Resumo
O presente artigo tem como tema a afiliação dos estudantes negros e/ou de camada popular ao curso de medicina e objetiva apresentar revisão de literatura realizada por meio de levantamento bibliográfico nos repositórios Catálogo de Teses & Dissertações, do portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), Scientific Electronic Library Online (Scielo) e Google Acadêmico. Foram utilizados os descritores “afiliação”, “estudante negro”, “estudante de camada popular”, “cotista”, “curso de medicina” e “Coulon”, conjugados com o operador lógico booleano “e”. As buscas privilegiaram a língua portuguesa, por se tratar do contexto universitário brasileiro e, após refinamento, considerando a delimitação temporal dos cinco últimos anos e a pertinência ao recorte epistemológico dado ao estudo, foram selecionadas 20 produções. Os resultados sugerem que os estudantes negros e/ou de camada popular ainda são os primeiros de suas famílias a ingressarem na universidade, que é percebida por eles como um espaço de ressignificação e mobilidade social. Questões raciais, sociais e econômicas perpassam por toda sua trajetória estudantil. É percebido um comprometimento da qualidade de vida desses estudantes para que consigam alcançar sucesso acadêmico. Assim sendo, considera-se a pertinência do acolhimento e da implicação da universidade no processo de afiliação do estudante negro e/ou de camada popular e da ausência da análise das relações de subalternidade no conceito de afiliação de Coulon.
Palavras-chave Afiliação; Estudante negro; Estudante de camada popular; Política de ação afirmativa; Curso de medicina
Abstract
This article’s theme is the affiliation of black and/or low-income students to the school of medicine and aims to present a literature review carried out by bibliographical survey in the Catalog of Theses & Dissertations repositories, from the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (henceforth Capes – Portuguese acronym that stands for Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) portal, Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations (henceforth BDTD – Portuguese acronym that stands for Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações), Scientific Electronic Library Online (Scielo) and Google Scholar. The descriptors used were “affiliation (afiliação)”, “black student (estudante negro)”, “low-income student (estudante de camada popular)”, “quota holder (cotista)”, “medicine course” (curso de medicina)” and “Coulon”, combined with the Boolean logical operator “and”. The searches privileged the Portuguese language, as it is the Brazilian university context and, after refinement, considering the temporal delimitation of the last five years and the relevance to the epistemological focus given to the study, 20 productions were selected. The results suggest that black and/or lowincome students are still the first in their families to enter university, which is perceived by them as a space for resignification and social mobility. Racial, social, and economic matters permeate their entire university trajectory. It is perceived that the quality of life of these students is compromised so that they can achieve academic success. Therefore, the relevance of welcoming and the involvement of the university in the process of affiliation of black and/or popular students and the absence of analysis of subalternity relationships in Coulon’s concept of affiliation are considered.
Keywords Affiliation; Black Student; Low-income student; Affirmative action policy; Medicine course
Introdução
O presente trabalho tem como tema a afiliação do estudante negro e/ou de camada popular ao curso de medicina e objetiva apresentar revisão de literatura realizada por meio de levantamento bibliográfico, considerando os últimos cinco anos. O tema escolhido encontra justificativa em sua relevância social e científica, por conta da expressiva mudança do perfil do estudante universitário identificado no levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) ( 2016).
De acordo com a Andifes ( 2016), as características socioeconômicas do estudante universitário das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), identificadas em 2014, revelam uma universidade feminina, com média de idade de 24,5 anos, com 47,57% dos estudantes universitários autodeclarados negros e, um pouco mais de 45%, brancos. Essa pesquisa também observou que 51% dos estudantes, ou seja, quase 10 mil graduandos, tinham uma renda familiar per capta de até três salários mínimos. Em pesquisa equivalente, realizada em 2018, a Andifes ( 2019) registrou que a universidade se mantinha feminina, com semelhante média de idade, mais enegrecida – com 51,2% de seus estudantes autodeclarados negros –, e mais vulnerável socialmente – com 70,2% de seu corpo discente com uma renda mensal familiar per capita de até um salário mínimo e meio.
Essa mudança no perfil do estudante universitário, segundo o balanço da Secretaria de Educação Superior (SESu), deve-se a implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2007, e da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, Lei de cotas ( Brasil, 2014). O primeiro mecanismo estatal permitiu a expansão e a interiorização das IFES no Brasil, enquanto o segundo atuou no fomento à inclusão social no ensino superior. Nesse contexto, ambos derivam das metas – ainda não alcançadas – do Plano Nacional de Educação ( PNE 2001-2010), que dispõe sobre o aumento significativo da demanda por educação de nível superior de estudantes oriundos de camadas populares e a necessidade de fortalecimento do setor público para o incremento e melhoria do ensino, da pesquisa e da extensão nas instituições de ensino, com consequências esperadas no desenvolvimento técnico, científico e cultural do país.
Isso posto, cabe destacar o impacto social da Lei de cotas, que cumpre tanto a política de acesso ao ensino superior — ao destinar o mínimo de 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas –, quanto a política de ação afirmativa 2 — ao promover a igualdade racial e inclusão social de pessoas autodeclaradas pretas e pardas—, pois essa política objetiva “[...] restituir a igualdade de oportunidades entre os diferentes grupos raciais, promovendo um tratamento diferenciado e preferencial àqueles historicamente marginalizados” ( Jaccoud; Beghim, 2002, p. 46). Com essas considerações em mente, e em concordância com as observações de Santos ( 1984) e Jaccoud e Beghim ( 2002) sobre a indissociabilidade das categorias raça e classe no Brasil, elegemos revisar o fenômeno da afiliação dos estudantes negros e/ou de camada popular no curso de medicina, por conta da constituição histórica dessa instituição, que se mantém ainda no século XXI como o curso imperial mais elitizado ( Vargas, 2010) e por conta dos dados registrados pela Andifes ( 2019).
Segundo o levantamento da Andifes ( 2019, p. 172), com base no critério cor/raça, “os problemas emocionais são mais numerosos para pessoas brancas (26,2%)”. Ao somar, contudo, as categorias preto quilombola (12,9%), preto não quilombola (24,7%) e pardo (21%), torna-se evidente o universo majoritariamente negro de 58,6% dos estudantes que relatam o impacto de questões emocionais sobre o seu rendimento acadêmico. Ainda considerando o critério cor/raça, 14,3% dos estudantes pretos quilombolas, 19,6% dos estudantes pretos não quilombolas e 14,9% dos estudantes pardos, totalizando 48,8% do contingente estudantil, relatam ter sofrido assédio moral 3 por parte de docentes ( Andifes, 2019). Quanto à área de conhecimento, os estudos da Andifes ( 2019) destacam a área da saúde como sendo aquela na qual esse assédio mais se manifesta (20,2%), sendo o curso de medicina um dos mais notabilizados, concentrando 24,2% dos casos.
Assim sendo, e considerando que estar em uma instituição de ensino superior mobiliza o estudante em seus aspectos físico, cognitivo, social e emocional da exigência que faz a universidade por um perfil de estudante ideal dotado de autonomia social, intelectual e emocional ( Paivandi, 2015), tanto em sua chegada quanto ao longo de seu percurso formativo, é importante manter a atenção no fenômeno da afiliação estudantil, em especial na afiliação dos estudantes negros e/ou de camada popular, pois, segundo os estudos de Oliveira, A., Cranchi e Pereira ( 2020, p. 154), “[...] Os estudantes com origem em segmentos historicamente alijados da universidade requerem da instituição universitária uma atenção especial para maior adaptação às tarefas acadêmicas”.
Método
Para a elaboração deste trabalho, foram realizadas buscas nos repositórios Catálogo de Teses & Dissertações, do portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), da Scientific Electronic Library Online (Scielo) e do Google Acadêmico. No portal da Capes, foram utilizados os descritores “afiliação e estudante de camada popular”, “afiliação e cotista”, “afiliação e estudante negro”, “afiliação e curso de medicina” e “afiliação Coulon”. Em busca avançada, considerando os cinco últimos anos, com os descritores “afiliação e estudante de camada popular” e “afiliação e curso de medicina”, foram encontradas 22 produções relacionadas às áreas de saúde pública e literatura sem correspondência pertinente com recorte definido para esse estudo. Com os descritores “afiliação e cotista” e “afiliação e estudante negro”, com base nos mesmos critérios de busca, nenhum resultado foi encontrado. Com o descritor “afiliação Coulon”, foram encontrados 440 resultados, sendo 278 dissertações e 133 teses. Após refinamento, considerando as categorias – tipo mestrado e doutorado; ano 2016, 2017 e 2018; grande área ciências humanas e sociais aplicadas e área de conhecimento educação, psicologia, sociais e humanidades; programa educação e psicologia – restaram 19 resultados.
Na BDTD, foram realizadas buscas considerando os descritores “afiliação e estudante de camada popular”, “afiliação e cotista”, “afiliação e estudante negro”, “afiliação e curso de medicina”. Com o descritor “afiliação e estudante de camada popular”, foi encontrado apenas um resultado. Com os descritores “afiliação e cotista”, “afiliação e estudante negro” e “afiliação e curso de medicina” nenhum resultado foi encontrado. Ao fragmentar os descritores e incluir os termos “universitária” e “Coulon”, foram encontrados os seguintes resultados: com o termo “afiliação” isolado – 189 resultados; com o termo “afiliação universitária” – 13 resultados e com o termo “afiliação Coulon” – seis resultados, sendo quatro dissertações e duas teses.
No portal Scielo, a partir dos vocábulos disponíveis em seu próprio índice, foram utilizados os termos “afiliação universitária” e “afiliação”. No segundo, foram encontrados 11 artigos, enquanto, no primeiro, não mais que um. Por sua vez, no Google Acadêmico, foram utilizados os descritores “afiliação”, “afiliação universitária”, “Coulon”, “estudante”, “estudante negro”, “cotista”, “estudante de camada popular”, “curso de medicina” e “medicina”, conjugados com o operador lógico booleano “e”. Nessa busca, foram encontrados 19.500 resultados. Contudo, após refinamento, considerando os critérios “momento” e “relevância”, os resultados deixavam de manter correspondência pertinente com o tema de interesse deste estudo a partir da página 15 do buscador. Por conta disso, do total de resultados apresentados pelo Google Acadêmico, 54 foram considerados.
Após leitura dos resultados levantados, com base nos critérios de seleção “correspondência pertinente ao recorte epistemológico deste estudo” e “estudos publicados até o ano de 2016”, foram selecionadas 20 produções fronteiriças ao tema – sendo três teses, três dissertações e 14 artigos, para a elaboração desta revisão de literatura. A duplicidade das produções encontradas nas bases de dados foi excluída do cômputo final da seleção, e as buscas privilegiaram a língua materna por conta do contexto universitário brasileiro, o que resultou na desconsideração de quatro estudos estrangeiros de origem portuguesa.
Resultados e discussão
Esta seção foi dividida em três subseções, quais sejam: “Considerações sobre o conceito de afiliação”; “Afiliação de estudantes negros e/ou de camada popular”; e “Afiliação ao curso de medicina”. A primeira subseção apresenta a teoria da afiliação de Coulon e elaborações de autores brasileiros. A segunda subseção descreve a afiliação de estudantes negros e de camada popular, por considerar as categorias raça e classe indissociáveis no contexto sócio-histórico nacional. Por fim, a terceira subseção localiza o processo de afiliação de estudantes negros e/ou de camada popular no curso de medicina, por sua característica imperial.
Considerações sobre o conceito de afiliação
De acordo com Coulon ( 2008), ao ingressar no ensino superior, o estudante recém-chegado passa por um processo de adaptação marcado por três fases: estranhamento, aprendizagem e afiliação. Muito embora cada uma dessas fases seja caracterizada de maneira própria, elas não são fechadas em si mesmas e podem se comunicar em um liame processual ativo, pois suas fronteiras se assemelham mais a margens que se interpenetram de maneira fluida, gradual e contínua do que a degraus que sugerem separação entre etapas. Diante desse entendimento sobre o movimento que atravessa o processo de adaptação do estudante ao contexto universitário, é possível descrever os tempos do estranhamento, da aprendizagem e da afiliação.
A entrada na vida universitária é inaugurada pelo estranhamento, que ocorre tanto pelo desconhecimento quanto pela frustração do estudante diante daquilo que ele preconcebia ser a universidade. Essa fase pode ser traduzida como o incômodo do estudante diante desse novo mundo, que carrega em si códigos e discursos próprios que ainda não lhe são familiares ( Coulon, 2008). Esse incômodo diante do desconhecido, inicialmente, é vivido pelo estudante de maneira solitária e silenciosa: “[...] entrar na universidade é, em geral, perder de vista seus melhores companheiros de colégio, sentir-se isolado e anônimo no meio dos outros. É ficar silencioso mesmo estando em grupo, talvez, sobretudo, quando se está em grupo” ( Coulon, 2008, p. 174).
Desestabilizado, o estudante experiencia a ruptura socioafetiva com seu núcleo de origem. De igual forma, também vivencia a ruptura pedagógica em seu processo de transição do ensino médio para o superior, por conta da mudança na dinâmica de sua rotina, antes escolar, e da metodologia empregada na universidade. Nessa fase, o estudante não se percebe como sendo conduzido pelo professor à produção intelectual. Por esse ângulo, Coulon ( 2008, p. 178) nos ensina que: “É uma grande mudança em comparação com o colégio, onde eles sabiam, diariamente, aquilo que deveriam fazer, pois anotavam numa caderneta”. Simultaneamente a essa experiência ao longo do tempo do estranhamento, emerge no estudante a necessidade de apropriação dos códigos que regem o espaço universitário e de recriar uma rede de apoio. Assim, ele se lança ao tempo da aprendizagem.
Essa etapa foi nomeada por Coulon ( 2008) “da aprendizagem” para destacar a sua natureza: a aprendizagem do ofício de estudante. Segundo o autor, trata-se da “[...] fase de familiarização progressiva com a instituição, uma adaptação em relação aos códigos locais e pelo início do trabalho intelectual [...]” ( Coulon, 2008, p. 147). Muito embora essa fase se destaque pela aprendizagem, ela também é marcada pela ambiguidade que atravessa esse processo, pois, no percurso de sua vivência, o estudante ainda não tem experiências consolidadas na universidade nem domínio dos códigos que regem o seu presente. É justamente essa ausência de referenciais estáveis que compromete a capacidade de planejamento do estudante sobre o seu futuro.
Ainda inseguro e hesitante, o estudante precisa desenvolver competências que o habilitem a encontrar um equilíbrio entre sua experiência vivida na universidade e as exigências do currículo, “[...] uma aprendizagem complexa deve se realizar rapidamente pois ela condiciona a continuidade de seus estudos” ( Coulon, 2017, p. 1246). Assim, o estudante começa a desenvolver estratégias com a finalidade de se adaptar à universidade, tais como: buscar orientação com os colegas veteranos e com a secretaria, compreender as regras do currículo, desenvolver uma relação com a escrita e a leitura, desenvolver a capacidade de organização considerando o tempo da formação ( Coulon, 2008). Nesse processo de aprendizagem das normas institucionais e da literacia, ocorrem apropriações que permitem ao estudante refletir sobre as possibilidades presentes e futuras, o seu tempo de formação considerando o seu ritmo de estudo, a credibilidade das informações obtidas e sua posição frente às pressões institucionais e às imposições do mundo do trabalho.
Desse modo, mais cônscio da sua realidade presente, o estudante consegue planejar um futuro possível por meio do desenvolvimento de perspectivas. O desenvolvimento das perspectivas se dá de maneira complexa e é atravessado tanto por um conhecimento consciente da situação vivida quanto pela influência das circunstâncias que são emolduradas pelos contextos que compõem a vida do estudante. Caso as estratégias desenvolvidas sejam eficazes e a universidade se torne um ambiente familiar para o estudante, é possível considerar que ele se encontra vinculado à instituição. São o nascimento e a conformação dessa aliança que nomeiam a última fase do processo de adaptação do estudante à vida universitária, qual seja, a afiliação.
O cansaço, os atrasos, a falta de motivação e de interesse, e o risco do abandono 4 dão lugar ao engajamento. O estudante forma uma rede socioafetiva, domina as regras e sutilezas do currículo e se torna até capaz de transgredi-lo, identifica as orientações implícitas, sabe identificar as tarefas a realizar, adota a leitura como prática regular, desenvolve autonomia para exercer o ofício de estudante, descobre o prazer do pensamento e da exploração intelectual e consegue instalar uma rotina para si. Desse modo, o estudante se torna um membro competente de sua comunidade e é reconhecido como tal ( Coulon, 2008), ou seja, “[...] adquire um estatuto social novo” ( Coulon, 2017, p. 1247).
Em sua crítica ao conceito de afiliação, Mendes ( 2020) convoca a universidade a também se implicar no processo de adaptação do seu estudante, assumindo seus limites epistemológicos e tornando-se permeável e receptiva a outros saberes, destacando o acolhimento institucional e a postura empática do docente ao longo do processo de afiliação estudantil. A autora também tece observações sobre as regras implícitas, a linearidade normativa dos tempos para a afiliação e a não observância do que lhe é desviante nesse processo: “parece faltar a Coulon uma análise de como as relações de subalternidade – dentre as quais classe, raça, gênero, nacionalidade – se expressam no cotidiano da universidade” ( Mendes, 2020, p. 14).
Ao observar a importância de a universidade reformular seus modelos curriculares e pedagógicos, segue Ferreira ( 2017, p. 306): “[...] estas trajetórias colaboram para uma renovação da academia, no sentido de obrigá-la a produzir novas linguagens e novos diálogos com saberes populares que pouco transitavam na universidade”. Da mesma forma, por meio de sua experiência em uma instituição de ensino superior, o autor ainda reforça a importância do acolhimento por meio de atividades de recepção e aulas inaugurais, orientação acadêmica e combate ao trote como ações facilitadoras para o processo de afiliação. Assim, a implicação da universidade torna-se urgente, pois “parte das principais dificuldades para a constituição da identidade de estudante está relacionada à precariedade da própria universidade na integração destes indivíduos em seu espaço” ( Ferreira, 2017, p. 296).
Vasconcelos, Santos e Sampaio ( 2017, p. 263) também destacam:
A finalidade da política de ações afirmativas é combater as desigualdades, permitindo que jovens aos quais o acesso à educação superior foi sistematicamente negado desfrutem do conhecimento historicamente acumulado e ofereçam, em contrapartida, para a ciência e o saber estabelecidos, o diálogo com a diversidade de linguagens e tradições de suas origens, enriquecendo, pela mestiçagem, a cultura e a formação acadêmica de todos os estudantes. O acesso à educação superior é, sabidamente, um fator de mobilidade e sustentabilidade para essas populações que exigem o direito de acesso e, mais que isso, de interlocução verdadeira. A ideia que subjaz a essa proposta é que jovens formados com qualidade e para a autonomia auxiliem a replicação dessa experiência em suas comunidades de origem, estimulando a continuidade dos estudos.
Dessa maneira, Vasconcelos, Santos e Sampaio ( 2017) sublinham a valorização da dialética na produção do conhecimento, recordando os conceitos de justiça cognitiva de Boaventura de Sousa Santos e a escuta sensível de René Barbier como estratégias para a inclusão do estudante oriundo de camadas populares, contemplando o seu saber e a sua história em um movimento vivo de consideração da diversidade dos saberes por meio do diálogo e empatia – posicionamentos essenciais para a não hierarquização do conhecimento: “as leituras que podemos fazer das epistemologias do Sul não podem cometer o erro de considerar o saber popular como critério ou margem, inaugurando outras hierarquias” ( Vasconcelos; Santos; Sampaio, 2017, p. 268).
Diante dessas considerações que convidam a universidade a refletir sobre sua atuação no processo de afiliação de seus estudantes, pontuamos que ela acolheu os dispositivos estatais que possibilitaram sua expansão e a mudança do perfil estudantil. No entanto, por conta dessa alteração, a universidade também passou – ou vem passando – por um processo de ruptura em sua estrutura secular. Perante as tensões enunciadas, emerge uma necessidade de sua adaptação para que ela possa se sustentar como equipamento estatal comprometido com uma sociedade livre, justa e solidária.
Afiliação dos estudantes negros e/ou de camada popular
Mesmo após quase 25 anos do lançamento das metas do PNE 2001-2010, os estudos de Oliveira, A., Cranchi e Pereira ( 2020) e Oliveira, S. ( 2017) observam que o estudante oriundo de segmentos populares, geralmente, é o primeiro de sua família a ingressar na universidade. Por isso, muitas vezes, não encontra em seu núcleo de origem referenciais sobre esse ambiente, o que pode impactar negativamente seu processo de afiliação ao contexto universitário, em um primeiro momento. Como afirma Nery ( 2011, p. 36): “[...] o processo de afiliação estudantil depende de como se dá a chegada do estudante à universidade, momento em que várias rupturas simultâneas e imediatas acontecem [...]”.
De igual forma, Sposito e Tarábola ( 2016) também chamam a atenção para o fato de o estudante oriundo das camadas média ou popular ainda perceber o ingresso em uma universidade pública como um desafio que demanda grande investimento pessoal. Com referência ao ingresso em uma instituição pública de ensino superior, os autores ainda destacam que “[...] essas iniciativas estão marcadas por conflitos e tensões com o grupo familiar e exigem um grau de persistência pessoal e de autoconfiança de modo a evidenciar para si mesmos e familiares sua capacidade” ( Sposito; Tarábola, 2016, p. 1018).
Em seus estudos, Figueiredo ( 2018, p. 12) observa a “[...] relevância do capital cultural [...] timidez, senso de inferioridade, dificuldade de reconhecer as cobranças acadêmicas e estabelecer formas de organização dos estudos” e a “[...] dificuldade dos pais em apoiarem a longevidade escolar dos filhos-estudantes” ( Figueiredo, 2018, p. 14) como entraves à afiliação do estudante de classe popular. Contudo, o autor evidencia a “[...] necessidade de responder com sucesso acadêmico à frustração dos pais pela postergação do ingresso no mercado de trabalho [...] [como] fator importante para compreender a perseverança, dedicação e resiliência” de muitos desses estudantes ( Figueiredo, 2018, p. 14).
Já o estudo de Freitas e Oliveira, F. ( 2020) identifica que, por meio de uma postura ativa, os estudantes negros cotistas procuram a universidade como estratégia para obter aceitação, ascensão social e romper com o destino pré-determinado pela sua origem. “O ingresso na universidade [...] apresenta-se como uma única estratégia para alterar a trajetória de vida da família, uma mudança no sentido de melhorar as condições financeiras e a qualidade de vida” ( Freitas; Oliveira, F., 2020, p. 39), servindo como exemplo catalisador para os demais.
Por sua vez, Oliveira, G. e Silva, R. ( 2018) contribuem de maneira significativa para o entendimento das dificuldades que atravessam a experiência do estudante oriundo de camada popular em seu processo de afiliação universitária, quais sejam: dificuldade em lidar com as rupturas exigidas para estar na universidade, como a mudança de rotina e o transporte, que são agravadas pelo estado de vulnerabilidade social, notadamente a fome. Os autores, contudo, também registram a superação dessas dificuldades iniciais, especialmente por conta do reconhecimento da universidade como espaço promotor da ampliação de horizontes e da ressignificação de si, do outro e do mundo.
Oliveira, G. e Silva, R. ( 2018) também ponderam sobre a conciliação dos papéis sociais de estudante, trabalhador e cuidador como entrave ao processo de afiliação universitária. Por não ter tempo suficiente para sanar as demandas da universidade, o estudante compromete sua qualidade de vida, passa a dormir pouco e abdica de momentos de lazer a fim de estudar. Nessa perspectiva, Oliveira, G. e Silva, R. ( 2018, p. 9) destacam a importância do tempo: “quanto mais tempo o estudante tiver à sua disposição tenderá a se afiliar com mais facilidade, tendo em conta o vínculo que estabelece com a instituição e principalmente com seus membros [...]”.
Esse dado também é corroborado pelo estudo de Nery ( 2011) sobre a afiliação emocional, que considera a importância do reconhecimento do tempo para aquisição da maturidade intelectual. Ao analisar a relevância do tempo para o processo de adaptação do estudante ao contexto universitário, cabe chamar a atenção para a necessidade de a universidade inovar em seu calendário letivo a fim de permitir a conjugação do exercício dos papéis sociais que seu estudante precisa desempenhar.
Um importante obstáculo ao processo de afiliação do estudante negro cotista são as discriminações raciais camufladas no ambiente universitário (Freitas; Oliveira, F., 2020):
Seja através de olhares e mesmo na pequena quantidade de estudantes negros/as em comparação à brancos/as ou quando professores ao evocarem temas como consciência negra e cotas em suas aulas, humilham e constrangem estudantes negros/as e cotistas.
( Freitas; Oliveira, F., 2020, p. 46).
Contudo, apesar do estranhamento pela “[...] ausência de negros e por diferenças socioeconômicas” ( Freitas; Oliveira, F., 2020, p. 41) e tensões políticas e ideológicas atravessadas pelo racismo, Freitas e Oliveira, F. ( 2020) registram a afiliação do estudante negro cotista à universidade por meio de sua participação em grupos de estudo, atividades de pesquisa e extensão, movimentos sociais, coletivos e grupos religiosos.
Esse dado também aparece nos estudos de Oliveira, G. e Silva, R. ( 2018) e de Sposito e Tarábola ( 2016) como estratégias desenvolvidas pelo estudante oriundo de camada popular para se afiliar. Oliveira, G. e Silva, R. ( 2018) sinalizam, especificamente, a relação com os colegas, a participação em monitoria e grupo de pesquisa. Por sua vez, Sposito e Tarábola ( 2016) observam as organizações em coletivos e movimentos sociais como estratégias para a afiliação universitária. Segundo estes, os estudantes oriundos das camadas média ou popular introduzem no contexto universitário sua experiência anterior de cunho social e político de organização e engajamento em coletivos e movimentos sociais:
A primeira figura que emerge das narrativas de parte dos jovens entrevistados decorre da experiência de participação e de engajamento em coletivos e movimentos em momento anterior à entrada na universidade. Assim, a descoberta da vida pública e política é anterior ao ingresso na universidade, e esses jovens adentram no ensino superior com essa bagagem inscrita em suas trajetórias. Nesse grupo estão reunidas as narrativas de rapazes e moças que participaram da criação de coletivos nos bairros populares, seus locais de moradia, por meio de atividades culturais, grupos de estudo, entre outros. [...] Os grupos locais com atividades culturais, pequenos coletivos para estudo orientados por professores dedicados de escolas públicas, podem estar presentes nessas formas de engajamento.
( Sposito; Tarábola, 2016, p. 1017).
Cabe registrar que a universidade, enquanto casa que abriga o conhecimento e sua produção, também pode ser entendida como uma instituição política de relevante impacto social com a finalidade de garantir o bem-estar coletivo, pois pensar e atuar no sentido de modificar o seu entorno é um fazer político. Esse achado de Sposito e Tarábola ( 2016) sinaliza para a chegada de uma juventude cuja disposição política está em harmonia com o espírito da universidade e que encontra no grupo o fortalecimento de sua identidade: “esses coletivos compreendem os processos de afirmação e de reconhecimento de identidades individuais negadas que exprimem dimensões importantes da subjetividade de moças e rapazes nesse momento do percurso de vida” ( Sposito; Tarábola, 2016, p. 1019). Nessa lógica, Silva, L. ( 2016, p. 113) também observa que “[...] a educação é processo de humanização e é fundamental que a instituição cuide também dos aspectos culturais, políticos, éticos e estéticos constitutivos dos sujeitos” em seu processo de afiliação.
Mais especificamente sobre a pesquisa, é oportuno trazer os resultados de Souza ( 2016), de acordo com a qual, a iniciação científica pode ser considerada como um recurso facilitador para o processo de afiliação do estudante ao contexto universitário, pois lhe permite a apropriação de conhecimentos, habilidades e atitudes solicitadas pela academia. Nesse trabalho, Souza ( 2016) destaca a importância da iniciação científica como estratégia de permanência do estudante oriundo de camada popular na universidade tanto por conta dos vínculos formados nos grupos de pesquisa, quanto pelo valor recebido por meio da bolsa de iniciação científica.
Já o estudo de Lacerda ( 2019) traz como estratégia para a afiliação a autoanálise das trajetórias escolares e vivências universitárias dos estudantes. Segundo a autora, a partir das reflexões sobre as experiências vividas na universidade, os estudantes oriundos de camada popular percebem que estar nela representa uma grande conquista e que as redes socioafetivas construídas são importantes para a sua permanência. Contudo, Lacerda ( 2019) chama a atenção para a sensação de não pertencimento que os acompanha: “[...] o distanciamento de suas origens, quando eles ingressam na universidade pública, produz a experiência de dilaceramento e a sensação de estarem sozinhos no mundo” ( Lacerda, 2019, p. 574). De igual forma, Silva, L. ( 2016) sinaliza para as emoções no processo de afiliação. Problemas emocionais também podem surgir no tempo da aprendizagem e, por conta disso, “[...] a instituição precisa estar atenta às dificuldades que porventura sejam manifestadas pelos estudantes e oferecer-lhes suporte e orientá-los com os devidos encaminhamentos que se fizerem necessários” ( Silva, L., 2016, p. 113).
Em seus estudos, Carneiro e Soares ( 2019) propõem como estratégia facilitadora para a afiliação o grupo de apoio, por ser um recurso capaz de favorecer a constituição e o fortalecimento de novos vínculos – o que poderia permitir a saída da solidão e a identificação e criação de uma nova perspectiva sobre os problemas vivenciados ao longo da trajetória universitária. Para as autoras, “[...] a oficina de criatividade se configura como uma ferramenta potencializadora, uma vez que proporciona um espaço de escuta aos estudantes e pode despertar outros sentidos para sua trajetória acadêmica [...]” ( Carneiro; Soares, 2019, p. 19486).
Carneiro e Soares ( 2019) afirmam ainda que o grupo de apoio permitiu que os estudantes constituíssem uma nova perspectiva de si, desenvolvessem e fortalecessem a autoestima, se tornassem membros mais ativos no contexto universitário, com maior engajamento em atividades extracurriculares e no movimento estudantil. Apesar do lapso temporal entre os trabalhos, Sposito e Tarábola ( 2016, p. 1021) apontam na mesma direção:
[...] ressalta-se ainda mais a importância da sociabilidade para além das relações de coleguismo existentes nas aulas para esse caminho de construção de si, como estudante e como pessoa, no interior da universidade. Ou seja, trata-se de buscar uma atividade, uma forma de participação em algum grupo, associação ou coletivo (esportivo, político, acadêmico etc.) para se inserir na lógica da própria universidade, rumo à superação da indeterminação e indefinição dos primeiros momentos de estudos e à formação de uma identidade universitária distante de uma postura meramente liberal de cada um por si.
Por fim, trazemos o estudo de Sousa ( 2020) sobre a questão da moradia estudantil. Embora residir nas repúblicas disponibilizadas pelas instituições auxilie o estudante a se vincular à universidade, fortalecendo laços, há também o comprometimento do cumprimento do tempo regular de conclusão de curso, prolongando sua trajetória universitária. A qualidade das relações a partir da convivência na moradia estudantil permite a construção de uma rede socioafetiva capaz de auxiliar o estudante em seu processo de afiliação ao contexto universitário, especialmente considerando a reconfiguração do self para a construção da identidade de estudante no tempo da aprendizagem ( Nery, 2011).
Afiliação ao curso de medicina
A respeito da afiliação do estudante universitário cotista e não cotista ao curso de medicina, o estudo de Oliveira, S. ( 2017) aponta que o processo de afiliação do estudante cotista é atravessado por questões raciais, sociais e econômicas. Sobre o tempo do estranhamento foram observadas questões relacionadas ao acolhimento, aos aspectos pedagógicos do curso, à origem social e seu impacto no contexto universitário, à moradia e ao apoio e acompanhamento da família e da universidade ( Oliveira, S., 2017).
As dificuldades econômicas são sentidas logo na entrada no curso. Seja na aquisição de material para estudo ou pela forma de se vestir e das tensões marcadas pela reflexão de quem é a maioria naquele espaço, acompanhada da percepção de que sua presença naquele ambiente faz parte de uma minoria.
( Oliveira, S., 2017, p. 80).
Diferentemente do estudo de Oliveira, S. ( 2017), o estudo de Martins ( 2017) registra o apoio da família do estudante cotista quanto ao prolongamento da escolarização ainda no tempo do estranhamento, pois a universidade é percebida como promotora de mobilidade social. Segundo a autora, as famílias desses estudantes os auxiliam financeiramente, mesmo que esse suporte ainda precise ser complementado pela instituição por meio de bolsas.
Em contraposição ao tempo do estranhamento vivenciado pelo estudante cotista do curso de medicina, o trabalho de Oliveira, S. ( 2017) traz o tempo do estranhamento do estudante não cotista no mesmo curso. De acordo com a autora, o estudante não cotista encontra um ambiente acolhedor e propício à formação de rede socioafetiva ao ingressar na universidade. Esse estudante também não se depara com dificuldades financeiras, pois tem o apoio e o suporte familiar ( Oliveira, S., 2017). Sobre a família, o estudante não cotista reconhece sua influência no processo de escolha profissional, por conta, inclusive, do convívio com parentes médicos.
Sobre o tempo da aprendizagem e afiliação, o estudo de Oliveira, S. ( 2017) observa que o processo de apropriação dos elementos que compõem o contexto universitário por parte do estudante cotista é continuamente atravessado por questões raciais, sociais e econômicas. Por conta da defasagem da formação escolar, da dificuldade em coordenar as demandas da academia com as do cotidiano, especialmente por causa do tempo gasto em deslocamento entre sua residência e a universidade, da falta de um espaço adequado para estudar em casa e da insuficiência do acervo da biblioteca, o estudante cotista desenvolveu como estratégia a formação de grupos ( Oliveira, S., 2017; Martins, 2017).
Segundo Oliveira, S. ( 2017) e Martins ( 2017), o estudante cotista se percebe como excluído do contexto universitário e encontra em outros estudantes cotistas, em especial naqueles que participam do movimento estudantil, suporte para sua permanência. Os estudantes engajados no movimento estudantil orientam os estudantes recém-chegados sobre os editais para recebimento de auxílio. Outras estratégias desenvolvidas pelo estudante cotista são: estudos complementares em grupo, busca por locais adequados para estudo e compartilhamento de materiais. Nesse sentido, a atuação do movimento estudantil e da militância funciona como rede de amparo socioafetivo e empoderamento racial.
Ainda sobre a rede de amparo socioafetivo, o estudo de Oliveira, S. ( 2017) registra o apoio da família, com força determinante no tempo da aprendizagem para a continuidade desse segmento de estudantes no curso – com especial destaque para a intervenção das mães, que, em sua totalidade, não têm nível superior. Todavia, a falta de apoio e acompanhamento da universidade permanece.
Muitos estudantes conseguiram apoio da universidade, no sentido de auxílio para transporte, alimentação, dentre outros, só a partir do terceiro e quarto semestre, ou seja, passaram momentos decisivos para a continuidade no curso sem conseguirem, de fato, terem esse apoio necessário da instituição da qual fazem parte e em que estão em busca de uma afiliação.
( Oliveira, S., 2017, p. 115).
Os estudos de Oliveira, S. ( 2017) e Martins ( 2017) chamam a atenção para a elevada carga horária do curso e o impacto na qualidade de vida dos estudantes. Tanto o estudante cotista quanto o não cotista destacam a competitividade no curso, o reconhecimento dos colegas por meio das notas e o comprometimento da saúde mental:
O estresse causado pela sobrecarga de atividades no curso de medicina tem causado sérios problemas psicológicos aos estudantes que, em alguns casos buscam acompanhamento profissional junto à universidade, ou de forma particular. Contudo, outros vivem esses sofrimentos em sua trajetória acadêmica de maneira isolada e sem buscar ajuda.
( Oliveira, S., 2017, p. 100).
Por conta da necessidade de repouso, o estudante cotista opta por morar sozinho abdicando da moradia estudantil ( Martins, 2017). Ainda de acordo com a autora, o estudante reconhece a importância da política de ação afirmativa em sua trajetória como mecanismo promotor de equidade e manifesta a intenção de atuar no Sistema Único de Saúde (SUS) como forma de retribuição social.
Sobre o tempo da aprendizagem e afiliação do estudante não cotista, o estudo de Oliveira, S. ( 2017) revela que o acesso à informação lhes é facilitado por conta de sua rede de relacionamento social, e destaca a importância da família tanto na condução do estudante ao longo de sua formação quanto na sua manutenção por meio de apoio e suporte financeiro. Por último, a autora observa que o estudante cotista tende a se engajar, majoritariamente, no movimento estudantil e nos grupos de extensão, por não preencher os critérios exigidos na seleção para ingressar nos grupos de pesquisa. Já o estudante não cotista participa ativamente de grupos de pesquisa e não sofre rupturas significativas em seu processo de afiliação ( Oliveira, S., 2017).
Considerações finais
Os resultados apontam que o estudante negro e/ou de camada popular ainda é o primeiro de sua família a ingressar na universidade, que é experienciada como um espaço de ressignificação e entendida como possibilidade de mobilidade social. Questões raciais, sociais e econômicas perpassam toda a trajetória universitária desses estudantes, que têm sua qualidade de vida comprometida para alcançar sucesso acadêmico. A fim de superar os entraves à afiliação, os estudantes desenvolvem como estratégias adaptativas a participação em grupos de estudo, monitorias, atividades de extensão, movimentos sociais e coletivos.
A criação e oferta de espaços destinados a escuta e elaboração das experiências vivenciadas na universidade, o acolhimento, a implicação da universidade no processo de afiliação estudantil e a valorização da dialética na produção do conhecimento e não hierarquização dos saberes também foram apontados como estratégias necessárias para o processo de afiliação do estudante negro e/ou de camada popular ao contexto universitário.
Apesar da realização de buscas em repositórios de reconhecida envergadura e importância, foram encontradas poucas produções científicas sobre o tema afiliação estudantil nos últimos cinco anos. Este trabalho também encontra limites em questões de etnia, gênero e inclusão de pessoas com deficiência. Todavia, os resultados deste estudo podem contribuir para o aprimoramento da execução da política de ação afirmativa.
Diante disso, reiteramos a pertinência da crítica de Mendes ( 2020) quanto à ausência da análise das relações de subalternidade no conceito de afiliação de Coulon, que solicita investigação, especialmente considerando o processo histórico de constituição da universidade no Brasil, seus modelos de organização e a política de educação das elites versus a política de ação afirmativa, que gerou um paradoxo envolvendo a massificação do acesso ao ensino superior e a não democratização do saber.
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2-
De acordo com Munanga ( 2020, p. 62), “numa marcha imemorial realizada em Brasília em 20 de novembro daquele ano [1995] pelo Movimento Negro brasileiro, denominada Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, a expressão ‘ação afirmativa’ foi textualmente enunciada pela primeira vez no manifesto entregue ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Cinco anos se passaram entre a Marcha Zumbi dos Palmares e a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, África do Sul, em agosto/setembro de 2001. O relatório final, sob a responsabilidade da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH), continha propostas de cotas para negros, indígenas e outras minorias”.
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3-
Definição de assédio moral, segundo estudo da Andifes ( 2019, p. 173): “uma situação de constrangimento, menosprezo ou humilhação a que o (a) estudante foi submetido (a) por docente”.
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4-
Por conta da vulnerabilidade na qual se encontra o estudante em sua chegada à universidade, Coulon ( 2017) considera o primeiro ano de curso como o “tempo de todos os perigos”, pois é nele que o rompimento de vínculos ainda frágeis pode ocorrer ensejando o abandono.
Editado por
-
Editora:
Cláudia Valentina Assumpção Galian
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Jan 2022 -
Aceito
24 Abr 2023 -
Revisado
13 Abr 2023