Open-access Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música popular como representação de um impasse cultural

Rio, Zona Norte (1957) by Nelson Pereira dos Santos: popular music as representation of a cultural impasse

Resumos

Neste artigo, pretendo examinar um determinado tipo de relação do cinema com a música popular, cuja trajetória histórica pode ser localizada entre os anos 1930 e os anos 1950, e que expressou a tentativa de construir um tipo de cinematografia popular que fosse a expressão da identidade nacional brasileira. Em vários filmes deste período, a música popular não desempenhou apenas um papel funcional ou ornamental na narrativa, mas também foi tematizada como "representação" dos dilemas sociais, estéticos e ideológicos da brasilidade, conforme vista pela esquerda, notadamente a esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro. Esta perspectiva foi adensada no filme Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), no qual as trajetórias do compositor negro do morro e do músico erudito branco, em seus encontros e desencontros, podem ser vistas como expressão dos dilemas e contradições deste projeto de cinema popular e de cultura brasileira.

cinema e música popular no Brasil; filmes musicais; cultura e política no Brasil


This paper intends to examine a specific type of relationship between cinema and popular music, whose historical trajectory can be located between the 1930s and 1950s, and which expressed the attempt to build a popular type of film that was the expression of a Brazilian national identity. In many films of this period, popular music not only played a functional or ornamental role in the narrative, but it was also themed as a "representation" of social, aesthetic and ideological dilemmas connected with "Brazilianness", as seen by the political left, especially the left connected with the Brazilian Communist Party. This view was condensed in the film Rio, Zona Norte(1957) by Nelson Pereira dos Santos, in which the similarities and differences between the black composer from the shantytown and the white classical musician can be seen as an expression of the dilemmas and contradictions of this cultural project.

film and popular music in Brazil; musical films; culture and politics in Brazil


ARTIGOS CIENTÍFICOS

Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música popular como representação de um impasse cultural1

Rio, Zona Norte (1957) by Nelson Pereira dos Santos: popular music as representation of a cultural impasse

Marcos Napolitano

Universidade de São Paulo, SP. napoli@usp.br

RESUMO

Neste artigo, pretendo examinar um determinado tipo de relação do cinema com a música popular, cuja trajetória histórica pode ser localizada entre os anos 1930 e os anos 1950, e que expressou a tentativa de construir um tipo de cinematografia popular que fosse a expressão da identidade nacional brasileira. Em vários filmes deste período, a música popular não desempenhou apenas um papel funcional ou ornamental na narrativa, mas também foi tematizada como "representação" dos dilemas sociais, estéticos e ideológicos da brasilidade, conforme vista pela esquerda, notadamente a esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro. Esta perspectiva foi adensada no filme Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), no qual as trajetórias do compositor negro do morro e do músico erudito branco, em seus encontros e desencontros, podem ser vistas como expressão dos dilemas e contradições deste projeto de cinema popular e de cultura brasileira.

Palavras-chave: cinema e música popular no Brasil; filmes musicais; cultura e política no Brasil.

ABSTRACT

This paper intends to examine a specific type of relationship between cinema and popular music, whose historical trajectory can be located between the 1930s and 1950s, and which expressed the attempt to build a popular type of film that was the expression of a Brazilian national identity. In many films of this period, popular music not only played a functional or ornamental role in the narrative, but it was also themed as a "representation" of social, aesthetic and ideological dilemmas connected with "Brazilianness", as seen by the political left, especially the left connected with the Brazilian Communist Party. This view was condensed in the film Rio, Zona Norte(1957) by Nelson Pereira dos Santos, in which the similarities and differences between the black composer from the shantytown and the white classical musician can be seen as an expression of the dilemmas and contradictions of this cultural project.

Keywords: film and popular music in Brazil; musical films; culture and politics in Brazil.

1 - Música e Cinema no Brasil

As relações entre música e história e entre cinema e história, no Brasil, são dois campos que há algum tempo, expressam pesquisas importantes e complementares, sob o ponto de vista da história da cultura. Entretanto, as relações entre cinema, música e história do Brasil ainda constituem um campo pouco explorado. Esta lacuna historiográfica contrasta com a grande importância que o cinema deu à música (popular) no Brasil, não apenas como tema de filmes, mas também como recurso narrativo de trilha sonora e musical. Desde os anos 1910, o carnaval serviu como tema de filmes, em projeções que, via de regra, eram acompanhadas por músicos em apresentações ao vivo. O advento do cinema falado possibilitou ao cinema brasileiro a criação do filme musical, nos quais os astros do rádio apresentavam in personaseus sucessos, quase sempre direcionados para o carnaval, período de explosão do consumo musical no Rio de Janeiro (FERREIRA, 2003). As chanchadas também incorporaram a música popular de maneira estrutural em seus filmes, apresentando números musicais que tentavam imitar o clima dos musicais hollywoodianos, misturado ao velho teatro de revista carioca. Mesmo depois que esta tradição fílmica foi questionada pelo Cinema Novo, tanto os filmes deste movimento quanto os filmes que não se vinculavam necessariamente a ele, continuaram incorporando a música, principalmente a música popular como elemento importante da narrativa.

Neste artigo, pretendo examinar um determinado tipo de relação do cinema com a música popular, cuja trajetória histórica pode ser localizada entre os anos 1930 e os anos 1950, que expressou a tentativa de construir um tipo de cinematografia popular que fosse a expressão da identidade nacional brasileira. Neste projeto, a música popular do Rio de Janeiro -capital política e laboratório étnico e cultural da "brasilidade" - desempenhou um papel central2. Em vários filmes deste período, a música popular não teve apenas um papel funcional na narrativa ou na diegese, mas foi tematizada como "representação" dos dilemas sociais, estéticos e ideológicos da brasilidade, conforme vista pela esquerda, notadamente a esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro (RIDENTI, 2010).

Alex Viany (citado por AUTRAN, 2003, p.94) em seu clássico "Introdução ao Cinema Brasileiro"sugere que filmes comoo mítico Favela dos Meus Amores (Humberto Mauro, 1935), Moleque Tião (Burle, 1943) e Tudo Azul (Fenelon, 1951), expressam um "programa estético e temático para um futuro cinema popular brasileiro", cujas realizações de Nelson Pereira dos Santos nos anos 1950, seriam as expressões mais sérias e maduras. Esta "situação animadora" para o nacionalismo foi reconhecida também por Paulo Emilio Salles GOMES (1996, p.78). O fator que torna esta linhagem de filmes mais complexa e instigante, do ponto de vista historiográfico, é a sua incorporação pelo nacionalismo de esquerda gestado desde os anos 1930, girando em torno do Partido Comunista Brasileiro. Boa parte da consagração do mítico Favela dos Meus Amorese seus status como lugar de memória do cinema brasileiro, deve-se ao reconhecimento de intelectuais de esquerda, como Jorge Amado, José Lins do Rego, sem falar no próprio Viany (NAPOLITANO, 2010).

A música popular brasileira desenvolveu-se sob o signo da popularidade aliada ao reconhecimento sócio-cultural das elites culturais, a partir dos anos 1960. Já o cinema brasileiro, em que pese sua importância como expressão de consciência social e nacional, não conseguiu (ao menos até há pouco tempo) formar um público cativo de massa e estruturar-se como indústria, o que lhe valeu o qualificativo de um "sistema sempre em formação" (XAVIER, 2006). A presença das multinacionais no cenário fonográfico brasileiro não foi um fator impeditivo da afirmação da produção musical brasileira, enquanto o domínio estrangeiro do mercado cinematográfico brasileiro sempre foi um problema para a afirmação do cinema brasileiro, numa situação aparentemente contraditória que se explica pela própria lógica diferenciada destes dois ramos das "indústrias do imaginário" em escala mundial (FLICHY, 1991). Esta situação estrutural, diferenciada, do cinema e da música, refletiram-se nas obras e na crítica especializada que se construiu em torno destas duas áreas de expressão e na forma como o cinema representou o universo da música popular como parte de um projeto de intervenção crítica na sociedade.

Feitas estas considerações iniciais, chegamos à nossa hipótese central: a relação entre música popular e cinema, ou melhor a peculiar representação do universo da música popular nos filmes "programáticos" aludidos por Alex Viany, constituiu-se em projeto abortado e recalcado historicamente pelo próprio desenvolvimento ulterior do cinema e da música popular no Brasil. Se o "samba de morro" pode ser visto como um elemento comum que permaneceu intacto no cinema pré e pós-cinema novo e na música pré e pós-Bossa Nova, as suas articulações estéticas mais amplas foram completamente modificadas a partir do final dos anos 1950, tanto nas telas quanto nos discos.

Até o Cinema Novo se consagrar como eixo crítico, ideológico e estético do cinema brasileiro, os filmes feitos por autores engajados de esquerda apontavam para outras possibilidades, projeto negadonas revisões críticas posteriores à explosão do movimento (MELO, 2005). Dito de maneira mais direta, antes do Cinema Novo não havia uma rejeição a priori das chanchadas pela esquerda, desde que devidamente depuradas dos clichês e superficialidades inerentes ao vetor mais popular do gênero. Alinor Azevedo - fundador da Atlântida e roteirista de filmes importantes como Tudo Azul(Moacyr Fenelon, 1951) e "autor intelectual" de Moleque Tião (José Carlos Burle, 1943) - afirmava que a chanchada não deveria ser integralmente recusada, podendo fornecer elementos para a construção do "verdadeiro filme musical brasileiro", ou seja, "retratar de forma realista, anda que dentro do universo da comédia, a realidade carioca" (MELO, 2006). Viany afirmava que o compositor popular é o personagem chave no cinema carioca, pedindo um reexame da chanchada. Paulo Emílio Salles Gomes também era condescendente com a chanchada, ainda que por razões diferenciadas, à medida em que a chanchada negava o "bom gosto" das elites antinacionalistas. O próprio Nelson Pereira dos Santos, ainda na década de 1950, reconhecia na chanchada um "trabalho de comunicação cultural".

Estas posições defendidas por homens de esquerda indicam uma historicidade muito peculiar. Revisado radicalmente nos anos 1960, a partir das reflexões de Glauber Rocha e das realizações inovadoras do Cinema Novo, acabou sendo elo perdido de um projeto abortado. O resultado, é que o cinema, para afirmar-se como parte da revolução cultural brasileira e do projeto moderno brasileiro que teve seu auge na década de 1960, rompeu com o seu passado, enquanto tradição. Tanto o cinema industrial paulista quanto a chanchada carioca foram recusados. Mais que recusados, foram negados como elemento constitutivo de uma dada tradição, à exceção de algumas obras peculiares. Neste sentido, sintetizo minha hipótese central: os primeiros longas-metragens de Nelson Pereira dos Santos - Rio, 40 graus (1954) e Rio, Zona Norte (1957) foram consagrados pela crítica filiada ao cinemanovismo como precursores de uma ruptura, mas podem ser vistos, sobretudo, como epitáfios de uma tradição. É nesta chave que analisarei o segundo filme citado.

Na música, a década de 1950, sobretudo, apresenta uma configuração muito peculiar, cujo triunfo de gêneros desvalorizados socialmente em um ambiente radiofônico massificado, contrastava com a perspectiva "folclorista" de intelectuais e radialistas nacionalistas (WASSERMAN, 1997; PAIANO, 1994; NAPOLITANO, 2010) que via no "samba de morro" um lugar a ser preservado, sem misturas, como reserva moral e estética da nação cultural ameaçada por boleros, rumbas, jazzes e sambas-canções comerciais. Os folcloristas defendiam um samba puro, idealizado, bem como construíram um passado glorioso - a década de 1930 - quando o rádio ainda não era massificado e a música popular não era ameaçada pelos estrangeirismos. Assim, a relação da elite cultural com a música popular era marcada pela apreciação distraída e distanciada, que via importância sobretudo no material bruto do artista popular, a ser lapidado pelo artista culto. Mas antes disso, o material deveria ser preservado, fora dos ambientes comerciais das rádios. Neste ponto, reside uma contradição, que pode ser detectada nos filmes que encenaram ambientes musicais, particularmente em Rio, Zona Norte, que tem o compositor popular "autêntico" como personagem central: quase todos esses filmes denunciam não o ambiente do rádio em si mesmo, mas a dificuldade do compositor de talento em gravar as suas próprias composições ou ser gravado por artistas populares honestos. O tema do ineditismo (Tudo Azul) ou do roubo de sambas por indivíduos inescrupulosos (Quem roubou meu samba, José Carlos Burle, 1959), eram temas clássicos neste "cinema musical popular".

No fundo, os folcloristas que queriam defender a "autenticidade" também tinham como projeto "nacionalizar o rádio" pela entrada massiva de artistas de origem popular e de gêneros não conspurcados pelos estrangeirismos musicais. Entretanto, nesta mesma década de 1950, notamos os sintomas de outro projeto nascente, de construir uma música popular a um só tempo sofisticada e universal, despojada e popular, cujo marco inaugural será a Bossa Nova, confirmada pela MPB numa linha histórica (alguns chamam de "evolutiva") que fez triunfar a tradição ao invés de negá-la (NAPOLITANO, 2007).

Portanto, cinema e música não apenas dialogaram, mas expressaram problemas e vivenciaram soluções diferenciadas (ainda que complementares) dentro do projeto moderno brasileiro, com realizações e impasses próprios de cada linguagem e área artística. A partir desta premissa, para tentar apresentar a historicidade própria do projeto nacional-popular abortado no cinema brasileiro, quero me concentrar na análise de algumas sequências do filmeRio, Zona Norte.

Vale lembrar que o segundo longa de Nelson Pereira dos Santos representa uma das últimas tentativas bem sucedidasde "filme musical" que pudesse conscientizar, emocionar e divertir, num projeto que, até então, tinha a chancela do pensamento de esquerda. Conforme Hilda Machado:"A expressão não-verbal em Rio Zona Norte alcançaria o reino da temática. Também enquanto tema a música seria uma constante em NPS e a metáfora que ele tem preferido para falar da criação artística" (MACHADO, 1987, p.173).

Alinor Azevedo, jornalista e roteirista (citado por MELO, 2005, p.7), sintetizou este projeto, mas também apontou suas limitações à época (1956):"Esses elementos - samba, negro e carnaval - são muito bons para filmes populares (...) e ainda não foram fixados convenientemente, ou melhor, ainda não foram retratados de maneira honesta e inteligente", com exceção de "Favela..." e "Rio, 40 Graus"

2 - Nelson Pereira dos Santos e o filme Rio, Zona Norte

O jovem Nelson Pereira dos Santos trocou a carreira de quadro burocrático do Partido Comunista Brasileiro, para o qual estava sendo preparado, pela de cineasta. Do ponto de vista sociológico, sua biografia é interessante para pensar o poder de atração do Partido no meio estudantil e intelectual, sobretudo no campo cultural3. Para além de qualquer política cultural oficial do PCB, que por sinal entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950 estava marcado pelo realismo socialista, os jovens simpatizantes do comunismo desenvolveram um debate e uma prática artística que buscava os meios de expressão da "realidade nacional", fazendo, portanto convergir precisamente os dois termos sugeridos por esta expressão: realismo e nacional-popular (MELO, 2006, p.13).

Esta vontade de representar o Brasil e suas contradições e injustiças sociais, encontrou no neo-realismo italiano não apenas sua inspiração estética, mas a combinação de obra autoral combinada com uma atitude moral frente aos dramas populares. Além disso, o despojamento neo-realista inspirava a feitura de obras independentes a baixo custo, precisamente o tipo de produção presente em Rio, Zona Norte e, sobretudo, em Rio, 40 Graus, filme que FABBRIS consideraa única obra neo-realista brasileira efetivamente próxima à linha Vitório de Sica-Cesare Zavattini (FABBRIS, 1994).-Nelson Pereira afirma que o modelo independente foi quase uma imposição das circunstâncias, pois os produtores recusavam o roteiro de Rio, 40 Graus pois não queriam "produzir um filme com personagens negros em sua maioria". Com efeito, os problemas com a censura que atrasaram o lançamento do filme confirmaram esta visão.

A polêmica e a boa recepção crítica de Rio, 40 Graus impulsionou o segundo filme sobre a idealizada "trilogia carioca" de Nelson, estimulado pela amizade com Zé Kéti4 e já encantado com o universo dos morros e do samba carioca. A inspiração na vida deste compositor carioca, um ícone para a esquerda dos anos 1950 e 1960, foi assumida como inspiração para o argumento de Rio, Zona Norte.

O filme retrata a trajetória de um sambista, Espírito da Luz Soares (interpretado por Grande Otelo), a partir das suas lembranças enquanto agoniza, depois de ter caído do trem. Espírito tem projetos pessoais, como qualquer pessoa, mas as condições objetivas do seu meio social impedem a realização pessoal. É nesta chave, muito próxima do melodrama, que Nelson Pereira denuncia as injustiças sociais. A relação de Espírito com os outros personagens do filme é feita de alguns encontros e muitos desencontros. Poderíamos dizer que a estrutura narrativa opera com o jogo "encontro-desencontro" ao longo do filme como uma estratégia para falar não apenas de indivíduos, mas de um espaço social e cultural cindido, que escapa à vontade ou ás intenções dos personagens. Assim, Moacir, o compositor erudito (Paulo Goulart), Maurício, o escroque que negocia sambas para o rádio, ludibriando os compositores (Jece Valadão) e Ângela Maria, que no auge de sua popularidade, interpreta a si mesma, desempenham funções não apenas dramáticas, mas também simbólicas, desenhando a geometria irregular de circuitos socioculturais que acaba por tragar Espírito.

O recurso do flash-back é utilizado pelo diretor como forma de narrar a vida do sambista em sua luta por sobrevivência, dos bicos na venda do pé-do-morro ao sonho do estrelato no mundo do rádio. Este recurso faz com que o espectador se aproxime do personagem. Fiel à tradição do melodrama, o filme opera com personagens-antagonistas sem escrúpulos, e personagens-protagonistas, que querem ajudar o personagem central. Por outro lado, o filme não assume totalmente o melodrama, pois não explica os fracassos individuais de Espírito apenas pela ação de antagonistas, enfatizando os limites impostos ao compositor popular pelos problemas sociais e pela exclusão cultural.

O filme não foi bem aceito pelo público e pela crítica. A crítica não se empolgou com o filme, no lugar de dar continuidade ao olhar neo-realista trazido por Rio, 40 Graus, o diretor parecia voltar ao melodrama. Somente nos anos 1970, as qualidades estéticas e a importância histórica do filme foi recuperada por David Neves (NEVES, 1978). Mariarosaria FABBRIS destaca ainda que a critica de época não compreendeu que em Rio, Zona Norte"o que deve ser analisado é menos o neo-realismo como ponto de referência, do que a retomada do diálogo com o cinema nacional, (na trilha aberta por Agulha no Palheiro) e a discussão sobre cultura popular (FABBRIS, 2003, p.81). É nesta tradição que a música ganha um papel essencial como narrativa e como representação.

A trilha sonora se divide em música diegéticas e música extradiegética. A música orquestral de abertura, a cargo de Radamés Gnatalli, é marcada por andamento contrastante, tentando traduzir o ritmo e as emoções do filme, dinamismo e melancolia (FABBRIS, 1994). Se ao longo das sequências fílmicas a música extradiegética assume a função de reforçar os sentimentos propostos pelos momentos melodramáticos do filme, as canções populares encenadas dentro da trama como "números musicais" ilustram o mundo musical e social do "povo brasileiro". São elas: Mexi com ela( Zé Kéti); Dama de Ouro(Zé Kéti); Mágoa de Sambista(Zé Kéti); Fechou o paletó(Zé Kéti) ; O samba não morreu (Zé Kéti e Urgel de Castro); Vida Mansa(Vargas Jr.) e Grito de uma Raça (Vargas Jr.); Bateram minha carteira (Elias Ramos); Pretexto (Herondino Silva e Augusto Mesquita).

Destas canções, duas assumem particular importância, pontuando o ritmo visual e dando sentido às sequências finais que serão analisadas mais adiante: "Fechou o paletó" e "O samba não morreu".

Por outro lado, retomando nossa hipótese central, a representação da música em Rio, Zona Norte, não é apenas motivo temático, mas homologia dos impasses de um projeto estético e ideológico da esquerda comunista e nacionalista à época. A música é a chave para representar a luta de classes (mas também as colaborações possíveis entre elas) e a luta pela afirmação nacional, questões subjacentes (ou transcendentes) ao drama individual de Espírito da Luz. Mas, diferentemente dos anos 1960, não havia uma música popular totalmente reconhecida e legitimada como expressão esteticamente válida para expressar tanto o Brasil "moderno" como o projeto político de matiz nacional, ao contrário das artes plásticas e da literatura. Naquele momento, a luta pela afirmação nacional e o exercício da crítica social pela canção, passava pela defesa do compositor popular, o "cidadão precário do samba" nas palavras de José Miguel Wisnik, pleno de potencialidades culturais como expressão do nacional-popular. No cinema, a luta pela representação fílmica da realidade nacional, confundia-se com a luta pela existência mesma de um cinema brasileiro independente e autoral, com condições dignas de produção e circulação (MELO E SOUSA, 2005). Rio, Zona Norte acaba sendo a homologia desta identificação solidária de artistas nacionais autênticos, sejam genuinamente populares ou não. O jovem diretor de cinema Nelson Pereira lutando para fazer um filme, contra a falta de estrutura, representando-se tanto na luta do compositor popular (Espírito), como no erudito (Moacir) para afirmar sua arte.

Apesar da precariedade de produção e o caráter independente do filme, há uma clara tentativa de comunicação com um determinado público, de cinema e música popular. Ou melhor, há uma estratégia de aproveitar o público massificado de música popular como público potencial do filme engajado e crítico, ao mesmo tempo que não se rejeita o público dos filmes musicais. Vale lembrar que Grande Otelo era um grande astro de "chanchadas", formando uma dupla memorável de comediantes com Oscarito. Neste sentido, a presença de Ângela Maria interpretando a si mesma não é ocasional, visando angariar as multidões para ver o filme. Em síntese, há uma estratégia temática e narrativa que retoma elementos do filme musical de colorações realistas, cuja matriz seria Favela dos Meus Amores (1935), ao mesmo tempo em que o filme tenta dialogar com um público massivo das chanchadas e dos programas de calouro. Nesta linhagem, Rio Zona Norte tenta dar o salto da popularidade, condição fundamental para o sucesso do projeto nacional popular.

Sabemos, porém que a história não foi bem assim. Se tomados como precursores, como aponta boa parte da crítica e da historiografia do cinema, Rio, 40 Graus e Rio Zona Norteforam marcos iniciais de um novo projeto, este sim bem sucedido, embora sem o sonhado público massivo dos anos 1950- o Cinema Novo. Mas também são expressões de um colapso de um projeto de cinema popular e engajado a um só tempo. Por outro lado, a trajetória da música popular após a Bossa Nova e a MPB, e seu lugar na cultura brasileira, dá ao espectador de Rio, Zona Norte uma sensação de estranhamento ao assistir os encontros e desencontros de Espírito, tanto com o compositor erudito (Moacir), quanto com a cantora de massas (Ângela Maria). É como se em pouco tempo - se levarmos em conta que dali a dois anos nasceria a Bossa Nova e em 1965, a "moderna" MPB - o filme soasse antigo, ultrapassado como diagnóstico e projeto, fruto de uma historicidade deslocada e renegada. O cinemanovismo negou o público da tradição das chanchadas, enquanto a música realizou uma operação seletiva na sua própria tradição (na qual, uma cantora como Ângela Maria, por exemplo, perderia espaço). Se o cinema perdeu o público anterior, a música popular ampliou-o para além das camadas populares,tornando-se referência para a classe média escolarizada (NAPOLITANO, 2001).

Neste sentido, o filme Rio, Zona Norte ao encenar encontros e desencontros em torno da busca da autêntica música nacional e popular, é sintoma de um impasse, não apenas pela falta de idioma cultural comum (entre Espírito e Moacir), mas também de uma falta de circuito cultural integrado (entre Espírito e Ângela, o compositor do morro e a estrela do rádio). Este curto-circuito inviabilizou não apenas a consagração do compositor popular retratado nas telas, mas do próprio projeto da esquerda nacionalista na busca do cinema engajado de massas.

Passemos à análise das sequências-chave para melhor demonstrar estas hipóteses.

3 - O Drama musical e a encenação dos impasses nacionais

A narrativa de Rio, Zona Nortese estrutura em 20 sequências, divididas em 6 grandes blocos. As imagens iniciais, nas quais se sucedem os letreiros de abertura, nos mostram a paisagem carioca ao longo da linha de trem da Central do Brasil, com destaque para os morros e o casario (Ex.1). Ao final do filme, são reproduzidas as mesmas cenas, momento no qual ficamos sabendo que aquelas imagens, na verdade, se tratam da perspectiva de Espírito Soares da Luz, o personagem central do filme, pendurado na porta do trem do qual cairia. Temos aqui um jogo entre imagens quase documentais sobre os subúrbios cariocas, no início, que ganham novo sentido ao final do filme, pelos olhos de Espírito.

As únicas exceções poderiam ser consideradas a imagem de abertura, um grande plano sobre a praça da Central do Brasil e o saguão monumental da estação, e também a última sequência, a da morte de Espírito e o encontro entre Moacir, o músico erudito, e Honório, o compadre de Espírito. Nestas sequências, não é Espírito que nos conduz pela fábula narrada.

Em linhas gerais, são 6 sequências que se passam no presente diegético, narrando a agonia, o socorro e a morte de Espírito, e 14 encenadas no passado, como flashbacksdo personagem central que agoniza. O filme é narrado, em parte, pelo ponto de vista de Espírito, que nos conduz ao longo dos acontecimentos recentes de sua vida. O compositor é o farol-guia para a realidade carioca e brasileira, embora a narrativa nem sempre se cole à sua pessoa5. Há claramente uma tensão que se acumula, percorrendo uma linha de narração que poderia ser resumida em 3 partes, da seguinte maneira: 1) Sequências 2 a 7 - apresentação do personagem e dos seus projetos de vida - afirma-se como compositor popular, trabalhar numa "tendinha" comercial própria, casar-se novamente); 2) Sequências 7 a 15 (falência dos projetos pessoais de Espírito); 3) Sequências 16-20 - nova afirmação dos projetos criativos do personagem, depois do encontro bem sucedido com Ângela Maria, seguido do encontro frustrante no apartamento de Moacir e do reencontro de Espírito como seu meio sócio-cultural, que lhe dá uma nova vitalidade criativa. Entretanto, tudo ocorre como se este movimento de reencontro cultural e político com sua raça e classe fosse uma epifania da cultura nacional irrealizada e da exclusão racial-social, Espírito cai do trem e passa a agonizar na linha-férrea até ser transferido para um hospital como um simples anônimo (SILVA, 2011). Estes três blocos narrativos localizados no passado diegético, são pontuados pelas 6 sequências aludidas, que mostram a agonia e morte de Espírito. Poderíamos apontar certas incongruências entre o tom geral do flashback (e da perspectiva subjetiva que predomina no filme), e certos diálogos e cenas do presente diegético (linha de trem- hospital), que obedecem a uma construção mais objetiva e distanciada.

Os dois primeiros blocos narrativos se concentram nos dramas pessoais de Espírito, embora nunca representem apenas os seus dramas individuais, e sim uma questão de classe. Neste sentido, o compositor e lúmpen-proletário, sonha como qualquer pequeno-burguês: quer ficar famoso como compositor, quer ter o seu negócio, casar, criar o seu filho (retirado da sua guarda pelo Juizado de Menores, acabando por se envolver com o bando que lhe mataria). Suas esperanças iniciais são logo desfeitas pelas condições objetivas de sua classe: as músicas lhe são roubadas pelos negociantes profissionais do rádio, o compadre Honório não consegue mais lhe financiar a nova casa pois é despejado do seu barraco, o filho não consegue sair da marginalidade, perdendo a vida por isso, a nova esposa o abandona em busca de um futuro melhor. Enfim, os projetos de vida, semelhantes a qualquer pessoa da sociedade "incluída", são desfeitos pela realidade social na qual Espírito está inserido, independente da sua bonomia, otimismo, talento e honestidade. As qualidades individuais não lhe bastam para afirmar-se como pessoa bem sucedida socialmente. Entretanto, Nelson Pereira evita o filme de tese, precisamente porque dilui estas questões no registro do drama social individualizado, permitindo até uma leitura melodramática destes blocos.

Além dessas sequências gerais, há momentos particulares que ganham força ao longo do filme. Como exemplo, vejamos os "papéis" com as letras dos seus sambas que Espírito carregava no bolso no momento da sua queda do trem. Este elemento ganha força numa análise do filme dentro da chave ideológica aqui proposta, pois se transformam em documentos de cultura (notadamente, a música popular de tradição oral, material central do projeto modernista), sempre ameaçados de perder-se. Há um zelo do velho mendigo analfabeto, um dos primeiros que acodem Espírito na linha de trem, em reuni-los (Ex.2) e deixá-los junto com o corpo. Diz o velho maltrapilho em voz alta: "Será que eu peguei tudo?. Vendo um dos papéis desgarrados do maço, do outro lado da linha de trem, o velho diz ao funcionário da linha férrea que acompanhava a cena: "Você podia pegar aquilo. Pode ser algum documento". Lendo o conteúdo dos papéis, o rapaz exclama, em tom de descaso: "É tudo letra de samba!". O velho recolhe os papéis e faz questão de deixar no bolso do paletó do compositor. A complexa e sutil relação entre o velho analfabeto que salva a obra de Espírito e a ameaça de perda definitiva da obra do compositor gera uma perspectiva instigante. Ainda mais se tivermos em conta que, ao longo do filme, saberemos que os seus sambas são constantemente "roubados" por outros e que as letras sem as melodias ("a parte de piano" e a "linha de voz" da partitura) existem apenas na cabeça do compositor agonizante e na memória dos seus poucos ouvintes do morro. Neste sentido, na perspectiva do filme, a precariedade e a efemeridade tornam-se marcas da cultura oral quando não preservada, culminando no silêncio criativo do compositor letrado e erudito. Os dois pontos da crise criativa se fecham, em prejuízo da própria busca da "brasilidade autêntica".

Neste ponto ganham importância os vários encontros/desencontros entre Espírito, o compositor popular, e Moacir, o compositor e violinista erudito em crise de criação e identidade. Sendo visivelmente influenciado pelos projetos da música nacionalista e folclorista de matizes modernistas, Moacir não consegue realizar sua grande obra sonhada. Ao longo do filme ocorrem quatro encontros entre os dois compositores. O primeiro encontro se dá no morro, dois encontros se dão na rádio e o último no apartamento de Moacir, sequência que será analisada mais adiante.

O comportamento da mulher do compositor erudito, Helena, até poderia ser classificado como um caso típico de "racismo cordial" (STAM, 1997, p.163), mas não parece ser o caso da relação que se estabelece entre Moacir e Espírito6. Ela, a esposa tipicamente burguesa, vai ao morro, ouve sambas, bajula a espontaneidade criativa de Espírito, mas o trata o sambista negro com desdém, demonstrando impaciência e descaso quando o marido leva a relação com o negro do morro, mais a sério do que deveria. Já Moacir não pode ser enquadrado de maneira esquemática, tratando-se muito mais de um fosso de classes e de carência de um idioma cultural comum para viabilizar a amizade e parceria dos dois músicos. Concordamos com Mariarosaria FABBRIS quando ela vê no violinista uma "intuição da autenticidade" em Moacir, identificando-se também como "marginal" no sistema cultural brasileiro (1994, p.162). Nelson Pereira dos Santos, em entrevista, confirma esta perspectiva (SANTOS, 2007):

Essa historia da relação do popular com o erudito é também contada pelo outro lado, onde se encontra o personagem do jovem que estudou música na universidade e na Europa, mas não consegue executar a sinfonia que compôs. Para sobreviver, enquanto espera, a solução é tocar violino na orquestra de rádio que acompanha a cantora/estrela Ângela Maria. É outro nível de artista, mas o problema é parecido. Há uma identificação entre ele e o sambista.

Por outro lado, Mariarosária Fabbris aponta as similitudes entre Maurício (o negociante de sambas, ponte entre o morro e o rádio) e Moacir. Para ela, ambos são intermediários entre a cultura excluída e a cultura socialmente aceita à época. Há, na visão de Fabbris, um caminho possível apontado na relação entre Espírito e Moacir, para o resgate de uma cultura nacional-popular, perpassado por tensões e impasses (FABBRIS, 1994, p.197). Estes impasses seriam em grande parte equacionados na década seguinte à realização do filme, e o seu valor documental repousa, justamente, como sintoma desta historicidade específica, na qual o projeto nacional-popular de esquerda, tanto no cinema, quando na música popular, experimentava um momento histórico marcado por impossibilidades de várias ordens, estéticas, ideológicas e comerciais. O desencontro prevalece, em que pese a intuição de uma possibilidade de construção de um idioma cultural em comum, a começar pela dificuldade de simbiose entre a música erudita nacionalista e o material musical popular, encarnado, respectivamente, em Moacir e Espírito.

Por outro lado, o encontro entre Espírito e Ângela Maria nos corredores da Rádio Nacional, inaugurando o último grupo de sequências dofilme, é o que melhor revela a particularidade histórica do projeto cultural e político embutido na obra. Esta sequência se reveste de uma beleza singela, sobretudo graças à interpretação de Grande Otelo. Por outro lado, Mariarosaria FABBRIS (1994) avalia que a interpretação de Ângela Maria retira do samba o seu "cheiro autêntico da favela",tornando-o maiscantábile e melodioso, sugerindo ao compositor um "bonito arranjo" para ser gravado (Ex.3). Neste ponto, apesar da felicidade de Espírito ao ser cantado pela "Rainha do Rádio", a autora aponta uma tensão entre o samba de partido alto e o samba-abolerado, já sugerido em outra sequência, na qual em uma festa no morro se ouve no rádio o samba "roubado" de Espírito pelo inescrupuloso Maurício (Jece Valadão). Gravado por Alaor (Zé Kéti), é criticado pelo compositor e pelos ouvintes no barraco, por deturpar o ritmo originalmente concebido.

Na esperança de ver a melodia do seu samba registrado em partitura ("a parte de piano"), condição para ser entregue como "obra" a ser gravada pela cantora, Espírito vai ao apartamento de Moacir, no qual está reunido um grupo de intelectuais pernósticos. Recebido com cordialidade, porém tratado como um espécime exótico do "autenticamente popular", Espírito não se mostra muito confortável, mas assim mesmo interpreta o seu samba. Ao invés de sentar ao piano e escrever a melodia na partitura, Moacir mergulha num colóquio sobre a cultura popular e a cultura erudita com os seus amigos. Neste momento, os enquadramentos demonstram a clara exclusão de Espírito da conversa (Ex.4). Inicia-se um diálogo revelador dos projetos e impasses culturais da época:

Moacir (apresentando Espírito aos amigos): Este é o maior sambista vivo..

Depois de ouvirem Espírito cantar, um tanto constrangido, Fechou o paletó, os presentes começam um debate, cujo academicismo soa irônico na perspectiva do filme:

- Amigo 1: É uma melodia profunda, bem sentida. Não é melosa.

- Amigo 2: É, não é melosa...

- Moacir: O mais impressionante é que ele tem centenas de sambas, tão bons ou melhores que este...

- Helena: Todos autênticos.

- Amigo 2: A melodia é rica.

- Moacir: Eu tenho vontade de fazer um balé com as músicas dele...Me falta um pouco mais de intimidade com o tema. Eu tenho medo de cair numa estilização.

- Amigo 2: A estilização é sempre necessária. Não há outro meio de aproveitar o folclore.

- Moacir: Não, os sambas de Espírito não têm nada a ver com folclore. São criações autênticas.

O dialogo sintetiza os termos do projeto modernista em seu viés nacionalista, tal como podemos ver, por exemplo, no Ensaio sobre Música Brasileira, de Mário de Andrade (1928): Autenticidade, estilização, folclore, relação entre material e técnica. Estas questões ainda estavam presentes na agenda cultural dos anos 1950, mas o diretor Nelson Pereira dos Santos aponta seus impasses e sua principal contradição: a transformação de sujeitos da criação popular em objetos da cultura de elite. O diálogo empostado vai se deslocando do contato afetivo e espontâneo que marcara o início da sequência. Enquanto o colóquio dos intelectuais repõe Espírito na condição de "objeto da cultura", o sambista vai mergulhando no silêncio, até que resolve se retirar do apartamento. Moacir, mesmo constrangido, pouco faz para consertar a situação. Aliás, este tipo de comportamento de Moacir torna-o um personagem complexo, conforme apontado por Hilda Machado: "Em Rio ZN surgirá a personagem que, nem bandido, nem mocinho, verá seu individualismo cobrado duramente por Nelson: Moacir.(.. ) O tratamento dado ao ambiente que cerca Moacir é o da chanchada. Ele convive com personagens de chanchada. O curioso é que o próprio Moacir é digníssimo, nada tem de chanchada" (MACHADO, 1987, p.178).

Decepcionado com mais um obstáculo ao seu projeto de afirmar-se como artista, agravado por mais um desencontro com o músico erudito que lhe prometera ajuda, Espírito segue para a estação de trem para voltar para a casa. Insinua-se, além do seu desânimo por não contar com a ajuda necessária, um auto-questionamento se sua obra tem, realmente, algum valor. Ao entrar no trem, Espírito olha o "maço de papéis" com letras de samba e ameaça jogá-los pela janela. Quando estava a ponto de fazê-lo, uma conversa entre dois trabalhadores sobre o carnaval lhe chama a atenção (Ex.5).

Espírito desiste da decisão de se livrar dos seus sambas, olha o povo ao seu redor e, ao que parece, reencontra-se consigo e com sua alegria de viver e compor em meio à precariedade e ao anonimato. Ganha nova inspiração e compõe um samba que funciona como uma ode ao próprio Samba, "seu samba" e "que é do Brasil também". Pendurado na porta do trem, devido à superlotação, Espírito se entrega à euforia da própria composição, abre os braços como se estivesse na própria apoteose passarela do samba, e cai na via (Ex.6).

Em que pese certo artificialismo dramático da sequência final, há um movimento narrativo interessante, que a faz comunicar com as duas sequências anteriores. As três sequências juntas sintetizam os encontros e desencontros nos quais a sorte/azar do personagem principal é selada. Primeiro, o encontro com a "rainha do rádio", cantora operária que "sempre muito simpática", como faz questão de frisar Nelson no roteiro do filme, acolhe o sambista e reconhece o seu talento. A sequência apresenta uma sintaxe visual e sonora precisa e rigorosa. É construída como se fosse um "número musical" tão a gosto dos melodramas ou dos musicais, com o belo samba de Espírito, primeiramente, interpretado pelo personagem, tamborilando numa caixa de fósforos. Logo depois um violonista ocupa o fundo do quadro e entra na cena para o acompanhamento. Quando o sambista se preparava para cantar novamente o refrão, a voz potente de Ângela ocupa o plano sonoro, contrastando com o plano visual, que permanece focado no rosto de Espírito, visivelmente emocionado com a interpretação da cantora. Ângela termina a música e, empolgada, cumprimenta o autor, pedindo a ele que lhe traga "a parte de piano". Por fim, diz que "fará um bonito arranjo" para gravá-la.

Na sequência seguinte, já descrita, o personagem interpretado por Grande Otelo experimenta novo desencontro com o seu pseudo "protetor", Moacir, o músico erudito nacionalista. Sentindo-se objeto da discussão de intelectuais, e não sujeito da sua própria obra, retira-se, deprimido e desanimado. Nesta situação o vemos entrar no trem, e refletir sobre o seu futuro como compositor, saindo de seu estado de desânimo, por ocasião de um novo encontro, desta vez definitivo e fatal, com o povo, ou seja, "as classes populares".

Estas três sequências finais não apenas sintetizam a representação da música e de seu lugar na cultura brasileira sob a ótica da esquerda nacionalista dos anos 1950, mas indicam caminhos para a realização de um projeto. Ou melhor, menos do que indicar caminhos, Nelson Pereira dos Santos equaciona um impasse marcado por uma triangulação de atores e espaços sociais que nunca formam uma geometria perfeita: 1) Rádio-Cantora popular- cultura de massa; 2) Apartamento-Músico erudito-cultura de elite; 3) Trem-Comunidade do samba-cultura popular. O destino trágico de Espírito é fruto deste impasse, que é o próprio impasse que o cinema e a música enfrentavam nos anos 1950, como projetos modernos de brasilidade.

4 - Rio, Zona Norte e o esgotamento do drama musical engajado

O filme não aponta propriamente saídas para este impasse, embora se incline para uma visão de cultura um tanto obreirista, ao encenar a saída para a crise pessoal e criativa de Espírito quando este volta para a "sua gente". Neste sentido, poderíamos entrever uma metáfora da cultura brasileira, propondo um reencontro com a cultura popular, já que a cultura de massa e a cultura de elite mostram-se inacessíveis à verdadeira arte do povo, essência da nação. O fato de não apontar propriamente as "saídas", e enfatizar os desencontros entre a arte popular e as outras culturas (de massa e de elite) não quer dizer que Nelson reduza estas a meras caricaturas. Mesmo a sequência do apartamento de Moacir, bastante crítica com a burguesia ilustrada brasileira dos anos 1950, herdeira dos ideais marioandradianos na busca da "cultura erudita nacional e popular", não revela apenas o descaso com o elemento popular, mas a falta de idioma comum entre as classes. Por outro lado, o filme tampouco desqualifica por completo o espaço radiofônico, preservando, por exemplo, a figura de Ângela Maria, cantora operária, a única que reconheceu a arte de Espírito sem pensar em roubá-la. Temos, então, dois tipos de problemas envolvendo estes dois encontros-desencontros fundamentais. Na sequência do apartamento de Moacir, os eruditos nacionalistas perderam o contato com o homem do povo, nesse caso, literalmente falando, por conta de suas discussões sobre o que seria "autenticidade", "estilização", "espontaneidade", "folclore", conceitos que caiam no vazio em função da própria falta de circuitos culturais mais amplos. A cantora de rádio, por mais que percebesse a beleza da música e traduzisse o espírito de Espírito na bela interpretação de sua voz cristalina e afinada, também reconhecia que aquela arte "autêntica" ainda estava em estado bruto, fora dos padrões da linguagem do mercado. Portanto, em ambos os casos, Espírito é o artesão, o criador bruto, "autêntico" conforme ditava o vocabulário da época, mas inviável como produto cultural para um circuito musical mais amplo, seja massivo ou erudito. O impasse ameaça se resolver quando Espírito reencontra o seu circuito cultural por excelência, as classes populares. Mas, neste caso, volta a ser um anônimo na multidão, um pingente a mais no trem, um autor desconhecido fora da sua comunidade. O contraste, com alta dosagem poética, fica por conta da interpretação magistral de Grande Otelo, encarnando na sequência final, um artista iluminado em todos os sentidos, ainda que pendurado na porta de um trem suburbano. Não há plateia diegética, pois os outros passageiros sequer o percebem. Há, entretanto, a plateia do filme, para a qual o diretor endereça a reflexão.

Portanto, a morte de Espírito é uma mortesimbólica e sublimada, na impossibilidade de um triunfo final catártico. Simbólica, pois é a morte do artista comunitário e popular em meio a um processo de modernização urbana e industrial acelerados, em meio ao qual tentava se afirmar o projeto de uma cultura brasileira "autêntica", legitimada por intelectuais de corte nacionalista e progressista. Sublime, pois sua morte não faz desaparecer sua obra, anotada num maço desarranjado de papéis, prestes a se perder, não fosse um velho mendigo analfabeto e o zelo do encarregado da linha de trem, fazendo com que aquelas letras de samba voltassem para as mãos do músico nacionalista.

Moacir tinha sido avisado que um "conhecido seu" morria no hospital, pois seu telefone foi achado no bolso do sambista. Ao final, há a sugestão que Moacir depois de tanto hesitar, finalmente vai ao encontro de Espírito, em todos os sentidos: ao encontro do indivíduo agonizante no hospital, a tempo de receber um último e silencioso sorriso. Mas também ao encontro do material fundamental para sua arte: o morro, lugar mítico para uma determinada ideia de música (e cultura) brasileira, onde algumas pessoas poderiam ajudar a recuperar aquelas "melodias perdidas".

Se tomarmos o filme como um documento de intervenção cultural, na perspectiva da esquerda nacionalista dos anos 1950 da qual Nelson Pereira fazia parte, podemos vislumbrar as dificuldades de afirmação da "cultura brasileira", projeto ontológico e ideológico a um só tempo. Dificuldades que residem na falta de circuitos, de instituições, de idioma comum entre as classes que deveriam construir o "nacional-popular" sonhado pelos militantes culturais da esquerda. O sambista de morro, o músico nacionalista e cantora de massas pareciam habitar mundos tão diferentes entre si, cujas fronteiras apenas permitiam que se tangenciassem, sem trocas e parcerias efetivas. No fundo, ao representar a condição da música popular,seu potencial criativo e dilemas culturais, o cinema engajado de Nelson Pereira dos Santos representava a si mesmo, pois as mesmas utopias de conciliar o "popular" e a "popularidade" alimentavam o projeto de cinema brasileiro na perspectiva nacionalista de esquerda (MELO E SOUSA, 2005).

A década de 1960 equacionaria de maneira diferenciada estes impasses representados no filmeRio Zona Norte, sem deixar de criar outros, porém. A Música Popular Brasileira, então escrita com maiúsculas (MPB), criaria o idioma musical nacional-popular tão sonhado, conciliando o sucesso no mercado, o "autenticamente" popular e a cultura poético-musical da elite (NAPOLITANO, 2001). Mas havia um preço a pagar: a desqualificação de um determinado conceito de música popular tradicional, da qual Ângela Maria era um dos melhores exemplos. No caso do cinema, a década de 1960 apontaria os caminhos da ousadia formal e da busca de novos temas e narrativas, implicando na completa rejeição da popularidade construída pelas chanchadas e pelos dramas e comédias musicais das décadas anteriores.

A partir deste novo contexto histórico configurado na década de 1960, as sequências capitais de Rio Zona Norte, aqui analisadas, ganham um sentido histórico diferenciado. Seu sentido ideológico e seus valores estéticos causam certo estranhamento, algo como "ideias fora do lugar", comparados aos arranjos culturais e faturas estéticas da década seguinte à da produção do filme. Em outras palavras, tanto a música quanto o cinema brasileiros mudariam de lugar social e de projeto estético. Foi então que as primeiras obras de Nelson Pereira realizadas nos anos 1950 ganharam ares de "precursoras" de algo que ainda não tinha acontecido, o que é uma perspectiva sempre problemática para o historiador.Ao que parece, quando examinado em sua historicidade própria, o filme Rio Zona Norte representa mais o esgotamento de um projeto que, a rigor, nunca se afirmou completamente: a busca do cinema musical nacional, popular, realista e engajado. Visto a contrapelo, o filme Rio Zona Norte soa mais um epílogo do que como um prefácio.

Notas

Recebido em: 22/06/2012

Aprovado em: 13/12/2012

Marcos Napolitano é Livre-docente em História do Brasil Independente (2011) e Doutor (1999) em História Social pela Universidade de São Paulo, onde também se graduou em História (1985). Foi professor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (Curitiba), entre 1994 e 2004 e, desde então, é professor de História do Brasil Independente na USP. Atualmente é docente-orientador no Programa de História Social da USP e professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III e do Programa de História da UFPR. É vice-líder do Grupo de Pesquisa "História e Audiovisual" (USP/CNPq) e foi vice-presidente do ramo latino-americano da International Association for theStudy of Popular Music (IASPM). Autor dos livros História e Música (Autêntica, 2002), Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB: 1959-1969 (Annablume/FAPESP, 2001); Síncope das ideias: a questão da tradição na MPB (Fundação Perseu Abramo, 2007). É co-organizador das coletâneas História e Cinema (Alameda, 2007) e História e Documentário (Editora FGV, no prelo).

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  • XAVIER, Ismail. O cinema moderno brasileiro São Paulo, Paz e Terra, 2006.
  • 1
    Este artigo foi escrito a partir de pesquisa apoiada pelo CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa).
  • 2
    Conforme RIDENTI (2010), a brasilidade pode ser considerada para além de uma ideologia nacionalista, uma estrutura de sentimento que galvanizou a ação cultural e política à direita e à esquerda, sobretudo a esquerda comunista que esteve por trás deste projeto cinematográfico-musical aqui analisado.
  • 3
    Para um estudo biográfico de Nelson Pereira dos Santos ver SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Record, 1996.
  • 4
    Para um perfil biográfico desse sambista, ver: LOPES, Nei. Zé Kéti: o samba sem senhor. Col. Perfis do Rio. Secretaria Municipal da Cultura/Relume-Dumará, 2000.
  • 5
    Conforme Carolinne Mendes o narrador, instância interna da obra, é ambíguo, nem sempre coincide com a perspectiva de Espírito. Funciona mais a partir de um movimento de aproximação e distanciamento do personagem sintoma das dificuldades de retratar tal tipo sócio-racial de maneira coerente (negro, favelado, expressão da cultura popular iletrada). Em certa medida, o diretor Nelson Pereira dos Santos parece ter feito um filme no qual, estruturalmente, o tema do desencontro se manifesta, no plano mesmo da narrativa, não apenas no plano da fábula encenada. Ver SILVA, Carolinne M.
    O negro no cinema brasileiro: uma análise fílmica de Rio, Zona Norte (Nelson P.Santos, 1957) e A Grande Cidade (Cacá Diagues, 1966). Relatório de Qualificação. Mestrado em História Social, USP, São Paulo, 2011
  • 6
    O tema do racismo como ponto nodal das tensões em
    Rio Zona Norte, foi trabalhado por autores estrangeiros como e Robert Stam e, de maneira indireta, por Lisa Shaw. Ver SHAW, Lisa.
    A imitação cultural na chanchada: o caso de
    Quem roubou meu samba? e
    Rio, Zona Norte. Alceu - v.8, n.15,p.69-81 - jul./dez. 2007; STAM, Robert.
    Tropical Multiculturalism: a comparative history of race in Brazilian cinema and culture.Duke University Press, 1997, p.157-179.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      22 Jun 2012
    • Aceito
      13 Dez 2012
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