Resumo
A análise de um arquivo formado por editoriais de dois dos mais importantes jornais brasileiros durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19 identificou a predominância de um enquadramento que atribuiu as decisões do governo Bolsonaro ao negacionismo científico. A partir de fontes históricas e sociológicas, este artigo discute o que ficou de fora desse enquadramento normativo sobre ciência e saúde, em especial como a extrema-direita adaptou para o novo ecossistema midiático o uso do paradigma da desinformação criado por indústrias cancerígenas. O artigo conclui que o enquadramento jornalístico do negacionismo priorizou críticas à incompetência do Estado, dando menor visibilidade ao papel do Sistema Único de Saúde na urgência sanitária.
Palavras-chave negacionismo científico; fake news ; desinformação; pandemia de Covid-19; esfera pública técnico-midiatizada
Abstract
An analysis of an archive formed by editorials from two of the most important Brazilian newspapers during the first two years of the Covid-19 pandemic identified the predominance of a framing that attributed decisions of the Bolsonaro government to a denial of science. Based on historical and sociological sources, this paper discusses what this normative framing about science and health ignored, especially how the extreme-right adapted use of the paradigm of disinformation created by the tobacco industry to the new mediatic ecosystem. The paper concludes that the journalistic framing of science denialism emphasized criticisms that accused the state of incompetence, giving less visibility to the role of the federal Unified Healthcare System during the health emergency.
Keywords science denialism; fake news; disinformation; Covid-19 pandemic; technical-mediatized public sphere
Em todo mundo, a desinformação durante a pandemia de Covid-19 trouxe consequências negativas para a saúde pública. No Brasil, um país em que o governo federal estava sob o controle da extrema-direita, o presidente Jair Messias Bolsonaro refutou as recomendações de órgãos como a Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a necessidade do isolamento social, do uso de máscaras e da vacinação, colaborando para a circulação de notícias fraudulentas que incentivaram a adoção de formas de automedicação e tratamentos ineficazes. A preocupação de saúde pública com o vírus SARS-CoV-2 emergiu, portanto, durante um governo que contava com uma rede de apoio digital na disseminação de fake news as quais contestavam medidas de enfrentamento que buscavam impedir o contágio pelo vírus.
Buscando compreender como a opinião pública acompanhou esse contexto social e histórico sob as lentes da imprensa profissional, empreendi uma pesquisa baseada na criação e análise de um arquivo formado pela compilação e leitura de uma seleção de editoriais sobre a pandemia, desde sua declaração pela OMS, em 11 de março de 2020, até 11 de março de 2022, em dois jornais brasileiros de grande circulação: Folha de S. Paulo e O Globo. A escolha da seção editorial para análise se baseia no fato de que ela costuma definir os temas mais relevantes no período, apresentar a posição oficial do veículo e, mesmo que indiretamente, também a linha editorial da cobertura do jornal sobre um tema. A leitura dos editoriais não focou os editoriais em si mesmos; antes, nos enquadramentos que eles criaram e disseminaram, oferecendo chaves interpretativas à opinião pública (San Andrés; Castromil, 2020).
A compilação dos editoriais envolveu a leitura de todos que trataram das polêmicas em torno da urgência de saúde pública. Eles foram coletados manualmente e sua seleção teve como critério a menção às medidas do governo federal no enfrentamento da pandemia: os centrados no governo Bolsonaro até os que abordavam os governos estaduais e municipais, órgãos de saúde e afins, desde que com alguma referência ou comparação com a atuação federal. Foram excluídos aqueles que apenas descreviam o estágio da pandemia, seu impacto local, avanços da ciência ou abordavam apenas aspectos de ordem econômica, como a crise, ou social, como o aumento da violência doméstica. No total, foram selecionados 170 editoriais da Folha de S. Paulo e 219 de O Globo.
Feita a seleção, seguiu-se uma segunda leitura, com anotações detalhadas, para identificar recorrências nas temáticas sobre a pandemia, na escolha de palavras para caracterizar a condução governamental da urgência de saúde pública, estruturas retóricas, entre outras.1 Também foi possível criar uma linha do tempo com os temas que delimitaram períodos dos embates sobre as medidas contra a Covid-19, dentre os quais se destaca o primeiro semestre de 2021, que se iniciou com a tragédia em Manaus, seguida da segunda e mais mortal onda da pandemia, culminando no início das atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. Além da identificação desses aspectos, a leitura foi conduzida sob a perspectiva da análise foucaultiana do discurso. Michel Foucault definia discursos como práticas que criam incessantemente os objetos aos quais se referem (Foucault, 2021), portanto, para o filósofo, discurso não é sinônimo de texto, e sim uma dimensão de produção da realidade social.
Uma análise do discurso inspirada na analítica do poder foucaultiana envolve ler fontes textuais buscando identificar atores e reconstituir relações de poder em um determinado contexto social e histórico. Articulando os procedimentos de uma abordagem qualitativa do estudo dos enquadramentos midiáticos a uma análise do discurso afeita a objetivos sociológicos, identifiquei um enquadramento editorial caracterizado pela crítica ao enfrentamento da pandemia pelo governo Bolsonaro, assim como alguns dos aspectos que ele deixou de fora.
O conceito de enquadramento não tem uma definição estabelecida, mas foi inspirado pela obra Os quadros da experiência social, de Erving Goffman (2012), publicada originalmente em 1974, em que enquadramento designa um esquema de interpretação prévio, acionado pelo sujeito na definição de uma situação. Robert Entman (1993) aplicou o conceito para explicar como a mídia estrutura as notícias promovendo certas interpretações sobre os acontecimentos. De forma geral, é possível afirmar que enquadramento midiático se refere à forma como as mídias interpretam e representam a realidade, o que pesquisas sociológicas podem identificar e contrapor a fontes empíricas das ciências sociais e da história.
Predominou, nos editoriais jornalísticos analisados, um enquadramento da pandemia que associava os posicionamentos e decisões do presidente ao negacionismo, como afirmou O Globo, em subtítulo a editorial de 25 de março de 2020: “O erro de desconsiderar a pandemia leva presidente a ficar na contramão da ciência e do país”. A Folha, por sua vez, seguiu visão similar em editorial do dia 31 do mesmo mês, no qual se lê “o que se viu foi o presidente Jair Bolsonaro agarrar-se ao papel de garoto-propaganda de uma forma perigosa de negacionismo da gravidade da doença”. A oposição negacionismo versus ciência apareceu também por meio de sinônimos ou outras estruturas que a mantinham presente nos editoriais – como as que associaram decisões do presidente ao delírio. O Globo assim descreveu, em título de editorial de 17 de março de 2021, o que esperava o quarto ministro da saúde de Bolsonaro: “Desafio de Queiroga na Saúde é resistir aos delírios bolsonaristas”. Na Folha, em 22 de setembro de 2021, observa-se: “Mas, no Brasil de Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde não é muito mais que uma caixa de ressonância dos delírios do clã presidencial”.
De maneira esquemática, os negacionistas eram o governo Bolsonaro e seus apoiadores, enquanto os que seguiam a ciência seriam os próprios leitores dos editoriais, pressupostos como parte da população que seguia medidas como o distanciamento social. Os posicionamentos públicos e decisões de Bolsonaro foram frequentemente descritos nos editoriais da Folha e de O Globo como negacionistas, atribuídos à sua ignorância e considerados prova de sua incompetência. Em 25 de março de 2021, quando se aproximava o auge da segunda onda de contágio, O Globo resumiu: “Negacionismo, omissão, incompetência e, sobretudo, desprezo pela vida humana arrastaram 300 mil brasileiros ao túmulo”. Já em 17 de janeiro de 2022, a Folha concluía: “Desconexão com a realidade e incompetência são duas das características marcantes do governo Jair Bolsonaro (PL) no enfrentamento da Covid-19”. Críticas que podem eximir Bolsonaro e seu governo de intencionalidade em suas ações, obscurecendo o que, em termos sociológicos, é precisamente o que deve ser investigado: as razões e interesses que dirigiram as decisões do governo Bolsonaro na pandemia.
A seguir, busco apresentar o que ficou de fora do enquadramento das medidas governamentais interpretadas como negacionismo científico, questiono o diagnóstico de que viveríamos uma onda anticiência, como tal marco deixou de explorar as históricas tensões entre saberes científicos, clínicos e experienciais ignorando a história de como a saúde pública já foi sabotada por interesses de mercado por meio do paradigma da desinformação. Depois analiso como a estratégia de desinformação do governo Bolsonaro encontrou condições ideais na esfera pública moldada pelas redes sociais digitais, nas quais ela instila não a dúvida – como fez a indústria do tabaco na segunda metade do século XX –, mas a discórdia, pois o negócio da extrema-direita contemporânea pode ser compreendido como a interdição à formação de consensos coletivos.
O que ficou de fora do diagnóstico de negacionismo científico
Não há dúvidas de que os editoriais dos dois jornais brasileiros criticaram o governo Bolsonaro em sua desastrosa condução da pandemia de Covid-19 e o responsabilizaram, como prova o editorial de O Globo de 18 de abril de 2021, intitulado “A responsabilidade de Bolsonaro pelo caos na pandemia”: “É incontestável que o negacionismo e a obtusidade de Bolsonaro, sua propaganda de drogas ineficazes e seu desdém pelas vítimas são atitudes desprezíveis” e o da Folha, em 27 de setembro do mesmo ano: “Nunca se poderá esquecer que o Brasil viveu uma catástrofe, por efeito direto da negligência do governo Jair Bolsonaro”. A identificação do enquadramento predominante nos editoriais permite discutir como essa crítica foi construída, trazendo à luz seus pressupostos e os submetendo a uma análise historicamente fundamentada. Tais procedimentos podem contribuir para reconhecer os limites do enquadramento e, em termos figurativos, trazer à visão elementos que ficaram de fora, impedindo um olhar ampliado – potencialmente diverso e mais complexo – sobre o que se passou.
O enquadramento predominante nos editoriais sintetizou as controvérsias sobre as formas de enfrentamento da pandemia de Covid-19 na oposição negacionismo científico versus ciência. Enquadramento que resume os conflitos e debates sobre medidas de saúde a uma adesão ou recusa à ciência, como se a questão envolvesse apenas uma escolha entre a razão e o desatino e não entre diagnósticos sobre a urgência de saúde pública que implicavam formas distintas de enfrentamento da Covid-19. Historicamente, as políticas de saúde sempre envolveram aproximações ou distanciamentos entre saberes científicos, clínicos e experienciais, os quais não foram reconhecidos tampouco discutidos pelos editoriais e, cabe a estudos futuros avaliar, provavelmente, também não pelo restante da cobertura midiática que adotou esse enquadramento durante a pandemia no Brasil.
Questões de saúde pública envolvem decisões, medidas e políticas que são resultado de debates entre campos diversos e não a mera aplicação de descobertas científicas. A medicina científica é uma área especializada, enquanto a maioria dos médicos têm experiência predominantemente clínica. A pressuposição dos editoriais de que a área de saúde, como um todo, é um campo científico ou de aplicação da ciência é simplificadora e não resiste a um olhar especializado. Um mesmo tema de saúde pode ser encarado sob a perspectiva da medicina científica, da prática médica e, também, pelo conhecimento da população, baseado em suas experiências.
John H. Evans e Eszter Hargittai (2020) acrescentam que discussões sobre saúde envolvem não apenas fatos científicos, conhecimento e nível educacional, mas também, e sobretudo, os valores das pessoas. No contexto norte-americano, em que a pandemia também ocorreu sob governo de extrema-direita e a sociedade dividida politicamente, estudos apontam que segmentos da população desconfiavam de medidas contra a Covid porque partiam de autoridades cujos valores questionavam. Em outras palavras, o enquadramento dos embates brasileiros na chave do negacionismo tendeu a reduzir um cenário complexo e multifacetado a uma oposição binária entre ciência versus negacionismo.
O marco identificado e aqui descrito também circunscreveu as decisões e medidas do governo Bolsonaro à ignorância ou incompetência, ignorando perspectivas bem fundamentadas como a da pesquisa de Rossana Rocha Reis, Deisy Ventura e Fernando Aith (2021), a qual demonstra que a recusa do governo federal ao isolamento social e ao uso de máscaras se relacionou com o diagnóstico de que a imunidade coletiva poderia ser atingida se o maior número de pessoas se contaminasse. Sublinhe-se: um diagnóstico que se provou equivocado pelas experiências do Reino Unido e da Suécia. Tal interpretação também foi sugerida em algumas das descobertas da CPI da Covid-19, como a existência de um gabinete paralelo que aconselhava o presidente da República e colaborava na edição de medidas para evitar o isolamento social.2
O que os editoriais descreveram durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19 como negacionismo revela uma concepção normativa de ciência e, algumas vezes, também o pressuposto de que viveríamos uma onda de desconfiança ou recusa dela. De acordo com Pechula, Gonçalves e Caldas (2013), na perspectiva normativa sobre a ciência, o conhecimento e o desenvolvimento científicos são vistos como únicos e universais, gerando resultados absolutos e definitivos, como se a ciência apenas dissecasse a natureza e a sintetizasse em números. O axioma de uma onda de desconfiança ou recusa da ciência também não condiz com os dados apresentados pelas pesquisas sobre “Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil”, feitas de 1987 a 2019, por órgãos ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), como o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). Segundo Delabio, Cedran, Mori e Kioranis (2021), os resultados provam a ampla confiança da população brasileira na ciência e uma crescente visão positiva sobre os cientistas.
Pesquisa do Pew Research Center (2020) afirmou que os cientistas são os profissionais com maior confiança no Brasil. No entanto, essa pesquisa foi apresentada no editorial da Folha de 05 de outubro de 2020 com ênfase em outro dado, o de que – entre 32 países – os brasileiros seriam os que menos confiam na ciência e nos cientistas, o que reforçaria a tese de que viveríamos em uma época de desconfiança na ciência. A análise dos editoriais da Folha e de O Globo permite afirmar que predominou neles a afirmação categórica da ciência definindo como negacionistas aqueles cujas posições seriam explicadas por ignorância ou adesão a ideologias extremistas. O diagnóstico de negacionismo considera que a recusa e/ou sabotagem de medidas cientificamente embasadas resulta da mera ignorância ou desatino, de inépcia e incompetência, outros termos que apareceram nos editoriais.
No início de 2021, começo da segunda onda, a mais mortal da pandemia, a Folha vaticinou: “Por uma mistura de escolhas erradas, ideias estúpidas e incompetência governamental, o Brasil está vergonhosamente atrasado na vacinação de sua população contra a maior pandemia em um século” (Folha de S. Paulo, 5 jan. 2021). O Globo descreveu o governo como continuando a “cometer desatinos” (7 jan. 2021) e Bolsonaro como “desconectado da realidade” (O Globo, 26 fev. 2021). Diagnóstico que deixou de explorar as tensões e disputas históricas entre saberes sobre saúde, mencionados anteriormente, tampouco a perspectiva apontada por Reis, Ventura e Aith (2021) de que as ações governamentais teriam que ser investigadas como possível estratégia articulada para expor a população ao contágio.
Em termos propriamente sociológicos, a ciência deve ser compreendida em sua historicidade e inserção cultural e os embates sobre formas de enfrentamento da pandemia inseridos em uma história mais longa que também envolve interesses econômicos e políticos. É possível traçar as bases para as controvérsias sobre a origem do vírus SARS-CoV-2, suas formas de prevenção e tratamento, recuperando o que se descobriu a partir do acesso a arquivos da indústria do tabaco, na década de 1990. Estudos provaram que a indústria do fumo criou um paradigma de manipulação da opinião pública e instituições para impedir que sua mercadoria fosse declarada cancerígena. Historiadores da saúde pública (Proctor; Schiebinger, 2008) analisaram como os interesses econômicos impulsionaram práticas como as de financiamento de pesquisas, publicações e matérias na imprensa que impediam ou disputavam a comprovação da relação inequívoca entre fumo e câncer.
Historiadores da ciência como Naomi Oreskes e Eric M. Conway (2010) afirmam que o objetivo da indústria foi o de disseminar a dúvida no meio científico e na opinião pública, retardando decisões legais que afetariam negativamente seu negócio. Antecedentes históricos como este podem ter contribuído para que parte da sociedade passasse a suspeitar dos interesses que articularam indústrias, pesquisadores e órgãos de imprensa, pavimentando o caminho que nos traria, no século XXI, a um contexto afeito à busca de fontes alternativas de informação sobre saúde. De forma geral, criando um clima de suspeita sobre questões de interesse público que envolvem a vida dos cidadãos.
Interesses econômicos de grandes indústrias como a do tabaco, do plástico, de armas e a farmacêutica já fizeram uso estratégico da esfera científica e da imprensa para criar controvérsias impedindo ou, ao menos, postergando regulações e políticas governamentais. A saúde pública, nesse contexto, tornou-se refém de campanhas organizadas para criação de incerteza, como a que a indústria do tabaco implementou com sucesso a partir da década de 1950 por meio da firma de relações públicas Hill and Knowlton (Oreskes; Conway, 2010). Sua campanha criou um paradigma usado até hoje por outras indústrias e grupos de interesse que disseminam dúvida e causam dano à saúde pública por meio de três argumentos principais: 1. Causa e efeito sobre o uso de um produto ou bem e um agravo à saúde não teria sido estabelecido; 2. Dados estatísticos não proveem respostas cabais, o que permitiria questionar estudos epidemiológicos, inclusive pela apresentação de outros dados, gráficos e tabelas; 3. Mais pesquisa é necessária para chegar a conclusões, pois as evidências ainda não seriam suficientes.
Grupos de interesse, até nossos dias, usam argumentos similares, apenas adaptados e atualizados dentro da mesma estratégia comunicacional que poderíamos chamar de desinformação. Um caso paradigmático é justamente o do governo Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19. Inseri-lo nessa linhagem histórica permite sofisticar o debate sobre as controvérsias a respeito dos meios de enfrentamento da urgência de saúde, já que renovou o paradigma desinformativo criado por indústrias cancerígenas operando nas mediações que acionam o apoio da opinião pública para definição de políticas públicas. A histórica relação entre a indústria do tabaco e essa estratégia torna compreensível e racional a atuação da chamada “bancada da cloroquina” durante a CPI da Covid, a qual foi qualificada por O Globo (10 maio 2021) como apresentando “questionamentos estapafúrdios” ao ex-ministro da saúde Mandetta. Na verdade, os questionamentos eram liderados por um senador cuja base eleitoral fica em área produtora de fumo e emulam os mencionados acima como criados pela indústria do tabaco.
David Michaels (2008) afirma que medidas e políticas de saúde pública envolvem um conjunto de agentes sociais e que a ciência tem papel decisivo não apenas por suas descobertas ou feitos, mas porque é acionada como potente legitimador de argumentos de diferentes grupos de interesse. É nesse sentido que campos opostos podem – ao mesmo tempo – evocar a ciência para apresentar diferentes diagnósticos sobre um problema coletivo e para a sua solução. A ciência mantém seu poder e legitimidade, o que explica por que grupos de interesse se apoiam em supostas fontes científicas até quando buscam colocar em xeque ou impedir a adoção de medidas de prevenção e/ou meios de tratamento com eficiência reconhecida pela maior parte da comunidade científica. Estudos como os de Amit Prasad (2021) e Michael Lynch (2020) recusam diagnósticos de negacionismo ou a afirmação de uma onda anticiência. Lynch pondera: “ao invés de uma recusa cabal da ciência e da objetividade, o que está envolvido é um esforço para produzir demandas opostas de objetividade e suporte institucional para elas” (2020, p. 50).
É possível dizer que as controvérsias sobre o enfrentamento da pandemia no Brasil não envolviam a pura e simples negação da ciência, tampouco resultaram da incapacidade da opinião pública de compreendê-la.3 À luz da história da emergência do paradigma da desinformação, cabe questionar se o enquadramento do debate público no binário negacionismo versus ciência não desviou o foco dos interesses econômicos envolvidos na disputa em torno das medidas contra a pandemia. Daí o parco interesse em explorar as razões por trás do ataque de Bolsonaro a formas de prevenção que ameaçavam a diminuição da atividade econômica enquanto foi maior a atenção aos seus interesses políticos, como no editorial da Folha intitulado “Não ao negacionismo” (14 out. 2021), em que se afirma: “Bolsonaro insiste na patranha antivacina porque precisa oferecer algo para alimentar os fanáticos que ainda sustentam parte da sua popularidade declinante. Ele depende desses setores radicalizados para viabilizar sua campanha à reeleição no próximo ano”.
Dentre os limites de argumentos como o de que seus apoiadores seriam fanáticos, pode-se destacar o fato de que mesmo o órgão de profissionais especializados se posicionou – a depender da perspectiva de quem avalia – de forma favorável ou benéfica à posição do governo. O Conselho Federal de Medicina não estabeleceu protocolos tampouco se posicionou contra supostos tratamentos “preventivos” à infecção pelo vírus Sars-Cov-2, impedindo que a opinião pública tivesse uma referência confiável em meio às falsas polêmicas criadas pela extrema-direita.4 O Globo avaliou que o CFM, durante a pandemia, “fez picadinho da ciência” (26 out. 21) e a Folha que ele “renunciou à sua obrigação de promover a medicina baseada em evidências” (6 out. 21). Nenhum dos jornais, nos editoriais analisados, explorou a hipótese de que a composição política do órgão poderia ter resultado nessa atuação.
Em suma, diferentemente do afirmado nos editoriais, o mais provável é que parte da opinião pública desconfia da mídia noticiosa estabelecida e não da ciência. O diagnóstico de negacionismo científico não dá conta da disputa política da opinião pública que marcou a pandemia de Covid-19 e tendeu a reificar na chave da ignorância a atuação de grupos de interesse ou de autoridades para desacreditar outras instituições envolvidas na discussão sobre como combater a pandemia. A chave do negacionismo como enquadramento dos embates durante a pandemia de Covid também resumiu a desinformação criada pelo governo e seus apoiadores a um aparato de disseminação de mentiras e não a um paradigma racional de defesa de interesses políticos e econômicos. A seguir, busco apresentar uma reflexão preliminar sobre esse tópico, o que demanda adentrar em discussões da comunicação política e da sociologia digital.
O uso da desinformação durante a pandemia de Covid-19
A partir do item anterior, é possível compreender preliminarmente desinformação como uma forma organizada e sistemática de comunicação utilizada por grupos que fazem uso de diferentes táticas com o objetivo de conquistar ou influenciar a opinião pública. Durante a pandemia de Covid-19, uma dessas táticas envolveu a disseminação de teorias conspiratórias que desviavam a atenção do problema interno, definindo o vírus como invenção chinesa e a OMS, segundo o ex-ministro das relações exteriores no governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, como “ferramenta global para construção da solidariedade comunista planetária” (Editorial, Folha de S. Paulo, 25 abr. 2020).
A importância do fenômeno da desinformação em meio à pandemia de Covid-19 se associou à percepção, por órgãos de saúde, de que vivemos uma avalanche informativa. Tal quadro levou a Organização Mundial da Saúde (2020) a declarar que vivemos – junto com a pandemia – uma “infodemia”, ou seja, sugerindo que o excesso de informações criaria um contexto propício à desinformação. Esse contexto de avalanche informativa criou um terreno afeito a diferentes formas de questionamento das autoridades de saúde. Além disso, a desinformação contemporânea se desenvolve em um contexto diferente de quando foi criada pela indústria do fumo, o que torna necessário dar um passo atrás em busca de definições para desinformação e fake news criadas desde antes do deflagrar da pandemia até a sua vigência.
A UNESCO, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) voltado à educação e à cultura, publicou, em 2018, um manual para jornalistas em que recusa o termo “fake news” por considerar que toda informação/notícia deve ser verdadeira e busca definir e diferenciar três fenômenos: desinformação, informação equivocada e informação enganosa. Segundo a UNESCO (2019), a desinformação seria informação que é falsa e deliberadamente criada para causar dano a uma pessoa, a um grupo social, a uma organização ou país, enquanto a informação equivocada (misinformation) seria a que é falsa, mas que não tem como objetivo causar danos e, por fim, mas não por menos, a informação enganosa (misleading information) é aquela baseada na realidade, mas usada para danificar pessoa, grupo, organização ou país. A maior agência de notícias do mundo, a britânica Reuters, vai mais longe ao afirmar que “fake news é apenas em parte sobre reportagens noticiosas fabricadas em sentido estrito e muito mais sobre descontentamento com a paisagem informativa – incluindo a mídia noticiosa e políticos assim como plataformas de empresas” (Muriel-Torrado; Pereira, 2020, p. 9).
A desinformação é um fenômeno mais complexo e amplo do que apenas as notícias fraudulentas. Pesquisas de opinião – feitas em diversos contextos nacionais – por órgãos como Gallup (2018), a Reuters (2017) e a IPSUS MORI (2019) – permitem concluir que “audiências ocidentais estão relativamente desconfiadas da mídia para reportar eventos acuradamente e com justiça” (Rooke, 2021, p. 3). O cenário de desconfiança foi propício à busca de fontes alternativas de informação como as providas em abundância pelos criadores de conteúdo fora da grande imprensa, que divulgam notícias por sites, canais de vídeo e redes sociais, as quais – em países como o Brasil – terminam alimentando mensagens trocadas por aplicativos como WhatsApp e Telegram.
A desconfiança na mídia noticiosa profissional contribui para o uso das redes sociais digitais como fonte informativa (Alcott; Gentzkow, 2017). A credibilidade e a disseminação de conteúdos que circulam por redes sociais ou aplicativos de trocas de mensagens podem derivar do que observou o Media Insight Project (APNORC, 2016): “quando as pessoas veem um post de uma pessoa de confiança elas se sentem mais inclinadas a recomendar a notícia para seus amigos”. Além disso, o status de suposto “criador independente” de conteúdo pode validar mais a notícia criada por um influenciador digital do que sua acurácia e fazê-la circular em relativo nível de equivalência em relação a outra, criada por um jornalista profissional e publicizada em um veículo informativo estabelecido.
Assim, é possível e necessário apontar os limites de noções como a de infodemia e notícias fraudulentas para compreender o fenômeno contemporâneo da desinformação. Infodemia busca caracterizar – sob a perspectiva da urgência de saúde pública da pandemia de Covid-19 – o que alguns estudiosos da comunicação definem como “jornalismo ambiente” (Hermida, 2010) ou “sobrecarga de informação” (Austin et al., 2012). Portanto, trata-se de fenômeno prévio já identificado e discutido por investigadores da sociologia da mídia. Notícias fraudulentas, por sua vez, são mais do que notícias equivocadas ou mentiras e costumam ser criadas intencionalmente como parte de uma estratégia organizada de desinformação com objetivos econômicos, políticos ou outros.
Os editoriais analisados de O Globo e da Folha de S. Paulo mostram que predominou a compreensão da estratégia de desinformação do governo Bolsonaro como sinônimo de disseminação de notícias fraudulentas compreendidas como mentiras sobre a pandemia de Covid-19. No máximo, houve menções esparsas a milícias digitais ou afirmações como a de O Globo, em editorial de 18 de março de 2021: “Porém o bolsonarismo habita uma bolha própria de desinformação, uma espécie de realidade paralela”. A Folha, em editorial de 21 de janeiro de 2021, avaliou: “o presidente Jair Bolsonaro empenhou-se numa sórdida batalha de desinformação a favor do vírus, na qual promove, com o aplauso e a colaboração de uma claque radical e inconsequente, o descrédito de medidas básicas para conter a disseminação da doença”.
Os editoriais de ambos os jornais associam a desinformação sobre saúde ao radicalismo e à irracionalidade sem reconhecer como, na complexa paisagem comunicacional contemporânea, políticos de extrema-direita se associam a grupos de interesse e seguidores em redes de coprodução desinformativa (Herasimenka et al., 2022). A desinformação em saúde não foi reconhecida pelos editoriais como um paradigma estratégico com objetivos racionais como o de expor a população ao vírus ou a exploração financeira por redes de interesse que poderiam ser identificados, antes, como marketing político, visando manter fiel a base de apoio do governo e seus aliados. A despeito de o tópico ser a Covid-19, o marco no negacionismo tendeu a uma análise das polêmicas em que as complexidades da desinformação sanitária foram tangenciadas e as necessidades do sistema público de saúde pouco discutidas.
A menção predominante dos editoriais a notícias fraudulentas como fenômeno novo, criado em mídias “amadoras” como sites obscuros ou usuários de redes sociais é questionável. Como prova a história da indústria do tabaco anteriormente apresentada, a desinformação costuma ser organizada e já contou com a grande mídia como uma de suas parceiras. A projeção de fake news nas redes sociais e sua compreensão como desinformação ajuda a compreender por que veículos da grande mídia brasileira empreenderam checagem de fatos, o que, além de ser atividade infinita, se baseia no axioma de que o fato ou a verdade se impõe. Ignora que a informação é um processo social e que, como já alertava Walter Lippmann (2015/1922) em seu clássico Public Opinion, a notícia não é a verdade.5 A notícia é apenas um elemento para que o leitor, individualmente, ou a opinião pública, em termos coletivos, se aproxime da verdade.
Buscando contribuir para uma compreensão preliminar da desinformação em sua feição atual e como foi usada durante a crise da Covid no Brasil, trago dois elementos que descobri em pesquisas anteriores sobre as mudanças na esfera pública sob a hegemonia da nova ecologia midiática que inclui as redes sociais digitais e a comunicação interpessoal por aplicativos de troca de mensagens. O primeiro é o aprofundamento da exposição midiática, que explica melhor o que o termo infodemia busca fazer de forma pontual e insuficiente. O segundo elemento busca ir além das notícias fraudulentas para compreender a desinformação como inseparável da forma como a internet intensificou a segmentação midiática, tornando mais difícil a formação de consensos.
Assim como expus em outro lugar (Miskolci, 2016), da tela grande do cinema, passando pela média da tevê, até chegar às menores dos celulares, é reconhecível um processo de crescente individualização do acesso aos mídia, assim como de maior exposição a eles. A visita ocasional ao cinema deu lugar à audiência diária da tevê até chegarmos ao uso quase ininterrupto dos celulares inteligentes, de maneira que hoje somos muito mais expostos às notícias e às novidades trazidas pelo jornalismo, pelo entretenimento e pela propaganda.
A consolidação das plataformas pelas quais acessamos conteúdos on-line nos induziu a uma unificação de perfis em um único, pelo qual a entrada em sites e portais é “facilitada”, provendo aos seus proprietários as condições para nos rastrear e fazer uso comercial de nossos dados (Machado, 2021). Um objetivo comercial foi tecnologicamente moldado, centralizando nossa comunicação interpessoal em um perfil unificado que gerou colapsos contextuais, contribuindo para desentendimentos e até conflitos (Marwick; Boyd, 2010; Machado; Miskolci, 2019). Tal fato permite um grau de segmentação midiática que incentiva perspectivas individualizadas de compreensão e agência, dificultando a formação de consensos baseados em interesses ou valores comuns.
A exposição midiática intensificada, associada ao acesso por um perfil unificado, ajuda a compreender como mudanças tecnológicas e comunicacionais potencializaram a circulação de interpretações customizadas da realidade, muitas afeitas a grupos de interesse político e/ou econômico. Se, no passado, tais grupos buscavam ganhar a opinião pública pelos veículos de notícia empresariais profissionalizados, atualmente, isso envolve também outras ambiências comunicacionais como sites, redes sociais e até aplicativos de trocas de mensagens.
A nova ecologia de meios foi capaz de midiatizar a opinião pública em suas maneiras de se informar, tomar decisões e agir. A janela de entrada nessa esfera pública é o smartphone, ao mesmo tempo um telefone e um computador, o que talvez ajude a entender por que a maior parte da bibliografia discute mais o aspecto tecnológico em detrimento de seu aspecto midiático (Pasquale, 2017). Ainda que não exista uma definição unívoca de midiatização, o termo começou a ser usado para referir-se ao impacto dos mídia na comunicação política e, mais recentemente, nas formas como eles transformam as instituições e os processos sociais. Midiatização, portanto, não se refere à mediação comunicativa apenas, mas sim às formas como a sociedade se torna cada vez mais dependente das mídias e suas lógicas.
Stig Hjarvard (2013, p. 3) afirma que o conceito de midiatização se refere “[às] transformações estruturais das imaginações, relações e interações humanas”. Contribui, portanto, para compreender como os mídia têm papel dominante em outras instituições, a ponto de modificá-las e, por meio delas, as relações políticas e interpessoais. O advento da internet comercial, a partir de meados da década de 1990, mudou progressivamente a ecologia midiática e intensificou a midiatização, pois “a sociedade se submete cada vez mais a, ou se torna dependente, dos mídia e suas lógicas” (Hjarvard, 2008, p. 113). Dentre essas lógicas-modelos, destaco a espetacularização (Berrocal, 2017) e o infoentretenimento (Ferré, 2013), os quais moldam tanto sites noticiosos suspeitos quanto canais de YouTube ou televisão que exploram o que Jeffrey Berry e Sarah Sobieraj (2014) chamam de discurso indignado (outrage discourse). Durante a Covid-19, ambos tiveram papel relevante no apoio às medidas do governo de extrema-direita, com destaque para o canal de notícias Jovem Pan.
Ainda que os estudos sobre midiatização tragam um enquadramento analítico importante, eles exploram apenas tangencialmente o papel da internet, das novas tecnologias e interfaces comunicacionais. Só quando articularmos a midiatização à digitalização poderemos alcançar análises capazes de compreender como os embates políticos e culturais de nossa era são indissociáveis do cenário da nova ecologia midiática e da esfera pública que ela engendrou. Compreender a desinformação como estratégia comunicacional exige repensar como hoje se criam enquadramentos e situar as disputas da opinião pública em um equilíbrio de forças diferente do que existia antes da internet. Abriram-se janelas de oportunidade política e de negócios não apenas para grupos de extrema-direita, mas também para movimentos sociais radicais como os antivacinas (Ferrari et al., 2022), médicos ultraconservadores, entre outros que, circunstancialmente, em especial durante emergências de saúde, podem se associar e/ou trabalhar em rede de forma cooperativa (Herasimenka et al., 2022).
No sistema midiático predominante até o final do século XX, a mídia era vinculada às elites culturais e empresariais, enquanto, atualmente, a agenda pública é mais disputada e envolve atores como os citados acima, assim como os influenciadores digitais e divulgadores científicos. Alguns destes contribuíram para popularizar o diagnóstico de negacionismo científico durante a pandemia, portanto, um tema da área de saúde no qual há mais adesão a uma concepção normativa de ciência do que na sociologia ou na história. O uso do termo negacionismo nos editoriais dos dois jornais data do início da pandemia, mas se intensificou a partir da contratação de divulgadores científicos pelos jornais. A Folha de S. Paulo contratou Átila Iamarino como colunista e O Globo Natália Pasternak, ambos com doutorado em microbiologia. Pasternak publicou, no final de agosto de 2021, em coautoria com Carlos Orsi, o livro Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências. Sua coluna foi citada em alguns editoriais de O Globo e o uso do termo negacionismo se intensificou neles a partir de outubro de 2021. A inspiração para esse enquadramento demanda mais estudos e pode ter origem em divulgadores científicos como os citados, mas também em médicos e outros profissionais de comunicação.
Em uma perspectiva foucaultiana de análise do discurso, é possível afirmar que a predominância, nos editoriais, do enquadramento ciência versus negacionismo, elidiu o caráter também político da defesa de medidas cientificamente embasadas circunscrevendo a politização apenas àqueles que as questionaram ou sabotaram. Tal enquadramento contrapôs a ciência, o real e a verdade à negação, à ilusão e à mentira, deixando de evidenciar que a oposição aos consensos científicos e de gestão da saúde pública podia não ser mero resultado da ignorância e incompetência do governo, mas de uma estratégia político-comunicacional com objetivos racionais. O marco do negacionismo pode ter contribuído para que outras hipóteses fossem exploradas, como a de associação de interesses em busca de monetização e outras formas de lucro.
Na esfera da saúde pública, as discussões são inevitavelmente políticas, já que se trata de área predominantemente técnica. Alguém formado em medicina ou enfermagem não necessariamente fez ou participa do aparato de produção científica, tampouco tem conhecimento sobre políticas públicas. Criam-se, assim, as condições para que, na esfera pública alargada, tivessem voz profissionais com diferentes níveis de conhecimento sobre o vírus e a pandemia. Um dos problemas que tal cobertura trouxe foi o de igualar questões de saúde cotidiana cujas formas de tratamento são conhecidas e consolidadas a uma emergência de saúde global de caráter infectocontagioso que demanda um olhar epidemiológico, medidas de prevenção que exigiam a articulação de políticas e o estabelecimento de protocolos de tratamento.
Tal cacofonia foi possível porque formas coletivas de regulação da atuação profissional não foram tomadas. A decisão do CFM de defender a liberdade individual do médico no diagnóstico e no acordo com o paciente na definição de tratamento, na prática, permitiu a adoção de medidas e fármacos cientificamente ineficazes ou danosos no trato do Sars-CoV-2. Na batalha pela opinião pública, a mesma decisão do CFM deu munição aos grupos que defendiam formas de prevenção e tratamento cientificamente ineficazes, nivelando posicionamentos de profissionais inseridos na área de pesquisa, com experiência na criação de políticas públicas e atuação como gestores de programas de saúde, e os de profissionais com predominante atuação clínica ou no sistema privado de saúde. Nivelamento com consequências maiores em um novo sistema midiático que ampliou o número de emissores, abrindo, portanto, mais espaço para que vozes com menor conhecimento e qualificação ganhassem atenção e apoio na nova paisagem informativa em que o acesso e a interação com as fontes noticiosas são mais segmentados do que no passado.
Conclusões preliminares
A pandemia de Covid-19 surgiu em um momento histórico marcado pela desconfiança no jornalismo e confiança na ciência. Vale sublinhar o fato de que, no Brasil, a confiança na ciência – segundo a já mencionada pesquisa do Pew Research Center (2020) – independe de filiação política, portanto, tratava-se – ao menos no começo da pandemia – de confiança unificadora em uma nação polarizada politicamente. Quando o jornalismo se aproxima da ciência ganha credibilidade, o que pode ser associado ao aumento da confiança do público na imprensa, apontado em pesquisa do Reuters Institute (2021), apresentada em editorial de O Globo de 25 de junho de 2021.
Segmentos da opinião pública que desconfiam do noticiário das grandes empresas de comunicação têm razões como a suspeita de que a “grande mídia” não defenda seus interesses e busque apenas manipulá-los em favor, por exemplo, das elites econômicas e culturais. Não por acaso, em diversos contextos nacionais, é contra tais elites que populistas têm se apresentado para angariar apoio e vencer eleições. Durante a pandemia, estenderam essa tática de se apresentar como defensores do povo frente às medidas de enfrentamento da Covid-19 que supostamente ameaçariam seu trabalho ou fonte de renda. Contaram, nesse sentido, com o apoio indireto da cobertura midiática feita no enquadramento sob análise neste texto, pois a qualificação de negacionistas tende a fechar a comunicação com um segmento da população rotulado como ignorante ou fanático, estabelecendo ou reforçando uma suposta divisão de classe entre elite esclarecida e povo ignorante.
A desinformação pode ser encarada como um paradigma eticamente questionável e danoso para a coletividade que precisa ser evitado por um aparato institucional apropriado e eficaz de fiscalização. Dentre os fatos identificados pela pesquisa, está o de que a desinformação sobre a pandemia vicejou na confluência entre o novo ecossistema midiático e a emergência de saúde pública, contando com o apoio ou isenção de órgãos e instituições que poderiam impedi-lo, como o mencionado conselho médico.
Assim como sublinhou Michaels (2008), o debate contemporâneo sobre ciência tem substituído ou se sobreposto à discussão de políticas públicas. A urgência de saúde instaurada pela pandemia de Covid-19 tornou patente o perigo mortal de ataques orquestrados às políticas de saúde pública voltadas à coletividade. Em termos históricos e sociológicos, uma sociedade politicamente dividida delimitou o debate sobre uma urgência de saúde pública, criando condições propícias para que o governo federal e apoiadores deslanchassem uma estratégia de desinformação. As divisões políticas anteriores à pandemia – em particular, como a opinião pública se polarizou nas eleições de 2018 – contribuíram para transformar em polêmicas a origem do vírus e as formas de contágio, afetando a definição das medidas de prevenção e tratamento e sua implementação. Diante disso, órgãos de imprensa comerciais contribuíram para disseminar, na opinião pública, um enquadramento sobre o que se passou, que reforça antigas críticas à incompetência e à má gestão pública. Assim, deram menor ênfase à importância do Estado e de políticas públicas de saúde universais e gratuitas.
Indo além da análise amplamente aceita sobre o paradigma da desinformação, criado pela indústria de produtos poluentes, cancerígenos ou eticamente questionáveis, como se baseando na disseminação da dúvida, neste artigo, argumentei que tal paradigma na esfera pública tecnomidiatizada (Miskolci, 2021) revelou-se afeito a grupos que semeiam, mais do que a dúvida, a discórdia, lucrando com o impedimento de consensos que resultariam em protocolos, medidas e regulações coletivas provavelmente mais eficientes no enfrentamento da pandemia. Dentre os resultados que alcançaram, destacam-se a manutenção de um segmento da opinião pública como base eleitoral, a promoção de formas individuais de lidar com a saúde (incluindo a automedicação) e, sobretudo, a desarticulação do SUS e, em alguns momentos, até mesmo sua sabotagem.
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A vertente de pesquisa sobre enquadramentos midiáticos tem linhas que priorizam uma abordagem quantitativa, mista ou puramente qualitativa. As características desta investigação, feita por um sociólogo com formação histórica, permitiram optar pela qualitativa pura. Nessa abordagem, os procedimentos de análise envolvem a identificação de recorrências que, indutivamente, contribuem para a delimitação de enquadramentos. Para uma discussão sobre metodologia qualitativa para análise de enquadramento, consulte Linström e Marais (2012).
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Descoberta feita no início de junho de 2021 a partir de documento entregue à CPI pela médica oncologista Nise Yamaguchi, controversa defensora do governo Bolsonaro e participante do “gabinete paralelo” que discutia a redação e edição de medidas presidenciais. A reunião a que se refere o documento também fora exposta pelo primeiro ministro da saúde de Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, em seu livro Um paciente chamado Brasil. A Folha abordou a denúncia do gabinete em editorial de 6 de junho de 2021, intitulado Delírios paralelos.
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3
A partir de outros contextos, Martin Rooke afirma: “[a] desinformação científica pode estar ligada a preocupações conspiracionais mais amplas sobre temas sociopolíticos do que a simples má-compreensão de fatos” (2021, p. 14).
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Vide o Parecer 4/2020, o qual foi mencionado no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). A despeito de o CFM reconhecer que a cloroquina e a hidroxicloroquina não têm eficácia contra Covid-19, manteve a “autonomia médica” para receitá-los.
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Segundo Walter Lippman: “The function of news is to signalize an event, the function of truth is to bring to light the hidden facts, to set them into relation with each other, and make a picture of reality on which men can act. Only at those points, where social conditions take recognizable and measurable shape, do the body of truth and the body of news coincide” (2015, p. 367).
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq pelo financiamento da investigação no Brasil (Proc. 303051/2022-1) e à CAPES (Proc. PRINT 88887.695909/2022-0) pela bolsa de Professor Visitante Sênior no Departamento de Sociologia Aplicada da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade Complutense de Madrid. Os ricos diálogos com os colegas espanhóis, especialmente com Antón R. Castromil, enriqueceram a versão final do artigo. Por fim, mas não por menos, obrigado aos pareceristas da Sociologias pela leitura criteriosa e sugestões.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
23 Mar 2022 -
Aceito
26 Abr 2023