo direito ao aborto. MacKinnon, no entanto, enquadra a questão de um modo inteiramente diverso. Na atual configuração das relações entre os sexos, o aborto aparece como uma forma de ampliar o acesso masculino ao corpo das mulheres. Defensores e oponentes do direito ao aborto “partilham uma suposição básica de que as mulheres têm um controle significativo sobre o sexo” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 94). Como não é o caso, as mulheres precisam de estratagemas para escapar do contato sexual com os homens: “A disponibilidade do aborto retira a última razão legítima que as mulheres tinham para recusar o sexo, além da dor de cabeça” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 99). Os próprios métodos anticoncepcionais são vistos como dispositivos que permitem que a mulher esteja sexualmente disponível sem consequências e possa ser “estuprada com relativa impunidade” (MacKinnon, 198728 MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified. Cambridge: Harvard University Press, 1987., p. 95).
Dada a forma dominante da sexualidade, o direito ao aborto apenas “estabelece as maneiras pelas quais os homens se acertam para controlar as consequências reprodutivas do intercurso sexual” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 188). Embora MacKinnon não enuncie sua conclusão com todas as palavras, ela é evidente: é melhor não existir a opção do aborto, ou mesmo da contracepção, a fim de ampliar o custo potencial, para os homens, da relação sexual com mulheres. E caso a igualdade sexual seja alcançada, o aborto se torna desnecessário, reduzido a números insignificantes; e a participação do pai na decisão sobre manter ou interromper a gravidez seria uma exigência razoável (MacKinnon, 200525 MACKINNON, Catharine A. Women’s lives, men’s laws. Cambridge: Harvard University Press, 2005., p. 149).
Em todo o raciocínio, fica rechaçada a ideia de que as mulheres possam ter algum grau, mesmo que mínimo, de autonomia decisional. As reflexões sobre prostituição, sobre pornografia e sobre aborto levam MacKinnon sempre às mesmas conclusões. As ações das mulheres devem ser integralmente interpretadas como produtos dos constrangimentos sociais, da violência estrutural e da introjeção da sexualidade dominante. Por isso, uma posição crítica pode desconsiderá-las. Ao que parece, a consciência individual de cada mulher, quando prévia ao desejado processo de conscientização, é desprovida de qualquer valor. Como algumas comentaristas notaram, MacKinnon se aproxima da teoria da dominação de Pierre Bourdieu (Chambers, 20056 CHAMBERS, Clare. Masculine domination, radical feminism and change. Feminist Theory, v. 6, n. 3, p. 325-343, 2005. https://doi.org/10.1177/1464700105057367
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). Mas do Bourdieu em sua versão menos complexa e mais determinista, que, talvez não por acaso, é aquele que se debruça sobre a dominação masculina (Bourdieu, 19984 BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.).
É claro que o entendimento liberal predominante, que exige uma aceitação acrítica das preferências expressas pelos indivíduos, precisa ser recusado. Afinal, tais preferências são produtos sociais, isto é, produtos de uma sociedade estruturada por relações de dominação. Mas, ao julgar que essa constatação esgota o problema, MacKinnon simplifica em excesso a discussão sobre a autonomia na agência social. Sua construção teórica se mostra bem menos pertinente que aquela de Pateman, cuja interpretação do consentimento no ordenamento liberal – que presume a autodeterminação dos agentes na construção das relações sociais de subordinação – permite uma crítica muito mais nuançada de como o valor da autonomia individual se realiza ou deixa de se realizar nas sociedades contemporâneas.
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1
Este artigo foi produto da pesquisa “Teorias feministas da política”, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF). Agradeço os comentários dos pareceristas anônimos de Sociologias e também a leitura de Regina Dalcastagnè.
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2
Apesar do que identifico aqui como um aceno às vertentes pós-estrutralistas, pela convergência no questionamento à dualidade sexo/gênero, a posição de MacKinnon é muito crítica à corrente (MacKinnon, 200624 MACKINNON, Catharine A. Are women human? And other international dialogues. Cambridge, MA: Belknap, 2006., cap. 5).
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3
Uma versão ainda mais vulgarizada do privilégio epistêmico dos dominados aparece em alguns usos atuais da ideia de “lugar de fala”.
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4
Por isso, quando se diz que “se o Estado cumpre um papel na objetificação e opressão das mulheres, ele o faz por sua incapacidade de apreciar tal objetificação e opressão como formas de injustiça, mais do que por sua participação direta” (Laden, 200320 LADEN, Anthony S. Radical liberals, reasonable feminists. The Journal of Political Philosophy, v. 11, n. 2, p. 133-152, 2003. https://doi.org/10.1111/1467-9760.00171
https://doi.org/10.1111/1467-9760.00171... , p. 136), há uma séria incompreensão de MacKinnon. Segundo ela, as instituições pressupõem e exigem a conformidade com a posição subordinada. -
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A emergência do feminismo transgênero acrescentou novas dimensões à questão do essencialismo. O feminismo radical, ao qual MacKinnon é associada, é por vezes acusado de “transfóbico”, com uma ênfase “ginocêntrica” no sexo biológico. Feministas radicais, no entanto, revertem a acusação, afirmando que é o transgenderismo que pressupõe uma “essência” de gênero, como psicologia e padrão de comportamento, que o feminismo sempre combateu (Jeffreys, 201419 JEFFREYS, Sheila. Gender hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism. Londres: Routledge, 2014.). MacKinnon, por sua vez, se posiciona como advogada dos direitos das mulheres trans. Citando a famosa frase de Simone de Beauvoir (“ninguém nasce mulher, torna-se mulher”), ela arremata: “Como alguém se torna mulher não é, acredito, nosso trabalho policiar” (MacKinnon, 201522 MACKINNON, Catharine A. Sex, gender, and sexuality. Entrevista a Cristan Williams. The Trans Advocate, online, 2015. Disponível em https://www.transadvocate.com/sex-gender-and-sexuality-the-transadvocate-interviews-catharine-a-mackinnon_n_15037.htm
https://www.transadvocate.com/sex-gender... ). -
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Refiro-me às correntes que, inspiradas no trabalho da psicóloga moral Carol Gilligan (1982)16 GILLIGAN, Carol. In a different voice: psychological theory and women’s development. Cambridge: Harvard University Press, 1982., afirmam que as mulheres se caracterizam pela maior atenção às necessidades concretas dos outros, adotando um padrão ético diverso – ou mesmo superior – à ética masculina, dominante, baseada em imparcialidade e observância de regras abstratas. Para um resumo crítico, cf. Miguel (2001)33 MIGUEL, Luis F. Política de interesses, política do desvelo: representação e “singularidade feminina”. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 253-267, 2001. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000100015
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200100... . -
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A tradução para o inglês citada por MacKinnon fala nos “processos misteriosos da vida” (MacKinnon, 198927 MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 55).
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Para um resumo do debate, cf. Miguel (2014)32 MIGUEL, Luis F. O debate sobre prostituição. In: MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 138-145..
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Set 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
02 Jul 2021 -
Aceito
29 Mar 2022