Resumos
Este trabalho é uma pequena parte de uma ampla pesquisa sobre prática e sonoridade de diversos estilos de música coral. A partir de uma investigação bibliográfica, que inclui autores desde o período Barroco, temos como objetivos: a descrição da sonoridade vocal e coral ao longo do referido período; a abordagem dos tipos vocais da época; a análise de alguns procedimentos técnico-vocais; a descrição de características importantes da prática coral no período; e, por fim, uma apresentação de sugestões técnicas e estilísticas para a prática da música coral barroca na atualidade.
Barroco; música vocal; música coral; técnica vocal; práticas interpretativas
This paper is a small part of a large research on practice and sonority of many choral music styles. Through bibliographical investigation of works written by authors from the Baroque period to the present, our goals are: the description of the vocal sonority throughout the Baroque period; the presentations of the vocal types in the Baroque; the analysis of some vocal techniques; the description of important aspects of the choral practice of the period; and finally, the presentation of some technical and stylistic suggestions for the practice of the Baroque choral music in the present.
Baroque period; vocal music; choral music; vocal technique; performance practice
A sonoridade vocal e a prática coral no Barroco: subsídios para a performance barroca nos dias atuais
The vocal sonority and the choral practice in the Baroque period: guidelines for today's Baroque music performance
Angelo José Fernandes; Adriana Giarola Kayama
(UNICAMP, Campinas) angelojfernandes@uol.com.br (UNICAMP, Campinas) akayama@iar.com.br
RESUMO
Este trabalho é uma pequena parte de uma ampla pesquisa sobre prática e sonoridade de diversos estilos de música coral. A partir de uma investigação bibliográfica, que inclui autores desde o período Barroco, temos como objetivos: a descrição da sonoridade vocal e coral ao longo do referido período; a abordagem dos tipos vocais da época; a análise de alguns procedimentos técnico-vocais; a descrição de características importantes da prática coral no período; e, por fim, uma apresentação de sugestões técnicas e estilísticas para a prática da música coral barroca na atualidade.
Palavras-chave: Barroco; música vocal; música coral; técnica vocal; práticas interpretativas.
ABSTRACT
This paper is a small part of a large research on practice and sonority of many choral music styles. Through bibliographical investigation of works written by authors from the Baroque period to the present, our goals are: the description of the vocal sonority throughout the Baroque period; the presentations of the vocal types in the Baroque; the analysis of some vocal techniques; the description of important aspects of the choral practice of the period; and finally, the presentation of some technical and stylistic suggestions for the practice of the Baroque choral music in the present.
Keywords: Baroque period; vocal music; choral music; vocal technique; performance practice.
Dos vários aspectos interpretativos da música barroca, um dos mais difíceis de se entender e, talvez, o mais crucial para a execução como um todo é a realidade do som com a qual a música era produzida. Durante o Barroco houve um grande desenvolvimento da música instrumental e não há razão para se acreditar na existência de dois padrões de sonoridade - um para vozes e outro para instrumentos. Assim como o som dos vários instrumentos musicais, a sonoridade vocal já caminhava para o que mais tarde GARCIA (1985, 1ª parte, p.9) chamou de voix sombré1. Contudo, a qualidade sonora da voz no Barroco ainda mantinha muito do som renascentista,
1. Estilo e sonoridade vocal: um apanhado histórico
Josquin Des Prez e sua geração introduziram na música cantada uma tendência de humanizar e dar maior expressão ao significado do texto. Tal tendência se desenvolveu e encontrou seu ponto máximo nos madrigais do fim do século XVI e princípio do século XVII. A partir dessa herança, Monteverdi e seus contemporâneos introduziram o stile concitato, uma projeção de intensa dramaticidade do texto que se alternava entre recitativo e ária. Outra herança deixada pela Renascença é o conceito de sonoridade. Newton (1984, p.21) ressalta que "o prazer sensual da voz cantada que fazia parte do humanismo do século XVI jamais foi perdido no desenvolvimento da seconda prattica." Qual seria, então, o som do canto no stile concitato? Ulrich (1973, p.20; apud NEWTON, 1984, p.21) observa que:
"A voz perfeita deve ser aguda, musical, forte (vigorosa) e clara; aguda, de maneira que tenha brilho; clara para que satisfaça o ouvido; forte (vigorosa), de maneira que não oscile ou perca sua intensidade (ou baixe a afinação); musical para que não agrida os ouvidos, mas os acaricie e seduza os corações dos ouvintes e os prenda. Se alguma dessas qualidades faltar [a uma voz], então esta não é uma excelente voz."
Caccini, no decorrer do século XVII, aceitava este ideal sonoro básico, embora ensinasse aos seus alunos, um estilo baseado na intensificação do sentido do texto. Inegavelmente, o volume de som das vozes aumentou como resultado da maior ênfase no canto solo, mas a qualidade sonora clara, brilhante e com um mínimo de vibrato fora mantida. A única mudança real feita por Caccini foi a de rejeitar o uso do falsete no canto solista. Ele sugeria aos alunos que transpusessem os tons das canções para um tom que pudesse ser cantado confortavelmente na voz natural. Na verdade, a técnica vocal não estava pronta para ser mudada. Embora fosse limitado para dar a devida intensidade dramática às primeiras óperas barrocas, o som suave que vinha da Renascença foi cultivado. Assim, os recitativos muito dramáticos, importante parte das óperas do Barroco inicial, foram desaparecendo em favor das árias - mais adequadas às vozes do século XVII. Segundo Newton (1984, p.23), essa mudança na forma que gerou a brusca distinção entre recitativo e ária, é um dos principais fatores de separação do Barroco inicial do restante do período.
Na França e na Inglaterra a entrada na era barroca foi mais lenta que na Itália, embora os músicos italianos fossem sempre bem vindos nesses países. Elliott (2006, p.41) afirma que graça e beleza são duas das mais importantes características da música barroca francesa. Sua mais importante forma musical foi a air de cour3, que não representava uma ruptura real com o passado como a monodia representava na Itália. A partir de 1660 este estilo, no qual as linhas melódicas foram se tornando cada vez mais fragmentadas por ornamentos, caiu em desuso em Paris e os agréments4 altamente estilizados se tornaram o novo estilo. Na Inglaterra a música barroca foi moldada com base na tradição teatral, na poesia e na retórica. As lute songs5 foram muito representativas neste período, pois também eram baseadas numa longa tradição da canção solo que já existia neste país. A Alemanha, por sua vez, permitiu uma entrada da influência italiana muito maior do que a França e a Inglaterra. De qualquer forma, assim como nos outros países, a ópera demorou mais tempo a chegar.
Conforme já relatamos, as principais mudanças na música vocal na Itália ocorreram na quarta e quinta décadas, em função da separação do recitativo da ária e da explosiva popularidade do canto virtuosístico. A ária se tornou mais simples em sua estrutura, abandonando a grande carga de cromatismo do estilo monódico e investindo numa expressividade estilizada que veio a ser chamada de Affektenlehre ou Doutrina dos Afetos. Essa mudança ocorreu, principalmente, porque a técnica vocal do século XVII, ainda ligada ao legatto suave do canto medieval e do moteto renascentista, se adaptava mais facilmente ao estilo florido do que ao stile concitato.
Na primeira metade do século XVIII Bach e Handel levaram a estética barroca ao seu mais alto grau de expressividade, enquanto que seus contemporâneos encontravam uma nova estética baseada no sentimento e na expressão pessoais. Durante o século XVIII, a doutrina dos afetos chegou a um ponto no qual as figuras musicais ilustrativas raramente apareciam, embora tenham sido um elemento importante na música de Bach e Handel. Newton (1984, p.28) observa que:
"Esta nova ênfase na expressão como a alma da música - porque sem isto a música é somente um agradável tocar de sons - marcou o que pode ser considerado o ponto intermediário na maneira de cantar que começou a emergir no meio do século XIX, as primeiras pistas da nossa técnica vocal contemporânea. As vozes estavam respondendo muito bem a este novo conceito de sentir no cantar."
2. O cantor barroco: tipos vocais e suas características
Seria possível detectar alguma mudança ocorrida no som vocal do princípio do século XVI ao final do século XVIII? Segundo Newton (1984, p.45), embora Burney (1957, v.2, p.9) tenha escrito sobre o que seria o canto eficiente no final do período Barroco, tal citação pode nos ajudar a responder esse questionamento:
"O bom canto requer uma voz clara, doce, regular, flexível, e igualmente livre de defeitos nasais e guturais. É, porém, pelo som da voz e articulação das palavras que um cantor é superior a um instrumentista. Se ao crescer em uma nota a voz treme ou varia a afinação, ou as entoações são falsas, ignorância e ciência são igualmente ofendidas; e se um trinado perfeito, o bom gosto no embelezamento e uma expressão tocante estão faltando, a reputação do cantor não fará grande progresso entre os avaliadores verdadeiros. Se em divisões rápidas as passagens não são executadas com clareza e articulação, ou se adágios, luzes e sombras, emoção, variação de cor e expressão estão faltando, o cantor poderá ter certos tipos de méritos, mas ainda está distante da perfeição."
Assim, Newton conclui que o ideal básico sonoro não mudou muito, uma vez que foram preservadas características como a clareza do som e a entonação precisa. A diferença se encontra no aumento do repertório de afetos interpretativos que o cantor de ópera necessitava, ao contrário do cantor dos coros sacros do período anterior. Além disso, devemos lembrar que o cantor barroco precisou aumentar sua extensão e seu volume vocais. Contudo, os cantores parecem ter utilizado a mesma base técnica de produção vocal, desenvolvida para se obter um maior domínio virtuosístico. A necessidade de uma maior extensão vocal acabou por enfatizar um aspecto técnico que formalmente não era tão importante: a junção dos registros vocais. O domínio desta técnica se tornou crucial e os cantores eram julgados pelo nível de perfeição que eles eram capazes de adquirir.
Do princípio do século XVII até os primórdios do século XIX, os cantores, com exceção dos castrati, eram classificados como trebles, falsetistas, contratenores, tenores e baixos. O termo treble incluía as vozes de mulheres e de meninos, enquanto o termo soprano se referia ao castrato. Em geral, os falsetistas eram cantores corais e raramente solistas. Diferentemente dos falsetistas que, normalmente, eram barítonos, os contratenores possuíam vozes agudas e leves, capazes de passar para o falsete sem qualquer mudança perceptível. A voz de tenor era mais pesada e cantava normalmente na extensão de um barítono agudo. O barítono, com as características atuais, não existia. Existiram sim, alguns importantes baixos, como Palantrotti, contemporâneo de Caccini e Gosling, amigo de Purcell.
Elliott (2006, p.20) ressalta que na Itália do século XVII as vozes agudas eram as favoritas. Cantoras mulheres adquiriam grande fama na ópera e os tenores eram também muito admirados. Entretanto, os castrati é que se tornaram os mais famosos, primeiro nas igrejas e, até o fim do século, também na ópera. Os franceses não se identificavam com a excessiva expressividade emocional da música italiana e, da mesma forma, a voz do castrato e a ambigüidade sexual, tão popular na ópera e na cultura italiana da época, os deixavam incomodados. Assim, os castrati eram raramente usados. Algumas mulheres cantavam na corte, e grupos de meninos eram utilizados para a execução das linhas agudas (dessu) tanto na musique de la chapelle quanto na musique de la chambre. Elliott (2006, p.42) observa que o tipo vocal que mais chamava atenção era o haute-contre, um tipo de tenor agudo e de voz leve que já provocou debates consideráveis. Na música coral os haute-contre cantavam as partes de contralto. Na Inglaterra, antes da Restauração (1660), as mulheres não faziam parte das performances musicais e teatrais. As partes agudas cantadas eram executadas por meninos. Somente após a Restauração, com a reabertura dos teatros, as mulheres passaram a tomar parte nas performances profissionais. As partes corais eram normalmente indicadas para treble, countertenor, tenor e bass. A parte que causa maiores especulações e controvérsias entre os musicólogos é a de contralto ou contratenor, no caso. Considerando que na época se usava uma afinação mais baixa, muitas das partes escritas para esta voz eram graves para o que conhecemos hoje como contraltos e contratenores. Alguns estudiosos sugerem que Purcell escrevia suas obras para dois tipos diferentes de contratenores, alguns mais graves e outros mais agudos. Há também quem afirme que os contratenores ingleses eram tenores leves e muito agudos como os haute-contre franceses. A afinação mais baixa também influenciava as outras vozes. As partes de tenor eram cantadas também por barítonos e as partes de baixo apenas por vozes de autênticos baixos. É importante ressaltar que, ao contrário do que acontecia na Itália e na França, os baixos ingleses tinham bastante popularidade.
De todos os tipos vocais barrocos, os castrati foram sem dúvida os principais. Não se sabe ao certo quando o primeiro castrato passou a integrar os coros da igreja ocidental, mas a partir da metade do século XVI eles já faziam uma perceptível diferença na prática desses coros. Também não é possível determinar quando os meninos castrados passaram a pretender uma carreira de cantor. O fato é que nos coros crescia a probabilidade de um menino cantor vocalmente habilidoso garantir seu emprego por longo tempo.
Os estudiosos suspeitam que o pior dos castrati possuía uma voz "superior" a de um bom falsetista. O som do falsetista devia ser parecido com o de um contralto masculino que, ainda hoje, pode ser escutado em algumas catedrais que mantêm apenas homens e meninos em seus coros. Trata-se de um som robusto, de extensão vocal limitada e raramente de real beleza, embora satisfatório para a música coral, especialmente quando misturado com o som puro dos meninos Tais falsetistas passaram a ser substituídos pelos castrati, na medida em que esses se tornavam mais disponíveis. Grande parte dos mais importantes castrati foram membros do coro papal. Numa tentativa de descrever a sonoridade de um castrato, Brodnitz (1976, p.20 apud NEWTON, 1984, p.35) nos reporta à dissecação do corpo de um castrato de 28 anos de idade em 1909:
"A fenda da tireóide era dificilmente visível e a laringe inteira era visivelmente pequena. O comprimento das cordas vocais equivaliam a somente 14 mm, o que corresponde às cordas vocais de uma soprano coloratura."
Pregas vocais deste tamanho são naturalmente mais fortes em corpos masculinos. Baseado nesses fatos e na descrição acima, Newton conclui que as pequenas pregas indicam não apenas a extensão vocal aguda, mas ainda, o som puro e claro do soprano ligeiro e a força muscular desenvolvida significam que o som podia ser bem potente, embora provavelmente estridente caso utilizasse muita intensidade ou esforço para conseguir volume.
Não obstante, mais do que qualquer outra característica dos castrati, devemos ressaltar sua extraordinária técnica de florido que extasiava os amantes da ópera, além de suas habilidades de cantar longas passagens em um único ciclo respiratório, sua velocidade, e a clareza de seus trinados.
3. Considerações sobre aspectos técnico-vocais no Barroco
Infelizmente as fontes que descrevem a respiração no canto Barroco são poucas. Os autores da época ressaltam a importância de se desenvolver um controle respiratório eficiente, mas nunca entram em detalhes sobre como o cantor deveria administrá-lo. O que não sabemos é se tal controle era adquirido pela respiração clavicular, intercostal ou diafragmática. Apesar da escassez de informações, há duas breves citações de alunos de castrati italianos: Johannes Miksch e Bernardo Mengozzi, que apontam à importância do tórax elevado, mas são contraditórias no tocante à sua movimentação no processo de inspiração e expiração do ar. Segundo Friedland (1970. p.8), Miksch escreveu que:
"Ao cantar, a barriga deve ser contraída e o peito erguido, para segurar no peito o ar puxado através da boca e do nariz, e, a partir disso, soltar [o ar] aos poucos, como se fosse uma expiração lenta, sem o movimento do peito."
Mengozzi escreveu o Methode du Chant de Conservatoire no qual, segundo Arger (1913-31, p.1006 apud NEWTON, 1984, p.48), diz que:
"Na ação de respirar para cantar, na inspiração é necessário achatar a barriga e fazê-la expandir nova e imediatamente, enchendo-a e erguendo o peito. Na expiração, a barriga deve voltar vagarosamente a seu estado natural e o peito se abaixa proporcionalmente, para conservar e controlar, por o máximo de tempo possível, o ar introduzido aos pulmões: deve-se deixá-lo escapar apenas devagar e sem dar uma pancada no peito."
Baseado nessas descrições, concluímos que a respiração para o canto era, de fato, diferente da que hoje chamamos de "respiração abdominal".
Outro dos mais indiscutíveis aspectos do canto Barroco é a exploração e junção dos registros vocais. Com a decadência do stile concitato na Itália e o crescimento da popularidade do castrato, as preferências em relação à sonoridade da voz mudaram e as objeções ao uso do falsete foram desaparecendo. Ao mesmo tempo "os cantores descobriram que pela junção do falsete com a voz de peito eles poderiam aumentar suas extensões para a crescente exigência da música" (NEWTON, 1984, p.52). O ensino de canto passou a enfatizar o trabalho de fortalecer o falsete e igualá-lo, o mais próximo possível, à voz de peito. Para se atingir tal homogeneidade utilizava-se o portamento que, no canto italiano dos séculos XVII e XVIII, não significava o que veio a significar nos séculos seguintes. Tratava-se de uma técnica para igualar a escala pela suave passagem de uma nota a outra sem quebras ou mudanças da qualidade sonora. Segundo Mancini (1774, p.91):
"Entende-se por este portamento nada mais que um passar, ligando a voz de uma nota para outra com perfeita proporção e união, tanto subindo quanto descendo. Ele será mais belo e perfeito quanto menos for interrompido em tomar o fôlego, pois deve ser uma gradação límpida e justa que deve reger e ligar o passar que se faz de uma nota para outra."
Para Newton, embora nenhum dos professores de canto da época tenha descrito com exatidão como a junção entre os registros devia ser adquirida, eles deixavam claro que tal junção era essencial. Tosi afirmou que:
"Muitos mestres colocavam seus estudantes para cantar de contralto, sem saber como ajudá-los no falsete ou evitar a dificuldade de encontrá-lo. Um mestre aplicado, sabendo que um soprano, sem o falsete, é forçado a cantar dentro de uma extensão limitada a poucas notas, deve não somente se esforçar para ajudar o aluno a encontrar o falsete, mas também não deixar nenhum recurso sem ser testado, para assim unir a voz falsa e a natural, de modo que elas fiquem indistinguíveis; pois caso elas não se unam perfeitamente, a voz terá diversos registros e, consequentemente, perderá sua beleza." (TOSI, 1926, p.23 apud NEWTON, 1984, p.54).
Newton observa que Tosi não deixa claro se falsete e voce finta eram sinônimos. O que parece provável é que voce finta se referia às notas coincidentes da voz de peito e do falsete que deviam ser perfeitamente unidas a fim de se passar suavemente de uma parte a outra da extensão do cantor.
Segundo Newton (1984), Quantz (1966) afirmou que a junção da voz de peito com o falsete era desconhecida pelos cantores alemães e franceses. Provavelmente, Quantz queria dizer que, embora tais cantores da época usassem o falsete, somente os italianos é que sabiam juntar os dois registros de forma homogênea. Uma vez que o canto apreciado implicava numa extensão vocal homogênea, uniforme e regular, tais virtudes só podiam ser adquiridas a partir do uso da voz de peito de forma mais clara e leve - diferentemente da forma como é usada atualmente. Certamente os cantores que não atingiam tal equilíbrio deviam usar a voz de peito de forma pesada e escura, adquirida em função do estilo mais dramático do princípio do Barroco.
A ópera francesa desenvolveu uma boa arte dramática. Contudo, o canto francês em si sofreu uma ruína gradual ao longo do século XVIII. A ênfase primária nas vogais corretas impediu que os cantores desenvolvessem uma sonoridade "ideal" como os italianos. Alguns dos sons vocálicos tornavam-se um problema se nenhuma modificação fosse permitida. Uma vez que os franceses não desenvolviam uma técnica natural e livre, eles eram forçados a aumentar a intensidade de suas vozes para cantar com orquestra o que resultava numa perda de qualidade. Newton (1984, p.61) se pergunta "por que a pedagogia dos franceses parecia levá-los a resultados mais pobres nessa técnica de tornar homogênea a extensão vocal?" Bérard (1969, p.68, apud NEWTON, 1984, p.62), então afirma que:
"Para formar sons agudos é necessário que a laringe suba; isto é, para formar um som seis vezes mais agudo que outro, a laringe deve subir seis 'degraus', por seis linhas, por exemplo; e para formar um som meio degrau acima, a laringe deve se elevar meia linha. É compreensível que devido à razão inversa, a laringe deve descer para sons graves, e que os degraus para se descer são exatamente as mesmas proporções dos degraus de elevação nos sons agudos."
Na escola italiana nenhum escritor deixou algo substancial e detalhado sobre procedimentos técnicos desta natureza, com exceção de Nathan, treinado por Domenico Corri, que aborda esta questão do levantamento da laringe. Em seu livro publicado em 1836 ele afirma que:
"É claramente visível a elevação [da laringe] na produção de notas agudas e [seu] rebaixamento em notas graves. Assim, por esse motivo de efetuar a maior elevação possível deste órgão, nós quase involuntariamente recuamos a cabeça ao fazer grandes esforços cantando." (NATHAN 1836, p.119 apud NEWTON, 1984, p.62).
É interessante notar que Bérard ensina que se deve mover a laringe para cima para se cantar notas mais agudas enquanto Nathan afirma que isso simplesmente acontece. Provavelmente, o que a escola francesa recomendava pode ter causado dificuldades ou transtornos para os cantores. O caminho italiano de permitir que as coisas acontecessem naturalmente era mais eficaz.
A partir das afirmações sobre qualidade sonora, posição da laringe e outros aspectos, concluímos que o direcionamento da voz era o mais frontal possível. Naturalmente, por questões interpretativas, tal direcionamento podia variar, mas era basicamente a voz projetada de forma frontal que poderia alcançar a combinação de leveza e plenitude tão características no Barroco.
A dicção é outro importante aspecto do canto barroco. É fato que existe uma certa nasalidade na pronúncia das vogais francesas. Na era barroca, parece ter havido também um uso da ressonância nasal por parte dos cantores italianos. Segundo Bacon (1966), a pronúncia dos ingleses era mais sibilante e levemente gutural. Burney (1957) afirma que as vogais alemãs tinham uma boa sonoridade apesar das consoantes. Bacilly (1968) e Bérard (1969) dedicaram grandes partes de seus trabalhos à dicção francesa. É importante notar que alguns desses trabalhos apontam certos detalhes diferentes do uso atual:
"Há, particularmente, uma análise cuidadosa de sílabas longas e curtas. Já que as sílabas são uma preocupação, não de enunciação no canto, mas de considerável base poética, é instrução para o compositor e não para o cantor e demonstra novamente o predomínio da poesia sobre a música. Não é surpreendente então que, com esta ênfase na declamação, a produção de sons belos com a voz se tornou uma consideração secundária geralmente negligenciada. Também não é surpreendente que ninguém, além dos franceses, tenha apreciado esta declamação; tudo que os estrangeiros ouviam era um canto ruim causado pela técnica falha, junto com uma má vontade de se modificar a vogal para o benefício do som absolutamente bonito." (NEWTON, 1984, p.65).
Os cantores italianos também estavam interessados na projeção do texto como os franceses, mas partiam do princípio de que grande parte do público queria ouvir a música. A articulação estava intimamente ligada à produção de uma sonoridade vocal esteticamente bonita. Tosi orientava o professor da seguinte maneira:
"Faça o estudante proferir as vogais distintamente, para que sejam ouvidas como realmente são. Certos cantores crêem produzir o som da primeira [(vogal a)], mas fazem ouvir o da segunda [(vogal e)]. Se a culpa não é do mestre, o erro é daqueles cantores que, assim que saem de suas lições, desenvolvem um canto afetado, por se envergonharem de abrir um pouco mais a boca; alguns outros, talvez por abri-la demasiadamente, fazem com que essas duas vogais sejam confundidas com a quarta [(vogal o)]." (TOSI, 1723, p.15).
Tosi distinguia cuidadosamente entre os estilos para igreja, teatro e câmara, e chamava a atenção dos professores para que ensinassem seus alunos a atingir uma boa pronúncia. Mancini, mais explícito no tocante à abertura da boca e sua posição ideal de um "sorriso natural", observou que:
"Convém que o mestre faça seu estudante conhecer com provas evidentes que esta mesma postura [forma da boca] deve servir em qualquer articulação de vogal. E para convencê-lo com absoluta certeza, faça-o pronunciar as cinco vogais a, e, i, o, u, com esta postura de boca indicada, e verá que ela não recebe outra mudança que ao proferir o 'o' e o 'u', porque pronunciar o 'o' obriga somente uma quase invisível mudança na boca e para pronunciar a vogal 'u' deve-se juntamente avançar um pouco os lábios, e de tal maneira que a boca não se afaste de seu modo natural e fique no seu estado anterior, e evite todas as perniciosas caricaturas. Não se deve acreditar com isso que a boca deva ficar sem seus movimentos naturais que convém por necessidade não só para pronunciar as palavras, mas também para expandir e clarear a voz na medida em que a arte ensina." (MANCINI, 1774, p.69).
Este método de pronunciar todas as vogais com uma única posição da boca garantia a igualdade dos sons vocálicos. A área de ressonância se mantinha substancialmente do mesmo tamanho, independente de quanto sua forma mudou com o movimento da língua e dos lábios. Assim, os cantores podiam alcançar uma qualidade sonora uniforme em todo o espectro vocálico; o movimento menor e a maior ação da língua e dos lábios proporcionavam uma forma de articulação das consoantes mais eficiente; e, por fim, esse método acabava por auxiliar os cantores na junção dos dois registros.
O uso do vibrato no início do Barroco é um tema bastante polêmico. Os escritores da época tinham opiniões conflitantes e não utilizavam uma descrição concorde nem a respeito do que era o vibrato. Atualmente, entende-se que o vibrato é um aspecto natural do canto saudável. Contudo, podemos afirmar que as várias citações da época a favor do vibrato afirmam que ele devia ser usado com prudência e moderação, provavelmente como um ornamento e não continuamente presente. A inconsistência na utilização de termos diversos por parte dos escritores da época acaba por causar discordâncias entre os escritores e intérpretes atuais. É importante distinguir entre uma nota afetada por uma instabilidade da intensidade causada por pequena variação na pressão do ar que resulta num vibrato estreito de uma nota cuja altura real é alterada por um ornamento específico. De qualquer forma, se o vibrato estava presente no canto do século XVII, ele era menor e menos perceptível, e certamente não alterava a altura das notas. No século XVII, os cantores cantavam em ambientes diferentes dos que utilizamos atualmente, quase sempre pequenos e íntimos, o que os levava a produzir sons leves e gentis. Eles eram prevenidos contra cantar de forma gritada e contra forçar suas vozes além de seus limites naturais. Igualmente, as grandes igrejas, não requeriam o tipo de volume ou esforço que se espera dos cantores de ópera atuais. Como conseqüência, a produção do vibrato era mais sutil. No Barroco tardio o vibrato ainda era considerado como um ornamento a ser utilizado de forma seletiva, entretanto, sua aceitação era maior.
4. Os coros barrocos
4.1. A prática do moteto tradicional e prática do stile concertato
Desde o princípio do período barroco a prática da música coral religiosa incluía dois tipos de repertório: o tradicional de motetos renascentistas compostos durante o século XVI e motetos compostos pelos primeiros compositores barroco; e o repertório composto no novo stile concertato o qual incluía as cantatas e trazia novas características musicais. Os instrumentos musicais já não eram mais utilizados apenas para dobrar ou substituir alguma voz do coro e as exigências de sonoridade para os coros incluíam, entre outros aspectos, contrastes entre grupos maiores e menores de cantores.
O repertório tradicional de motetos e as obras compostas no novo estilo exigiam níveis de habilidade musical diferenciados. Além disso, sua execução necessitava de diferentes tipos de coros. Parrot (2000, p.29) conclui que os coros que cantavam motetos eram geralmente maiores do que os que cantavam cantatas. O autor cita Thomas Selle que dizia que "[na performance] de motetos devia haver duas vezes mais [cantores], [...] uma vez que as igrejas em Hamburgo eram espaçosas e grandes, e toda a força da música dependia do texto" (SELLE, 1642 apud KRÜGER, 1933, p.68). Johann Adolph Scheibe sugeria que "sempre que possível, dever-se-ia usar um contingente muito forte de cantores para a [performance] dos motetos; de outra maneira a expressão ficaria fraca e medíocre, mesmo que o compositor tivesse tido uma grande preocupação para prevenir isso" (SCHEIBE, 1745, p.182). Este último ainda chegou a afirmar que "cada parte vocal deveria ter várias pessoas [para executá-la]" (SCHEIBE, 1745, p.185). Contudo, ressaltamos que embora os motetos se prestassem à execução com muitas vozes, tal quantidade não era tão necessária no período final do Barroco, posto que o próprio Bach, em seu Entwurff §8, afirmou que seus motetos podiam ser cantados por poucas vozes.
4.2. O tamanho dos coros
É sabido que durante o período renascentista os coros das igrejas e capelas das cortes viveram certo crescimento em número de cantores. Contudo, salvo algumas exceções, no Barroco este crescimento não teve continuidade. Apenas alguns poucos coros que, podendo contar com um patrocínio favorável, cresceram em número de cantores. O coro da capela real francesa, por exemplo, manteve durante a segunda metade do século XVII um número em torno de 60 cantores patrocinados por Louis XIV. Outra exceção comum no Barroco era o aumento temporário dos coros para a realização de fatos importantes. Esse aumento acontecia juntando-se dois ou mais grupos, ou ainda, contratando-se cantores adicionais. Os coros da capela real inglesa e da Abadia de Westminster, por exemplo, normalmente cantavam juntos em ocasiões de coroações. Por sua vez, o coro da igreja de São Petrônio, em Bologna, empregava cantores adicionais na ocasião da festa do santo padroeiro. De qualquer forma, a realidade era bem diferente do que mostram tais exceções. Principalmente pela carência de patrocínios, os coros eram normalmente menores que seus predecessores renascentistas ou, na melhor das hipóteses, mantinham a média dos números atingidos durante o século XVI, ou seja, apesar da existência de coros maiores ou menores dependendo da época e do local, o número de 30 a 40 vozes que se tornou comum durante a Renascença continuou a ser considerado como um número satisfatório ao longo do período Barroco.
4.3. A natureza dos coros: concertistas e ripienistas
Com olhos focados nas tradições luteranas do século XVII, podemos detectar que neste período, o termo "coro" possuía um significado mais amplo do que o atual. Podia significar um grupo instrumental, grupos de uma voz ou um instrumento por parte, ou ainda, um coro maior. Schütz esboça uma distinção clara entre dois tipos de coros para a execução de alguns de seus "Salmos de Davi" (1619). No prefácio da obra ele observa que, "o segundo coro é usado como uma capella e, por isso, é forte, enquanto o primeiro coro, que por sua vez é o coro favorito, é [um coro de sonoridade] leve, e formado por apenas quatro cantores" (SCHÜTZ, 1619). Analisando a instrução de Schütz, Parrot conclui que as seções escritas para capella eram apropriadas para um maior número de vozes por parte, enquanto que todo o restante devia ser executado por poucas vozes escolhidas. Ele ressalta que:
"Embora nós possamos ser induzidos a associar o primeiro coro [capella] com a [idéia de que este era] o coro real e, subconscientemente, pôr de lado o segundo [coro favorito] como sendo um mero quarteto vocal e por isso não exatamente um coro, o tratamento [que este termo recebia] no século XVII é claro: ambos os grupos eram classificados perfeita e naturalmente como 'coros'. Além disso, nós devemos notar que não é o grupo de maior número de vozes que é o 'favorito' em tais obras, mas o pequeno grupo de elite [formado por] vozes solistas - o consort vocal." (PARROT, 2000, p.4).
Para a performance de suas Kirchenstücke,6 Bach sugeria que os cantores fossem divididos em dois grupos - os concertistas e os ripienistas. Essa distinção simples e convencional introduz um princípio que é fundamental para entendimento de como a música no stile concertato era executada no tempo de Bach. As pré-concepções modernas podem nos induzir a relacionar o ripienista com o atual cantor coral, e o concertista com o solista. Entretanto, voltando os olhos para as tradições luteranas desde o tempo de Praetorius, podemos constatar que as responsabilidades dos concertistas incluíam as duas funções - o canto solista e o canto coral. Praetorius ressalta a importância dos concertistas, afirmando que eles eram "a base de todo o concerto" (PRAETORIUS, 1619, p.196). Quanto aos ripienistas, entendemos que seu papel era apenas o de reforçar a sonoridade dos concertistas em alguns momentos de uma obra e nunca o de substituí-los.
Durante todo o Barroco foram mantidos os mesmos princípios. Citando Snyder, Parrot mostra que Buxtehude "pretendia que a maioria de suas obras para quatro vozes não [fosse executada] por coros, mas por um grupo de solistas" (SNYDER, 1987, p.366 apud PARROT, 2000, p.33). O autor ainda cita Mattheson que no princípio do séc. XVIII diferenciava de forma clara os dois tipos de coros utilizados em peças escritas para três ou quatro coros: o primeiro - que tinha seu próprio apoio instrumental - chamado Capella, e o segundo que era "um coro de cantores que formavam o coro principal e [que] consistia de concertistas, que eram os melhores cantores selecionados; esse era onde os executantes chefes ficavam [localizados] e [para quem] a direção [musical] era dada" (MATTHESON, 1713, p.158 apud PARROT, 2000, p.34).
É importante mencionar que "os cantores chefes" não eram solistas separados e discretos que cantavam apenas esporadicamente, em algum movimento escrito para solo. "Eles constituíam um coro - na verdade, o coro principal da obra, o próprio centro da composição e de sua performance" (PARROT, 2000, p.34). Não há muitas razões para se acreditar que essa prática não teria continuado a existir ao longo da primeira metade do século XVIII, atingindo, portanto, a obra de Bach. Em seu Entwurff o compositor determina que para a execução de suas cantatas os cantores fossem divididos em concertistas e ripienistas. Através desta indicação, Bach nos revela o que já nos parece claro desde o princípio desta investigação - diferentemente dos solistas de hoje, os concertistas eram membros do coro, embora fossem "uma seleção dos melhores cantores" (WALTHER, 1732 apud PARROT, 2000, p.35).
Por fim, ressaltamos que essa prática baseada foi empregada em toda a Europa, com menor freqüência em Veneza e Roma, onde a estética do contraste era vivenciada através das performances policorais. Na segunda metade do século XVII essa prática foi ainda explorada na Inglaterra e na França. O grand motet francês dependia do contraste entre o grand choeur e o petit choeur. Da mesma forma, a prática do anthem inglês dependia do contraste sonoro entre os solistas - que cantavam os verses - e o coro.
4.4. A música policoral
A música composta para dois ou mais coros não foi uma novidade do período Barroco. Muitos compositores renascentistas como Palestrina em Roma e Willaert em Veneza se dedicaram à escrita de obras policorais. Entretanto, no período barroco a performance policoral foi explorada de maneiras diferentes, principalmente na questão timbrística, posto que os compositores não somente escreveram obras para coros com formação convencional (SATB/SATB), mas também para coros com formações que explorassem contrastes de timbre (SSAT/SATB/TTTB, por exemplo).
S. Marco em Veneza tornou-se famosa por utilizar antífonas compostas para cori spezzati.7 Esta prática veneziana acabou por se espalhar por vários outros países tendo sido especialmente apreciada na Alemanha, onde foi utilizada por compositores luteranos como Praetorius e Schütz. Em Roma, apesar de se preservar a antiga escrita do estilo contrapontístico palestriniano, as performances policorais se expandiram muito e atingiram dimensões tão grandiosas que chegaram a ser chamadas de "colossais". Algumas dessas performances colossais em Roma chegaram a envolver 12 coros. O grande estilo policoral romano atingiu seu clímax no final do século XVII com a performance de uma missa policoral a 53 vozes, dantes atribuída ao compositor Orazio Benevoli e, atualmente, a Biber ou a Andreas Hofer.
4.5. A utilização dos instrumentos
O desenvolvimento do stile concertato favoreceu outro caminho que também pôde contribuir com o ideal estético do contraste: a conexão da música vocal com a música instrumental. Os instrumentos que antes atuavam como parte integrante do coro, reforçando ou substituindo partes corais individuais, passaram a ser organizados em grupos instrumentais independentes, atuando como um ou mais coros em obras policorais.
A utilização de instrumentos nas performances corais aconteceu aos poucos. Ainda na Renascença, os compositores começaram a expressar o desejo pelo contraste entre vozes e instrumentos, contudo sem designar que partes deveriam ser realizadas por instrumentos e, tampouco, que instrumentos deveriam ser utilizados. Com o passar do tempo, esse quadro foi mudando: os compositores passaram a especificar os instrumentos que deveriam ser utilizados, o contraste entre grupos vocais e instrumentais se acentuou e a diferença entre os idiomas vocal e instrumental começou a se desenvolver e aumentar. A escrita de linhas individuais para os instrumentos no novo estilo concertato não fora a única mudança ocorrida. O órgão passou a ter o novo e indispensável papel de contínuo junto aos coros vocais e instrumentais. Logo no princípio do Barroco, na medida em que os instrumentos passaram a ter designações específicas, houve um verdadeiro aumento da sonoridade como resultado do crescimento dos grupos instrumentais. Tais grupos instrumentais utilizados nas performances da música coral no Barroco inicial não eram padronizados. Entretanto, na medida em que o período caminhava, eles se tornaram cada vez mais homogêneos com uma maior utilização das cordas. Até o fim do Barroco, o contínuo se manteve presente, e os coros passaram a realizar suas performances junto com orquestras maiores e padronizadas.
5. Sugestões para a construção da "sonoridade barroca" nos dias atuais
Nossa função atual é um tanto delicada. Não poderíamos nos isentar da função de apontar meios para a construção de uma sonoridade adequada para a performance da música barroca na atualidade. Antes de tudo, é preciso estar ciente de que reconstruir "vozes perdidas" é uma utopia. Tudo é diferente: desde a técnica vocal até a mentalidade do público que deixa suas casas para assistir a um concerto. Devemos nos ater aos aspectos referentes à construção do som: timbre vocal, procedimentos técnico-vocais para se atingir tal timbre, utilização ou não do vibrato, número de cantores por parte, tipos de cantores e possíveis combinações entre estes, e a utilização ou não de instrumentos.
A primeira de nossas conclusões é o fato de que o som brilhante, rico em harmônicos, claro, leve e intenso é, se não o "ideal", o mais adequado para as vozes. Assim, sugerimos aos regentes e cantores que trabalhem para atingir tal clareza do timbre e leveza do som. Embora a técnica vocal utilizada hoje seja bastante diferente da utilizada na época, acreditamos que a partir das ferramentas da técnica atual pode-se trabalhar um som mais frontal e focado, além da pronúncia mais "pura" das vogais. Neste caso é importante que, mesmo buscando o relaxamento da região da laringe, esta não permaneça muito baixa, e que o som seja direcionado para frente. A leveza pode ser alcançada a partir de dinâmicas mais suaves que também ajudarão a manter o som claro e o vibrato mais controlado. Na verdade, nossa posição é bastante moderada em relação ao vibrato. Assim, acreditamos que sua utilização exigirá cuidado e discernimento por parte dos cantores e dos regentes. A extensão vocal, a melhor junção dos registros vocais e a flexibilidade para se cantar passagens melismáticas e ornamentadas são aspectos fundamentais que devem sistematicamente fazer parte do programa de preparo vocal de qualquer cantor ou coro que se dedique à prática da música barroca.
O próximo aspecto a se pensar é o número adequado de cantores à performance. Os grupos da época tinham uma média de 16 a 36 cantores. Contudo, acreditamos que nenhum grupo coral deva se privar da execução da música barroca em função do fato de possuir um número de cantores fora desse padrão. É possível, ainda que com um grupo de 40 a 50 vozes, trabalhar a leveza sonora através do timbre e da dicção. Um trabalho adequado com aspectos estilísticos como o fraseado e a articulação musical também pode acrescentar muito à sonoridade. Entendemos que nossa função não é indicar números exatos, entretanto, consideramos relevante a prática do contraste sonoro entre grupo de solistas e coro. Certamente o primeiro deve fazer parte do grupo maior como era no período Barroco. O diretor ou regente deverá se encarregar de estudar as obras a serem executadas e, baseado em um conhecimento sólido sobre a prática coral barroca, separar as partes que serão cantadas por todo o coro e aquelas que ficarão a cargo do grupo solista.
Sobre os tipos vocais adequados, acreditamos necessário destacar que os tenores devem ser bem agudos. Um grupo vocal cujos tenores são limitados na região aguda é quase impossível de funcionar. Assim, na falta de tenores agudos, sugerimos que se trabalhe o falsete de forma sistemática em busca de uma maior uniformidade sonora em toda a extensão vocal. Os baixos devem possuir vozes ricamente ressonantes nos graves, porém não "entubadas", e, bem leves na região aguda. A presença de contratenores é extremamente útil para este tipo de agrupamento vocal. Embora as linhas de soprano sejam agudas e as de contralto normalmente graves para os contratenores, sugerimos a combinação de contraltos mulheres e contratenores para a execução da linha de contraltos. Tal combinação pode criar um timbre agradável e apropriado. O naipe de sopranos necessita de vozes com a habilidade de cantar tessituras agudas sem esforço ou com volume excessivo.
Para concluir ressaltamos que a música vocal barroca deve ser executada com os instrumentos segundo a vontade dos compositores. Na medida do possível, deve-se optar pela utilização de instrumentos de época os quais, por sua sonoridade peculiar, acrescentarão muito à performance.
Referências
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Notas
Angelo José Fernandes é regente, natural de Itajubá/MG. É mestre em Práticas Interpretativas (regência) pelo Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, especialista em regência coral e bacharel em piano pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Atualmente é doutorando em Práticas Interpretativas (regência) pelo mesmo programa, tendo como orientadora a Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama. Atua intensamente como regente coral, tendo alcançado destaque por sua atuação à frente do Madrigal Musicanto de Itajubá, recentemente premiado no 10th Athens International Choir Festival, na Grécia, onde conquistou a medalha de prata na categoria Chamber Choirs (coros de câmara) e a medalha de bronze da categoria Mixed Choirs (coros mistos).
Adriana Giarola Kayama, doutora em Performance Practice pela University of Washington, EUA; docente da UNICAMP, atuando nas áreas de canto, técnica vocal, dicção e música de câmara; coordenou os cursos de Graduação e Pós-Graduação em Música da UNICAMP.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Set 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2008