Resumos
Este estudo analisa o 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 de Villa-Lobos e investiga possíveis referências aos quartetos de cordas compostos por Franz Haydn, como Villa-Lobos sugeriu a Arnaldo Estrella.
Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicismo; quarteto de cordas; forma sonata
This article analyses the 1st movement of Villa-Lobos' String Quartet nº 7 and search for possible references to Franz Haydn's string quartets, as suggested by Villa-Lobos in conversations with Arnaldo Estrella.
Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicism; string quartet; sonata form
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Paulo de Tarso Salles
CMU-ECA/USP, São Paulo, SP, ptsalles@usp.br
RESUMO
Este estudo analisa o 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 de Villa-Lobos e investiga possíveis referências aos quartetos de cordas compostos por Franz Haydn, como Villa-Lobos sugeriu a Arnaldo Estrella.
Palavras-chave: Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicismo; quarteto de cordas; forma sonata.
ABSTRACT
This article analyses the 1st movement of Villa-Lobos' String Quartet nº 7 and search for possible references to Franz Haydn's string quartets, as suggested by Villa-Lobos in conversations with Arnaldo Estrella.
Keywords: Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicism; string quartet; sonata form.
1- Introdução
Composto em 1942, o Quarteto de Cordas nº 7 de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) é o mais extenso de seus 17 quartetos de cordas e considerado como uma de suas obras mais complexas. Dentre os comentaristas dessa obra em particular, destacam-se as opiniões de Arnaldo Estrella, Vasco Mariz e Eero Tarasti:
[O quarteto nº 7 é] o mais difícil dos quartetos de Villa-Lobos. Longos traços virtuosísticos, de execução transcendente, são confiados a cada um dos quatro componentes do conjunto.
Não há armadura de clave. Por vezes, um tom aflora, chega mesmo a afirmar-se. No primeiro movimento é o tom de Dó Maior o que mais reponta, e, afinal, lhe serve de conclusão, numa ampla cadência plagal, que engloba no quarto grau, o acorde da dominante (ESTRELLA, 1970, p.59).
[...] sem armadura de clave, virtuosístico ao extremo para cada Executante, impreciso tonalmente, talvez o mais difícil da série para os intérpretes. Nele perpassa um turbilhão de ideias, bailando desenfreada e intensamente, entrelaçando-se à maneira do Ulisses, de Joyce, num esforço sobre-humano para extravasar a alma torturada do artista. Sentimentos contraditórios são expostos por um instrumento e imediatamente repetidos pelos outros, até chegarmos ao Allegro vivace, que encerra o 1º movimento de grandiosidade inigualável (MARIZ, 1989, p.159).
Ele [o quarteto nº 7] poderia ser considerado quase como uma sinfonia arranjada para um quarteto. Ambivalente na tonalidade, consideravelmente mais complicado estruturalmente que qualquer dos quartetos anteriores, igualmente o mais virtuosístico em seu tratamento instrumental, de brilho quase orquestral (TARASTI, 1995, p.309).
O objetivo deste estudo é uma investigação mais minuciosa de aspectos formais e estruturais da obra, sua organização harmônica e temática, além de discutir a releitura do estilo de Franz Haydn e da forma-sonata do século XVIII, filtrados de acordo com o estilo de Villa-Lobos.
O Allegro oferece os costumeiros desafios à análise, típicos da obra villalobiana: formações de acordes não tonais mesclados a acordes tonais; progressões não catalogadas entre esses dois tipos de acordes; linhas melódicas sugerindo tonalidades que não se caracterizam em relação à estrutura harmônica; grande variedade motívica. Em que pese o julgamento de Estrella acima citado, afirmando ser Dó Maior a tonalidade "que mais reponta", não se observa na organização harmônica do 1º movimento a caracterização de uma tonalidade ou modalidade segundo procedimentos consagrados pela harmonia tradicional, tais como cadências, modulações e progressões. Essa dificuldade inicial sugere a possibilidade de emprego da Teoria dos Conjuntos,1 1 Adotou-se como referência para a Teoria dos Conjuntos autores como FORTE (1973) e STRAUS (1990). Tal estratégia analítica tem proporcionado bons resultados não apenas para a música dodecafônica, mas também para certas obras e compositores da 1ª metade do século XX (Stravinsky, Bartók, Milhaud, entre outros) que, assim como Villa-Lobos, empregaram a coleção diatônica (e outras possibilidades como as escalas pentatônica, de tons inteiros e octatônica) sem as hierarquias tonais e modais comuns à música anterior. a fim de revelar certas relações ocultas, ao mesmo tempo em que permite tratamento mais adequado às eventuais formações escalares e agrupamentos triádicos ocorrentes.
Outro aspecto contemplado por este estudo diz respeito à organização formal. Baseado em ESTRELLA (1970), Tarasti afirma que os quartetos de Villa-Lobos rejeitam a forma-sonata e estão mais para os "métodos de imitação e ricercare da Renascença", sem qualquer traço perceptível de Haydn, embora se possa encontrar certa "influência de César Franck" (TARASTI, 1995, p.295). Mas uma análise mais detalhada do movimento inicial do Quarteto de cordas nº 7 revela não só o emprego da forma-sonata, como releitura,2 2 O Quarteto nº 15 (1955) de Villa-Lobos também tem um 1º movimento em forma-sonata, desmentindo essa ideia de que o compositor rejeite esse tipo de organização formal. com várias referências a procedimentos encontrados em quartetos de Haydn.
Todavia, esta investigação se iniciará pelos elementos microestruturais, formadores das relações harmônicas e motívicas, para depois contemplar a organização da macroforma.
2 - Aspectos texturais e harmônicos
Uma vez definidos alguns meios possíveis de se abordar os procedimentos composicionais de Villa-Lobos, o ponto de partida para uma análise consistente pela Teoria dos Conjuntos é a segmentação do material, de onde se tentará extrair relações estruturais significativas.3 3 FORTE (1973, p.83) observa que "por segmentação se compreende o procedimento de determinação de quais unidades musicais de uma composição serão considerados objetos de análise". A escolha inicial baseou-se na organização fraseológica dos compassos 1 a 9 (Ex.1), subdivididos em 1-3; 4-6; 7-9. Nessa sentença Villa-Lobos deslocou o gesto melódico do agudo em direção ao grave, passando por 1º violino; 2º violino e viola (Ex.2).
Vemos assim que esse gesto melódico consiste em três transposições de um tetracorde (4-11, segundo a classificação de FORTE, 1973) através de um ciclo descendente de quintas (Ex.3 ).4 4 Por sua vez, o conjunto resultante das três transposições de 4-11 é o octacorde diatônico 8-23 [7,8,9,10,0,2,3,5]. STRAUS (1990, p.96-97) observa que esse conjunto é formado pela fusão de duas coleções diatônicas 7-35 com seis sons comuns (invariâncias) entre si. A presença desse octacorde indica o caráter diatônico, mas não tonal, desse trecho. As duas primeiras são entremeadas por arpejos de tríades (Ré menor; Mib Maior) que ajustam o movimento descendente. A terceira transposição apresenta uma quebra desse padrão, não há o arpejo nem a suposta entrada do violoncelo, a partir da nota Dó.5 5 O cello apresenta esse material dos compassos 11 a 15, retomando as linhas do 2º violino e da viola. Todavia, o padrão estabelece a sensação de direcionalidade nesses compassos iniciais.
O tratamento dado a cada uma dessas transposições também é variado, mais notadamente no aspecto da densidade textural. Nos compassos 1 a 3, o 1º violino recebe um acompanhamento maciço, em cordas duplas, de todos os demais instrumentos, perfazendo um total de seis linhas de acompanhamento em blocos de acordes. Nos compassos 4 a 6, o 2º violino recebe um acompanhamento inicialmente esparso: a nota final do 1º violino, com a qual se funde em uníssono e uma nota longa (Dó) da viola. Depois (c.5), o 1º violino e a viola se fundem na nota Si. Somente no c.6 temos a formação de um acorde com a participação do cello, totalizando uma densidade de quatro notas. Nos compassos 7 a 9, a nota Sol da viola recebe o acompanhamento de um Dó solitário do 2º violino; no c.8 temos um acorde de cinco notas e até a metade do c.9 um uníssono entre viola e cello. Todas essas intervenções são realizadas em bloco, sem interdependência rítmica, conferindo um caráter homofônico a toda a passagem (c.1-9). Grafando as variações de densidade textural no acompanhamento nesse trecho, segundo o método proposto por BERRY (1987, p.186-190), teremos a seguinte configuração: 6 |1 |4 |1 |5 |1.6 6 Os números indicam, nesse caso, a quantidade de notas presentes em cada acorde. Uma sequência de acordes com mesma quantidade de notas conta como uma única entrada. Como os mesmos são apresentados em bloco, não há diferenciação qualitativa em relação à independência rítmica das linhas que constituem esses acordes.
As relações harmônicas entre os acordes iniciais e a melodia são vistas no Ex.4. A recorrência do tricorde 3-11 (o qual representa as tríades maiores e menores) também evidencia o caráter diatônico desse trecho da obra. Note-se que esse tricorde aparece não somente na linha melódica, como um arpejo descendente, mas também como parte integrante dos blocos de acordes.7 7 O uso não funcional do tricorde 3-11 (tríades Maior e menor) é uma marca da música villalobiana, como se observa em SILVA (2008) e SALLES (2005b, 2008 e 2009b). A superposição desses eventos deixa claro que o uso desse material não apresenta características tonais, mas uma concepção próxima à noção de "pandiatonismo".
O termo pandiatônico é usado para descrever uma passagem que utiliza apenas os sons de alguma escala diatônica, mas sem se basear nas progressões harmônicas tradicionais e tratamento da dissonância. Alguns autores preferem considerar que essas passagens diatônicas sejam atonais do que defini-las como pandiatônicas, enquanto outros não (KOSTKA, 2006, p.108).
Essa questão terminológica de fato é pertinente, pois a percepção de que há um tipo de música diatônica que não se fundamenta em relações funcionais da harmonia tonal é compartilhada por vários autores.8 8 Na dissertação de José Ivo da Silva, a "tendência pandiatônica" é considerada em conjunto com outras possibilidades de análise, indicando o grau de complexidade de avaliação da escrita villalobiana dos anos 1940-50 (SILVA, 2008, p.136-145). Comentando algumas passagens de obras de Stravinsky, Joseph Straus observa que:
A coleção diatônica é muito associada à música mais antiga, mas funciona de outra maneira, primordialmente como coleção fonte de referência de cuja superfície os motivos são extraídos. [...]
Precisamos de uma terminologia para a música diatônica pós-tonal, uma que permita-nos falar sobre seus usos sem confundir a questão com todo tipo de proposições inapropriadas (STRAUS, 1990, p.95-6).
Outro aspecto latente no Ex.4 é a contração do intervalo nas vozes superiores dos acordes: Dó#-Fá# (4ª J); Dó#-Fá (4ª dim.) e Fá-Lá (3ª M). Obviamente, a enarmonização entre o segundo e terceiro intervalos antecipa essa redução. No entanto, nota-se uma apreciável redução dos batimentos entre as notas presentes nos acordes e o material triádico da melodia. É uma forma adicional de redução da densidade, neste caso de ordem harmônica.
Somados esses fatores, podemos considerar uma razoável estabilidade em relação ao material harmônico empregado nos compassos 1 a 9. Cabe até mesmo a definição tradicional de "tema" para essa seção do 1º movimento, levando ainda em consideração certos desdobramentos posteriores da obra. Nesse sentido, o material após o tema "a" sofre significativa alteração a partir do nono compasso. Entre os compassos 9 a 18 a linha do violoncelo se destaca sob a textura, enquanto os demais instrumentos formam tétrades obtidas por meio do timbre de glissando característico das cordas. Nos compassos 13 a 16 (Ex.5) o cello repete o tetracorde temático da viola (c. 7-9).
As tétrades realizadas pelos violinos e viola, por sua vez, apresentam um padrão harmônico baseado em progressões ascendentes de terça, como nos compassos 9-10 (Ex.6).
Com isso, nos compassos 9 a 13 temos outra coleção diatônica (7-35), cujas alterações poderiam suscitar uma classificação como "Mib Maior" ou "Dó menor", não fosse o caráter não hierarquizado da movimentação dos acordes. Procedimentos semelhantes são empregados até o c.21, quando a nota Ré# passa a ser polarizada, por meio de sucessivas aparições em diversas regiões da textura (Ex.7). Ao mesmo tempo, a viola retoma a figuração motívica das primeiras frases temáticas.
A razão de considerar Ré# como nota "principal" do trecho acima, em relação às demais alturas, ocorre em função do material temático que sucede a essa passagem (Ex.8).
Como mostra o destaque do exemplo acima, a nota Ré# continua sendo polarizada até soar solitária nos compassos 30-31, na linha do 2º violino.9 9 Simultaneamente, a linha do violoncelo parece sugerir a continuidade do ciclo de quartas desencadeado pelo tema inicial (Lá-Ré-Sol), passando por Dó (c.32-34); Fá (c.35-38); Sib (c.40-45) e Mib (c.46). Conclui-se daí que o estabelecimento de eventuais "centros", sem uso de relações tonais, ocorre por meio da disposição rítmica de determinadas notas, ou mesmo em sua taxa de repetição.
Porque uma peça não é tonal, entretanto, isso não implica que ela não possa ter centros de alturas ou classes de alturas. Toda música tonal é cêntrica, baseada em classes de altura específicas ou tríades, mas nem toda música cêntrica é tonal. [...] No sentido mais geral, notas que são repetidas frequentemente, estendidas em sua duração, colocadas em registro extremo, tocadas com força e destacadas rítmica ou metricamente tendem a ter prioridade sobre notas que não tenham esses atributos (Straus, 1990, p.89-91).
Esse recurso prepara a entrada de um novo tema, iniciando por essa mesma nota (c.32), como se fosse resultado de uma espécie peculiar de processo "modulatório". Pode-se observar que a partir desse momento o material se torna mais cromático. Com efeito, tomando isoladamente cada linha instrumental nos compassos 32-34, observa-se a seguinte configuração das classes de alturas (Ex.9).
Nos compassos 35 a 39 (Ex.10) ocorre uma transposição T5 (5 semitons acima, ou à 4ª J superior), preservando as mesmas relações entre os conjuntos.
Embora se possa considerar tal trecho como uma superposição de tonalidades,11 11 "[...] o primeiro violino apresenta um tema baseado na escala de Dó# menor tendo ao fundo o acorde da tônica em Dó Maior no cello" (TARASTI, 1995, p.309). No segundo trecho a superposição seria Fá# menor sobre Fá Maior. também é viável observar a interação entre as coleções de cada linha instrumental. Todos esses agrupamentos de notas são subconjuntos da escala octatônica (8-28),12 12 A somatória dos quatro agrupamentos de notas, nos dois trechos analisados nas Tabelas 1 e 2, resulta em duas transposições do conjunto 7-31: [3,5,6,8,9,11,0] e [10,0,1,3,4,6,7], outro subconjunto da octatônica 8-28. uma combinação que Villa-Lobos explorou em um número significativo de obras.13 13 Pode-se mencionar en passant obras como o Polichinelo (da Prole do Bebê nº 1) e o solo de flauta inicial do Choros nº 10, como sonoridades octatônicas marcantes na obra villalobiana.
A notável mudança de textura, associada à transformação do material harmônico, passando de diatônico a octatônico ajuda a estabelecer esse trecho como um segundo tema importante na estrutura do primeiro movimento. Com isso já se antecipa uma possível interpretação formal desse 1º movimento como uma versão livremente ampliada (harmonicamente) da forma-sonata.
Dentro dessa perspectiva, a seção entre os compassos 9 e 31 ganha o caráter de uma transição entre os temas A e B. Nessa transição já observamos elementos de instabilidade como o uso do glissando e o uso descentralizado da coleção diatônica, bem como o encaminhamento da porção final (c.23-31) para um "centro" em Ré#. No c.16 vê-se ainda, de relance, a superposição de dois procedimentos tipicamente villalobianos: a alternância entre "notas brancas" e "notas pretas" e a linha em "zigue-zague" do 1º violino (Ex.11).14 14 Jamary OLIVEIRA (1984) e SOUZA LIMA (1969) já documentaram esse recurso, costumeiro na obra para piano de Villa-Lobos. Tal procedimento está relacionado com a exploração de simetrias inerentes à divisão temperada da oitava em notas diatônicas e cromáticas. Quanto à figuração em zigue-zague, empreendi um estudo sobre os processos composicionais de Villa-Lobos (SALLES, 2005a), onde ofereço uma tipologia em relação à funcionalidade dessas figurações em diversos contextos texturais. Assim, o zigue-zague villalobiano assume três funcionalidades estruturais: a) elemento textural, geralmente em ostinato; b) prolongamento de determinada altura, às vezes associado com mudança de registro (oitava) ou timbre; c) polarização sobre nota situada no início ou final da figuração.
A figuração em zigue-zague no 1º violino assume então um caráter simultâneo de prolongamento, com mudança de oitava da nota Ré#, e de sua consequente polarização como "centro" dessa passagem. Simultaneamente, a alternância entre as coleções diatônicas e cromáticas nessas linhas resulta em uma superposição de escalas pentatônicas (Ex.12).
Ora, a coleção formada pelas notas "pretas": Fá#, Sol#, Lá#, Dó#, Ré#, [6,8,10,1,3] também é reconhecida como uma coleção pentatônica, 5-35. Assim se observa uma superposição de várias transposições da coleção pentatônica nesse compasso. Por sua vez, o agrupamento em destaque no Ex.11, com as notas Mi, Sib, Fá# e Réb correspondendo às classes de altura [10,1,4,6] é uma antecipação do conjunto 4-27 que formará a linha do 2º violino nos compassos 32 a 34 (ver Ex.8 e Ex.11).
Com isso, podemos afirmar que a elaboração harmônica desse movimento foi elaborada com certo esmero, visando certa coerência e preparação entre as seções temáticas e de transição. Pode-se especular então que o projeto composicional desse movimento tenha sido uma atualização consciente da forma-sonata de acordo com uma concepção alargada de organização pós-tonal. Em linhas gerais, é o que se entende por uma obra neoclássica.
3 - Aspectos formais: Villa-Lobos revisita a forma-sonata
Arnaldo Estrella conta que Villa-Lobos dizia ter se inspirado em Haydn, para a composição de seus quartetos de cordas. Mas, baseado em uma noção um tanto ingênua dos elementos formadores do estilo clássico e de aparentes incompatibilidades estéticas, Estrella refutou completamente qualquer relação entre as poéticas de Villa-Lobos e Haydn:
Villa-Lobos afirmava, em conversas íntimas, ter adquirido muito do seu métier de compositor estudando os quartetos de Haydn. [...] O suposto aprendizado com Haydn e a admiração pelo compositor austríaco não poderiam influir num compositor brasileiro, a ponto deste compositor, fortemente vinculado à sua raça e à sua terra, e irmanado às correntes artísticas do século XX, imitar um puro clássico do século XVIII.
[...] Contudo, não parece ter sido a lição de Haydn, os seus processos de compor e a técnica de construção, que realmente marcaram e orientaram o compositor brasileiro. Este voltou-se, de preferência, para o estilo imitativo da polifonia renascentista , para os processos do "Ricercare".
[...] Villa-Lobos interessou-se pela forma da "Fuga", configurando-a como convinha à expressão do seu pensamento. O mesmo não acontece com a forma-sonata. Nos seus quartetos Villa-Lobos não a utiliza, não procura utilizá-la. Ignora-a completamente. O molde não lhe convinha, não o seduz. De um modo geral, Villa-Lobos constrói por justaposição. Utiliza os processos eternos da variação para obter continuidade. Serve-se de contrastes oportunos para estabelecer variedade (Estrella, 1910, p.7; 10; 11).
Estrella se equivocou ao desconsiderar a grande importância da escrita contrapontística nos quartetos de Haydn. Várias passagens e exposições temáticas, seções de desenvolvimento, scherzos e variações haydnianas empregam texturas imitativas, fugatos e demais convenções polifônicas. O simples fato de Villa-Lobos realizar procedimentos semelhantes em vários de seus quartetos é, na verdade, referência direta ao estilo de Haydn. Estudos mais recentes realçam a importância da escrita contrapontística para o estilo clássico do século XVIII:
[...] Em todos esses quartetos [Op.50 de Haydn], a escrita solo independente acarreta uma exibição enfática e complexa de contraponto, mesmo nos movimentos lentos, que consequentemente lhes adiciona fôlego ao lirismo e tranquila gravidade, rara em Haydn até o momento [...]. O retorno parcial à rica e mais 'erudita' técnica do Alto Barroco [...] foi uma estratégia comum tanto a Mozart como a Haydn em várias fases de suas carreiras (ROSEN, 1997, p.139).
A abordagem formal, semelhantemente a muitos compositores do século XX como Stravinsky, Schoenberg, Prokofiev e Bartók, não ocorre na articulação entre forma e tonalidade da sonata clássica, mas sim na distribuição textural, motívica e mesmo em relação à macroforma e suas expansões advindas desde o século XIX. Já com a breve descrição dos temas oferecida no tópico anterior, podem-se esquematizar algumas das relações harmônicas que estabelecem uma exposição temática em moldes semelhantes aos da sonata-forma (Ex.13)
Observam-se algumas estratégias que intensificam a percepção de áreas estáveis, para os temas A e B, os quais empregam material contrastante (coleções diatônicas no tema A, coleções octatônicas no tema B), enquanto o material da ponte tem entre suas caracterizações de instabilidade o emprego de figurações de glissando, além de maior número de mudanças na textura. Destaca-se ainda o caráter processual de Lá a Mib, por meio de um ciclo de quintas descendentes (Lá, Ré, Sol, Dó, Fá, Sib, Mib) o Ré# é polarizado melodicamente já nos compassos 11-18 e vai sendo reiterado até o início do desenvolvimento, enarmonizado como Mib.
No Quarteto de Cordas Op.76 nº 2, em Ré menor, Haydn utilizou um tema em quintas descendentes, superposto ao tetracorde superior da escala de Ré menor harmônica (em destaque no Ex.14). Enquanto o tema em quintas remete às entradas do tema A, no Quarteto nº 7, o tetracorde de Ré menor se assemelha enormemente com esse mesmo tema (Ex.15).
Esse tema, facilmente convertível em um baixo, é explorado por Haydn em diversas combinações, como no desenvolvimento da obra (Ex.16). Tal jogo de superposições é também semelhante ao realizado por Villa-Lobos em algumas passagens do Quarteto nº 7, como se observa no início da seção de Desenvolvimento (Ex.13 acima). A distribuição dos elementos texturais em ambas as obras é realmente notável, se compararmos os dois trechos (Ex.16 e Ex.17).16 16 Villa-Lobos fez diversas releituras semelhantes em outras de suas obras, como o Prelúdio de Tristão e Isolda (Wagner) em Uirapuru, o solo de fagote de Le Sacre du Printemps (Stravinsky) no solo de sax do Noneto, a Abertura de Guilherme Tell (Rossini) na Suíte Sugestiva, o Carnaval dos animais (Saint-Säens) em O canto do cisne negro, sem falar nas Bachianas. Longe de ser uma prática de plágio, como já se insinuou a seu respeito, trata-se de um procedimento relativamente comum, agregando composição e análise. Há casos como o Op.19/6 de Schoenberg, relendo a Sinfonia nº 9 de Mahler (SALLES, 2007), Agon de Stravinsky, reaproveitando a série das Variações Op.30 de Webern, Golliwogg's Cakewalk de Debussy parodiando Tristão e Isolda de Wagner.
4 - A seção de Desenvolvimento: uma escuta "vagante" pela harmonia dos quartetos de Haydn
No restante do Desenvolvimento, Villa-Lobos parece se afastar do modelo haydniano. Nos compassos 55 a 58 os violinos tocam, oitavados sobre a nota Sol, uma célula derivada do tema A. Isso leva a uma espécie de transição (c.59-66) onde uma série de trêmulos e trinados é feita sobre a linha do cello, que caminha de Sol a Dó. Surge então uma melodia bastante expressiva, a cargo do 1º violino, que leva o Dó inicial até um Si, no c.77. Todavia, a polarização em Si já se manifesta no c.70 (Ex.18). Todo o material dessa passagem é essencialmente diatônico, com exceção de um Sib no cello (c.67).
Após o Si agudo do c.70, o violino solista faz uma breve cadenza que incorpora o Fá#. Com essas alterações, o material harmônico resultante nos compassos 67 a 73 pode ser bipartido em dois octacordes diatônicos 8-23: [9,10,11,0,2,4,5,7] e [4,5,6,7,9,11,0,2]. A nota Si do c.70 seria assim o divisor de águas entre essas duas coleções, o que associado ao destaque natural por ser o ponto culminante da frase, lhe atribui também um sentido harmônico.
O Desenvolvimento assume assim um caráter errante, talvez até mesmo errático, introduzindo um novo tema lírico que se inicia claramente modal, em Mi "dórico", mas que se estende com modificações harmônicas entre os compassos 77 a 111. Entre os compassos 111 e 116 se estabelece uma curiosa caracterização de "Lá Maior", em que a linha do cello leva à "Subdominante", ponto em que o 1º violino reassume a ação principal e desencadeia, nos compassos 117 a 120, um zigue-zague que faz retornar abruptamente a uma variante do tema canônico que iniciou o Desenvolvimento, com centro em Mib.
Esse tema insufla novo interesse à seção, levando a uma passagem virtuosística do 1º violino, em quintinas de semicolcheias (c.130-137), a partir de material diatônico, com a nota Dó sendo enfatizada pelo cello em seu final. A harmonia tinge-se então com quatro bemóis (c.138-145), permanecendo diatônica, e volta a sugerir "Lá Maior" entre os compassos 146-150, encerrando a seção de Desenvolvimento e levando à Recapitulação. A fim de apresentar com clareza os eventos descritos acima, faz-se uma tabela com esses dados (Ex.19).
Como se vê, o plano composicional parece um tanto disperso nessa seção. A sugestão do ciclo de 5ªs (Si-Mi-Lá, c.67-116) evoca o processo que foi eficaz na Exposição, mas que se dilui com movimentos erráticos (Ex.20). A introdução dos temas líricos por vezes interrompe o fluxo dinâmico do movimento. Fica certa sensação de preenchimento forçado do tempo, como que inflando artificialmente a dimensão do desenvolvimento temático. Se há alguma intenção de estabelecer uma ligação em torno do intervalo de trítono, Mib-Lá, tal conexão acaba se perdendo e não parece significativa. As sonoridades octatônicas do tema B não foram exploradas, o que talvez pudesse contribuir para uma amarração mais eficiente do material. A ideia tímbrica dos c.59-66 não foi explorada em seu potencial de transição.
Note-se que essa interpretação negativa se dá em grande parte pela escuta da peça em função da ideia de forma, preconcebida em relação ao modelo haydniano. No entanto, ocorre uma forma alternativa de escuta, que podemos chamar de "escuta vagante", que lida com a maneira propositalmente errática desse Desenvolvimento, até que a Recapitulação retome a direcionalidade.
O próprio "modelo haydniano" oferece uma notável exceção, significativa para a compreensão dos eventos caóticos apresentados na seção de Desenvolvimento do Quarteto nº 7 de Villa-Lobos. No Quarteto Op.76 nº 6, em Mib Maior, Haydn escreveu um segundo movimento bastante incomum, na tonalidade de Si Maior, também com uma harmonia "errante" (Ex.21).
Talvez a primeira estranheza que ocorra seja a de que até o momento falávamos do Op.76 nº 2 de Haydn, como provável modelo para o quarteto de Villa-Lobos. Como então justificar a inclusão de outra obra de referência? O ponto de partida foi sugerido por uma conhecida declaração de Villa-Lobos, sobre o quarteto de cordas de Debussy, que segundo ele valeria "por todos os quartetos de Beethoven".17 17 Declaração de Villa-Lobos proferida em palestra na cidade do Recife (PE), cuja gravação está disponível no acervo do Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro.
Ora, é possível supor que Villa-Lobos tenha feito uma releitura de diversos quartetos haydnianos em uma única obra, no caso, o Quarteto nº 7. Não haveria motivos aceitáveis para supor que, após uma Exposição temática bem amarrada em relação ao modelo haydniano o compositor simplesmente abandonasse o projeto durante a seção de Desenvolvimento. Mas é bem possível que a ideia de ir além da superfície formal da sonata clássica fosse atrativa o suficiente para que Villa-Lobos empreendesse múltiplas leituras de quartetos haydnianos, sacrificando a coerência formal da obra para estabelecer outro nível de diálogo com a música do passado.
A Fantasia, segundo movimento do Op.76 nº 6 de Haydn oferece um modelo de harmonia modulante que se assemelha ao da seção de Desenvolvimento do Quarteto nº 7 de Villa-Lobos. Mas as referências não se esgotam aí. O tema com centro em Mib, que inicia o Desenvolvimento (Ex.22), não encontra grandes paralelos no Quarteto em Mib de Haydn, mas com o 4º movimento do Op.76 nº 3 em Dó Maior, do qual boa parte está em Dó menor, passando por Mib Maior (Ex.23).
Como se observa, as semelhanças se processam, na verdade, por uma série de negações: o registro agudo do violino é substituído pelo grave do cello; o legato pelo staccato; a figuração de bordadura pelo "zigue-zague".
5 - Considerações Finais
Este trabalho pretendeu mostrar que certos aspectos considerados geralmente "excêntricos" na obra de Villa-Lobos encontram algumas justificativas se forem adotados certos procedimentos metodológicos que levem em consideração a forma peculiar do compositor em expor suas ideias e em relação à disposição composicional do material musical. Nesse sentido, o emprego da Teoria dos Conjuntos revelou formas objetivas de conectividade entre elementos temáticos e possibilitou o delineamento de uma abordagem pouco convencional da forma-sonata. O mesmo se pode dizer do uso da ferramenta de análise textural (BERRY, 1987), deixando entrever como a densidade da textura é um elemento crucial na definição das cadências na música villalobiana.
Em seguida, quando se detectou que provavelmente o Quarteto Op.76 nº 2 em Ré menor de Haydn serviu como modelo de referência, pode-se observar como Villa-Lobos "reescreveu" essa peça, num processo que revela ao mesmo tempo sua criatividade composicional e arguto senso de análise. Nessa seção temática temos um Villa-Lobos neoclássico, à maneira de Ravel, Stravinsky e Bartók em determinadas obras.
Todavia, a seção de Desenvolvimento do Quarteto nº 7 mostrou-se inconsistente em relação à releitura, ou "reescritura" apresentada na Exposição. Tais inconsistências, evidentes em uma escuta linear da obra, podem até mesmo reforçar o juízo de que Villa-Lobos tenha sido um compositor "descuidado" e sem domínio técnico. Mas isso ganha outra dimensão, quando se considera uma possível ampliação do conceito de "desenvolvimento", onde o compositor brasileiro possa ter citado e incorporado temas e procedimentos utilizados nos Op.76 nº 3 e nº 6. Ao fugir da esquematização tradicional do desenvolvimento temático, o Quarteto nº 7 parece propor então uma espécie de metassonata, atravessando os limites da forma e da escuta linear para recriar e embaralhar os procedimentos do Classicismo. Pode-se falar em um tipo de colagem de fragmentos temáticos, tonalidades, motivos e gestos observados nos quartetos de Haydn por Villa-Lobos.
Talvez uma análise mais detalhada possa revelar referências a outras obras de Haydn, o que demandaria um espaço superior ao aqui disponível. Quanto aos elementos da Recapitulação (c.151-213) e Coda, creio que possam ser deduzidos pelo leitor a partir das sugestões realizadas neste estudo.
Notas
Paulo de Tarso Salles é compositor, professor, violonista e pesquisador nascido em São Paulo. Leciona Contraponto, Harmonia e Análise Musical no Departamento de Música da ECA/USP.Coordenador do PAM - Laboratório de Percepção e Análise Musical (ECA/USP), junto com a Profa. Dra. Adriana Lopes Moreira. Autor dos livros: Aberturas e impasses: a música no pós-modernismo (ed. Unesp, 2005) e Villa-Lobos: processos composicionais (Ed. Unicamp, 2009). Desenvolve pesquisas sobre: processos composicionais de Villa-Lobos; Análise Musical de obras dos séculos XX-XXI e Música e Pós-Modernismo. Seu projeto de pesquisa "Processos composicionais de Villa-Lobos: uma análise dos seus Quartetos de Cordas" tem apoio FAPESP. Foi Presidente da Comissão Científica do Simpósio Internacional Villa-Lobos realizado em São Paulo (de 16 a 21 de novembro de 2009), no MASP, por ocasião das homenagens ao cinquentenário de morte de Villa-Lobos.
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Haydn, segundo Villa-Lobos: uma análise do 1º movimento do Quarteto de cordas nº 7 de Villa-Lobos
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Fev 2012 -
Data do Fascículo
Jun 2012