Resumos
Este artigo apresenta resultados de uma investigação que buscou compreender a relação com o saber de estudantes universitários, utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de Bernard Charlot. O campo de pesquisa foi uma universidade comunitária localizada em um município de porte médio do estado de Minas Gerais, sendo que os sujeitos da pesquisa foram 400 estudantes de 24 cursos de graduação. A coleta de dados foi realizada por meio dos balanços de saber, instrumento proposto por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um texto a respeito das aprendizagens do sujeito. Após a apresentação dos aspectos quantitativos da classificação das aprendizagens evocadas pelos estudantes, o artigo discute a preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e utiliza as categorias mobilização e sentido para aprofundar a compreensão dos relatos produzidos pelos estudantes nos balanços de saber. Conclui que a relação com o saber dos sujeitos da pesquisa está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu desenvolvimento pessoal, inclusive ao tratarem do que aprenderam na universidade, e que uma parcela deles consegue reconhecer as especificidades dessa instituição como espaço de aprendizagem. A pesquisa identificou três polos nos quais se organizam os sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária: a conquista de uma vida melhor, a transformação da maneira de ver o mundo e a mobilização em relação ao saber em si.
Ensino Superior; Relação com o Saber; Estudantes
This article presents the results of an investigation that sought to understand higher education students' relationship to knowledge, using Bernard Charlot's Relationship to Knowledge theory as a theoretical reference. The field studied was a community university in a mid-sized city in the state of Minas Gerais, Brazil, and the subjects were 400 students at 24 undergraduate courses. The collection of data was performed using balances of knowledge, a tool proposed by Bernard Charlot which consists of asking subjects to produce a written composition about their learnings. After presenting the quantitative aspects of the classification of learnings mentioned by students, the article discusses the predominance of learnings related to personal development, and uses the categories of mobilization and meaning to achieve deeper understanding of the accounts produced by students in their balances of knowledge. We concluded that the subjects' relationship to knowledge is based on the valuing of their personal development-related learnings also with regard to what they have learned in the university, and that some of them are able to recognize the specificities of that particular institution as a learning space. The study identified three core topics around which are organized the meanings attributed by students to undergraduate education: achievement of a better life, changes in their worldviews, and mobilization relating to knowledge itself.
Higher Education; Relationship to Knowledge; Students
Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos
Maria Gabriela Parenti BicalhoI; Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII
IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares, MG, Brasil. Contato: mgbicalho@hotmail.com
IIUniversidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil. Contato: celeste.br@gmail.com
RESUMO
Este artigo apresenta resultados de uma investigação que buscou compreender a relação com o saber de estudantes universitários, utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de Bernard Charlot. O campo de pesquisa foi uma universidade comunitária localizada em um município de porte médio do estado de Minas Gerais, sendo que os sujeitos da pesquisa foram 400 estudantes de 24 cursos de graduação. A coleta de dados foi realizada por meio dos balanços de saber, instrumento proposto por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um texto a respeito das aprendizagens do sujeito. Após a apresentação dos aspectos quantitativos da classificação das aprendizagens evocadas pelos estudantes, o artigo discute a preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e utiliza as categorias mobilização e sentido para aprofundar a compreensão dos relatos produzidos pelos estudantes nos balanços de saber. Conclui que a relação com o saber dos sujeitos da pesquisa está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu desenvolvimento pessoal, inclusive ao tratarem do que aprenderam na universidade, e que uma parcela deles consegue reconhecer as especificidades dessa instituição como espaço de aprendizagem. A pesquisa identificou três polos nos quais se organizam os sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária: a conquista de uma vida melhor, a transformação da maneira de ver o mundo e a mobilização em relação ao saber em si.
Palavras-chave: Ensino Superior - Relação com o Saber - Estudantes.
Introdução
Este artigo apresenta resultados de uma investigação que se propôs a compreender as relações com o saber de estudantes universitários, utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de Bernard Charlot (1997, 1999, 2000, 2001, 2005, 2009). A escolha dessa abordagem teórica foi motivada pela consideração do caráter complexo da docência, da especificidade da atividade docente no ensino superior e das diferentes questões colocadas à área da educação pela expansão da oferta desse nível de ensino. Encontramos nas discussões de Bernard Charlot a respeito da relação com o saber um referencial teórico que nos parece apropriado para a compreensão de diferentes aspectos envolvidos nas vivências educacionais dos estudantes universitários.
O campo de pesquisa foi uma universidade privada comunitária localizada em um município de médio porte do estado de Minas Gerais. A pesquisa abrangeu os 24 (vinte e quatro) cursos de graduação oferecidos pela instituição, que estavam agrupados nas áreas de ciências humanas e sociais (administração, design gráfico, direito, história, jornalismo, letras, pedagogia, psicologia e serviço social); ciências agrárias e da saúde (agronomia, educação física, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontologia, ciências biológicas) e ciências exatas (arquitetura, ciências contábeis, ciências da computação, engenharia civil, engenharia civil e ambiental, engenharia elétrica, sistema de informação). Os sujeitos da pesquisa foram os alunos do penúltimo período de cada curso. Os 400 estudantes que compuseram a população investigada apresentavam origem social, faixa etária e trajetórias escolares diversas. Tomados em conjunto, entretanto, compartilhavam a condição de graduandos de uma instituição privada comunitária cujos cursos não ofereciam, à maior parte dos discentes, experiências acadêmicas que ultrapassassem o enfoque da formação profissional.
Para coletar os dados, foi utilizado o balanço de saber, instrumento elaborado por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um texto pelos sujeitos, a partir das seguintes questões:
Desde que nasci, aprendi muitas coisas, em casa, na rua, na escola e em outros lugares... O quê? Com quem? O que é importante para mim nisso tudo? E agora, o que eu espero? (CHARLOT,1999, p.7)
.
Acompanhando essa proposição e buscando adequá-la ao nosso campo de investigação, acrescentamos a esse texto a expressão "na universidade" antes da expressão "e em outros lugares". Os textos produzidos pelos estudantes a partir dessa demanda constituíram o material por meio do qual discutimos diferentes processos de suas relações com o saber.
Na primeira seção deste artigo, apresentamos os pressupostos teóricos e metodológicos que embasam a investigação realizada. Na segunda seção, mostramos, através de gráficos e extratos dos balanços de saber, em que porcentagem e de que maneiras as diferentes aprendizagens são evocadas e discutimos os dados encontrados a fim de compreender os processos de relação com o saber dos estudantes pesquisados. Em outro movimento analítico propiciado pela leitura dos balanços de saber, utilizamos os conceitos de sentido e mobilização, a partir do mesmo referencial teórico, para compreender os relatos produzidos pelos estudantes, o que apresentamos na terceira seção do trabalho. Em nossas considerações finais, buscamos refletir, a partir dos dados, a respeito dos processos de ensinar e aprender no ensino superior.
Uma pesquisa acerca da relação com o saber na universidade
A relação com o saber é, na concepção de Charlot (2000, 2001, 2005, 2009), um conjunto de relações que o sujeito estabelece com o aprender - relações plurais, circunstanciais e, por vezes, contraditórias. O autor propõe a compreensão do sujeito como, ao mesmo tempo, e inteiramente, um ser humano, um ser social e um ser singular. Um ser de desejo em um mundo compartilhado com outros sujeitos; que ocupa uma posição social cuja primeira instância é a família e atribui sentidos e significados singulares a si próprio e ao mundo, na construção de uma história singular.
Para esse sujeito, aprender é uma necessidade que marca sua presença em um mundo produtor de saberes. Essa atividade é central no processo de construção do ser humano, que envolve se tornar um membro da espécie humana (hominizar-se), tornar-se um ser humano único (singularizar-se) e tornar-se membro de uma comunidade, ocupando nela um lugar (socializar-se). Por meio da educação produz-se a si mesmo e é produzido pelo mundo. Portanto, o sujeito e sua história são sempre totalmente sociais e singulares, sendo que o pertencimento a uma classe social é interpretado de maneira ativa pelo indivíduo na construção de uma história da qual é sujeito. Em diálogo com a sociologia da educação de Pierre Bourdieu, Bernard Charlot afirma que é preciso analisar as atividades que os indivíduos exercem, no contexto das posições sociais, para
[...] conquistar, para manter, para 'transmitir' essas posições e é preciso considerar também outras perspectivas do que simplesmente a de sua posição social. (CHARLOT, 2005, p.40).
Frente à obrigação de aprender para ser, a qual, de acordo com o autor, é subjacente à condição humana, os sujeitos vivenciam diversos processos de aprender, nos quais estabelecem relações com distintos saberes, diferentes relações com o aprender em contextos diversos.
A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um 'conteúdo de pensamento', uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber - consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação. (CHARLOT, 2005, p.45).
A relação com o saber é, portanto, constituída por um conjunto de relações empreendidas com diversas formas de aprender, que variam de acordo com a situação colocada pelo tipo de saber e pelas circunstâncias nas quais ocorre a aprendizagem. Assim, seria equivocado buscar encontrar a relação com o saber do sujeito, ignorando os diferentes espaços, situações e interações envolvidos no processo educativo do qual ele participa. Apesar de ser possível identificar uma forma dominante - ao menos em relação à questão analisada - (o autor admite a existência da uma unidade do sujeito, construída na diversidade das relações com o mundo), o mais importante é compreender as relações entre os diversos tipos de relação com o saber estabelecidos pelo sujeito.
A pesquisa a respeito da relação com o saber deve analisar, portanto, os diferentes elementos que integram os processos construídos pelo sujeito nas diversas interações. (CHARLOT, 2001).
É esse trabalho de identificação, de exploração, de construção de elementos e de processos que constitui a pesquisa sobre a relação com o saber - que, em última instância, permite compreender as formas (eventualmente contraditórias) de mobilização no campo do saber e do aprender. [...]. Isto quer dizer que a resposta a uma questão colocada em termos de relação com o saber deve ser uma resposta em termos de processo e não uma resposta em termos de categorias de relação com o saber - [...]. (CHARLOT, 2001, p.23).
Buscamos compreender o conjunto dessas relações com o saber vivenciadas pelos estudantes no ensino superior, considerando as especificidades dos processos de aprender nesse contexto, uma vez que a entrada na universidade demanda dos estudantes a adaptação a processos e relações diferentes daqueles com os quais se defrontaram nas etapas anteriores da escolarização (COULON, 2008). Nesse sentido:
[...] aprender é exercer uma atividade
em situação
: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com a ajuda de pessoas que ajudam a aprender". (CHARLOT, 2000, p.68, grifos do autor).
Ao produzirem os balanços de saber, os sujeitos da pesquisa escreveram sobre seus processos de aprender ao longo da vida e, de maneira específica, na universidade. Apesar de tratar da palavra de sujeitos singulares, ao analisar balanços de saber temos acesso aos processos pelos quais os sujeitos "colocam o mundo em ordem", e não à construção de histórias escolares singulares. Por isso, "os balanços de saber são tratados como um texto só, onde se procuram encontrar regularidades que permitam identificar processos". (CHARLOT, 2009, p.20). Tratamos, portanto, do grupo de estudantes da universidade pesquisada. E o que encontramos nos textos produzidos por eles?
Os balanços de saber não nos indicam o que o estudante aprendeu (objectivamente) mas o que ele diz ter aprendido no momento em que lhe colocamos a pergunta, nas condições em que a questão é colocada. Por um lado, isto significa que nós apreendemos não aquilo que o aluno aprendeu (o que seria impossível), mas o que, para ele, apresenta de forma suficiente a importância, o sentido, o valor para que ele o evoque no seu relato. (CHARLOT, 2009, p.19).
Assim, buscamos identificar, ao analisar o que escreveram os 400 estudantes pesquisados, aquilo que fazia sentido para eles em relação a tudo que aprenderam em suas vidas. Essa análise foi levada a cabo por meio dos seguintes procedimentos: inicialmente, todos os balanços de saber foram lidos por uma professora pesquisadora e uma bolsista de iniciação à pesquisa. Em uma segunda leitura, foram relidos e as aprendizagens foram identificadas e classificadas, pelas mesmas duas pessoas. A seguir, foram contadas as aprendizagens de cada tipo em todos os textos. Foi utilizada a classificação proposta por Bernard Charlot (2009), dividindo as aprendizagens entre:
Relacionais/afetivas: relações interpessoais e comportamentos afetivo-emocionais, por exemplo, "aprendi a amar", "aprendi a me relacionar com as pessoas", "aprendi a conviver com as diferenças".
Ligadas ao desenvolvimento pessoal: conquistas pessoais, maneiras de ser, valores, por exemplo, "aprendi a ser honesto", "aprendi a não desistir diante das dificuldades", "aprendi os valores".
Cotidianas: tarefas e atividades do dia a dia, por exemplo, "aprendi a andar", "aprendi a me vestir sozinho".
Intelectuais/escolares: aprendizagens que envolvem operações mentais, ou tarefas escolares, por exemplo, "aprendi a ler e escrever", "aprendi a estudar", "aprendi a fazer as lições".
Profissionais: ligadas ao exercício da profissão, por exemplo, aprendizagens de práticas e conteúdos diretamente ligados às profissões.
Genéricas/tautológicas: por exemplo, "aprendi muitas coisas", "aprendi muito".
Tal trabalho de análise permitiu visualizar em que proporção as diferentes aprendizagens foram evocadas pelos sujeitos da pesquisa, o que apresentamos a seguir.
As diferentes aprendizagens e os processos da relação com o saber
Considerando o conjunto dos estudantes pesquisados (gráfico 01) podemos verificar que em um total de 1920 aprendizagens evocadas, 50,9% foram classificadas como ligadas ao desenvolvimento pessoal; 16,6% como relacionais/afetivas; 14,3% intelectuais/escolares; 8,9% cotidianas; 5,8% genéricas/tautológicas e 3,5% profissionais.
Observa-se, portanto, em relação ao conjunto dos estudantes, o predomínio das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal, que perfazem mais da metade do total de aprendizagens apresentadas nos balanços de saber. As aprendizagens intelectuais/escolares foram citadas em proporção três vezes menor, em quantidade pouco inferior à das aprendizagens relacionais e afetivas.
Interessava-nos saber se essa distribuição variava de acordo com as áreas de conhecimento. Então, contabilizamos os dados por curso e, posteriormente, os agrupamos por área. A seguir, apresentamos os dados das três áreas, mostrando que não existe variação importante.
Os 150 balanços produzidos pelos estudantes de administração, design gráfico, direito, história, jornalismo, letras, pedagogia, psicologia e serviço social foram agrupados na área de ciências humanas. No gráfico 02, podemos verificar que, de um total de 826 apreendizagens evocadas por esses estudantes, sobressaem-se as de desenvolvimento pessoal (49,1%) e as aprendizagens relacionais/afetivas (16,7%). A seguir, apresentam-se as aprendizagens intelectuais/escolares (14,5%); cotidianas (11,5%); genéricas (5,9%) e profissionais (2,3%).
Observa-se no grupo de estudantes da área de ciências humanas, em relação à população pesquisada, praticamente a mesma proporção entre as aprendizagens genéricas, intelectuais/escolares, ligadas ao desenvolvimento pessoal (que continua, portanto, predominante) e relacionais/afetivas. Em relação ao total de estudantes, os de ciências humanas e sociais evocaram menos aprendizagens profissionais e mais aprendizagens cotidianas.
A preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal também se observa no conjunto das 464 aprendizagens evocadas pelos 162 estudantes dos cursos de agronomia, ciências biológicas, educação física, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontologia, reunidos na área de ciências agrárias e da saúde. Como se pode verificar no gráfico 3, as aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal representam 50% do total, as relacionais/afetivas somam 17.2%; as intelectuais/escolares 12.7%; as aprendizagens cotidianas 8%; as genéricas/tautológicas 7.1% e as profissionais 5%.
Repete-se, portanto, o predomínio das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Em comparação com o total de pesquisados, os alunos dos cursos da área de ciências agrárias e da saúde evocaram em seus balanços de saber um número mais expressivo de aprendizagens profissionais, enquanto as aprendizagens intelectuais e escolares aparecem em maior número.
Entre os estudantes dos cursos da área de ciências exatas (arquitetura, ciências contábeis, ciências da computação, engenharia civil, engenharia civil e ambiental, engenharia elétrica, sistema de informação) foram produzidos 88 balanços de saber, nos quais foram evocadas 431 aprendizagens. Como se pode ver abaixo (gráfico 04), 55% dessas aprendizagens estavam ligadas ao desenvolvimento pessoal, 17% eram relacionais/afetivas; 14,6% intelectuais/escolares; 6,5% cotidianas; 3,1% genéricas e 3% profissionais.
Em comparação com o grupo de estudantes pesquisados, portanto, os estudantes da área de ciências exatas evocaram um número maior de aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e um número menor de aprendizagens cotidianas e genéricas e tautológicas. A tabela 01, a seguir, permite visualizar essa comparação entre o total dos estudantes e cada uma das áreas.
Vemos, portanto, que, tanto de maneira geral quanto em cada uma das áreas, os processos construídos pelos estudantes na relação que estabelecem com o saber são marcados por uma ênfase sobre as aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Ao mesmo tempo, aprendizagens que seriam esperadas em relação ao ensino superior, como as intelectuais /escolares e as profissionais, aparecem com frequência menor. É interessante destacar que o predomínio das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal aparece em todas as áreas do conhecimento, não sendo uma característica exclusiva dos cursos da área de ciências humanas, nos quais os conteúdos se referem de alguma forma ao desenvolvimento humano.
Podemos pensar então que "aprender a viver" é importante para todos os estudantes, sendo que a universidade é um espaço dessa aprendizagem, não apenas por seus conteúdos, mas também pelas vivências interpessoais e por uma "preparação para o mercado de trabalho" que envolve aspectos individuais, maneiras de ser, conquistas pessoais, valores.
Que reflexões podemos empreender a partir desses números? Como analisar o fato de que os estudantes universitários pesquisados citem, ao escrever acerca de suas aprendizagens, uma quantidade muito maior de elementos de seu desenvolvimento pessoal, em relação às aprendizagens escolares e intelectuais/profissionais?
Na busca pela construção dessas respostas - e de outras perguntas - consideramos importante abordar diretamente os textos produzidos pelos estudantes, complementando o movimento inicial de contabilizar as aprendizagens. Enquanto os dados anteriores referem-se a todas as aprendizagens evocadas nos balanços, os extratos a seguir, retirados dos balanços, abordam exclusivamente as aprendizagens atribuídas a espaços e agentes ligados ao ensino superior. Ou seja, selecionamos aquilo que os estudantes dizem ter aprendido na universidade, no curso superior, com os professores da universidade e com os colegas da graduação.
Ainda que apresentemos extratos de textos produzidos individualmente e, nesse segundo momento, não nos atenhamos mais à quantificação das aprendizagens, continuamos em uma análise que se refere ao conjunto dos estudantes, visto que a compreensão das lógicas e dos sentidos individuais exigiria outros procedimentos metodológicos. Ao trazer as falas dos estudantes, buscamos aproximar nossa análise das diferentes maneiras pelas quais eles e elas organizaram a narrativa de suas aprendizagens.
Nessa análise, de maneira geral, podemos considerar os sujeitos da pesquisa em dois grupos. O primeiro é formado pelos estudantes que, em seus balanços de saber, associam a universidade exclusivamente à aprendizagem de valores, maneiras de ser e regras de convivência. Em seus balanços de saber não são lembradas aprendizagens intelectuais/escolares nem profissionais. À universidade são atribuídas apenas aprendizagens como as exemplificadas a seguir:
Aprendi que vivemos em comunidade e que existem limites e direitos a serem respeitados, para que haja uma boa convivência. Esse aprendizado foi me passado pela minha família e por minha vivência na universidade e no ambiente onde vivo. (Estudante de Agronomia, sexo masculino, 22 anos).
Como estudante, aprendo a cada dia o quanto é importante a convivência com as pessoas, a simplicidade apesar de tantos desafios. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos).
Desde que nasci aprendi valores importantes para cada pessoa: aprendi a conviver com pessoas diferentes, tanto no convívio quanto na forma de agir e pensar, principalmente dentro da faculdade. (Estudante de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos).
Meus pais foram meus primeiros educadores, mesmo sem saber ler direito. Com meus professores aprendi muita coisa, uma delas é ser companheira, e até hoje aprendo a cada dia, com meus filhos, com meu esposo e com as pessoas que me cercam, principalmente aqui na universidade, que é uma verdadeira escola, compartilhar este viver é um aprendizado a cada dia. (Estudante de Nutrição, sexo feminino, 43 anos).
Nas escolas em que estudei e na universidade em que estudo aprendi com professores e colegas a ser mais compreensiva, mais dinâmica e mais comunicativa. (Estudante de Sistemas de Informação, sexo feminino, 20 anos).
Aprendi na faculdade que podemos ser tudo que nossa imaginação conseguir criar e que nosso corpo permitir. Um grande lugar para se engajar no mercado de trabalho, para curtir as melhores festas, para ter a certeza de que realmente aprendeu sobre a vida. (Estudante de Sistemas de Informação, sexo masculino, 20 anos).
Aqui na universidade estou aprendendo aquilo que é talvez a maior das lições; respeitar as diferenças e conviver bem com tudo aquilo que antes eu não achava tão comum, pois como aqui encontramos sempre pessoas de todos os tipos, ter respeito e compreensão é totalmente indispensável. (Estudante de Ciências Biológicas, sexo feminino, 21 anos).
Nos balanços de saber dos quais esses extratos foram destacados, as aprendizagens na universidade aparecem como uma sequência não diferenciada daquelas realizadas na família e na rua. Esses estudantes não destacaram outras aprendizagens na universidade além das ligadas ao desenvolvimento pessoal e às relações afetivas, as quais são aprendidas na vivência das relações interpessoais. A realização do ensino superior é lembrada como aquisição de maneiras de viver e de relacionar-se, aprendizagens às quais eles atribuem a capacitação para a vida em sociedade e na profissão.
Um segundo grupo de estudantes, ao contrário, citou as aprendizagens intelectuais/escolares e as aprendizagens profissionais como elementos importantes de seu processo de aprendizagem. Em alguns balanços de saber, essas aprendizagens aparecem junto com as anteriores, em outros são exclusivas. O conhecimento técnico-científico e a formação profissional são, em alguns textos, valorizados em relação a outras aprendizagens. Escola, universidade e professores são reconhecidos como espaços e sujeitos específicos, exclusivos para determinadas aprendizagens.
Na escola aprendemos a ler e a escrever e na universidade a sermos profissionais. (Estudante de Agronomia, sexo feminino, 21 anos).
Em casa, na rua, na escola, assim como na universidade, aprendi a exercitar tudo o que havia aprendido, tal como respeito ao próximo, lealdade, amizade, honestidade e também fui complementando o aprendizado técnico, que só lugares como a escola e a universidade poderiam me dar. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo feminino, 22 anos).
Nas escolas e universidades adquirimos conhecimentos científicos, além de colocar em prática toda nossa formação em casa através da família. (Estudante de Educação Física, sexo feminino, 21 anos).
Na universidade, após a escolha da futura profissão, obtém-se o conhecimento teórico-científico, o conhecimento prático e a introdução na rotina da profissão idealizada, através dos estágios, trabalho e relacionamentos com colegas, professores e profissionais. (Estudante de Farmácia, sexo masculino, 20 anos).
Na faculdade tenho aprendido coisas que certamente se eu não estivesse aqui não teria aprendido, através dos professores (estudante de Letras, sexo feminino, 22 anos).
Aprendi que quando se coloca uma meta na vida e você luta por ela, normalmente é alcançada, aprendi a respeitar a todos e que ninguém é superior a ninguém, que sacarose é muito prejudicial aos dentes e que você não precisa escovar os dentes 3 vezes ao dia (mas não diga isso ao paciente, pois ele não escovará nenhuma vez ao dia). Aprendi tantas coisas que é difícil descrever, pois nesses últimos 4 anos, teoricamente meu conhecimento triplicou. (Estudante de Odontologia, sexo masculino, 22 anos).
Na universidade tive outras experiências, o aprendizado se processa de outras formas, através de atividades práticas, não apenas aulas expositivas, mas também o trabalho clínico e laboratorial. Foi possível não só aprender sobre as matérias relacionadas ao curso, mas também a grande importância da nossa futura profissão. (Estudante de Odontologia, sexo feminino, 21 anos).
Na escola aprendi a construir verdadeiras amizades e a base para um futuro melhor. Na universidade aprendi mecanismos para uma boa intervenção profissional, sempre respeitando meu código de ética. No estágio consegui colocar em prática tudo o que me foi ensinado na academia. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 21 anos).
Com meus professores aprendi a escrever, a ler, fazer contas e sobre a história da humanidade, e atualmente estou aprendendo minha profissão. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 20 anos).
Aprendi a lidar com o paciente e suas particularidades com os professores de estágio e de comunicação terapêutica. Aprendi a ter uma visão holística do paciente a executar práticas sempre corretas com os professores de Semiologia e Fundamentos de Enfermagem. Aprendi com os professores de Ética, Saúde do Adulto, entre outras disciplinas que, como enfermeira, preciso ter postura de tal, ser ético e estar sempre à procura de conhecimentos. (Estudante de Enfermagem, sexo feminino, 21 anos).
No curso de pedagogia aprendi sobre diversos campos de estudos como a Filosofia, Antropologia, Sociologia, Didática, Pesquisa em Educação, fundamentos que irão mostrar o meu modo de pensar e me fazer nos lugares nos quais eu promova a construção e formação de pessoas, conhecimentos e saberes. (Estudante de Pedagogia, sexo Feminino, 21 anos).
Como vimos, portanto, esse segundo grupo de estudantes vivencia a universidade como espaço de aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, ainda que alguns deles evoquem aprendizagens relacionais/afetivas ou ligadas ao desenvolvimento pessoal ao referir-se àquilo que aprendem em seus cursos de graduação.
Como podemos analisar essa diferença entre os textos dos balanços de saber? Os estudantes que evocam aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais e as reconhecem como próprias da universidade estabelecem processos de relação com o saber diferentes daqueles que não o fazem? Em que consiste essa diferença? Essas perguntas somam-se àquelas relativas à preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal em relação às aprendizagens intelectuais/escolares e às aprendizagens profissionais, levantadas anteriormente. Uma questão nos parece central: o que significa o fato de que os estudantes pesquisados evoquem com maior frequência aprendizagens que não nos parecem as mais afeitas ao ensino na universidade, mesmo em uma pesquisa realizada em sala de aula?
As análises realizadas por Bernard Charlot, a respeito dos dados que encontrou ao pesquisar a relação com o saber de jovens de liceus profissionalizantes de periferias de Paris, auxiliam-nos na tentativa de responder as questões colocadas. Os dados foram coletados entre 1993 e 1995, a partir de 533 balanços de saber produzidos pelos estudantes daquelas instituições. Os resultados desse estudo mostram que as aprendizagens relacionais/afetivas representam 38% das aprendizagens citadas e as ligadas ao desenvolvimento pessoal representaram 10% do total de aprendizagens citadas. As aprendizagens intelectuais/escolares representam 24% do total de aprendizagens evocadas, a maior parte delas consideradas pelo autor pouco ligadas à especificidade dos conteúdos e das atividades da escola:
A relação com o saber propriamente dita surge de forma particularmente vaga. As actividades escolares básicas (ler, escrever, contar) têm muito significado para eles. Mas elas remetem para os inícios da escolaridade e o que se segue parece não tê-los marcado. Eles vão à escola para fazer aquilo que se deve fazer quando se vai à escola e esperam que esta conformidade lhes permitirá ter "uma boa profissão", ou pelo menos um emprego. (CHARLOT, 2009, p.34).
O mesmo pode ser dito, segundo o autor, em relação à esfera profissional, para a qual os jovens mostram-se pouco mobilizados. Ele conclui que para os jovens franceses estudantes dos liceus profissionalizantes:
[...] aprender é, em primeiro lugar e sobretudo, desenvolver relações com os outros, ser capaz de desvencilhar-se no mundo, compreender a vida e as pessoas, e, se for o caso, saber defender-se. (CHARLOT, 2009, p.34).
Observa ainda que os jovens sujeitos da pesquisa consideram a escola muito importante, mas não se encontram mobilizados na escola, em relação às atividades da escola. Ou seja, não possuem um engajamento verdadeiro na atividade escolar e na apropriação dos saberes. Para isso, é necessário que "[...] o próprio saber (a formação, a cultura) surja como chave do futuro desejável antecipado" (CHARLOT, 2009, p. 77), mediação que o autor não encontrou com frequência. O que aparece como mediação entre o presente e o futuro desejado não é o saber, são os estudos e o diploma. Nesses casos, a questão do saber não é central na relação do estudante com a instituição escolar.
Charlot (2009) fala de uma oposição entre o saber e a vida, para compreender a relação dos jovens franceses com o saber. Para eles, o importante é a vida, não o saber, e, na escola, viver não é aprender, mas conviver com os colegas. Em relação a um aspecto, entretanto, a escola faz sentido para esses jovens: ela é um espaço relacional importante. Essa ênfase no aspecto relacional pode ser compreendida como um desvio:
[...] o aluno está enganado em relação à função da escola, ele não se apercebe da sua especificidade, ele familiariza e transforma a instituição em lugar de convívio, que assim se afasta de seu objectivo. (CHARLOT, 2009, p.83-84).
Essa interpretação, apesar de correta, não é, segundo o autor, suficiente. É necessário considerar que "... a aprendizagem da relação com o outro é também uma forma de cultura" (CHARLOT, 2009, p.84). Por isso, esses estudantes demandam uma cultura que permita compreender a vida, o mundo, os outros, as relações com os outros e consigo mesmos. As considerações do autor sobre as diferentes dimensões da ênfase sobre as aprendizagens relacionais e afetivas nos parecem importantes, possibilitando uma compreensão mais ampla e complexa dos processos de relações com o saber dos sujeitos de nossa pesquisa.
Em pesquisa realizada em 2009, adotamos o balanço de saberes para analisar a relação com o saber de 266 estudantes de Pedagogia de duas universidades privadas e uma universidade pública em Minas Gerais (BICALHO, 2011). Encontramos entre as alunas das instituições privadas que, do total de aprendizagens evocadas, 30% eram relacionais e afetivas, 40% ligadas ao desenvolvimento pessoal, 9% cotidianas, 15% escolares ou intelectuais, 1% profissionais e 5% genéricas ou tautológicas.
Os dados coletados na universidade pública foram um pouco diferentes, sendo maior o percentual das aprendizagens intelectuais ou escolares, que representaram 26,9% do total de aprendizagens evocadas, e menor o percentual das aprendizagens relacionais e afetivas: 19,7%. Ainda assim, as aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal ocuparam a principal parcela nos balanços de saber das estudantes de pedagogia da universidade pública: 36%. As aprendizagens cotidianas responderam por 10,8% do total, as profissionais, por 2,3%, as genéricas ou tautológicas, por 4,2%. A análise dos textos produzidos pelas estudantes em seus balanços de saber mostrou que os saberes da escola foram construídos em relação com os saberes da vida: ou eram a continuidade desses ou seu sentido advinha da relação com a transformação da vida. O saber, para as estudantes de pedagogia pesquisadas, tinha sentido quando lhes possibilitava ver o mundo de outra maneira, situar-se nele e relacionar-se com os outros.
Assim, os resultados encontrados em nossa investigação com 400 estudantes de uma universidade comunitária não parecem ser uma idiossincrasia da instituição pesquisada. As análises realizadas por Charlot, a partir dos balanços de saber dos estudantes dos liceus profissionais, orientam-nos no sentido da "leitura positiva" de nossos dados, ou seja, uma postura epistemológica e metodológica que "[...] liga-se à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à sua atividade." Nesse sentido:
[...] praticar uma leitura não é apenas, nem fundamentalmente, perceber conhecimentos adquiridos ao lado das carências, é ler de outra maneira
o que é lido como falta pela leitura negativa
". (CHARLOT, 2000, p.30, grifos do autor).
Ao debruçarmo-nos sobre os dados de nossa pesquisa, buscamos, portanto, evitar uma leitura centrada naquilo que falta aos estudantes universitários investigados. Nessa leitura negativa, destacaríamos a inadequação de suas expectativas e de sua ligação com a educação escolar (tanto básica quanto superior), privilegiando uma formação pessoal, baseada em formas de viver e conviver, em detrimento da formação científica e profissional. Ao contrário, ao buscar uma leitura positiva, percebemos que os processos escolares de aprender abrangem, para os estudantes, tanto conteúdos e processos intelectuais quanto valores e maneiras de ser.
Assim, aprender os conteúdos científicos e profissionais é um processo que implica mudanças na maneira de ver a si mesmos, aos outros e ao mundo. Graduar-se é, também, ampliar os horizontes, adquirir outras formas de se relacionar com os outros: a formação profissional é valorizada como formação pessoal. Retomando os extratos dos balanços de saber analisados anteriormente, encontramos, entre os estudantes que relacionam o ensino universitário às aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, diferentes formas de combinar a formação pessoal com a formação científica e profissional. Podemos pensar ainda que a ausência da referência a essas aprendizagens pode indicar a necessidade do desenvolvimento de processos de aprender que construam uma relação mais forte com o saber acadêmico.
No trabalho de análise dos balanços de saber, identificamos alguns elementos recorrentes nos relatos que nos pareceram elucidativos dos diferentes processos de relação com o saber vivenciados pelos estudantes universitários sujeitos da pesquisa. Eles fazem parte do quadro formado pela ênfase dada às aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal, e podem ser compreendidos com os conceitos de mobilização e sentido.
Sentidos da formação universitária e mobilização em relação ao "saber em si"
Charlot (2000) propõe os conceitos de mobilização, sentido e atividade para compreender os processos de relação com o saber. O conceito de mobilização remete à dinâmica interna necessária para aprender. "Mobilizar é por recursos em movimento. Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso" (CHARLOT, 2000, p.55). A definição da mobilização envolve o conceito de atividade; o sujeito:
[...] mobiliza-se, em uma atividade, quando investe nela, quando faz uso de si mesmo como de um recurso, quando é posto em movimento por móbeis que remetem a um desejo, um sentido, um valor. A atividade possui, então, uma dinâmica interna. Não se deve esquecer, entretanto, que essa dinâmica supõe uma troca com o mundo, onde encontra metas desejáveis, meios de ação e outros recursos que não ela mesma (CHARLOT, 2000, p.55).
Segundo o autor, a adoção do termo atividade tem a intenção de ressaltar a presença de um sujeito que a realiza. Sujeito que se mobiliza, coloca-se em movimento em função de determinadas atividades. Para a compreensão dessa dinâmica, Charlot utiliza ainda o conceito de sentido, que se refere: à possibilidade do estabelecimento de relações em um sistema ou conjunto, à possibilidade de estabelecimento de relações com outros aspectos ou fatos da vida do sujeito e à produção de inteligibilidade sobre algo. Assim, tem sentido:
[...] o que é comunicável e pode ser entendido em uma troca com os outros. Em suma, o sentido é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros (CHARLOT, 2000, p.57).
Tomando como referência esses três conceitos - sentido, mobilização e atividade - buscamos novamente nos balanços de saber elementos que nos auxiliassem a compreender os processos de relação com o saber dos sujeitos da pesquisa. Nos textos produzidos, os estudantes expressaram a atribuição de diferentes sentidos ao ensino superior, ao relatarem o que buscam na universidade, o que esperam a partir da conclusão do curso de graduação, como se veem enquanto estudantes e como projetam sua imagem como formados. Identificamos três polos de organização desses sentidos. O primeiro é o da formação universitária como o caminho para uma vida melhor, a superação de dificuldades, o reconhecimento no mercado profissional. É o que aparece nos relatos seguintes:
Espero me formar e ter uma vida adequada, para suprir as dificuldades que já foram passadas, e ver isso como um aprendizado para o futuro. (Estudante de Arquitetura, sexo masculino, 22 anos).
Espero que no futuro bem próximo todos esses conhecimentos sejam o suficiente para enfrentar esse mundo. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos).
O que espero pra mim no futuro é ser feliz, formar, ter uma excelente família e arrumar um bom emprego, isso é tudo que eu quero. (Estudante de Farmácia, sexo masculino, 20 anos).
Hoje me encontro aqui, dentro de uma universidade lutando para conseguir algo de melhor para mim e para meus filhos. Consequentemente poderei dar a eles tudo que não tive a oportunidade de ter, inclusive apoio quanto ao estudo. (Estudante de Letras, sexo feminino, 31 anos).
Hoje estou prestes a me formar, sei que essa é uma oportunidade única e que abrirá as portas para que eu possa ter um futuro profissional brilhante, me tornando cada dia mais feliz. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 24 anos).
A universidade significa, portanto, para vários estudantes, a garantia de uma vida melhor e de um futuro estável. De que maneira esse sentido atribuído à universidade compõe as relações estabelecidas por eles com o saber?
Propomos duas leituras: por um lado, atribuir à formação universitária o sentido de possibilidade de um futuro melhor - para si e também para outras pessoas - é uma forma de valorização desse processo, e pode ser um fator de mobilização dos estudantes em relação a seus estudos. Por outro lado, é importante perguntar, como faz Charlot (2009) na análise dos dados de suas pesquisas, qual é o lugar ocupado pelo aprender nessa valorização do ensino superior, sendo possível que, em alguns casos, a formação universitária seja valorizada sem a consideração das aprendizagens ali realizadas. Nesse segundo caso, pode acontecer uma trajetória universitária utilitarista, voltada apenas para a superação de etapas, sem o estabelecimento de relações com o saber da universidade.
Identificamos um segundo polo de organização dos sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária: para vários deles, o processo da graduação ocasiona uma importante mudança pessoal, de perspectivas, maneiras de ver o mundo, maneiras de estar no mundo e relacionar-se com as pessoas. A seguir, alguns extratos de balanços que expressam esses sentidos:
Ao entrarmos no ambiente escolar, o sentido da vida se define mais ainda. (Estudante de Educação Física, sexo masculino, 20 anos).
Na faculdade, a nossa mente se torna mais "aberta", muitos conceitos são repensados. (Estudante de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos).
Ingressei na universidade apenas com o objetivo financeiro, mas com os novos conhecimentos adquiridos vi o mundo a minha volta com outra perspectiva, a de fazer algo, tentar mudar aquilo que ainda se pode mudar. (Estudante de História, sexo masculino, 44 anos).
Na universidade descobri que o universo não sou eu ou minha cidade. Fui informado que há infinitas galáxias e que sou insignificante perto delas, mas que no meu mundo sou tudo. Na graduação aprendi que muitas pessoas pensam igual ou diferente de mim, mas nem por isso sou mestre... ou doutor. Descobri que o conhecimento não tem fim e que a cada dia novas coisas são descobertas. Eu posso ser um inventor... de teorias. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos).
Na universidade vivo um novo momento, posso dizer que foi um divisor de águas em minha vida. O antes e o depois. Sua importância foi a minha descoberta como pessoa, autonomia e liberdade de ser eu mesma. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 33 anos).
Cheguei na universidade e vi que eu não aprendi nada ainda da vida, que minha vida está começando aqui para o mundo lá fora. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 26 anos).
Com a oportunidade de agregar novos conhecimentos à minha vida conheci diversas formas de pensamento e práticas, que acabaram transformando minha forma de agir e pensar, o que penso ser. (Estudante de Pedagogia, sexo feminino, 23 anos).
A experiência universitária vista como transformadora das maneiras de ver o mundo, dos horizontes e dos próprios sujeitos é um processo de relação com o saber que ajuda a compreender a importância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal nos balanços de saber. A atribuição desse sentido à universidade revela que as aprendizagens científicas e profissionais significam para os sujeitos, também, aprendizagens relativas a suas maneiras de ver o mundo, de viver, a seus valores. Ou seja, durante o desenvolvimento de seus cursos de graduação, muitos estudantes vivenciam processos de mudança pessoal, que foram expressos nos balanços de saber e analisados por nós como aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Assim como refletimos anteriormente ao analisar os dados de maneira quantitativa, também a partir dos extratos dos balanços de saber apresentados nesta seção é possível identificar a ligação entre o processo de formação científica e profissional e os processos de desenvolvimento pessoal.
Os sentidos atribuídos à formação universitária estão ligados também à mobilização em relação ao saber tomado como conteúdo intelectual, ou a relação com o saber-objeto. Alguns balanços de saber expressam essa mobilização. Neles, os estudantes fazem referência ao prazer, ao desejo de aprender, e o saber aparece como aquilo que o sujeito ama, procura, que dá sentido a sua vida e faz parte de sua identidade.
Aprendi como é bom aprender, estudar, ler... e o prazer que existe simplesmente em conhecer coisas interessantes. A questão da busca pelo aprendizado é válida em todas as áreas da vida: pessoal, acadêmica e profissional. Assim como as lembranças de momentos e de pessoas que amamos, o conhecimento que adquirimos são bens que ninguém pode nos tirar. (Estudante de Design, sexo feminino, 19 anos).
Na escola e no mundo foi onde me achei, foi através deste desejo do saber que me impulsionou. (Estudante de Design, sexo masculino, 34 anos).
Espero nunca parar de estudar porque sinto que não tem o menor cabimento estar e viver em sociedade sem entender o que ela produz, produziu e ainda vai produzir. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 23 anos).
As melhores coisas aprendi na escola, lá descobri minha paixão: a literatura e o cinema. Na escola aprendi a gostar de estudar, odiar português, mas amar redação. Aprendi que mesmo não suportando números você pode ser bom com eles. Descobri que definitivamente sou um cientista por natureza, e um pesquisador em potencial. Não quero parar de ler e assistir filmes jamais. Isso me faz viver. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos).
Meus professores foram muito importantes para mim, serviram como reais transmissores de conhecimento, e foi com eles que aprendi a "gostar de aprender". Defino assim a minha busca pelo saber. É esse desejo de conhecer coisas novas e conhecer o mundo que me impulsiona a sempre buscar o conhecimento e foi exatamente a percepção desse desejo que me trouxe ao curso de licenciatura. (Estudante de Letras, sexo feminino, 19 anos).
Na universidade aprendo e aprendi a cada momento o prazer de aprender. Para minha vida essa experiência tem um valor inestimável. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 26 anos).
Sendo assim, o conhecimento é o que me trouxe aqui, neste momento, e o que me mantém aqui. Além de ser a minha motivação e a minha razão para buscar algo maior para mim, e deixar minha contribuição para os que hão de vir. (Estudante de Engenharia Elétrica, sexo masculino, 22 anos).
Nesses relatos, o conhecimento ocupa lugar central, é buscado, desejado e parece imprimir sentido à realização do curso de graduação. Charlot afirma:
Eis que o problema do sentido e, por decorrência, o problema do prazer aparecem como os problemas fundamentais da escola, do ensino e da aprendizagem. Longe de se esgotarem na disputa entre tradicionais e construtivistas, esses problemas apontam para o essencial que é saber se o aluno tem a possibilidade de ter uma atividade intelectual ou não. (CHARLOT, 2005, p.23).
A mobilização em relação ao saber em si - que identificamos como o terceiro polo dos sentidos atribuídos à formação universitária - serve como ferramenta teórica para a discussão dos outros dois polos (a valorização da universidade como caminho para a conquista de uma vida melhor e o reconhecimento do curso superior como transformador da maneira de ver o mundo). Isso porque, tanto em um caso quanto em outro, são necessárias, para que o estudante realmente se insira nos processos de aprender da universidade, a compreensão e a mobilização em relação aos saberes específicos do curso realizado.
Novamente retomando a preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal, nos balanços de saber, entendemos que a construção de relações com o saber baseadas no engajamento intelectual e na mobilização intelectual (CHARLOT, 2005, p.54) pode ser um caminho para que as aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, específicas da universidade, passem a fazer mais sentido para os estudantes.
Considerações finais
Retomando os dados e as discussões apresentadas neste artigo, podemos dizer que a relação com o saber dos estudantes universitários sujeitos da presente pesquisa está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu desenvolvimento pessoal. Considerando especificamente os processos de relação com o saber desenvolvidos na universidade, encontramos duas situações: um grupo de estudantes percebe essa instituição como mais uma etapa de seu processo de formação pessoal, enquanto outro grupo atribui ao ensino superior, além da formação pessoal, outras funções, ligadas a aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, próprias do ensino superior. Entendemos então que a formação universitária é um processo de aprendizado de maneiras de ser e de relacionar-se com os outros e com o mundo. É também, para uma parcela dos estudantes, espaço de aprendizado científico e de formação para o exercício de uma profissão.
A compreensão dos processos de relação com o saber dos estudantes pesquisados foi construída também, neste trabalho, por meio dos conceitos de sentido e mobilização. Vimos que os sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária organizam-se em torno de três polos: a busca por um futuro melhor; a transformação das maneiras de ver o mundo e a mobilização em relação ao saber em si. Analisando esses três polos de sentidos, chegamos à consideração de que as questões do desejo de aprender e da mobilização intelectual são centrais - e precisam ser construídas pelos estudantes - nos processos de ensinar e aprender na universidade. Reconhecer a universidade unicamente como espaço de formação pessoal, ligada a valores e modos de ser pode significar, nesse sentido, a não compreensão das especificidades do saber universitário.
Essa é, em resumo, a compreensão acerca dos processos de relação com o saber dos estudantes universitários que construímos a partir da análise dos balanços de saber produzidos por eles. Essa é a resposta que oferecemos às perguntas que fizemos sobre os processos de relação com o saber dos estudantes de uma universidade privada comunitária localizada em um município de porte médio do estado de Minas Gerais. Ao encontrá-la, voltamo-nos para as inquietações que justificaram a questão de pesquisa, e novas perguntas se apresentam: de que maneiras esses processos de relação com o saber refletem a respeito dos processos de ensinar e aprender no ensino superior? Que demandas e desafios colocam para as práticas pedagógicas na universidade?
Trazemos novamente, para fundamentar esta reflexão, as considerações de Bernard Charlot (1997). Para ele, a entrada na universidade está diretamente ligada à compreensão e aquisição da lógica do saber universitário, o que exige operar com os saberes de forma descontextualizada e a ressignificação das experiências de vida e trabalho em outros sistemas de saberes. Portanto, o estar na universidade deveria desencadear outras relações com o saber. É essa constatação que tem nos levado a indagar sobre o sentido do conhecimento escolar e do papel da universidade na relação estabelecida com o saber por esses/essas estudantes, os significados da universidade em suas vidas, em que medida o estar na universidade propicia aprendizagens intelectuais e as coloca na condição de aprendizagens significativas.
Cientes do papel da universidade na produção de determinados tipos de aprendizagem e da heterogeneidade do público universitário, especialmente no ensino superior privado, procuramos, com a discussão desenvolvida neste artigo, chamar a atenção para a importância de que os cursos de graduação sejam realmente espaços de circulação, aquisição e produção de saber.
Recebido em: 07.05.2013
Aprovado em: 27.06.2013
Maria Gabriela Parenti Bicalho é pós-doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Maria Celeste Reis Fernandes Souza é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CPNq), secretária adjunta de Educação da Secretaria Municipal de Educação de Governador Valadares/MG e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Numeramento - GEN/UFMG. Coordena projeto de educação social com pessoas jovens e adultas.
Referências bibliográficas
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- COULON, Alain. A Condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 2008. Tradução de Georgina G. dos Santos, Sônia Maria R. Sampaio.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Abr 2014 -
Data do Fascículo
Set 2014
Histórico
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Recebido
07 Maio 2013 -
Aceito
27 Jun 2013