Resumo
Os estudos acerca da juventude ganharam maior relevância na academia nos últimos anos, ampliando as possibilidades de análise dessa categoria, consolidando a ideia do jovem como ator político e social. Essa ampliação de estudos destacou a heterogeneidade do jovem, fomentando pesquisas sobre os diversos aspectos das juventudes. A juventude rural faz parte da diversidade de atores sociais que compõem as juventudes, e estudar suas dinâmicas e fenômenos sociais têm sido uma necessidade emergente. Nesse sentido, este artigo busca analisar a juventude rural sob o conceito de poder simbólico (BOURDIEU, 1989), na tentativa de compreender como as relações de poder e dominação simbólica estão presentes na vida dos jovens de Bebida Velha, comunidade rural tradicional localizada em Pureza, RN. Utilizamos como metodologia analítica o Discurso do Sujeito Coletivo, que consiste numa técnica com viés qualitativo e/ou quantitativo que se propõe a construir um discurso coletivo com base em discursos individuais de um mesmo grupo social. A partir da análise do Discurso do Sujeito Coletivo de maneira qualitativa, construído por meio de 15 entrevistas semiestruturadas realizadas com os jovens rurais, percebemos que os principais espaços de socialização da juventude rural (educação, trabalho, família e grupos de lazer) podem ser reprodutores das relações simbólicas de poder e dominação, ao mesmo tempo que representam espaços de sociabilidade e oportunidades de mudança social.
Palavras-chave
juventude rural; relações de poder; violência simbólica; meio rural; sociologia da juventude
Abstract
Studies about youth have gained greater relevance in academia in recent years, expanding the possibilities of analysis of this category, consolidating the idea of youth as a political and social actor. This expansion of studies has highlighted the heterogeneity of young people, fostering research on the various aspects of youth. Rural youth are part of the diversity of social actors that make up the youth, and studying their dynamics and social phenomena has been an emerging need. In this sense, this article seeks to analyze rural youth underthe concept of symbolic power (BOURDIEU, 1989), in an attempt to understand how power relations and symbolic domination are present in the lives of young people from Bebida Velha, a traditional rural community located in Pureza, RN. We used as analytical methodology the Discourse of the Collective Subject, which is a technique with qualitative and/or quantitative bias that aims to build a collective discourse based on individual speeches of the same social group. From the analysis of the Discourse of the Collective Subject in a qualitative way, built through 15 semi-structured interviews conducted with rural youth, we realize that the main spaces of socialization of rural youth (education, work, family, and leisure groups) can be reproducers of symbolic relations of power and domination, while representing spaces of sociability and opportunities for social change.
Keywords
rural youth; power relations; symbolic violence; rural areas; sociology of youth
Resumen
Los estudios sobre Ia juventud han cobrado mayor relevancia en el ámbito académico en los últimos anos, ampliando Ias posibilidades de análisis de esta categoría, consolidando la idea de Ia juventud como actor político y social. Esta expansión de los estudios ha puesto de manifiesto Ia heterogeneidad de Ia juventud, fomentando Ia investigación sobre los distintos aspectos de Ia misma. Los jóvenes rurales forman parte de la diversidad de actores sociales que conforman Ia juventud, y el estudio de sus dinámicas y fenómenos sociales ha sido una necesidad emergente. En este sentido, este artículo busca analizar a Ia juventud rural bajo el concepto de poder simbólico (BOURDIEU, 1989), en un intento por comprender como las relaciones de poder y dominación simbólica están presentes en la vida de los jóvenes de Bebida Velha, una comunidad rural tradicional ubicada en Pureza, RN. Utilizamos como metodologia de análisis el Discurso del Sujeto Colectivo, que consiste en una técnica con sesgo cualitativo y/o cuantitativo que propone construir un discurso colectivo a partir de los discursos individuals de un mismo grupo social. A partir del análisis del Discurso del Sujeto Colectivo de forma cualitativa, construído a través de 15 entrevistas semiestructuradas realizadas a jóvenes rurales, nos damos cuenta de que los principales espacios de socialización de los jóvenes rurales (educación, trabajo, familia y grupos de ocio) pueden ser reproductores de relaciones simbólicas de poder y dominación, a la vez que representan espacios de sociabilidad y oportunidades de cambio social.
Palabras clave
juventud rural; relaciones de poder; violencia simbólica; zonas rurales; sociologia de Ia juventud
1 Introdução
A juventude, como categoria, ganhou espaço na academia, nas políticas públicas e na cultura popular – nesta última, por meio da grande mídia, principalmente (ABRAMO, 2005ABRAMO, Helena Wendel. O uso das noções de adolescência e juventude no contexto brasileiro. In: FREITAS, Maria Virgínia (Org.). Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação educativa, 2005. p. 20-35.). Entretanto, esse espaço conquistado permitiu que surgissem duas concepções simplistas quando se trata do conceito de juventude: o jovem como indivíduo “problemático” ou causador de problemas sociais; e o jovem estudante, moderno e de classe média. Essas duas concepções duais acabaram deixando em segundo plano as outras tantas questões que envolvem a realidade da juventude, como afirma Costa (2018)COSTA, João Bosco Araújo da. Juventude, participação e cultura política. In: COSTA, João Bosco Araújo; SILVA, Maria Aparecida Ramos da. Juventudes, cultura e política. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018. p. 27-31.: “Os jovens das classes populares, que desde muito cedo trabalham e se inscrevem em diversos espaços de compromissos sociais, econômicos e familiares, terminavam sendo excluídos desta concepção de juventude” (COSTA, 2018, p. 37COSTA, João Bosco Araújo da. Juventude, participação e cultura política. In: COSTA, João Bosco Araújo; SILVA, Maria Aparecida Ramos da. Juventudes, cultura e política. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018. p. 27-31.).
Ao estudar a participação social e política da juventude na Argentina, Vázquez (2015)VÁZQUEZ, Melina. Juventude, politico pública e participação: um estudo sobre as produções sócio-estatais da juventude na Argentina recente. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Grupo Editorial Universitário, 2015. 88p. afirma que a configuração dos estudos e a conceituação da categoria “juventude” perpassam uma série de elementos ligados ao gênero, à geração, à classe e etnia, entre outros aspectos. Nesse sentido, a juventude não pode ser compreendida e tratada de maneira simplista ou dualista. Os grupos dentro do campo “juventude” passam a ganhar destaque: a juventude negra, juventude urbana, juventude trabalhadora etc.
[...] a diversidade de conceitos e posições que são reunidas sob o termo “juventude” leva a uma espécie de abuso de linguagem, uma vez que não expõe – nem objetiva nem materialmente – elementos que permitam o seu reconhecimento de uma forma unificada e coerente. (VÁZQUEZ, 2015, p. 9VÁZQUEZ, Melina. Juventude, politico pública e participação: um estudo sobre as produções sócio-estatais da juventude na Argentina recente. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Grupo Editorial Universitário, 2015. 88p.).
Se a categoria “juventude” é marcada pela heterogeneidade, a categoria “juventude rural” apresenta ainda mais particularidades nas tentativas de construção de uma definição. Segundo Castaneda (2011, p. 1)CASTANEDA, Marcelo. “Juventude rural” como campo analítico. Blog Lida Diária, Rio de Janeiro, 22 mar. 2011. Disponível em: http://lidadiaria.blogspot.com/2011/03/juventude-rural-como-campo-analitico.html. Acesso em: 5 abr. 2017.
http://lidadiaria.blogspot.com/2011/03/j...
, a “juventude rural” configura um campo analítico a partir de uma análise dos “jovens rurais” como agentes que travam as lutas geracionais, bem como das armas que utilizam e das estratégias que praticam nessas lutas. Além disso, o jovem rural deve ser “visualizado como o futuro dos espaços em que atua. Assim, o desenvolvimento de determinadas regiões está relacionado ao nível de empenho e dedicação que esses jovens têm com o local” (TROIAN; BREITENBACH, 2018, p. 797TROIAN, Alessandra; BREITENBACH, Raquel. Jovens e juventudes em estudos rurais do Brasil. Interações, Campo Grande, MS, v 19, n. 4, p. 789-802, out./dez. 2018.).
Durante muito tempo, as principais problemáticas levantadas nas pesquisas sobre os jovens do campo eram voltadas para a questão da inserção do jovem na produção agrícola familiar e o dilema entre o ficar e sair do meio rural. Este último configura o maior fio condutor das pesquisas elaboradas sobre juventude rural no Brasil (CARNEIRO, 1999CARNEIRO, Maria José. O ideal urbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira; SANTOS, Raimundo; COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. (Org.). Mundo Rural e Política. Rio de Janeiro: Campus, 1999. p. 95-118.; CARNEIRO; CASTRO, 2007CARNEIRO, Maria José; CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural em perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2007.; CASTRO et al., 2009CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 7, n. 1, p. 179-208, jan./jun. 2009.), mas ainda existem “poucos estudos sobre os desafios dos jovens em permanecer ou não na propriedade rural familiar” (OLIVEIRA; MENDES; VASCONCELOS, 2021, p. 2OLIVEIRA, Márcia Freire; MENDES, Luciano; VASCONCELOS, Andrea Costa van Herk. Desafios à permanência do jovem no meio rural: um estudo de casos em Piracicaba-SP e Uberlândia-MG. Revista de Economia e Sociologia Rural, [s.l.], v. 59, n. 2, p. 1-19, 2021.).
Esses dois temas são de suma importância para o acúmulo teórico da juventude rural no Brasil e, de fato, ainda estão longe de se esgotarem, dadas as constantes alterações nas dinâmicas dos espaços rurais. Entretanto, este trabalho busca ampliar os estudos acerca da juventude rural ao se dedicar a analisar as relações de poder simbólico que permeiam comunidades rurais.
Por meio de resultados de pesquisas anteriores acerca da participação social e política de jovens do campo, o presente artigo parte da hipótese de que os jovens rurais passam por situações de exclusão, humilhação e silenciamento nos diversos espaços de sociabilização. O objetivo se traduz na tentativa de compreender como o poder se materializa na prática nos diferentes espaços de socialização – escola, trabalho, família e grupos/lazer – e como ele é percebido pelos jovens da comunidade rural de Bebida Velha, no município de Pureza, interior do Rio Grande do Norte, Brasil.
Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. afirma que as determinações etárias não somente impõem fronteiras práticas como também produzem uma ordem social. Exemplo disso é que, para o autor, limites da juventude servem historicamente para manutenção do poder das classes dominantes, ao depositar sobre os jovens pressupostos de natureza irresponsável e rebelde. A representação ideológica historicamente dada acerca do jovem o coloca em distinção ao conceito de velhice, seja por hábitos, costumes ou deveres socialmente produzidos. Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. afirma que as noções de juventude e de velhice não são dadas, mas construídas socialmente na luta entre os jovens e os velhos. Essa luta, para o autor, permite-nos compreender a relação entre os jovens e os velhos como disputas sociais em torno de relações de poder simbólico.
A idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável; e que o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente. (BOURDIEU, 1983, p. 113BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983.).
Essas ordens sociais erroneamente concebidas historicamente permitiram ao jovem do campo viver uma segregação social permeada por violências simbólicas, em diversos espaços de sociabilização, e uma tendência à reprodução de certas condutas sociais preconcebidas. Essas práticas ou condutas sociais são chamadas de hobitus, por Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983.. Assim, o hobitus pode ser entendido como um sistema estruturante e mutável responsável pela reprodução da existência das classes. Por meio do conceito de hobitus, Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. nos permite compreender as pessoas como agentes e não sujeitos, visto que, para ele, as pessoas não estão apenas agindo de maneira isolada do meio em que vivem e dos espaços em que estão inseridas. Os agentes possuem opiniões individuais, porém, essas opiniões acabam refletindo as opiniões e práticas coletivas. Para Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983., o hobitus se configura como:
[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 65BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983.).
Nesse sentido, é possível entender, por exemplo, que os jovens aqui entrevistados expõem suas impressões pessoais acerca das situações, ao mesmo tempo que refletem em suas falas as particularidades que os espaços e os demais atores influem em suas vivências. Ainda segundo Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983., práticas sociais são os costumes e hábitos por nós adquiridos, bem como são resultados das vivências culturais, sociais, econômicas etc. Dessa maneira, as ações individuais que produzimos são, na verdade, o que Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. denomina de estruturas e disposições duráveis e transferíveis (SETTON, 2002SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, p. 60-70, maio/ago. 2002.), ou seja, o produto das interações que vivenciamos na sociedade.
Aliado ao conceito e hobitus, Pierre Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. avança na conceituação de poder e a aplica de maneira estruturante em suas obras, oferecendo-nos uma teoria de sociedade. O autor francês defende que o poder simbólico está presente não apenas nas relações entre sociedade e Estado ou nas relações pessoais, mas em todas as relações e esferas. É uma perspectiva macro, que nos permite compreender que o poder simbólico está presente na sociedade de forma ampla.
Conforme Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., o poder é exercido, principalmente, de forma invisível, podendo ser praticado somente com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem. O autor denomina esse poder invisível de poder simbólico. Tais relações de poder produzem maneiras de pensar, agir ou executar uma atividade seguindo sempre os mesmos padrões de processo (modus operandi). “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer [...] só se exerce se for reconhecido” (BOURDIEU, 1989, p. 14BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.).
Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. relaciona o poder simbólico com a violência simbólica, que consiste em imposições, violência verbal, constrangimentos e sofrimentos sociais e psicológicos. Essa violência simbólica está relacionada à incompatibilidade de culturas. Segundo Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983., as diversas faces das relações de hierarquia social presentes no meio rural configuram formas de exercício do poder simbólico. A autoridade paterna, comumente citada entre os embaraços dos jovens rurais, configura e reforça a manutenção de uma cultura patriarcal, na qual a figura do pai exerce domínio sobre o âmbito familiar, em especial, sobre os filhos. Essas relações de poder típicas dos regimes patriarcais “'são questionadas e/ou subvertidas pelas jovens camponesas quando estas têm acesso à escolarização e tomam consciência das desigualdades de gênero” (SCHWENDLER; VIEIRA; AMARAL, 2018, p. 248SCHWENDLER, Sônia Fátima; VIEIRA, Catarina Rielli; AMARAL, Mariana Ribeiro. Relações de trabalho, gênero e geração das jovens camponesas em assentamentos de reforma agrária. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v 23, n. 3, p. 248-75, set./dez. 2018.).
Tais relações afetam diretamente as condições de permanência ou o êxodo juvenil do campo, gerando implicações sociais e econômicas, as quais interferem diretamente na vida dos jovens. Em muitos casos, há um estímulo dos pais para que os filhos deixem a propriedade para ir estudar. “Isso permite a esses jovens o acesso ao mercado de trabalho urbano, tornando a propriedade rural uma opção, entre outras, para sustento e sobrevivência” (OLIVEIRA; MENDES; VASCONCELOS, 2021, p. 4OLIVEIRA, Márcia Freire; MENDES, Luciano; VASCONCELOS, Andrea Costa van Herk. Desafios à permanência do jovem no meio rural: um estudo de casos em Piracicaba-SP e Uberlândia-MG. Revista de Economia e Sociologia Rural, [s.l.], v. 59, n. 2, p. 1-19, 2021.). Neste caso, percebe-se que a escolha pelo urbano que muitos jovens fazem tem a ver com a falta de oportunidades que o campo proporciona e da ausência e dificuldade dos pais em dividir tarefas e dar maior autonomia aos filhos no processo decisório.
Segundo Carneiro e Castro (2007)CARNEIRO, Maria José; CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural em perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2007., a escolha da sucessão da propriedade em uma família com mais de um filho tem o gênero como fator determinante. Sobre isso, Castro (2009)CASTRO, Elisa Guaraná; MARTINS, Maíra; ALMEIDA, Salomé Lima Ferreira; RODRIGUES, Maria Emilia Barrios; CARVALHO, Joyce Gomes. Os jovens estão indo embora? – juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2009. afirma que ser um jovem rural é carregar o peso de uma posição hierárquica de submissão. Para Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., a dominação simbólica reflete em:
[...] instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segunda a expressão de Weber, para a «domesticação dos dominados». (BOURDIEU, 1989, p. 11BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.).
Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983. traz ainda a ideia de campo como espaço de lutas e disputas, que servem como base para diversos capitais (culturais, políticos, econômicos, simbólicos etc.). Os campos são caracterizados por marcadores sociais de diferenças, como o uso de vestimentas, falas, costumes e comportamentos. Com essa noção de campo, é possível compreender o meio rural como um campo marcado por disputas, habitus e relações de poder que caracterizam as relações sociais existentes.
A análise do artigo tem viés de natureza qualitativa, e a metodologia utilizada se baseia na construção do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) (LEFEVRE; LEFEVRE; TEIXEIRA, 2000LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti; TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.138p.). Dessa maneira, analisaremos aqui, por meio da construção e análise do Discurso do Sujeito Coletivo, as relações de poder presentes na juventude rural da comunidade de Bebida Velha, em Pureza, RN, em suas principais matrizes de socialização. O artigo está estruturado em quatro seções, sendo a primeira esta introdução. Na segunda, detalharemos os caminhos metodológicos utilizados na pesquisa; na terceira seção, abordaremos os resultados a partir da construção do DSC; e, na quarta e última, estão as considerações finais e os apontamentos para futuras pesquisas, seguidos das referências bibliográficas utilizadas.
2 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Buscando compreender as relações de poder que permeiam a juventude rural, suas trajetórias e histórias de vida, utilizamos como metodologia analítica o DSC, que consiste numa técnica com viés qualitativo – aqui utilizado – e quantitativo, idealizada por Fernando Lefevre e Ana Maria Cavalcanti Lefevre (2003)LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003., 2014), com o objetivo de construir um discurso coletivo com base em discursos individuais de uma mesma categoria ou grupo.
O DSC consiste na apreciação de respostas ou depoimentos coletados a partir de questões abertas. Tais depoimentos são observados e categorizados sob a forma de um ou vários discursossíntese escritos na primeira pessoa do singular, expediente que visa expressar o pensamento de uma coletividade, como se essa coletividade fosse o emissor de um discurso (LEFEVRE; LEFEVRE; TEIXEIRA, 2000, p. 3LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti; TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.138p.).
Neste caso, realizamos uma síntese dos discursos individuais com recortes que trazem as principais ideias dos jovens em cada resposta; em seguida, agrupamos tais recortes em uma fala única, gerando um discurso coletivo dos sujeitos participantes e representando, a partir de pontos importantes nas falas individuais, um pensamento coletivo acerca dos questionamentos levantados durante as entrevistas.
Para tanto, foi criado o conceito de Discurso do Sujeito Coletivo, que é uma proposta de organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal, obtidos de depoimentos, artigos de jornal, matérias de revistas semanais, cartas, papers, revistas especializadas etc. (LEFEVRE; LEFEVRE, 2003, p. 15LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.).
Os discursos coletivos se relacionam com os valores, os conhecimentos e as práticas que direcionam comportamentos e relações sociais, expressados por meio de sentimentos, atitudes, palavras e expressões. O método do DSC nos permite fazer uma construção do discurso por meio das respostas obtidas, fornecendo, assim, uma dimensão coletiva a partir das percepções de uma dimensão individual desses jovens. O DSC possibilita identificar, nas opiniões individuais, representações sociais de indivíduos e suas práticas na sociedade.
O diferencial da metodologia do DSC é que a cada categoria estão associados os conteúdos das opiniões de sentido semelhante presentes em diferentes depoimentos, de modo a formar com tais conteúdos um depoimento síntese, redigido na primeira pessoa do singular, como se tratasse de uma coletividade falando na pessoa de um indivíduo. (LEFEVRE; LEFEVRE, 2014, p. 503LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. Discurso do sujeito coletivo: representações sociais e intervenções comunicativas. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 502-7, abr./jun. 2014.).
A fim de entendermos as trajetórias dos jovens rurais de Bebida Velha e como eles percebem ou reproduzem as relações de poder existentes na comunidade, consideramos utilizar o DSC por se tratar de um método que consegue captar as múltiplas percepções de um mesmo objeto de investigação. A exteriorização da subjetividade humana nos discursos individuais constitui fator primordial na compreensão desses discursos e nos dão melhor clareza no discurso coletivo a ser construído. Nesse sentido, os pensamentos, as realidades e as subjetividades de um conjunto de indivíduos contribuem para um entendimento mais preciso de representações sociais.
Por isso, a importância de o discurso coletivo ser pesquisado de forma qualitativa: as particularidades presentes em cada fala representam uma riqueza de detalhes que ajudam no processo de construção e análise de um discurso coletivo. O DSC é, assim, uma estratégia metodológica, que, utilizando uma estratégia discursiva, visa tornar mais nítida uma dada representação social, bem como o conjunto das representações que conforma um dado imaginário (LEFEVRE; LEFEVRE, 2003LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.).
O DSC como técnica de processamento de dados com vistas à obtenção do pensamento coletivo dá como resultado um painel de discursos de sujeitos coletivos, enunciados na primeira pessoa do singular, justamente para sugerir uma pessoa coletiva falando como se fosse um sujeito individual de discurso. (LEFEVRE; LEFEVRE, 2003, p. 32LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.).
Como destacam Lefevre e Lefevre (2006)LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O sujeito que fala. Interface, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 517-24, jul./dez. 2006., a análise do discurso coletivo pressupõe a distinção de algumas categorias: expressões-chaves (E-CH), ideias centrais (IC), ancoragem (AC) e, por fim, o DSC. As expressões-chave e as ideias centrais são as os principais operadores para a formulação do DSC. Portanto, utilizamos as ECH e IC na construção do DSC. As expressões-chave são partes literais dos discursos que remetem ao principal conteúdo das falas. As ideias centrais, por seu turno, são palavras ou expressões sintéticas que descrevem o sentido geral daquilo que foi dito no depoimento.
Para melhor categorização das falas, empregamos o software DSC soft, criado e utilizado apropriadamente para a metodologia em questão. No software, é possível sistematizar informações quantitativas e qualitativas, construindo, com isso, gráficos a partir dos dados quantitativos, além do DSC. O DSCsoft é uma versão aprimorada do Qualiquantisoft, primeiro software desenvolvido para a metodologia e configurado como um aprimoramento no tratamento dos dados.
Os discursos foram obtidos por meio da aplicação de 15 entrevistas individuais semiestruturadas, realizadas na própria comunidade, no período de junho de 2018 a fevereiro de 2020. As perguntas eram abertas e foram divididas em blocos: educação, família, trabalho e lazer/participação, com uma média de sete perguntas por bloco, além de um primeiro bloco com perguntas socioeconômicas e de identificação. Foram realizadas 15 entrevistas com os jovens, por meio da técnica de amostragem conhecida como “bola de neve”, com suporte, ainda, da associação local, a qual possibilitou alguns contatos com os entrevistados. A escolha e a ordem das perguntas foram pensadas com o objetivo de inserir o jovem nos temas questionados, de maneira que eles se sentissem confortáveis.
A utilização da técnica do DSC nos possibilitou captar o que os jovens rurais de Bebida Velha pensam sobre as relações de poder que os rodeiam, permitindo-nos a produção de um discurso único, mas composto por diversas realidades e dinâmicas que, a partir da somatória dos discursos individuais, com suas subjetividades, torna-se fundamental para entendermos o grupo social em questão.
3 AS ESTRUTURAS SIMBÓLICAS E OS DISCURSOS COLETIVOS DA JUVENTUDE RURAL
Na presente seção, analisamos os discursos dos jovens, coletados a partir de entrevistas semiestruturadas, realizadas de forma individual e em profundidade na própria comunidade. A fim de preservar a identidade dos jovens, nomeamos os entrevistados de J01 a J15. Nesta seção, visamos analisar o discurso coletivo das duas perguntas mais substanciais de cada bloco (educação, família, trabalho e grupos/lazer). Para a análise dos resultados, todas as informações foram extraídas das entrevistas.
3.1 Relações de poder e estruturas simbólicas na educação
Analisando o ambiente escolar da França, Bourdieu e Passeron (1992)BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. destacam o papel da classe dominante no sistema de ensino: fazer manutenção da práxis e da cultura da classe dominante perante a classe dominada por meio da escola. Os autores afirmam que a escola é um ambiente reprodutor das desigualdades sociais, fazendo com que os jovens das classes econômicas e sociais inferiores compreendam e procurem se adequar à lógica da classe dominante, mesmo não possuindo completo acesso a ela. Ao mesmo tempo, a escola pode também ser uma referência de aproximação com o urbano, em que os jovens experimentam e se apropriam desse espaço (HENDEL, 2020HENDEL, Veronica. Jóvenes, migración y vida cotidiana. Sentidos y apropiaciones de Ia escuela secundaria en el conurbano bonaerense (Argentina). PERIPLOS- Revista de Investigación sobre Migraciones, [s.l.], v. 4, n. 1, p. 67-95, out. 2020.), ao mesmo tempo que se sentem distanciados dele.
A partir das entrevistas, os quadros a seguir refletem a construção do DSC no que tange à educação e nos possibilitam observar as relações de poder simbólico presentes na dinâmica educacional dos jovens rurais ao frequentarem a escola na área urbana. As Ideias Centrais (ICs) destacadas no processo de análise foram “Dificuldade na locomoção” e “Humilhação por parte dos jovens da cidade”, mostrando-nos, assim, que os dois discursos coletivos têm forte relação entre si.
Quadro 1 DSC I do bloco EducaçãoPergunta: Como é sua relação com os colegas de sala, professores e funcionários? |
Lá em Pureza era bem diferente. Sempre foi aquela coisa, né? Os alunos que moravam na cidade não se misturavam muito com os do interior. O povo da cidade quer pisar em quem é do interior. Eles não queriam se juntar comigo, eles mesmos queriam ficar distantes. Eu via isso como um certo tipo de preconceito com quem era do meio rural. Eles não me consideravam, é como se eu não tivesse os mesmos direitos, é como se sempre tivesse que ficar em segunda opção por ser da zona rural. Os alunos me tratavam com preconceito, os professores não, os professores me tratavam de forma igual. Racismo também já rolou, mas eu segui em frente, levantei a cabeça e continuei na minha, mas em casa eu chorava muito. |
Depoimentos: J04, J08, J11, J13, J14, J15. |
Pergunta: Qual a sua maior dificuldade em relação à escola/a estudos? |
Eu tinha muita dificuldade em ir para escola, a maior era o transporte, a prefeitura dava o transporte, mas quebrava muito e eu perdia muita aula. O transporte é ruim por causa da estrada. Quando o ônibus quebrava perto daqui, eu voltava a pé, mas, quando não, tinha que tentar achar sinal no celular para chamar outro ônibus. Sempre foi assim. Daqui para Pureza é um pouquinho longe, então, é muito cansativo. Não é nem por acordar cedo, mas só de você sair daqui e ir para outro canto estudar já é bem cansativo. Para ir para a faculdade, eu saio daqui de 15h30, pego um carro pra Pureza, que são 18 km de estrada de chão com trepidação e tudo e, na volta, chego em Pureza de 00h30, pra só depois voltar pra cá. |
Depoimentos: J04, J05, J08, J09, J11, J12, J13, J15. |
O fato de os jovens que residem na área urbana tratarem os jovens rurais de maneira excludente reflete a reproducão d hostórica forma de tratamento que os iovens do camno recebem no ambiente escolar. Para Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., a violência simbólica exercida por meio de constrangimentos, dores sociais e psicológicas se relaciona com a incompatibilidade de culturas. Nesse sentido, a incompatibilidade entre as dinâmicas dos jovens rurais e urbanos, quanto ao modo de falar, as gírias, expressões etc., fortalece o distanciamento cultural e sustenta as relações de exclusão e violência simbólica exercida pelos jovens urbanos.
A maior parte dos jovens rurais que frequentam o ambiente escolar sofre com “a distância, a difícil locomoção e, muitas vezes, a obrigatoriedade de percorrerem longas distâncias a pé em estradas de terra, chegando fora do horário, cansados e empoeirados” (CASTRO, 2009, p. 192CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 7, n. 1, p. 179-208, jan./jun. 2009.). As dificuldades apontadas por Castro (2009)CASTRO, Elisa Guaraná; MARTINS, Maíra; ALMEIDA, Salomé Lima Ferreira; RODRIGUES, Maria Emilia Barrios; CARVALHO, Joyce Gomes. Os jovens estão indo embora? – juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2009. não são distantes da realidade vivenciada pelos jovens em Bebida Velha. Percebemos que o estigma atrelado ao jovem rural é sustentado pelas próprias barreiras que eles encontram, inclusive as dificuldades encontradas no percurso até a escola. Conforme destaca Hendel (2020, p. 72)HENDEL, Veronica. Jóvenes, migración y vida cotidiana. Sentidos y apropiaciones de Ia escuela secundaria en el conurbano bonaerense (Argentina). PERIPLOS- Revista de Investigación sobre Migraciones, [s.l.], v. 4, n. 1, p. 67-95, out. 2020., (tradução nossa), “a educação, então, emerge como um emaranhado de processos de transmissão, reprodução, apropriação e transformação de objetos, saberes e práticas culturais em contextos diversos”.3 3 Trecho na língua original: “La educación, entonces, emerge como un entramado de procesos de transmisión, reproducción, apropiación y transformación de objetos, saberes y prácticas culturales en contextos diversos (HENDEL, 2020, p. 72).
Há uma “normalização” dessa dimensão simbólica percebida na frase: “sempre foi assim” (DSC II). Para além de aspectos subjetivos, as relações de poder são claramente percebidas na prática pelos jovens: “Eles não queriam se juntar comigo, eles mesmos queriam ficar distantes” (DSC I).
A conscientização de uma dinâmica preconceituosa existente na escola pode acarretar dois mecanismos por parte dos jovens rurais: o conformismo ou a estratégia de superação. O primeiro pode ser percebido por meio de afirmações como: “Sempre foi aquela coisa, né?” (DSC I). O segundo, por sua vez, encontrado em frases como “[...], mas eu segui em frente, levantei a cabeça [...]” (DSC I), pode significar mecanismos de defesa criados pelos jovens para superar ou conviver com essa realidade.
3.2 Relações de poder e estruturas simbólicas no trabalho
Conforme destaca Silva (2015)SILVA, Priscila Teixeira da. O olhar da escola sobre a juventude do campo na comunidade de Mutãs-Bahia: linhas que se cruzam, tessituras a se fazer. 2015. 121f. Dissertação (Mestrado em Educação do Campo) – Centro de Formação de Professores, Universidade Federal do Recôncavo Baiano, Amargosa, 2015., a relação dos jovens com a cultura, o trabalho e a própria terra é fator determinante na reprodução dos valores do campo: “Aterra é matriz por sua relação com o trabalho e por ser espaço não só de produção, mais [sic] de existência humana, cultura, valores, resistências e tudo mais que a constitui como espaço de vida” (p. 33).
Embora represente a principal atividade entre os entrevistados, alguns apontaram o desejo de não continuar na agricultura futuramente, declararam que desejariam sair da comunidade para se especializar nas suas áreas de preferência e regressar ao campo para trabalhar e residir e, assim, “contribuir com a comunidade”. Como destaca Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., as relações de poder simbólico se baseiam em ações de controle e regulação social. Nesse sentido, a negação da atividade agrícola pode ser causada pela simples falta de afinidade com a prática laborai em si, mas também pode representar uma tentativa de fratura ou ruptura (SANTOS, 2007SANTOS, José Vicente Tavares. As lutas sociais contra as violências. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 71-100, out. 2007.) das relações de poder presentes no campo do trabalho rural.
Nas tabelas abaixo, trazemos a construção do DSC no campo do trabalho. As ICs destacadas no processo de análise e construção do discurso foram “Dificuldade em trabalhar com os pais” e “Ajuda no trabalho agrícola”.
Quadro 3 DSC I do bloco TrabalhoPergunta: Você trabalha com seus pais? Como é trabalhar com eles? |
A relação de trabalho familiar é um negócio bem complicado, não existe uma relação de trabalho propriamente dita. Você sempre tem a relação familiar acima, não é uma relação de patrão e empregado. Apesar de eu não ser muito envolvido na agricultura, como eu sou neto e filho de agricultor, lá no fundo, na raiz, acaba batendo aquela vontade de fazer plantio, pelo reconhecimento da família. Mas trabalhar na agricultura familiar tem um lado bom porque tá no meio da família com pai e mãe, tem as desavenças, mas é bom. Fora o trabalho na agricultura, aqui em Bebida Velha não tem onde trabalhar, só fora. Por isso, meu pensamento de procurar outras coisas, de me formar em outras áreas, porque aqui não tem como aumentar a renda, não tem porque a prefeitura não disponibiliza concurso, aqui é questão de politicagem, essas coisas dificultam nosso pessoal. |
Depoimentos: J02, J05, J07, J08, J10, J12, J13, J14, J15. |
Pergunta: Você recebe pelo trabalho? Quem cuida do seu dinheiro? |
Trabalhei um pouco na agricultura, ajudando mãe. Painho me ajuda [em relação ao salário], antes eu não administrava sozinho meu dinheiro... coisa de pai, né? Agora, eu que decido. Eles mesmo pagam [o salário], mas às vezes fica com eles, eu não recebo. Às vezes, minha mãe pede. Quem mora com família, tudo é de todo mundo, né? |
Depoimentos: J12, J13 e J14. |
O primeiro discurso nos fornece fatos interessantes quanto à relação de trabalho familiar vivenciada pelos jovens. O primeiro deles é que as relações que configuram o trabalho para os jovens estão subordinadas às relações familiares, ou seja, o hobitus que compõe o campo do trabalho é marcado predominantemente pelos ordenamentos sociais característicos da família. O trabalho e a família são matrizes de socialização que estão estritamente ligadas no meio rural, por isso, mesmo com perguntas distintas, as respostas dos blocos Trabalho e Família se assemelham, tendo sido os dois temas intrinsecamente relacionados pelos jovens.
Nesse sentido, destacamos o reconhecimento por parte dos jovens da atividade agrícola como algo honroso. Por meio da frase “[...] como eu sou neto e filho de agricultor, lá no fundo, na raiz, acaba batendo aquela vontade de fazer plantio, pelo reconhecimento da família” (DSC I), nos é exposto o sentimento de respeito pela atividade historicamente realizada pela família e o comprometimento de continuidade da profissão, apesar das dificuldades em que se encontram a nova relação dos jovens com o trabalho agrícola. A convivência com os familiares oferecida pelo trabalho familiar é vista como um ponto positivo pelos jovens. Durante a pesquisa, percebemos que a relação do jovem com o trabalho, a terra e a família representa um dos motivos que explicam a vontade do jovem em permanecer no campo.
A relação do jovem com a agricultura familiar não pode ser comparada com as dinâmicas de trabalho urbano. Nesse sentido, não podemos analisar a relação do pagamento ou “salário” dessa atividade de maneira homogênea ou linear. Como exposto no DSC, o recebimento de pagamento em dinheiro pela atividade não possui uma frequência uniforme, alguns veem, inclusive, a retribuição dos pais como “ajuda”. O termo “ajuda” também é utilizado por alguns para se referir ao próprio trabalho na agricultura. A secundarização da atividade e da remuneração da juventude na agricultura está ancorada nas relações de hierarquia que o jovem enfrenta não só na família, mas também no trabalho. A “adultização”4 4 Fenômeno resultado não só pela saída dos jovens, mas também pelo descrédito por parte dos adultos para com o jovem na família, no trabalho, em grupos, associações e demais espaços, contribuindo para o silenciamento e a inferiorização do jovem no meio rural. do campo é presente, principalmente na atividade agrícola, em que o trabalho dos adultos é visto como o principal e o da juventude é secundarizado à “ajuda”.
A visão da atividade agrícola do jovem apenas como “ajuda” é acentuada ainda mais na relação das jovens mulheres, realçando a divisão sexual do trabalho na agricultura familiar. “Em regra, o trabalho das mulheres, apesar de relevante, é desvalorizado socialmente, encarado apenas como ‘ajuda’, como complementar ao trabalho do homem” (VALADARES et al., 2016, p. 70VALADARES, Alexandre Arbex; FERREIRA, Brancolina; LAMBAIS, Guilherme Berse Rodrigues; MARTINS, Leonardo Rauta; GALIZA, Marcelo. Os significados da permanência no campo: vozes da juventude rural organizada. In: SILVA, Enid Rocha Andrade; BOTELHO, Rosana Ulhôa (Org.). Dimensões da Experiência Juvenil brasileira e novos desafios às políticas públicas. Brasília, DF: Ipea, 2016. p. 59-94.).
Na obra “A dominação masculina”, Bourdieu (2002)BOURDIEU, P.A dominação masculina. 2. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. destaca que essa dominação representa uma violência simbólica, à medida que normaliza algumas práticas e normas de diferenciação do homem para a mulher, no campo do trabalho, da família e em outros. Essa normalização pode ser compreendida como um habitus, em que os agentes desses campos passam a reproduzir de maneira irreflexiva as formas de dominação e violência simbólica.
Percebemos, também, que o desejo de saída da comunidade não se dá necessariamente pela aversão ao meio rural, mas sim pela falta de diversidade na oferta de empregos. O fato de ausência de alternativas precisas de emprego e trabalho na comunidade faz com que o jovem pense na possibilidade de sair da localidade ou até do meio rural, a fim de conseguir acessar empregos de outra natureza.
3.3 Relações de poder e estruturas simbólicas na família
A relação do jovem rural com a família se dá de maneiras distintas. Apesar de a família representar uma das principais motivações para os jovens continuarem no meio rural e na atividade agrícola, o ambiente familiar é também uma matriz na qual os jovens vivenciam algumas tensões. De acordo com Castro (2009)CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 7, n. 1, p. 179-208, jan./jun. 2009., o jovem rural tem uma condição de submissão na hierarquia social do campo. Essa submissão é, muitas vezes, fortemente fundamentada na dependência financeira dos pais, dadas as relações que os jovens têm com o “salário” proveniente da atividade agrícola, como destacado nas seções anteriores.
As ICs destacadas nessa matriz de socialização, “Rigidez do pai” e “Descrédito por parte dos pais”, oferecem um profuso pano de fundo para analisar as relações de poder simbólico presentes no vínculo que os jovens do campo possuem com seus pais, familiares e responsáveis. Os quadros 5 e 6 refletem os DSC construídos a partir das entrevistas.
Há uma notória diferenciação entre as permissões para sair, seja para lazer, seja para se relacionarem com outras pessoas, entre os jovens homens e as jovens mulheres. As restrições nas saídas são mais frequentes entre as jovens mulheres, enquanto os filhos homens encontram maior liberdade por parte dos pais. Essa restrição sofrida pelas jovens é fortemente percebida no DSC; entretanto, ela é compreendida por meio de palavras como “cuidado” e “ciúme", o que possivelmente representa a normalização da distinção na forma de tratamento que recebem os filhos, baseada na diferenciação dos gêneros. Essa concepção de que as mulheres precisam de maior vigilância é evidenciada por Carvalho e Knox (2018)CARVALHO, Victorya Elizabete Nipo Teixeira de; KNOX, Winifred. Relações de gênero e trabalho: contribuições para análise da pesca artesanal no município de Ceará Mirim/RN. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 42., 2018, Caxambu. Anais [...], Caxambu, 2018., ao destacarem a diferenciação da percepção do gênero masculino e feminino e o impacto disso nas formas de socialização:
[...] ao masculino, caracterizado pela virilidade física, são atribuídas propriedades relacionadas à virilidade relacionada a questão da honra, como rigidez, sobriedade, oficial, público, e ao feminino o privado, a docilidade, infantilidade, fragilidade e fertilidade, o que influencia diretamente na socialização das mulheres, bem como no que é permitido para que elas o façam. (CARVALHO; KNOX, 2018, p. 7CARVALHO, Victorya Elizabete Nipo Teixeira de; KNOX, Winifred. Relações de gênero e trabalho: contribuições para análise da pesca artesanal no município de Ceará Mirim/RN. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 42., 2018, Caxambu. Anais [...], Caxambu, 2018.).
Para Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Difel: Lisboa; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., as relações sociais são alicerçadas em estruturas que produzem o poder simbólico de um indivíduo para com outro. A práxis involuntária dos campos é marcada pelo hobitus adquirido pelos agentes ao longo do tempo. Nesse sentido, para os mais velhos, o conhecimento acerca da atividade agrícola ou de outros assuntos é atrelado a eles mesmos, o que estimula a ideia do trabalho juvenil como “ajuda”. Logo, o descrédito para com os jovens se dá, muitas vezes, simplesmente pela idade: “Às vezes sou um pouco desacreditado pela idade, eles dizem ‘você não tem noção das coisas porque você ainda é jovem’” (DSC II). A concepção do jovem como “adulto em processo” gera a invisibilidade e o descrédito das ações, dos conhecimentos, dos projetos e das aspirações dos jovens do campo.
3.4 Relações de poder e estruturas simbólicas nos grupos e no lazer
Os grupos organizados que contam com a participação social de jovens na comunidade são os grupos religiosos da Igreja Católica e Igreja Evangélica e a associação de produtores (APABEV). Os grupos de esportes e lazer (futebol, caminhada, dança etc.) da comunidade não possuem uma certa organicidade, o grupo de vaquejada – citado nas entrevistas – não possui relação direta com a comunidade, faz parte de um município próximo.
Na associação, os jovens não são lideranças, mas exercem funções e atividades de relevância dentro do grupo. No grupo de jovens da Igreja Católica, o líder é um dos entrevistados. Já no grupo de jovens da Igreja Evangélica, a liderança fica a cargo de algum jovem, todavia, na época das entrevistas, a liderança do grupo estava temporariamente com o pastor da igreja enquanto uma liderança jovem não surgia.
Chama atenção a forte presença das igrejas na vida dos jovens rurais. Esse fato pode ser explicado por diversos motivos. De acordo com Novaes (2018)NOVAES, Regina. Juventude e religião, sinais do tempo experimentado. Interseções-Revista de Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 351-68, dez. 2018., a transferência geracional do catolicismo está diminuindo com o passar dos anos, entretanto, esse fenômeno ainda elucida a massiva influência da Igreja Católica no meio rural, onde as transferências geracionais (religiosas, morais, culturais etc.) costumam ser fortes. A acentuada presença das igrejas evangélicas no campo nos últimos anos também é destacada pela autora: “No Brasil as denominações evangélicas chegaram às prisões, favelas, conjuntos habitacionais, acampamentos rurais e em territórios periféricos marcados pela pouca presença da Igreja Católica e pela presença precária do Estado” (NOVAES, 2018, p. 355NOVAES, Regina. Juventude e religião, sinais do tempo experimentado. Interseções-Revista de Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 351-68, dez. 2018.).
Os discursos coletados nas entrevistas acerca das relações dos jovens nos grupos e no lazer da comunidade refletiram fortemente a falas das jovens, o que resultou em ICs bastante marcadas pelas falas das jovens mulheres, conduzindo a análise dessa matriz por meio da discussão acerca das relações de poder por elas vivenciadas. Entretanto, os DSC construídos possuem também falas individuais de jovens homens, expostos pelos quadros 7 e 8.
Se, nas três primeiras matrizes de socialização, as relações de hierarquia e de poder eram exercidas de algo ou alguém em relação à juventude, no âmbito do lazer e esporte, percebemos que essas relações podem ser exercidas dentro do próprio grupo social. As duas atividades esportivas/de lazer citadas nas entrevistas foram a vaquejada e o futebol. A comunidade conta com uma quadra de esportes, local de disputa entre jovens homens e mulheres para a prática do futebol.
A questão da falta de opções de lazer foi uma fala recorrente nas entrevistas, em ambos os gêneros. Entretanto, as mulheres sentem ainda mais essa ausência, pois enfrentam a negação do uso dos poucos equipamentos de lazer na comunidade, seja pelos jovens homens, seja pela família. Os comentários e constrangimentos que elas passam ao praticar o esporte acabam gerando desânimo e, consequentemente, uma redução no número de jovens mulheres na utilização da quadra de esportes. Nesse sentido, ao não receberem apoio em algumas opções de lazer, como vaquejada e futebol, os espaços de socialização e lazer para as jovens mulheres acabam limitando-se à praça e aos bares da comunidade.
Como destaca Bourdieu (2002)BOURDIEU, P.A dominação masculina. 2. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002., a dominação masculina é percebida por meio de uma perspectiva simbólica, em que a regulamentação social de algumas práticas e costumes se reflete de maneira instintiva. O poder simbólico presente na imposição de limites para as jovens mulheres pressupõe a violência simbólica exercida pela normalização de aspectos e costumes que relacionam ao gênero masculino certas atividades vistas como “viris”. Às mulheres, historicamente, são designadas atividades sutis baseadas na conduta submissa, a qual é sustentada pelo conceito da dominação masculina na cultura, no lazer, no trabalho, na educação etc.
A estrutura dos sistemas de representação e de práticas religiosas pode significar instrumentos de imposição e legitimação da dominação (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, Pierre. Poder, derecho y classes sociales. 2. ed. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 2001.). Principais aglutinadores da juventude de Bebida Velha, os grupos de jovens das igrejas representam espaços de socialização com dinâmicas baseadas em normas e regras sociais. O Discurso II mostra forte descontentamento, em algumas situações vivenciadas por eles, nos espaços participativos da Igreja, devido ao descrédito depositado nos jovens por parte dos mais velhos, como também em razão do silenciamento juvenil nas decisões do grupo ou da comunidade religiosa.
A afirmação “A juventude daqui estava acabada se não tivesse o grupo de jovens da igreja” corrobora a ideia de Novaes (2018, p. 358)NOVAES, Regina. Juventude e religião, sinais do tempo experimentado. Interseções-Revista de Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 351-68, dez. 2018. ao afirmar que “As igrejas evangélicas podem se tornar uma espécie de ‘rede de proteção social’ com repercussões na autoestima, no aprendizado da música e, muitas vezes, no acesso ao mundo do trabalho”.
Apesar de perceberem as relações de poder hierarquizadas por cargos de liderança ou pela posição dos mais velhos dentro da estrutura organizativa das instituições religiosas, os jovens fazem uma análise crítica dessas relações. O sentimento de contrariar o silenciamento e o descrédito pode ser percebido pela afirmação “[...] eu sempre fui de bater de frente quando não concordo, de falar mesmo” (Discurso II). Para Novaes (2018)NOVAES, Regina. Juventude e religião, sinais do tempo experimentado. Interseções-Revista de Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 351-68, dez. 2018., os jovens inseridos em igrejas não necessariamente se submetem ao controle direto das autoridades religiosas, conseguindo, assim, imprimir uma independência em suas escolhas, ideias e hábitos culturais.
Ao considerarmos aqui o conceito de agente de Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada, 1983., podemos entender que o jovem rural não apenas recebe e reproduz o habitus do campo religioso, mas consegue imprimir nesse campo o habitus adquirido ao longo de sua vivência em outros campos: educação, família, trabalho, entre outros. Nesse sentido, apesar da tradicionalidade que permeia as religiões, o campo religioso recebe influência dos seus agentes e, mesmo com as dificuldades impostas pelas relações de poder, os jovens conseguem imprimir suas identidades nesse campo.
Nesta seção, buscou-se apresentar os principais achados da pesquisa com base na construção de discursos coletivos que possibilitem uma compreensão geral da percepção dos jovens rurais de Bebida Velha em relação às situações cotidianas que os permeiam, analisando os discursos em diálogo com a literatura sobre poder, juventude e meio rural.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da construção e análise dos Discursos do Sujeito Coletivo, pudemos notar as relações de poder simbólico presentes nas principais matrizes de socialização da juventude rural – escola, trabalho, família e grupos/lazer – e como os jovens rurais percebem e denominam essas relações. Observamos que os entraves presentes no cotidiano dos jovens estão relacionados com construções históricas de hábitos, costumes e ideais que perpassam os mais variados campos no meio rural, reproduzindo, assim, antigas estruturas simbólicas de dominação e poder. Essas relações simbólicas de poder são observadas nos DSC como as relações excludentes e discriminatórias sentidas pelos jovens nas quatro matrizes de socialização.
Percebemos que, no campo da educação, a escola, a qual deveria representar para os jovens rurais um espaço de troca de conhecimentos e saberes com os professores e alunos urbanos, configura-se em um espaço excludente, ao reproduzir antigas formas de violência simbólica. Os alunos do meio rural percebem as violências simbólicas na escola por meio da exclusão, da humilhação e de comportamentos separatistas por parte dos alunos da cidade, deixando um desprezo para com os moradores da zona rural.
No campo familiar, o poder simbólico pode ser percebido principalmente em dois dilemas. Um deles é na relação dos pais com as jovens mulheres, as quais sofrem mais restrições e proibições do que os jovens homens nas saídas e nos relacionamentos. Essas restrições são compreendidas pelas jovens como cuidado ou ciúme. A dominação masculina no seu aspecto simbólico pode ser exercida por meio da naturalização de costumes e ideias (BOURDIEU, 2002BOURDIEU, P.A dominação masculina. 2. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.). As jovens percebem o tratamento diferenciado na criação e nas permissões entre filhos homens e mulheres, entretanto, relacionam essa maneira diferenciada como cuidado ou acabam normalizando, em seus discursos, essa diferenciação.
Outro dilema percebido é o descrédito com os jovens por causa da idade. O descrédito se traduz na negação do jovem a tarefas principais do trabalho agrícola e na negação dos conhecimentos e das capacidades da juventude. Pela proximidade que o campo familiar possui com o campo do trabalho, por meio, principalmente, da agricultura familiar característica da comunidade, as relações simbólicas nesses dois campos se entrelaçam. Os DSC acerca do trabalho e da família se tornam semelhantes em determinados pontos. O descrédito para com o jovem no trabalho é fortemente trazido nas entrevistas pelos jovens que trabalham na agricultura com seus pais, mais do que pelos que trabalham em outras atividades. O rebaixamento da atividade agrícola juvenil como “ajuda” é bastante simbólico, o que pode estar relacionado com a negação dos conhecimentos e das capacidades anteriormente citadas.
Podemos perceber que a socialização, a partir dos grupos e espaços de lazer na comunidade, é marcada pela exclusão da mulher aos espaços públicos. O fato de as jovens sofrerem dificuldade para jogar com frequência na quadra de esportes, um dos únicos equipamentos públicos para o lazer e esporte na comunidade, corrobora a ideia de Bourdieu (2002)BOURDIEU, P.A dominação masculina. 2. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ao afirmar que a violência simbólica por meio da inferiorização sofrida pelas mulheres reflete na distinção dos espaços público e privado, de forma que o espaço público foi historicamente negado às mulheres e estimulado aos homens.
As instituições religiosas estiveram historicamente presentes no processo de aglutinação dos atores do meio rural e ainda hoje representam, para a juventude, especificamente a juventude de Bebida Velha, os maiores espaços aglutinadores entre os jovens. Para além do exercício da fé, os jovens rurais encontram nos grupos da igreja espaços e momentos de lazer e criação de vínculos de amizade. Entretanto, o campo religioso, apesar de representar o principal espaço aglutinador da juventude rural, também reproduz o descrédito do jovem percebido no campo familiar e do trabalho. A negação da fala, dos ideais e dos projetos dos jovens dentro das instituições religiosas reflete o rebaixamento que a juventude enfrenta em todas as matrizes de socialização, apenas por serem jovens. A ideia do jovem como indivíduo descompromissado ou ainda “em potencial” secundariza a participação e silencia a juventude em um espaço de sociabilidade fundamental para os jovens do meio rural.
Desse modo, por meio da análise dos Discursos Coletivos, pudemos confirmar a hipótese de que os jovens rurais de Bebida Velha enfrentam situações de exclusão, humilhação e silenciamento nas principais matrizes de sociabilidade: escola, família, trabalho e grupos de participação/lazer. Percebemos essas situações como violências simbólicas exercidas por meio das relações de poder vivenciadas pela juventude nesses quatro espaços de socialização aqui analisados. O hobitus presente no campo da educação, família, trabalho e grupos de lazer e participação reforça as estruturas simbólicas de poder e dominação, impedindo os jovens rurais do exercício pleno de seus projetos pessoais e suas capacidades.
Concluímos que o objetivo geral do trabalho, compreender de que maneira o poder se materializa na prática e como ele é percebido pelos jovens da comunidade, foi respondido, à medida que conseguimos perceber como o poder simbólico é exercido nas relações vivenciadas pelos jovens: por meio de silenciamento, exclusão, relações hierárquicas, descrédito, proibições etc. E, ainda, como ele é percebido pelos jovens: por meio de atitudes de preconceito, humilhação, ciúme/cuidado etc. Com isso, este artigo pretende contribuir com a ampliação dos futuros estudos acerca da juventude rural enquanto categoria social e política, ao propor uma análise das relações sociais vivenciadas pelos jovens por meio de seus discursos e trajetórias. Acreditamos que os resultados obtidos podem embasar novas pesquisas e desdobramentos acerca da juventude, do meio rural e dos espaços de socialização aqui analisados.
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Trecho na língua original: “La educación, entonces, emerge como un entramado de procesos de transmisión, reproducción, apropiación y transformación de objetos, saberes y prácticas culturales en contextos diversos (HENDEL, 2020, p. 72HENDEL, Veronica. Jóvenes, migración y vida cotidiana. Sentidos y apropiaciones de Ia escuela secundaria en el conurbano bonaerense (Argentina). PERIPLOS- Revista de Investigación sobre Migraciones, [s.l.], v. 4, n. 1, p. 67-95, out. 2020.).
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Fenômeno resultado não só pela saída dos jovens, mas também pelo descrédito por parte dos adultos para com o jovem na família, no trabalho, em grupos, associações e demais espaços, contribuindo para o silenciamento e a inferiorização do jovem no meio rural.
REFERÊNCIAS
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» http://lidadiaria.blogspot.com/2011/03/juventude-rural-como-campo-analitico.html - CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 7, n. 1, p. 179-208, jan./jun. 2009.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Ago 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
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Recebido
23 Mar 2022 -
Aceito
17 Abr 2023