Resumo
A falta de formação didático-pedagógica dos professores para o trabalho docente é uma das facetas da crise crônica que atinge o ensino jurídico. Entretanto, não basta ofertar essa formação, faz-se necessário discutir as concepções teórico-conceituais que norteiam o processo formativo, pois essas são responsáveis por delinear os contornos do perfil do professor que se almeja formar e o modelo de ensino jurídico que se busca consolidar. Sendo assim, o objetivo deste artigo consiste em compreender as implicações da formação didático-pedagógica ofertada por meio dos cursos acadêmicos de pós-graduação stricto sensu em direito, tendo como premissa as percepções dos egressos a respeito do ser e fazer docente, delineando, assim, os perfis do professor do ensino jurídico. A pesquisa bibliográfica e de campo, o tratamento qualitativo dos dados e a análise de conteúdo foram os encaminhamentos metodológicos para o desenvolvimento da pesquisa. Os dados foram coletados mediante entrevista semiestruturada com 90 professores do ensino jurídico que são egressos dos cursos de mestrado ou doutorado em direito localizados no Estado do Paraná entre o período de 2017 a 2020. Nas considerações finais, verificou-se a prevalência do perfil técnico-prático (27%) no que se refere à concepção de professor do ensino jurídico, o que revela uma visão pragmática e instrumental do ser e fazer docente. Entretanto, constatou-se, também, a emergência de uma visão crítica-emancipatória da docência (23%), perfil esse que tem como parâmetro a formação de um agente transformador da realidade, comprometido com a humanização do sujeito.
Palavras-chave Perfil docente; Formação didático-pedagógica; Ensino jurídico
Abstract
The lack of didactic-pedagogical training of professors for teaching work is one of the facets of the chronic crisis affecting legal education. However, it is not enough to offer this training, it is necessary to discuss the theoretical-conceptual concepts that guide the training process, as these are responsible for outlining the contours of the profile of the professor that is sought to be trained and the model of legal education that is sought to consolidate. Therefore, the objective of this article is to understand the implications of didactic-pedagogical training offered through stricto sensu postgraduate academic courses in law, taking as a premise the perceptions of graduates regarding being and doing teaching, thus outlining, the profiles of legal education professors. Bibliographic and field research, qualitative data treatment and content analysis were the methodological guidelines for the development of the research. Data were collected through semi-structured interviews with 90 legal education professors who graduated from master’s or doctorate courses in law located in the State of Paraná between 2017 and 2020. In the final considerations, the prevalence of the technical-practical profile (27%) was verified. regarding the conception of a legal education professor, which reveals a pragmatic and instrumental view of being and doing teaching. However, it was also noted the emergency of a critical-emancipatory vision of teaching (23%), a profile that has as its parameter the formation of an agent who transforms reality, committed to the humanization of the subject.
Keywords Teaching profile; Didactic-pedagogical training; Legal education
Introdução
A crise crônica que assola o ensino jurídico tem raízes históricas transatlânticas, uma vez que os problemas atuais podem ser identificados desde a fundação dos cursos primordiais brasileiros afeitos ao molde europeu, sobretudo português.
A falta de formação didático-pedagógica para o exercício do magistério pode ser apontada como fundamental nesse contexto: tanto para causar e garantir a manutenção do sistema vigente, quanto para promover a transformação na consecução de um ensino jurídico crítico, democrático e emancipatório.
Diante disso, considerando os Programas de Pós-Graduação stricto sensu em direito localizados no Estado do Paraná, que ofertam formação didático-pedagógica para seus alunos, de conformidade com o art. 66, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), questiona-se: De que maneira os seus egressos percebem a formação didático-pedagógica ofertada nos cursos de mestrado e doutorado em direito e, consequentemente, suas implicações para o delineamento dos perfis dos professores do ensino jurídico?
Na consecução de responder ao problema formulado, o objetivo deste artigo consiste em compreender as implicações da formação didático-pedagógica ofertada por meio dos cursos acadêmicos de pós-graduação stricto sensu em direito, tendo como premissa as percepções dos egressos a respeito do ser e fazer docente, caracterizando, assim, os perfis do professor do ensino jurídico.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo. A estratégia de coleta de dados adotada é a entrevista semiestruturada com roteiro de perguntas, tendo como parâmetro o tratamento qualitativo dos dados e a análise de conteúdo apresentada por Bardin (2016). Na fase de pré-análise, as entrevistas realizadas com base em um questionário semiestruturado foram registradas e integralmente transcritas, cada documento constituído foi enumerado e arquivado separadamente, sendo tratado como uma parte constitutiva do corpus de análise ( Bardin, 2016).
As unidades de registro temáticas foram aproximadas por meio da analogia e demonstradas por intermédio da frequência de aparição de temas (palavras, frases, expressões) ( Moraes, 1999; Biagi, 2010) mencionados pelos professores entrevistados, tendo como fundamento o aspecto objetivo-quantitativo em relação à porcentagem de repetição das unidades de registro temática.
A constituição das categorias foi a posteriori, a fim de que emergissem das respostas dos participantes da pesquisa, e não fossem impostas de maneira preestabelecida (Moraes, 2017). Portanto, o sistema de categorias foi progressivo, derivando da classificação por analogia, valendo-se do procedimento denominado de acervo, em que o título da categoria é definido somente após a finalização do procedimento.
Na fase de exploração do material, foi possível identificar, por meio da fala dos participantes da pesquisa e da frequência de aparição, as seguintes categorias: I) natural-vocacional; II) tradicional-transmissor; III) técnico-prático; IV) pesquisador-atualizado; e V) crítico-emancipatório. Ao final, na fase de tratamento e interpretação dos dados, procedeu-se a análise a partir da revisão bibliográfica, problematizando os dados coletados de acordo com os objetivos da investigação.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, que emitiu o parecer de aprovação sob n. 44043421.2.0000.5231. A escolha dos participantes realizou-se a partir de convite feito aos professores, que atuam no ensino superior no curso de graduação em direito, e que são egressos dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu em direito do Estado do Paraná. O parâmetro temporal adotado corresponde aos egressos dos últimos 4 anos, contemplando o período da Avaliação Quadrienal (2017-2020) realizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em relação aos Programas de Pós-Graduação stricto sensu no país.
Foram entrevistados 90 professores, que declararam sendo 54% do gênero feminino e 46% do gênero masculino, 77% têm entre 30 e 45 anos, 66% são oriundos dos cursos de mestrado e 34% dos cursos de doutorado, 82% exercem à docência entre 3 e 10 anos, em instituições de ensino superior privadas (93%) localizadas no Estado do Paraná (90%). O questionamento central feito aos egressos teve como base a percepção desses sobre a importância da formação didático-pedagógica para o exercício da docência e as experiências formativas vivenciadas durante a realização dos cursos de mestrado e doutorado.
Organizado em dois momentos, inicialmente o artigo discorre sobre as visões e tensões presentes nas falas dos entrevistados, que marcam as contradições sobre a formação didático-pedagógica vivenciada nos cursos de mestrado e doutorado e, posteriormente, aborda o perfil do professor do ensino jurídico que entendem ser o mais adequado para o exercício da profissão.
Concepções a respeito do ser e fazer docente
As perguntas direcionadas aos entrevistados buscaram demonstrar a importância da formação didático-pedagógica, bem como ressaltar a concepção do egresso sobre o ser e fazer docente, isto é, revela como o professor entrevistado se posiciona no mundo, os princípios, visões e concepções que direcionam seu trabalho docente, bem como o compromisso desse profissional com determinado projeto educacional e político de sociedade. Em síntese, indica o perfil do professor do ensino jurídico que entende ser o que melhor responde aos desafios contemporâneos da sociedade brasileira.
Inicialmente, importa assinalar que aproximadamente 7% dos professores entrevistados apresentaram dificuldades de compreensão a respeito do questionamento formulado, assim, foi necessária a explicação prévia e exemplificação do entrevistador para que os participantes pudessem discorrer sobre a importância dos elementos didático-pedagógicos para a formação e atuação docente, conforme pode ser verificado a seguir:
Eu não entendi sua pergunta, didático-pedagógico em que sentido? (E12)
O que você quer dizer com didático-pedagógico? (E51)
Como assim, se está falando de metodologias? Eu não entendi a sua pergunta, me desculpe. (E65)
Olha, se eu entendi bem a sua pergunta seria no sentido de a gente ter na graduação elementos para preparar os alunos para ser professor? Seria isso? (E85)
O estranhamento em relação à utilização dos termos “didático” e “pedagógico” pode indicar a carência de formação para o exercício da atividade docente. Embora sejam elementos que compõem a praxe do trabalho docente, sendo, portanto, cotidianamente discutidos e analisados, os professores revelaram inabilidade no manejo desses termos.
Na formação de professores, os elementos didáticos são fundamentais para a profissionalização do trabalho docente, pois são responsáveis por dirigir a atividade de ensino, tendo como finalidade a aprendizagem dos alunos ( Libâneo, 2013). Todavia, essa concepção não pode centrar-se em uma perspectiva meramente instrumental vinculada ao preparo para a instrução, pois o elemento didático-pedagógico é um campo permeado de complexidades que envolvem a multidimensionalidade do ser e fazer docente ( Candau, 2013).
Sobre a formação didático-pedagógica para o exercício da atividade docente, 59% apontam esse como sendo um grande desafio no ensino jurídico. Aliás, os entrevistados consideram que esse problema precisa ser enfrentado, como pode ser observado nos seguintes trechos:
Eu te digo que os problemas que eu tenho como coordenadora de curso são justamente porque as pessoas não se especializam na parte pedagógica, na parte da educação mesmo, de metodologias. (E39)
Esse é um grande desafio no próprio direito, a gente não vem de uma pedagogia. (E27)
Fica escancarado a deficiência de uma boa parte dos professores de direito nessa questão didático-pedagógica, um sério problema a ser enfrentado no ensino jurídico brasileiro. (E81)
Como visto, a parcela majoritária dos entrevistados admite a ausência ou incipiência da formação didático-pedagógica dos professores dos cursos de direito. Isso é importante, pois entende-se que o reconhecimento da realidade é parte constitutiva do processo de sua transformação ( Freire, 2020).
Porém, não basta a percepção, é preciso discutir o perfil docente que se almeja formar alinhado ao projeto de ensino jurídico que se busca consolidar, tendo em vista que uma formação meramente instrumental e pragmática, em sintonia a um ensino jurídico antidialógico e dogmático, somente contribui para a manutenção do status quo praticado nos cursos de direito, um modelo de ensino e aprendizagem que não corresponde aos processos históricos de democratização dos espaços de poder, de humanização do jurista e alinhamento dos seus interesses aos da sociedade, e não aos do mercado ou do Estado, isto é, a consolidação de um ensino jurídico que seja catalisador das mudanças sociais ( Machado, 2009).
Destarte, esse projeto de ensino jurídico exige que a formação didático-pedagógica de seus professores, que não se trata de um processo formativo neutro ou abstrato, também tenha essa intenção. Para romper com o ensino jurídico tradicional, articulando a prática docente com esse projeto emancipatório, faz-se necessário que a formação didático-pedagógica não seja meramente pragmática, mas capaz de instrumentalizar o docente a se apropriar do acervo teórico-metodológico, científico e cultural da humanidade com vistas à humanização dos sujeitos ( Martins, 2014).
Além disso, em relação à prática dos professores do ensino jurídico, os entrevistados ressaltam que a falta de formação didático-pedagógica para o exercício do magistério tem implicado na metodologia de ensino, destacando esse como sendo um ponto frágil no campo do ensino jurídico, conforme assinalado a seguir:
Essa é uma das principais reclamações dos alunos. Inclusive, o professor, ele sabe tudo, ele é o cara, mas não tem didática, esse é um desafio para o ensino do direito. (E53)
Ele tem a prática, o dia a dia, o conhecimento prático, mas por muitas vezes eu vejo que falta a parte pedagógica, e isso prejudica os alunos, eu vejo assim. (E70)
Mas a gente vê pouca participação dos professores dos cursos de direito e a não aplicação dessas novas metodologias, e isso é um problema no ensino jurídico. (E33)
Essa vinculação instrumental entre didática e metodologia aponta, ainda, a concepção tradicional que os docentes têm sobre o ensino jurídico ( Candau, 2013), um processo de transmissão de conhecimentos daqueles que tudo sabem (professor) para aqueles que consideram que nada sabem (alunos) ( Freire, 2020), uma via de mão única, que desconsidera o contexto sociocultural e a perspectiva transformadora da realidade que o campo jurídico pode vir a assumir na emancipação dos sujeitos históricos.
Por fim, esses entrevistados denotam que as questões didático-pedagógicas são preteridas nos cursos que compõem o processo formativo dos docentes do ensino jurídico, seja na formação inicial, seja na formação continuada. Como pode-se observar a seguir:
Existe uma carência muito, muito grande no ensino superior no sentido de formar professores. (E55).
Tem o mestrado em direito, mas muitas vezes a gente peca um pouquinho, na formação pedagógica. (E59).
Eu vejo que a gente não tem formação didático-pedagógica, a gente não aprende isso, nem na graduação, nem no mestrado e nem no doutorado, e eu vejo isso como um problema. (E45).
Conforme expresso acima, os professores concordam que a falta de formação didático-pedagógica é um problema a ser enfrentado. Porém, entende-se que não basta garantir a oferta da formação, como algo neutro ou abstrato, pois a depender da concepção que direciona esse processo formativo, essa pode implicar diretamente na constituição do perfil do professor do ensino jurídico, contribuindo para a manutenção ou superação das contradições relacionadas ao ser e fazer docente.
Perfis dos professores dos cursos de graduação em direito
Em relação ao questionamento sobre a importância da formação didático-pedagógica, não se objetivava colecionar respostas de sim ou não. Mesmo porque nenhum dos entrevistados negou a importância desses elementos, mas a intencionalidade consistia em analisar sobre essa relevância para o professor e permitir a exteriorização daquilo que os entrevistados compreendiam acerca do ser e fazer docente. O ponto de vista relativo à formação didático-pedagógica denota a concepção que o próprio sujeito tem em relação ao perfil do professor do ensino jurídico, como será analisado nos próximos tópicos.
Professor natural-vocacionado
Entre as concepções que apresentaram frequência nas falas dos sujeitos entrevistados, tem-se a emergência da categoria do professor natural-vocacionado. Vocacionado é o sujeito que responde a um chamamento. A concepção do professor natural-vocacionado-sacerdócio foi consolidada no âmbito político-religioso por razões conservadoras de manutenção do círculo dos pertencentes, ou seja, uma visão elitista que subsidia a separação dos que possuem e daqueles que não possuem.
Para Hypolito (2020), o professor natural-vocacionado está atrelado ao domínio da Igreja sobre os processos educacionais, sobretudo no século XVI, quando foram fundadas escolas primárias para as camadas populares da sociedade. Embora apenas 12% dos professores entrevistados se referem ao trabalho docente como um dom-natural ou chamamento interior, essa é uma questão relevante a ser problematizada, pois tem uma raiz histórica profunda. O perfil natural-vocacionado pode ser observado nas seguintes transcrições:
Eu particularmente acho que a gente, o professor, já tem mais ou menos desde sempre, a forma, às vezes a pessoa pensa eu quero ser professor e vou entrar em um curso para ser professor, eu acho que é uma coisa que nasce com a gente. (E14)
A não ser que ele seja aquela pessoa que naturalmente é prepara para fazer aquilo, tem pessoas que tem um talento notável que não precisa. (E43)
As duas falas merecem destaque, uma vez que, na esteira de contemplar o professor vocacionado, aquele que originalmente é agraciado com um dom divino ou presente da natureza para trabalhar na docência, esses entrevistados dispensam a relevância dos cursos de formação docente, tendo em vista que o professor não se torna, mas nasce. Portanto, não haveria um processo constitutivo-formativo-apropriativo dos saberes, conhecimentos, procedimentos e técnicas ( Gatti et al., 2019 ) a nível teórico, científico e cultural ( Duarte, 2003; Martins, 2014), mas tão somente uma sorte definida no nascimento.
Essa correlação impede a discussão em torno da profissionalização da atividade docente, tais como jornada de trabalho, melhoria de salários, aprimoramento de condições e suporte adequado para exercer a atividade docente, pois a resignação e obediência são características necessárias aos vocacionados. Além disso, tem-se a figura do professor natural, aquele que nasceu com particularidades que lhe permitem exercer o trabalho docente de modo tão efetivo, como pode ser percebido nas falas abaixo:
Tem professor que tem mais desenvoltura mesmo, uma desenvoltura natural para se expressar, mas não é uma regra, não é geral. (E02)
Eu senti uma vocação para o ensino, mas não tinha técnica para isso quando comecei a ensinar [...] a grande maioria, dão aula não exatamente por uma vocação docente. (E42)
Um professor com bom domínio do conteúdo, pode ser que ainda que ele não tenha tido contato dogmático com a parte didático-pedagógica, e mesmo assim ele consiga suprir parcialmente essa falta por características pessoais que ele tem. (E51)
Eu creio que sim, viu, acho que a questão didática...por mais que a gente possa ter isso meio que naturalmente, muitas vezes, o professor de direito, ele tem isso, ou ele tem a didática ou não tem. (E64)
Para Roldão ( 2007, p. 102), mediar os processos de ensino e aprendizagem não é “um dom, embora alguns o tenham; não é uma técnica, embora requeira uma excelente operacionalização técnico-estratégica; não é uma vocação, embora alguns a possam sentir.” O trabalho docente exige conhecimento específico que possa subsidiar e legitimar a atividade profissional desempenhada, e esses conhecimentos são aprendidos, apropriados e internalizados, não são imanentes.
Os elementos relativos ao exercício do trabalho docente são apresentados como dogmas, presentes, conceitos metafísicos, vocação, características pessoais e subjetivismos que distorcem a realidade e encobrem a responsabilidade dos sujeitos em perseguirem os aspectos relativos à formação didático-pedagógica, pois não se pode buscar o dom, a vocação ou às características naturais-originárias, esses são elementos alheios à vontade do sujeito e, conforme relatado, indica uma impossibilidade de agir do professor diante da presença ou ausência desses requisitos. Por isso, tem-se necessidade de romper com a sacralidade envolta da docência e assumir o trabalho docente como atividade intencional voltada à transformação da realidade, algo que se aprende e não se nasce.
Professor tradicional-transmissor
Na investigação, 23% dos entrevistados fazem menção a expressões, tais como “passar” ou “transmitir” o conteúdo, são termos que denotam a presença viva da tendência tradicional, que persiste no imaginário social dos entrevistados. A categoria do professor tradicional-transmissor, que com frequência utiliza as técnicas de dissertação e exposição como metodologia de ensino, predomina na educação brasileira ( Libâneo, 2013). Consequentemente, a didática, a metodologia do ensino e os fundamentos pedagógicos estão atrelados a uma visão verbalista-transmissora do conhecimento. Uma via de mão única, um conhecimento que emana daquele que sabe para aquele que julga não saber. Concepção que pode ser constatada nas seguintes colocações:
É básico você ter essa preparação prévia para que você possa depois passar isso para os seus alunos. (E75)
Sem didática, existe uma possibilidade de você não passar com qualidade o que você deveria passar, eu vejo como primordial. (E13)
Se você quer poder transmitir o seu conhecimento para alguém, é imprescindível que você tenha conhecimento de técnicas para tanto. (E84)
Até porque se você consegue ter uma didática melhor, você também consegue fazer com que ele compreenda, especialmente essas áreas que são mais doutrinárias, uma área que exige muito mais, então você tem que ter uma forma de passar o conteúdo. (E83)
O tradicionalismo e a repetição de velhas práticas é uma característica do ensino jurídico ( Bittar, 2006). A transposição de experiências universitárias europeias ao território brasileiro, quando da fundação dos primeiros cursos de Direito (1827), pode ter contribuído para a construção de um imagético coletivo que atribuiu uma aura de sacralidade ao ensino jurídico: o estilo coimbrão, “um docente monopolizador e um alunado passivo, envolvidos com a reprodução de um arcaísmo” (Arruda Júnior, 2012, p. 126). O verbalismo bacharelesco e o dogmatismo jurídico são marcas dessa estrutura que rejeita mudanças, pois não se deve tocar no sagrado. Pode-se perceber a sua presença nos relatos a seguir:
Os meus professores, que trabalham comigo, utilizam a mesma forma de ensino que usavam comigo a dez anos atrás, é a mesma coisa ainda hoje, não mudaram em nada. (E33)
Eles jogam a matéria da maneira que eles entendem como sendo a melhor forma possível, mas não se leva muito em consideração a atitude do aluno, é aquele método em que só o professor fala e o aluno escuta, não há uma troca. (E89)
Eu me formei em uma época em que os professores não tinham muita preocupação com o ensino, com passar a matéria, entregar o seu conhecimento, passar a diante. (E76)
O papel do professor é ensinar, não se pode olvidar essa tarefa, mas quando ensina, o professor também aprende, e o aluno, enquanto aprende, também pode ensinar ( Freire, 2020). Dussel ( 1977, p. 191) afirma que: “[...] o autêntico mestre primeiro ouvirá a palavra objetante, provocante, interpelante e até insolente daquele que quer ser Outro”, e continua “[...] a voz do Outro significa conteúdo que se revela, e é somente a partir da revelação do Outro que se realiza a ação educativa. O discípulo se revela ao mestre; o mestre se revela ao discípulo” ( Dussel, 1977, p. 231). Dessa forma, o docente possibilita ao discente formar-se focando na alteridade e no reconhecimento do Outro, o qual, por sua vez, irá replicar, em sua nova condição, isto é, como egresso, a ética da alteridade.
Embora as colocações sejam no sentido de assinalar a falta de conhecimento didático-pedagógico dos professores para o exercício da atividade docente, a visão de professor como transmissor de conhecimento revela a concepção que o sujeito entrevistado tem a respeito do trabalho docente: um indivíduo, proprietário dos saberes, que é o responsável por transmitir o conteúdo para o aluno, que se coloca como um recipiente passivo que não tem nenhum conhecimento, em uma operação de transferência de quem tem para quem nada tem, como expresso a seguir:
Temos problemas pedagógicos em relação a isso, o professor sabe muito do conteúdo, mas não consegue transmitir para o aluno. (E39)
Muitos professores, eles têm o conhecimento e não tem a questão da didática [...] então eu creio que essa formação pedagógica facilitaria aos professores passarem o conteúdo de forma mais didática aos alunos de direito. (E60)
O perfil tradicional-transmissor ignora que “[...] as estratégias têm de ser constantemente modificadas, inventadas e reconceitualizadas para dar conta de cada nova experiência de ensino” ( hooks, 2017, p. 21). Embora pareça uma trivialidade, os conceitos teóricos utilizados pelos entrevistados revelam visões de mundo, as palavras e expressões não são aleatórias ou carentes de representação e, nesse caso, transmitir ou passar conteúdo para os alunos está atrelado a uma perspectiva bancária e alienante de educação. Ao contrário, alguns professores afirmam que:
Lecionar é muito mais do que passar conteúdo. (E55)
O papel do professor não é apenas transmitir o conhecimento, é elevar o nível do aluno, para que ele possa aprender de forma consistente, mas também chamar a atenção daquele aluno de corpo e alma para dentro da sala de aula. (E79)
Ou seja, muito se diz que a educação vai salvar o mundo, a verdadeira panaceia contra todos os males, mas que educação? Qual educação? A bancária? A totalizadora? Contra quem se ensina? A favor de quem se ensina? Por que se ensina? O que se ensina? ( Freire; Shor, 2021). Essas perguntas devem ser discutidas e respondidas por todos os educadores constantemente, de modo que essa reflexão possa descortinar a realidade e possibilitar a construção de novos paradigmas.
Professor técnico-prático
A categoria do professor técnico-prático é a mais recorrente na investigação, aproximadamente 27% dos professores entrevistados relatam a presença desse perfil docente. A prática profissional é exaltada como se, de alguma maneira, pudesse suprir a carência de formação didático-pedagógica ( Oliveira; Gebran, 2018). O saber experiencial e prático é importante, inclusive para possibilitar um processo maior de contextualização dos conteúdos, mas não se pode transformar o ensino jurídico em um curso preparatório para a advocacia. Essa instrumentalização compromete a qualidade do raciocínio jurídico e do pensamento crítico, pois foca na missão de formar operadores do direito, em uma perspectiva industrial e mecânica, e não juristas, que pudessem ser comprometidos com a justiça, com a transformação da realidade, com o Estado democrático de direito, com a axiologia constitucional e com os direitos humanos.
Todavia, é enfatizado pelos entrevistados a predominância dos saberes advindos da prática profissional, como pode ser observado abaixo:
A prática de escritório me ajuda bastante, porque a final de contas eu advogo a doze anos. Só trabalhei na área jurídica desde os meus dezoito anos, nunca parei, é muito diferente você ter o conhecimento prático e depois ter o conhecimento teórico para passar para o aluno. (E52)
É claro que um professor com muito mais prática oferece muito mais em sala de aula do que o professor eventualmente só com titulação e imerso nos livros, a prática para nós, faz toda a diferença. (E28)
Persiste no imaginário acadêmico relacionado ao ensino jurídico, o equívoco de que necessariamente aquele que exerce a prática profissional também sabe ensinar ( Berbel, 1994), e as falas dos entrevistados corroboram com essa constatação, pois para os profissionais-professores, na maioria das vezes, “o ensino é visto como uma ocupação secundária ou periférica em relação ao trabalho material e produtivo” ( Tardif; Lessard, 2013, p. 17).
Em relação à docência como atividade secundária, cerca de 44% dos entrevistados elencaram a advocacia como atividade principal e, mesmo entre os 36% dos participantes que elegem à docência como trabalho mais importante, uma parcela reconhece que não exerce o magistério de maneira exclusiva, inclusive por questões financeiras.
Além disso, pela ausência de formação inicial para o trabalho docente, bem como pela nula ou incipiente formação continuada oferecida nos cursos de mestrado e doutorado em direito no que diz respeito à formação didático-pedagógica, o professor é submetido a um processo de formação centralizado no conhecimento e nas soluções de problemas práticos do cotidiano do trabalho docente, tal como preceituado na BNC-Formação (art. 7°, incisos II, VIII; art. 8°, inciso II): aprendendo a fazer, fazendo, aprendendo a ensinar, ensinando. Como pode ser verificado nos enxertos abaixo:
Muitas das pessoas que estão em outras áreas, promotores, juízes, diziam que você aprende na prática, dar aula você aprende dando aula, e que a disciplina de processo pedagógico não é tão relevante, então é complicado. (E24)
Eu acho que é uma fragilidade no curso de direito, o professor de direito aprende a dar aula com base nas experiências pessoais e vivenciais dele com professores que deram aula para ele, a não ser que ele busque uma formação independente. (E05)
Eu considero importante porque como eu adentrei primeiro na docência e depois fui estudar o que era ser docente, eu vou dizer que senti falta no início, a ausência de preparação que eu tive para a docência, eu aprendi sozinho [...], mas por desconhecimento, eu acabei aprendendo na prática sozinho. (E50)
Eu acho que existe uma tendência na formação do jurista de achar que a prática é o que vai ser o critério delimitador do bom professor, do bom profissional, quando na verdade, o trabalho didático-pedagógico ele fica relegado a segundo plano. (E82)
O conhecimento experiencial-profissional como elemento fundante e suficiente para o trabalho docente está alicerçado no senso comum. Para Vázquez ( 1982, p. 13), “senso comum é o ponto de vista do praticismo; prática sem teoria, ou com o mínimo dela. Na consciência de senso comum o prático – entendido num sentido estritamente utilitário – contrapõe-se à teoria”. O professor não deve fundamentar sua atuação no senso comum, pelo contrário, deve basear-se no acervo teórico, científico e cultural da humanidade, não pode ser somente uma atuação profissional-experiencial baseada na reflexão da prática, em “[...] saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo etc.” ( Duarte, 2003, p. 619-620).
Pelo histórico das faculdades de direito de prezar pelas qualidades pessoais dos profissionais do mundo jurídico, tais como retórica, oratória e carisma na seleção de docentes para os cursos de direito ( Adorno, 2019) e pela valorização do conhecimento prático, rápido e resolutivo, alinhado ao mundo do trabalho contemporâneo, esse profissional (advogado, juiz, promotor) era e continua sendo bem recepcionado no ensino jurídico. Nesse ponto, os entrevistados realizaram um diagnóstico a respeito dessa relação profissional-professor (advogado, juiz, promotor), uma marca do ensino jurídico, que pode ser verificada a seguir:
Geralmente quem dá aula é um advogado, um famoso, um experiente, um juiz, e não necessariamente um professor de direito. (E30)
O sujeito é um grande advogado na área, ou juiz, ou desembargador e dá aula, mas ele não é professor de carreira, ele não teve formação. (E25)
Há uma falsa percepção de que um grande advogado, um grande juiz ou um grande promotor é um grande professor, e que eu não concordo com isso [...] nem sempre um profissional do direito é um bom professor. (E47)
Porque já vimos muitas vezes pessoas que têm um altíssimo conhecimento jurídico, advogados, juízes, promotores, mas que não conseguem expressar esse conhecimento. (E27)
Você tem professores que têm um conhecimento absurdo no meio jurídico, juízes até, e eu tenho que falar com ele, o senhor tem que falar mais devagar, você tem que seguir uma lógica. (E41)
Embora seja importante, o conhecimento verticalizado na área, sobretudo em uma perspectiva mecânica e operacional da prática, não pode suprimir ou até mesmo substituir os conhecimentos que são inerentes à atividade e ao trabalho docente. E os professores entrevistados assinalam essa necessidade: buscar formação didático-pedagógica para o exercício do magistério, tendo em vista que a profissão docente é um trabalho que exige conhecimentos específicos da área de atuação ( Roldão, 2007). Contribuindo com essa reflexão, os entrevistados afirmam que:
O professor de Direito, ele é acima de tudo um professor, ele é jurista, geralmente, uma profissão de alguma área próxima, mas ele é uma pessoa que vai se dedicar a uma atividade de ensino, então as particularidades da atuação demandam um conhecimento específico, não é algo que você aprende apenas na prática, você tem que ter momentos na sua formação que sejam dedicados especificamente para essa formação. (E18)
Eu acho que passou uma época em que tinha muito isso de um professor sem formação pedagógica, mas que tinha aquela experiência prática, eu acho que esse tempo passou, eu acho que hoje para ser um bom professor é preciso a parte pedagógica. (E17)
Ao contrário do profissional-professor, Roldão ( 2007, p. 102) ensina que “o professor profissional – como o médico ou o engenheiro nos seus campos específicos – é aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar.” Conforme a autora, saber ensinar demanda a construção da complexa capacidade de mediar o conhecimento curricular formal, mediação que requer “sólido saber científico”, “domínio técnico-didático” e uma “contínua postura meta-analítica” do professor em relação a sua prática docente ( Roldão, 2007, p. 102).
O perfil técnico-prático, principalmente aquele que concebe serem suficientes os conhecimentos da prática profissional jurídica para a atividade docente, precisa ser superado. Isso não significa abandonar a importância do conhecimento e da experiência prática, mas indica a necessidade de superar esse senso comum teórico dos juristas, essa percepção deve ser abandonada na história.
Alinhado ao contexto histórico-social-cultural contemporâneo, torna-se imprescindível reconhecer a importância dos elementos didático-pedagógicos no processo formativo dos professores do ensino jurídico para além de uma visão pragmática e instrumental, uma formação que seja alicerçada no paradigma da indissociabilidade entre teoria e prática.
Professor pesquisador-atualizado
Outra categoria de perfil do professor do ensino jurídico identificado na investigação refere-se ao professor pesquisador-atualizado. A frequência das respostas temáticas permite inferir que para esses entrevistados, o conhecimento didático-pedagógico se relaciona com o aprimoramento da pesquisa científica ou com a atualização dos conteúdos verticalizados da área de atuação. Para Freire (2013, p. 30) “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”.
Assim, um professor-pesquisador tem melhores condições de proporcionar um ensino contextualizado, reformulando sua atuação, motivando os alunos a buscarem a pesquisa e construindo espaços de autonomia. Entretanto, uma formação voltada estritamente à pesquisa não é suficiente para o trabalho docente ( Cavalcante, 2020). Isto é, a pesquisa acadêmica-científica não prepara para a docência, que é uma atividade profissional que exige conhecimentos intrínsecos ao ser e fazer docente.
Além desse fator, tem-se a figura do professor reflexivo, aquele que é pesquisador de sua própria prática. Para Freire (2012, p. 40), “[...] na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática”. Todavia, importa ressaltar que, embora seja importante esse processo reflexivo, a formação continuada de professores para o ensino jurídico não pode se limitar a uma reflexão da prática, pois torna-se como um ciclo fechado em si mesmo, devendo ser, para além dessa reflexão, um momento de análise da prática docente, subsidiada por conteúdos científicos, teóricos e culturais ( Martins, 2014).
Nesse ponto, aproximadamente 15% dos egressos ressaltam a importância da pesquisa acadêmica-científica para o trabalho docente. Um perfil que tem a sua importância, sobretudo no âmbito do ensino superior, mas que não pode suplantar os demais elementos próprios do trabalho docente. Nos enxertos a seguir, pode-se verificar a valorização da pesquisa e da atualização para o cotidiano da sala de aula:
O professor no mestrado e no doutorado, por ele criar uma rotina de estudo e de pesquisa, eu acredito que isso aprimora os recursos didáticos que ele vai utilizar na docência. (E16)
É uma questão de você ter mais pesquisa, porque sem incentivo à pesquisa, esse professor não vai estar motivado a continuar os estudos dele. (E08)
Eu senti quase que de imediato para as minhas publicações, para a minha produção acadêmica [...] grandes contributos sim, por exemplo, alinhamento de algumas pesquisas, isso eu senti diferença sim, foi bem produtivo. (E32)
No mestrado tem, no doutorado nós não temos estágio docente, mas tem a pesquisa avançada em direito [...] até essa questão pedagógica envolve essa questão de metodologia de pesquisa. (E46)
Outro aspecto a ser destacado refere-se à vinculação do trabalho docente com a atualização de conteúdos do campo do conhecimento em que o professor atua. Pela modificação constante que o direito vivencia, sobretudo pelas mudanças legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, a atualização é elemento indispensável para o ensino jurídico, e os professores entrevistados reconhecem essa importância, como destacado nas falas a seguir:
Eu entendo importante essa formação didático-pedagógica do professor, para que ele fique atualizado. (E40)
Considero sim, importante, até por uma questão de atualização. (E69)
Entretanto, esse processo de atualização da área de conhecimento do direito, tais como decisões judiciais mais recentes, novas legislações, entre outras, é uma das dimensões da formação de professores, mas não se confunde com os elementos didático-pedagógicos, e assim como a pesquisa e a experiência profissional, não podem suprir a carência desses elementos que estão ligados ao ser e fazer docente, tais como: conhecimentos e saberes relativos à metodologia do ensino; estratégias e ações voltadas à aprendizagem dos alunos; processos de planejamento e avaliação; relacionamento interpessoal; teoria educacional e perspectiva teórico-metodológica.
Professor crítico-emancipatório
A categoria do professor crítico-emancipatório se repete nas falas dos sujeitos entrevistados em aproximadamente 23% das vezes. O conceito de “crítica” foi empregado de maneira diversa ao longo das quadras históricas, denotando-se, assim, a sua natureza ambígua e polissêmica. Em Kant, por exemplo, a crítica assume o papel de operação analítica do pensamento, uma forma de trabalhar. De modo distinto, em Marx, a crítica tem a função de desvelar a realidade ocultada e desmitificar as ideologias ( Correas, 1995). Segundo Coelho ( 2019, p. 74), o núcleo da teoria crítica busca, fundamentalmente, a “[...] adesão ao real, a descoberta da verdade pela recusa de negar, distorcer ou omitir.”
O pensamento crítico é uma característica necessária para a emancipação e transformação social (Giroux, 1986). A perspectiva emancipatória visa à libertação do homem contra toda forma de opressão, busca pela liberdade e independência, uma mirada que enxerga o sujeito como agente de transformação, que não espera que de fora venha a mudança ( Costa, 2016).
Assim sendo, na abordagem crítico-emancipatória, que foca na transformação da realidade a partir de intervenções críticas de sujeitos emancipados, o trabalho docente deve ser voltado a um ensino de “[...] libertação de falsas ilusões, de falsos interesses e desejos, criados e construídos nos alunos pela visão de mundo que apresentam a partir de conhecimentos colocados à disposição pelo contexto sociocultural onde vivem.” ( Kunz, 2004, p. 121). Colaborando com essa reflexão, os professores destacam que:
Ser professor não é somente transferir, passar uma linguagem técnica que está disponível no livro, mas tem uma dimensão crítica, que implica em fazer uma crítica do status quo [...] promover estratégias para que os alunos pensem criticamente a realidade para transformar a realidade, e não para se tornar um mero executor de tarefas mecânicas. (E31)
A gente percebe que o ensino jurídico deve ser emancipatório, libertador, deve ser crítico e a gente não vê tanto isso no direito. (E26)
A consecução de um perfil crítico-emancipatório, na fala dos entrevistados, exige a superação de práticas de ensino e posturas profissionais entrelaçadas à visão tradicional-transmissiva. O comportamento dialógico do professor é marca do modelo crítico-emancipatório, aquele comprometido com o processo de ensino e aprendizagem, e não somente ensino, um profissional empenhado em garantir o desenvolvimento do aluno, de ir ao encontro do aluno, de falar com o aluno e não para o aluno ( Freire, 2020). Essa característica pode ser observada nas seguintes falas:
O professor não passa o conhecimento, ele vai construir o conhecimento, eu vou orientar, a função do professor é cada vez mais de orientador. (E36)
A gente defende muito o professor mediador, e não o professor transmissor de conhecimento simplesmente. (E68)
Principal objetivo do professor não é somente transmitir um conhecimento técnico, mas despertar no aluno o interesse em aprender aquele conhecimento. (E56)
O professor passou de uma condição de mero transmissor do conhecimento, ele tem que gerar, de alguma forma, o conhecimento de forma participativa para o aluno, os métodos que ele usa hoje são tão importantes quanto os conhecimentos de matérias específicas para o ensino jurídico. (E86)
Eu considero importante, especialmente porque o direito tem uma prática de ensino bastante positivista e centrada na decoração de informações [...] a formação pedagógica é importante como forma de se contrapor ao ensino tradicional que vem na mesma formação desde o século XIX. (E72)
Importa assinalar que um conjunto de competências e habilidades que possam ser aprendidas e assimiladas na prática, sobretudo uma experiência prática não-docente (atividade jurídica), não são suficientes para o trabalho do professor, pois a formação docente é multidimensional e complexa, não pode ser reduzida ao saber-fazer ( Gil Villa, 1998).
O domínio e o ensino da técnica, principalmente em uma perspectiva do saber-fazer e ensinar a fazer, não promove a emancipação, ao contrário, inviabiliza o pensamento e a análise crítica da realidade posta ( Tiroli; Jesus, 2022). Para os professores entrevistados, a formação didático-pedagógica é fundamental para a superação do paradigma técnico-prático na busca do crítico-emancipatório.
Porque ser professor é muito mais do que só ensinar técnica, então é ensinar uma série de habilidades e atitudes que dependem de um conhecimento de práticas didático-pedagógicas que não são ensinadas para a gente. (E34)
Você precisa ter um conhecimento além da mera técnica jurídica, e além desse raciocínio interdisciplinar que você tem que ter, me parece, o professor em si, ele precisa ter pelo menos uma noção básica da questão pedagógica. (E61)
A diferença da gente deixar de ser espectador e passar a ser protagonista do conhecimento [...] com esse procedimento didático-pedagógico a gente aprende ferramentas que possibilitam que a gente construa um pensar melhor para o acadêmico. (E54)
Precisa ser um outro olhar, uma olha didático, porque senão a gente dificulta essa comunicação, acho que a gente acaba transformando o direito em algo mais elitista, afastando o direito das pessoas. (E88)
Assim como destacado pelos entrevistados, pode-se aferir que, no perfil crítico-emancipatório, o professor torna-se um sujeito comprometido com a realidade sócio-histórico-cultural em que seu trabalho está inserido, que vai ao encontro do aluno e que está comprometido com a emancipação do sujeito, exigindo, assim, uma sólida formação teórica, científica e cultural ( Martins, 2014), uma formação que reconheça que o trabalho do professor é uma atividade intelectual ( Giroux, 1997), um agente promotor das mudanças e transformações, um sujeito ativo da história.
Em síntese, os paradigmas identificados nesta investigação revelam uma pluralidade de concepções a respeito do ser e fazer docente. O quadro abaixo demonstra a frequência desses perfis nas falas dos sujeitos da pesquisa, permitindo inferir que não existe um consenso a respeito da identidade e do trabalho do professor, tendo em vista que os percentuais não são intensamente díspares.
Tabela 1 - Perfis e concepções sobre o ser e fazer docente
Perfis e concepções pedagógicas | % |
---|---|
Natural-vocacionado | 12 |
Tradicional-transmissor | 23 |
Técnico-prático | 27 |
Pesquisador-atualizado | 15 |
Crítico-emancipatório | 23 |
Essa diversidade pode demonstrar que a perspectiva crítico-emancipatória, em que o professor se reconhece como agente transformador da realidade, assumindo sua responsabilidade no processo de ensino e aprendizagem, para além de estratégias de transmissão de conhecimento técnico oriundos das experiências profissionais, ainda é minoritária (23%).
Prevalece os perfis de professor do ensino jurídico como como um sujeito vocacionado ao trabalho docente (12%), que nasce com características que proporcionam a sua desenvoltura em sala de aula, ou ainda um detentor do conhecimento que, sabendo profundamente os conteúdos, irradia-os para os alunos, que passivamente assimilam (23%). Entretanto, o mais rememorado é o profissional-professor (27%), que dispensa os conhecimentos didático-pedagógicos em face da precisão técnica que adquiriu na profissão jurídica ou na repetição das velhas práticas de seus antigos professores.
Portanto, por meio da literatura acadêmica-científica e do tratamento dos dados coletados mediante entrevista, assume-se, nesse artigo, que o perfil crítico-emancipatório, emergido das respostas, é o que melhor responde aos desafios contemporâneos do ensino jurídico brasileiro, marcado pela pluralidade de novos atores e temas sociais e necessidade de democratização dos espaços de poder com vistas à humanização do sujeito.
Considerações finais
O ensino jurídico enfrenta muitos desafios, entre eles, a falta de formação didático-pedagógica de seus docentes. Não existem normas que versem sobre a formação de professores para o ensino superior, tão somente o artigo 66, da LDB, que atribui aos cursos de mestrado e doutorado essa responsabilidade. Todavia, conforme a bibliografia e o relato dos entrevistados, o foco central desses cursos é a pesquisa científica e produção acadêmica, preterindo, muitas vezes, os aspectos relacionados ao ensino.
A formação didático-pedagógica dos professores dos cursos de direito está relacionada ao projeto de educação jurídica que se almeja construir, seja para perpetuar os antigos modelos, seja para transformá-los na busca de novos paradigmas. Ao abrir espaço para essa discussão interna, os Programas de Pós-Graduação stricto sensu em direito assumem a responsabilidade sobre a formação daqueles que irão formar, de modo a permitir que a opção pela manutenção ou pela mudança seja feita.
Por isso, os Programas de Pós-Graduação stricto sensu em direito precisam implementar estratégias e ações voltadas à formação didático-pedagógica de seus alunos, mas não somente isso, pois mesmo aqueles que já preveem ações voltadas para esse fim precisam discutir sobre o perfil que se almeja formar e o projeto de ensino jurídico que se busca construir.
Nesse ponto, a partir dos dados coletado e da revisão bibliográfica, verificou-se os seguintes perfis, indicados pelos participantes da pesquisa: natural-vocacionado, tradicional-transmissor, técnico-prático, pesquisador-atualizado e o crítico emancipatório, tendo como predominância o técnico-prático (27%).
A predominância desse perfil é preocupante, pois entende-se que se trata de uma concepção de docência pautada em aspectos meramente instrumentais e pragmáticos, desvinculada dos problemas sociais e em sintonia com um ensino jurídico antidialógico e dogmático, perspectiva que se entende que deva ser superada.
Constatou-se, também, por meio das falas dos entrevistados e da revisão bibliográfica, a emergência de uma visão crítica-emancipatória da docência (23%), perfil que se caracteriza por conceber o docente como um agente transformador da realidade que busca a humanização do sujeito. Assim, sustenta-se a necessidade de os Programas de Pós-Graduação em direito ressignificar os processos de formação de seus egressos, tendo como parâmetro a perspectiva crítica-emancipatória, pois, conforme sustentado ao longo do artigo, esse perfil visa a formação de um professor comprometido com a emancipação dos alunos contra toda forma de opressão, que não apenas ensina, mas que forma e transforma, capaz de promover a emancipação na construção de um ensino jurídico desentranhado de suas amarras históricas e comprometido com o porvir.
Por fim, ressalta-se que a investigação apresentada é um convite à reflexão, sobretudo uma provocação. Anunciada aos quatro ventos, a crise do ensino jurídico está umbilicalmente vinculada à formação de professores. O trancamento dos espaços de discussão e a recusa a tratar do problema representam a escolha pela conservação do status quo. Ao contrário, como um facho de luz em uma sala escura, a discussão em torno do perfil que se almeja formar do professor pode contribuir para a construção de um ensino jurídico crítico, democrático e emancipatório, por meio daqueles que estão comprometidos com esses valores.
Referências
- ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. 2. ed. rev. São Paulo: Edusp, 2019.
- ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Ensino jurídico e sociedade: formação, trabalho e ação social. São Paulo: Acadêmica, 1989.
-
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016. Disponível em: https://madmunifacs.files.wordpress.com/2016/08/anc3a1lise-de-contec3bado-laurence-bardin Acesso em: 19 nov. 2022.
» https://madmunifacs.files.wordpress.com/2016/08/anc3a1lise-de-contec3bado-laurence-bardin - BERBEL, Neusi Aparecida Navas. Metodologia do ensino superior: realidade e significado. Campinas: Papirus, 1994.
- BIAGI, Marta Cristina. Investigación científica: guía práctica para desarrollar proyectos y tesis. Curitiba: Juruá, 2010.
- BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Estudos sobre ensino jurídico: pesquisa, metodologia, diálogo e cidadania. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
-
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educacional nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 27 fev. 2022.
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm - CANDAU, Vera Maria. Rumo uma nova didática. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
- CAVALCANTE, Lígia Vieira da Silva. Formação continuada de professores no ensino superior privado: tensionamentos e possibilidades contemporâneas. 2020. Dissertação (Mestrado em Ensino) – Universidade do Vale do Taquari - Univates, Lajeado, 2020.
- COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito: uma aproximação macrofilosófica. 5. ed. Curitiba: Bonijuris, 2019.
- CORREAS, Oscar. Teoría del derecho. Barcelona: Bosch, 1995.
- COSTA, Bruno Botelho. Paulo Freire: educador-pensador da libertação. Pro-Posições, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 93-110, jan./abr. 2016.
-
DUARTE, Newton. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor (por que Donald Schön não entendeu Luria). Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 83, p. 601-625, ago. 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000200015 Acesso em: 27 dez. 2021.
» https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000200015. - DUSSEL, Enrique. Para una ética de la liberación latinoamericana. t. 3. Buenos Aires: Siglo XXI, 1977.
- FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 74. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
- FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
- GATTI, Bernardete Angelina et al. Professores no Brasil: novos cenários de formação. Brasília, DF: Unesco, 2019.
- GIL VILLA, Fernando. Crise do professorado: uma análise crítica. Tradução de Talia Bugel. Campinas: Papirus, 1998.
- GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
- HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.
- HYPOLITO, Álvaro Moreira. Trabalho docente, classe social e relações de gênero. 2. ed. São Leopoldo: Oikos, 2020. E-book.
- KUNZ, Eleonor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 2004.
- LIBÂNEO, José Carlos. Didática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2013.
- MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
- MARTINS, Lígia Márcia. A constituição histórico-social da subjetividade humana: contribuições para a formação de professores. In: MILLER, Stela; BARBOSA, Maria Valeria; MENDONÇA, Sueli Guadelupe de Lima. Educação e humanização: as perspectivas da teoria histórico-cultural. Jundiaí: Paco, 2014. p. 97-110.
- MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999.
-
OLIVEIRA, Patrícia Zaccarelli; GEBRAN, Raimunda Abou. O profissional docente do direito: refletindo sobre sua prática pedagógica. Holos, Natal, v. 34, v. 3, 2018. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/4206 Acesso em: 13 set. 2020.
» http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/4206 - ROLDÃO, Maria do Céu. Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, p. 94-103, 2007.
- TARDIF, Maurice; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2013.
-
TIROLI, Luiz Gustavo; JESUS, Adriana Regina de. Tensões e embates na formação docente: perspectivas históricas e análise crítica da BNC-Formação e BNC-Formação continuada. Olhar de Professor, Ponta Grossa, v. 25, p. 1-24, e-20732.066, 2022. Disponível em: https://revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor Acesso em: 13 set. 2022.
» https://revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor - VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização, 1982.
Editado por
-
Editor: Prof. Dr. Agnaldo Arroio
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
27 Jun 2022 -
Aceito
10 Abr 2023 -
Revisado
11 Nov 2022