Resumo
Este artigo, ancorado na Teoria Histórico-Cultural, visa explorar práticas pedagógicas na Educação Infantil para revelar desafios e potencialidades do trabalho com literatura para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. O material empírico de uma turma de pré-escola pública do interior paulista foi produzido em planejamento colaborativo entre professora e pesquisadora, com atividades relacionadas à alfabetização. O artigo recorta para análise interações discursivas que se deram em torno do trabalho com um conto clássico da literatura infantil: Chapeuzinho Vermelho. Contrastando duas atividades, mostra a importância da recorrência de trabalho com um mesmo conto para que as crianças memorizem trechos, diálogos, partes que mais lhes interessam, dentre outras possibilidades; isso lhes dará suporte para a criação imaginativa. Alerta-se para dificuldades ainda enfrentadas em esclarecer aos pais e famílias a importância de trabalhos com a literatura, superando argumentos prioritariamente relacionados ao ensinamento de valores e desenvolvimento moral das crianças.
Palavras-chave: Linguagem; Literatura; Trabalho pedagógico; Conto; Educação Infantil
Abstract
This article, anchored in Historical-Cultural Theory, aims to explore pedagogical practices in Early Childhood Education to reveal the challenges and potential of working with literature for the development of oral and written language. The empirical material from a public preschool class in the interior of São Paulo was produced in collaborative planning between teacher and researcher, with activities related to literacy. The article analyzes discursive interactions that took place around the work with a classic tale from children's literature: Little Red Riding Hood. Contrasting two activities, it shows the importance of repeating work with the same story so that children can memorize excerpts, dialogues, parts that interest them most, among other possibilities; this will give them support for imaginative creation. We are aware of the difficulties still faced in clarifying to parents and families the importance of working with literature, overcoming arguments primarily related to teaching children values and moral development.
Keywords: Language; Literature; Pedagogical Work; Tale; Child Education
Resumen
Anclada en la Teoría Histórico-Cultural, esta investigación tiene como objetivo explorar prácticas pedagógicas en Educación Infantil para revelar desafíos y potencialidades del trabajo con la literatura para el desarrollo del lenguaje oral y escrito. Participa una clase de preescolar público del interior de São Paulo. El material empírico se produjo en una planificación colaborativa entre docente e investigadora, con actividades relacionadas con la lectoescritura. En este artículo, cortamos para el análisis las interacciones discursivas que tuvieron lugar en torno a la obra con un cuento clásico de la literatura infantil: Caperucita Roja. Contrastando dos actividades, mostramos la importancia de la recurrencia del trabajo con el mismo cuento para que los niños memoricen fragmentos, diálogos, partes que más les interesen, entre otras posibilidades; esto los apoyará en la creación imaginativa. Alertamos sobre las dificultades que aún enfrentamos para aclarar a los padres y familias la importancia del trabajo con la literatura, superando argumentos principalmente relacionados con la enseñanza de valores y el desarrollo moral de los niños.
Palabras clave: Idioma; Literatura; Trabajo pedagógico; Cuento; Educación Infantil
1 INTRODUÇÃO
Os princípios vigotskianos sustentam o desenvolvimento psíquico como processo cultural dinâmico em que o homem se transforma e se humaniza socialmente por relações permanentes e mutuamente constitutivas. A educação formal é entendida como instrumento essencial para o processo de transformação cultural. As experiências educacionais ligadas à arte, à leitura de literatura, ao desenho, à pintura, à escrita e às ciências potencializam a formação plena dos indivíduos. A escola, enquanto instituição social responsável por mobilizar intencionalmente o desenvolvimento psíquico dos sujeitos, configura-se como um espaço privilegiado para potencializar experiências significativas pelos sujeitos matriculados na Educação Básica, desde a Educação Infantil. E, no fluir de significados e sentidos, nos diferentes acontecimentos, experimentados individual e coletivamente de diferentes maneiras e em diferentes momentos, constitui-se a prática educativa e se objetiva o trabalho pedagógico.
Sobre os estudos da Teoria Histórico-Cultural, Martins (2009) defende que os princípios vigotskianos demandam intervenção pedagógica para que estes se efetivem no âmbito da educação escolar. Ressalta a autora que, tanto na Psicologia Histórico-Cultural quanto na Pedagogia Histórico-Crítica, o desenvolvimento das funções psíquicas superiores não é resultado de ocorrências sociais fortuitas, casuais e espontâneas, bastando ao homem o mero pertencimento à espécie biológica, ou ainda, o contato com a sociedade por suas bordas. O desenvolvimento dessas funções é sempre uma decorrência das condições concretas de vida de que cada sujeito participa.
Em consonância com tais pressupostos é que este artigo visa explorar o trabalho pedagógico na Educação Infantil para revelar desafios e potencialidades dos contos para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. Para isso, estabelecemos três categorias analíticas: a) a intencionalidade docente no planejamento e desenvolvimento das atividades envolvendo dois contos: Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho; b) a compreensão que as crianças constroem de si mesmas e dos elementos culturais articulados nas situações discursivas experimentadas por elas na escola infantil; e c) o desenvolvimento da linguagem em suas múltiplas formas como principal mediação de interação expressiva.
Na sequência, cotejamos algumas significações históricas que subsidiam este texto e fundamentam os argumentos aqui apresentados para validar a hipótese de que o trabalho pedagógico, a partir da interação com os contos populares, pode ser um caminho privilegiado para os educandos da primeira infância construírem, pensarem, darem sentido à própria existência e ampliarem a gama de possibilidades de imersão na literatura.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Reconhecendo a relevância da linguagem e sua participação no desenvolvimento psíquico, Smolka (2012) argumenta que a alfabetização não implica apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavras e orações, tampouco envolve somente o convívio com materiais permeados pela escrita, que podem ser encontrados mesmo fora da escola nos tantos espaços sociais por onde as crianças circulam. Implica uma relação ampla e complexa constituída entre múltiplos interlocutores, suas palavras, seus silenciamentos, etc., tudo articulado aos elementos culturais que configuram cada contexto de comunicação e interação social. Portanto, aprender essa forma complexa de linguagem potencializa o funcionamento mental em níveis mais elaborados. Sendo mediadas na dinâmica dessas relações constituintes de cada prática de linguagem experienciada, as crianças gradualmente vão tendo condições de escrever para os outros e para si mesmas: palavras soltas, listas para não esquecer e/ou organizar o que já sabem, para narrar, dizer, entre outras situações discursivas necessárias à vida cotidiana. E fazem isso de modos cada vez mais estruturados, transformando sua própria participação e a prática que se configura em cada momento discursivo.
Smolka enfatiza ainda que as situações que se configuram nos contextos de Educação Infantil podem constituir interações infinitamente ricas, que provoquem tensões e reelaborações no funcionamento psíquico das crianças:
Do movimento ao gesto, à representação pelo jogo simbólico e pelo desenho, à escrita imitativa e pseudoletras, aos fragmentos correspondentes à escrita convencional até à elaboração da escrita, de acordo com as normas da convenção, se desenvolve um processo de simbolização e conceitualização das experiências na interação e na interlocução (Smolka, 2012, p. 24).
As crianças, ao verem pessoas mais experientes lendo e escrevendo, por várias razões e diferentes funções, vão imitando-as nessas práticas sociais. Aos poucos, incorporam os papéis sociais de leitor e escritor, até serem capazes de escrever para si e para os outros, textualizando sua autoria discursiva de forma reorganizada e melhorada nas práticas discursivas do cotidiano, interagindo e dialogando com a variedade de recursos linguísticos, esquemas visuais, motores, auditivos, mnemônicos. Gradualmente, vão integrando as formas mais complexas de linguagem, como a escrita, em seu funcionamento psíquico, que também se torna mais estruturado.
Na escola, as práticas pedagógicas devem proporcionar meios para aceder à qualidade de vida, à satisfação dos anseios humanos e ao combate às desigualdades sociais. Muitas são as formas que podem levar a educação formal a alcançar tais objetivos culturais, sendo importante então, sistematicamente, analisar as condições em que se desenvolvem os processos de ensino e aprendizagem, na dinâmica das práticas educativas, conforme preconiza a metodologia de pesquisa proposta pelo materialismo histórico-dialético. E é nesse sentido que a literatura, importante e elaborada produção humana, se configura como instrumento promissor para o trabalho pedagógico já em contextos de Educação Infantil.
Zilberman (1998, p. 22) afirma que a literatura
[...] sintetiza, por meio dos recursos da ficção, uma realidade, que tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidianamente. Assim, por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distantes e diferentes as circunstâncias de espaço e tempo dentro nas quais uma obra é concebida, o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se comunicar com o destinatário atual, porque ainda fala de seu mundo, com suas dificuldades e soluções, ajudando-o, pois, a conhecê-lo melhor.
Conforme ressaltam Cristofoleti e Ometto (2016), o livro de literatura oportuniza compreensões singulares, tributárias de outras compreensões, mediadas por marcadores linguísticos e pelas pistas deixadas nos textos, por seus autores, pelo professor em suas mediações e pelas condições de produção estabelecidas nas relações de ensino. Para as autoras, a obra literária, como criação verbal, constitui-se predominantemente de palavras. Mesmo que muitas vezes sejam marcadas por distinta disposição gráfica, estrofes, rimas, entonações, ilustrações, gestos, expressões, entre tantos outros elementos significantes que materializam signos e suas significações, esse objeto possui uma forma interna artisticamente significante, representada por palavras.
Dangió e Martins (2018) destacam que as personagens literárias e os modos de agir durante a narrativa apresentam, de forma simples e clara, modelos de qualidades humanas. As características contraditórias e complexas das personagens, como a valentia e a covardia, a bondade e a maldade, favorecem a compreensão dos pequenos e servem de padrões comparativos que podem auxiliar na significação infantil, de sentimentos, emoções e conhecimentos de si mesma e dos outros que interagem entre si.
Ampliando as reflexões sobre o próprio ato de leitura do texto literário, Mortatti (2018) ressalta que ele não deve ser entendido como algo isolado, de um indivíduo perante o escrito de outro indivíduo. Implica não apenas a decodificação de sinais gráficos, mas, sobretudo, a compreensão do signo linguístico como fenômeno social. Significa o encontro de um leitor com um escrito que foi publicizado. Nessa relação complexa, interferem as histórias de leitura do texto e do leitor, bem como os modos de persuasão aprendidos como normas, em determinada época e por determinado grupo. Portanto, a leitura de literatura é vista pela estudiosa como um processo de produção de sentidos.
Assim como não se faz leitura como se fosse sobre um objeto sem vida, também o texto, que não é neutro, não existe sem a leitura, e o conjunto desse fenômeno se caracteriza como lugar de contradições e de possibilidade de ação, de transformação. Assim, pode-se falar de uma relativa pluralidade de significados previstos para (e não por) um texto, mas que não são nem únicos, nem infinitos (Mortatti, 2018, p. 37, grifos da autora).
Posto isso, não podemos perder de vista a dinamicidade do processo de leitura da literatura e a importância de problematizar que tal prática assuma finalidades imediatistas e utilitárias, quer como pretexto para o desenvolvimento de objetivos e conteúdos escolares, quer como instrumento de conscientização moralizante, que não levam em conta a totalidade do texto literário, nem suas possibilidades de utilização como obra de linguagem.
Priorizando o olhar ao texto literário escrito, Franchetti (2009) argumenta sobre a potencialidade da leitura de literatura na compreensão do leitor sobre vários assuntos lidos. Tal interação possibilita a compreensão de que tudo que existe é cultural e mutável. A leitura de literatura possibilita o diálogo entre diferentes pontos de vista, bem como compreensão multifacetada sobre si mesmo e sobre o outro.
Ao examinar as características do texto literário, Dalvi (2013) destaca em sua dinâmica o jogo com o provável, o possível e o impossível, o imaginário. Esse material discursivo favorece reflexões sobre singularidades, diferenças e permite ao leitor o contato com múltiplas e distintas experiências. O autor também destaca o quanto a literatura tem a contribuir com o trabalho pedagógico e principalmente com a alfabetização infantil, pois as crianças costumam se relacionar de modo envolvente com os personagens e com os enredos desse importante elemento cultural, devido ao caráter lúdico e estético, fantástico e maravilhoso do discurso literário, entrelaçando a escrita à imaginação e a ouros signos que funcionam como elos de aproximação a formas mais complexas de linguagem.
Nessa mesma óptica, Petit (2009) discorre sobre a construção das narrativas e discursos a partir da interação com a literatura. A autora ressalta que, enquanto alguém está explicando, para os outros e a si mesmo, a existência dos personagens, do enredo e do contexto de comunicação representado numa produção literária, o pensamento humano está se constituindo num todo mais coerente e organizado, por meio da narratividade de fora em encontro mútuo com a narratividade interior.
Conforme enfatiza Cândido (2011), a leitura literária também se configura condição necessária para a democratização da sociedade, devendo ser acessada por todas as pessoas, pois ela se constitui como uma espécie de objeto construído a diversas mãos, em que cada narrador propõe modos singulares de coerência e de organização, em âmbitos mais elaborados. O autor afirma que, na interação com esse tipo de texto, a produção discursiva se objetiva por palavras e dizeres mais sofisticados e coerentes com o real.
Para Daibello (2020), a leitura de literatura também possibilita o acesso do sujeito a mais palavras para ler o mundo e, especialmente, a palavras diferentes daquelas pelas quais ele costuma nomear a realidade em seu contexto habitual. E é nesse sentido que se torna relevante a prática pedagógica priorizar o trabalho com a literatura e com a polifonia de vozes na constituição do sujeito. A autora defende que, por meio do deslocamento de perspectiva quanto à percepção do outro, no espaço ou no tempo histórico, a leitura de literatura representa a possibilidade de favorecer o diálogo entre diferentes pontos de vista. Consequentemente, propicia uma visão de mundo mais plural, de si e do outro.
Segundo Abrantes (2011), a literatura infantil é concebida como procedimento que promove a aprendizagem por funcionar de acordo com características particulares e próprias das produções artísticas, que não se limitam a relações unilaterais, imediatas e cotidianas, com fenômenos e acontecimentos da prática social. No entanto, o autor problematiza a forte tendência de produção editorial da literatura infantil. Voltada para atender a demandas de mercado editorial, cada vez mais competitivo e especializado na fabricação de produtos para as crianças, os livros publicados extrapolam o campo da literatura e visam, prioritariamente, atrair o leitor infantil com apelos relacionados ao mercado do entretenimento infantil, vinculado ao divertimento, às brincadeiras e interações espontâneas do tipo: desenhar, pintar, montar.
Há que se pensar, ainda, se a produção acadêmica sobre a literatura na Educação Infantil, mesmo apresentando um crescimento histórico e possibilitando ampliação do repertório sistematizado sobre a temática, ainda requer mais atenção de novas pesquisas que evidenciem crianças pequenas como leitoras e as possibilidades de relações com esse patrimônio cultural na prática educativa do primeiro segmento da Educação Básica.
Conforme questiona Guimarães (2017), há falta de clareza na legislação e nas orientações e diretrizes nacionais, estaduais e municipais, especialmente sobre a riqueza do trabalho com a literatura no contexto da Educação Infantil. Ainda que os livros de literatura estejam fortemente presentes nas propostas de trabalho pedagógico voltadas para o primeiro segmento de Educação Básica, tais documentos norteadores de currículo não oferecem ao professor explicações contundentes sobre o real papel desse primoroso elemento linguístico nas práticas pedagógicas que se constituem na escola. Ademais, eles não orientam sobre possíveis intervenções docentes que podem intensificar a participação e produção infantil, ocupando posição de interlocutor privilegiado que dá suporte às crianças em suas criações. O presente trabalho pretende explorar, minuciosamente, algumas possibilidades nesse campo.
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Ancorada na Teoria Histórico-Cultural e no materialismo histórico-dialético como método, este artigo explora o trabalho pedagógico na Educação Infantil, refletindo sobre desafios e a potencialidade dos contos para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. A literatura científica reconhece e legitima o materialismo histórico-dialético como método que contribui para a produção de conhecimentos sobre a prática educativa, uma vez que a referida metodologia dispõe de uma epistemologia elaborada, que supera os modos dedutivistas e indutivistas de pesquisar realidades concretas a partir de fatos e abstrações. Por esse prisma, o conhecimento produzido deixa de ser um reflexo simples, passivo e inerte da realidade, e constitui-se em um processo histórico e dialético complexo, regido por leis universais. O caminho epistemológico de interpretação da realidade envolve sua descrição, bem como a compreensão e a explicação de seu acontecer histórico e cultural.
Para Bakhtin (2006), esse processo de produção de conhecimento se constitui mediante o exercício de interpretação e de recriação da realidade social que se dá na relação dialógica entre o eu e o outro. A compreensão desse real se constrói e materializa por meio da dimensão semiótica, na qual a interação de sentidos resulta em um texto possível e situado, portanto parcial, marcado pela ação dos sujeitos, em um dado contexto constituído de singulares relações, sociais e simbólicas.
O material empírico que trazemos para este texto é recorte de uma pesquisa mais ampla, formalizada pelo parecer consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE 15026319100005481. Em defesa da tese de que situações discursivas colaborativas envolvendo pesquisadores e professores têm potencial para revelar complexidades que perpassam o fazer docente, além de fortalecer o enfrentamento de tensões no processo de alfabetização da Educação Infantil, a pesquisa visa, junto de uma professora de pré-escola, buscar conhecimentos relacionados à escrita para construir transformações e fomentar rupturas, resistência e continuidade, na luta pelo direito à alfabetização no e com o primeiro segmento da Educação Básica.
Especificamente, os objetivos estabelecidos são: a) explorar o trabalho pedagógico voltado para a alfabetização de uma turma de pré-escola pública; b) dialogar com o professor sobre o que ele pensa e o que faz; c) efetivar possibilidades envolventes e brincantes de alfabetizar na Educação Infantil; e d) fomentar superações na e da prática educativa efetivada em uma região de alta vulnerabilidade social e marcada pela presença reduzida da escrita nas práticas sociais que se efetivam nesse contexto. Os participantes são: uma turma de pré-escola composta por aproximadamente trinta crianças de quatro a cinco anos e a professora dessa turma.
As observações do cotidiano pedagógico, durante atividades com dois contos (Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho), foram realizadas durante o último trimestre de 2019, com frequência de duas vezes por semana, sendo o período de observação a cada ida a campo definido em conjunto com a professora. As observações foram videofilmadas com uma câmera fixa, colocada em posição e lugar definido antecipadamente pela pesquisadora e pela professora da turma. A câmera ficou fora do alcance das crianças para evitar perturbações na rotina escolar, bem como para garantir a preservação do equipamento. As filmagens ocorreram de maneira ininterrupta, e essa condição contribuiu para que a pesquisa não gerasse ações intrusivas no desenrolar do trabalho da professora e na participação das crianças. As videofilmagens foram transcritas seletivamente, elegendo-se do material empírico total os episódios mais produtivos para análise.
4 ANÁLISE E FORMAS DE COMPREENSÃO
Estabelecemos três categorias analíticas buscando dar visibilidade a distintos modos de pensar/realizar o trabalho com a literatura: (a) a intencionalidade docente no planejamento e desenvolvimento das atividades envolvendo os contos; (b) a importância de se trabalhar várias vezes com um mesmo conto; e (c) as dificuldades para mostrar aos pais e famílias a relevância do trabalho com a literatura.
4.1 A INTENCIONALIDADE DOCENTE
Logo nos primeiros encontros entre professora e pesquisadora, identificamos o lugar de prestígio que o trabalho com os contos ocupava no plano de ensino da turma. Por isso, depreender a literatura e suas contribuições para a processo de alfabetização desenvolvente se tornou o foco da investigação.
Em relação ao trabalho com a literatura, o plano de ensino da professora, referente ao ano de 2019, apontava as seguintes intenções:
Iremos trabalhar os contos clássicos, e também alguns contos recontados por Maurício de Souza. Serão trabalhados os contos: Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela, A pequena Sereia, Rapunzel, João e o pé de Feijão, Os três porquinhos, João e Maria, Chapeuzinho, A Bela e a Fera, Pinóquio, estes serão os principais. Os contos O mágico de Oz, A galinha dos ovos de ouro, Os músicos de Bremen, Peter Pan,serão trabalhados de acordo com o interesse da turma e disponibilidade do tempo. No decorrer do projeto pretendo passar para os alunos alguns filmes que representam valores. A era do gelo (amizade, cooperação, solidariedade); Bambi (perdas, família, amor, amizade); Monstros S.A. (medo, coragem, amizade, amor); Pinóquio (verdade/mentira, amor, família) Sherek: (amor, diversidade, amizade, inclusão). (Planejamento anual/2019, grifos nossos).
A proposição da professora de escolher tantos contos para compor o acervo de leituras e contação de histórias a trabalhar com a turma demanda atenção. Como vimos na parte introdutória desta produção, os textos literários favorecem o desenvolvimento em múltiplas direções: possibilitam recombinação de elementos que implicam a atividade criadora da imaginação, exercem grande fascínio nas crianças e constituem-se como caminhos de descoberta e compreensão do mundo. Entretanto, esses não são os eixos desenvolventes destacados pela professora para fundamentar seu trabalho com a literatura. Do que pode ser depreendido de suas anotações, apenas no caso da pretendida exibição de filmes está indicada a intencionalidade: trabalhar com valores. Para cada um dos cinco títulos, são destacados de três a quatro valores, e amor aparece como potencial foco do trabalho em quatro dos cinco filmes. É necessário cuidado com o uso da literatura, seja ela em forma escrita ou fílmica, tanto em relação a focos restritos de lições moralizantes, como em relação ao modo como as produções literárias adentram as escolas.
Além dessa questão, os segmentos destacados no recorte acima não dão pistas sobre as razões para a escolha desses títulos e não de outros, e os possíveis sentidos das expressões “serão trabalhados de acordo com o interesse da turma e disponibilidade de tempo”, após o trecho afirmativo que inicia a proposta, nos permite inferir que pode ter sido inserido no plano anual da professora sem que seja realmente indicativo dos critérios de “interesse da turma” e “disponibilidade de tempo” como prioritários do trabalho com a literatura. Certamente, interesse e tempo são relevantes, mas também são elementos que podem ser afetados pela intencionalidade pedagógica; interesses podem (e devem) ser criados; tempo pode (e deve) ser reservado para prioridades pedagógicas. Notamos que, mesmo sendo possível e desejável criar e/ou modificar interesses e formas de mediação previstas no planejamento, tornando-as sensíveis às manifestações das crianças, as ações que se materializam na prática podem não se limitar a elas.
A Teoria Histórico-Cultural considera a literatura uma importante e complexa produção humana. Os contos, especificamente, têm potencial para envolver práticas de alfabetização em processo desenvolvente, dinâmico e permanentemente constitutivo, tendo a linguagem em suas múltiplas formas como principal mediação de interação expressiva. Entretanto, com Abrantes (2011), já problematizamos o fato de haver na atualidade crescente força do mercado do entretenimento infantil em associar a literatura ao divertimento, repleto de brincadeiras e interações espontâneas e desprovidas de intenção pedagógica. Além disso, muitas escolhas efetivadas nas escolas ultrapassam o querer e o fazer docente, porque na premência de utilizar os recursos que o sistema disponibiliza, frequentemente o professor, assolado por demandas urgentes, acaba por solicitar a compra de livros com foco em temas moralizantes como: valorização das diferenças, generosidade, bondade, respeito, obediência, valentia e amizade.
Cientes de tais tensões, recuperamos o que a professora vinha desenvolvendo com as crianças no primeiro semestre para compreender de maneira mais refinada como o que havia sido projetado no Planejamento anual se concretizava na prática:
Eu iniciei o trabalho com o conto Chapeuzinho Vermelho, mas só fiz a contação da história com eles, usando a desconstrução dos personagens. Fizemos isso no conto da Branca de Neve e eles gostaram bastante. Nesse semestre quero repetir o trabalho com o conto Chapeuzinho Vermelho, Pinóquio, Os três porquinhos, entre outros (WhatsApp - 25/09/2019).
Para a sequência da pesquisa e do trabalho colaborativo com a professora, duas questões, depuradas de seu planejamento, orientaram os próximos passos. Uma vez que o trabalho com contos se destacava no planejamento da professora e dada a relevância de iniciativas desse tipo para o desenvolvimento infantil e, mais fortemente, sua relação com alfabetização, decidimos explorar e aprofundar o trabalho nesse campo. Entretanto, consideramos que seria interessante propor uma mudança na quantidade de títulos, com o objetivo de afetar a qualidade de contribuições que o trabalho poderia prover para as crianças, para a linguagem, para a memória mediada, para a percepção de conflitos, dentre outras vias de desenvolvimento. Em síntese, procuramos explorar possíveis relações entre trabalhar de diversos modos uma mesma história e o adensamento de apropriações que essa escolha viabiliza.
Assim, propusemos uma mesma sequência didática com o conto clássico Chapeuzinho Vermelho. A professora informou como havia trabalhado no primeiro semestre com o conto Branca de Neve: além da leitura feita para as crianças, inseriu personagens desconstruídos, produzidos por ela para enriquecer a atividade e motivar a participação dos alunos: a professora utilizava, em suas contações, embalagens de diferentes tamanhos, decoradas com EVA, laminado, entre outros papéis e adereços, criando signos para representar os personagens. A esses recursos, ela nomeava personagens descontruídos.
Em consonância com Pino (2004), se um signo é algo que significa algo para alguém em algum aspecto, qualquer coisa pode adquirir um valor semiótico, e isso explica a variedade de repertório sígnico, como pode ser evidenciado na proposta de desconstruir os personagens dos contos. Quando escolhemos objetos figurativos como os fantoches, o funcionamento psíquico opera em determinado nível, e quando utilizamos de objetos não figurativos como os utilizados pela professora estamos, em princípio, viabilizando operações em níveis psíquicos mais sofisticados, pois demandam abstração do que o objeto é para o que se quer que ele represente. Trata-se, portanto, de uma sofisticação nas formas de elaboração. A criação dos personagens do conto Branca de Neve se deu pela professora e as relações estabelecidas por ela, entre objetos e personagens:
Potes plásticos com emojis e bexiga - anões;
Lata com pena azul - príncipe;
Lata de tampa vermelha - caçador;
Lata espelhada - espelho;
Lata encapada com papéis azul, amarelo e vermelho - Branca de Neve;
Lata encapada com papéis azul e vermelho com coroa azul - Branca de Neve de princesa;
Lata roxa de coroa - madrasta;
Lata branca - velhinha;
Bola de isopor com glitter vermelho - maçã.
Considerando a riqueza da estratégia dos personagens desconstruídos, fomos dialogando e pensando juntas em possibilidades para reorganizar e fortalecer o trabalho com os contos, para além das contações feitas apenas pela própria professora, no primeiro semestre. Realçamos que os personagens descontruídos significavam esquemas de representação simbólica mais abstratos para as crianças, bastante diferentes de elementos figurativos, o que era muito interessante do ponto de vista de oportunizar relações de representação e a criação de signos. A Figura 1, com o registro fotográfico do material simbólico usado no trabalho com o próximo conto (Chapeuzinho Vermelho), permite maior clareza desse argumento:
Na imagem dos personagens desconstruídos, temos:
Gorro vermelho - Chapeuzinho
Gorro bege - Mamãe
Gorro branco - Vovó
Gorro preto - Lobo
Gorro marrom - Caçador
Assim foram sendo pensadas novas formas de participação das crianças no trabalho com a literatura, criando novas condições e novas possibilidades de troca de saberes atravessadas pelas dimensões lúdica, estética, fantástica e maravilhosa. No diálogo com a professora, destacou-se que a imaginação é vista por Vigotski como uma formação historicamente viável, que faz parte do sistema de funções psicológicas superiores, sobretudo por meio do prazer e das emoções fantásticas que as histórias proporcionam nas relações com os personagens dos contos. Nessa trama, as crianças têm a oportunidade de refletir acerca do mundo em que estão inseridas, entrelaçando-o com mundos imaginados. Mas a imaginação não se constitui de modo independente da memória. O novo se apoia no já conhecido e, para que se expandam as possibilidades de criação, é relevante incluir várias repetições. Aqui uma importante diferença do Planejamento Anual/2019: ao invés de muitos títulos, muitas atividades com um mesmo título... Essa opção faz diferença nos modos como as crianças vão aprofundando sua compreensão e apropriação das narrativas e podem se tornar coautoras. Falaremos sobre isso a seguir.
4.2 A IMPORTÂNCIA DE TRABALHAR VÁRIAS VEZES COM UM MESMO CONTO
O desenvolvimento da sequência didática para o conto Chapeuzinho Vermelho envolveu várias atividades: contação da história pela professora, reconto coletivo, escrita coletiva da história, ordenação da música de Chapeuzinho, dramatização em pequenos grupos e roda da conversa. No presente artigo, focalizaremos o reconto coletivo e a dramatização em pequenos grupos. Para as contações, a professora utilizou primeiro o conjunto de personagens figurativos (fantoches), coloridos pelas crianças.
Partimos então para a proposta de reconto coletivo, permitindo que as crianças, apoiadas na mediação da professora e dos demais colegas de turma, organizassem suas ideias e as expressassem de modos distintos. Destacamos que a organização espacial em roda favoreceu a circulação dos dizeres e estimulou a partilha de sentidos. A atividade foi desenvolvida na sala de música, com a professora e os alunos sentados confortavelmente no tapete de material sintético colocado no centro da sala. A sala era ventilada, e os recursos materiais disponíveis no entorno estavam bem organizados nos armários e prateleiras das paredes laterais de toda a sala. Embora coloridos e alegres, não atraíram a atenção das crianças para manuseá-los e prejudicar a participação na atividade.
Vejamos o desenrolar discursivo que constituiu a elaboração coletiva da narrativa apoiada, prioritariamente, pela linguagem oral:
Reconto coletivo - Chapeuzinho Vermelho
Katia - Vocês se lembram da história da Chapeuzinho Vermelho
Crianças - Siiiiimmmmmm
Kátia - Vocês podem me ajudar a contar pra Célia e pra professora dela? Pois elas querem conhecer a história como eu contei pra vocês e pensei que vocês podem me ajudar a contar. Vocês me ajudam?
Crianças - Siiiiiimmmmmmm
Kátia - Mas um de cada vez pra Célia ouvir vocês. Quem pode começar a história?
(Entusiasmados, vários levantam a mão e quase pulam do tapete para contar. A professora reforça que não é para levantarem do lugar; devem só levantar a mão; a professora pede pra Suzana iniciar)
Suzana - A Chapeuzinho estava brincando lá fora e a mamãe dela chamou e falou assim: Chapeuzinho leva esses doces para sua vovó que ela está doente!
Vithor - (grita interrompendo a amiga) E o remédio!
Suzana - Levar doces e remédio pra Vovó. Ai ela encontrou o Lobo mau.
Kátia - Já aconteceu isso? não tem mais nada?
Lorena - Ela foi pelo caminho da floresta
Kátia - Alguém falou que ela foi pelo caminho o quê?
Crianças em coro - da floresta
Suzana - Caminho da floresta!
Kátia - A mamãe dela falou alguma coisa pra ela?
Crianças - Falooooo
Kátia - O que que ela falou?
Crianças - Ela falou, ela falou (todos falando ao mesmo tempo)
Kátia - Ai, ai, ai! Desse jeito vai doer minha cabeça! Tem que falar um de cada vez!
Lorena - Deixa eu falar?
Kátia - Então fala rapidinho pra outra pessoa falar também
Lorena - Ela foi pela estrada, não pela floresta, pela estrada.
Kátia - Aí, quando ela ia pelo caminho ela fazia uma coisa. O que que ela fazia?
Crianças - Pegando flores
Lívia - Levando torta de maçã
Kátia - Tá, mas ela ia fazendo uma coisa... Ela ia...?
Lorena - Pegando flores!
Kátia - E ela ia fazendo o que mais? Ela ia conversando? Ela ia cantando?
Eloá - Comendo maçã.
Vithor - O tia, O tia. A mãe dela falou pra não falar com estranhos!
Kátia - Isso! Não era pra ela falar com estranhos. E quando ela ia pelo caminho, ela cantava, não é mesmo????
(Enzo olha pra direção da porta e quando a professora termina essa pergunta ele vira para a professora rapidamente e canta, gesticulando com o dedo, como se estivesse regendo)
Enzo - O caminho é deserto!
Suzana - Pela estrada fora eu vou bem sozinha levar esses doces para a vovozinha.
Kátia - Quem lembra como ela cantava?
Crianças - EEEEEEEEuuuu (todos levantam a mão)
Crianças em coro.
(Enzo levanta a mão e chama pela professora algumas vezes)
Enzo- Professora, professora, professora, quando eu sonho com o lobo lá na minha casa eu se escondo embaixo da coberta.
Suzana - Aí apareceu o Lobo e enganou a Chapeuzinho e chegou primeiro na casa da Vovó!
Kátia - E fez o que com a Vovó?
Milena - Ele comeu a Vovó e pôs a roupa dela.
Kátia - Verdade? E depois o que aconteceu?
Larissa _ Nossa, Vovó que olho grande!
Crianças - É pra te ver melhor.
Kátia - E o que mais disse a Chapeuzinho?
Vithor - Nossa vovó, que boca tão grande...É pra te comer (mudando o tom da voz)
Maria Luiza - Mas aí apareceu um caçador e salvou a Vovó e a Chapeuzinho Vermelho!
Kátia - E a Chapeuzinho aprendeu a lição?
Crianças em coro- Sim
Kátia - Que lição ela aprendeu?
Suzana - Que não pode falar com estranhos e desobedecer a mamãe!!!!
Vithor - E fim!
Podemos perceber que, inicialmente, a reconstrução da história se mostrou bem “truncada” e sintética: (A Chapeuzinho estava brincando lá fora e a mamãe dela chamou e falou assim: Chapeuzinho, leva esses doces para sua vovó que ela está doente!). Porém, a partir dos dizeres de cada um ali presente ou assumindo falas dos personagens, a situação foi se desenrolando e a produção oral passou a ganhar maior volume de palavras, de sentidos, de fluência, de detalhes, enfim de significações. As intervenções da professora foram essenciais para o enriquecimento da narrativa. Alternando entre perguntas mais genéricas, como “Já aconteceu isso? Não tem mais nada?” Com outras mais direcionadas, como “A mamãe dela falou alguma coisa pra ela?” vai dando os suportes necessários para que a história seja reconstruída, ponto a ponto.
Outra estratégia utilizada pela professora é a de destacar do conjunto de enunciados proferidos pelas crianças aqueles que serão mais sólidos para a continuidade do enredo, como em “Alguém falou que ela foi pelo caminho o quê?”. Dessa forma, oportunizou que a turma se relacionasse, interagisse e dialogasse, a partir de um conto literário, podendo efetivar níveis de funcionamento psíquico mais robustos e estruturados. Como podemos ver, o esperado, o planejado, estava na situação de recontar coletivamente, na intencionalidade pedagógica de desenvolver a linguagem das crianças como processo integrante da alfabetização numa prática social.
Passamos agora para a materialização de outra situação interessante, envolvendo o conto Chapeuzinho Vermelho, porém com suporte dos elementos não figurativos (os personagens desconstruídos), apoiando a narrativa das crianças: uma dramatização feita por pequenos grupos e dirigida à plateia composta pelos colegas.
Inicialmente, a professora informou às crianças que a proposta de trabalho seria recontarem a história de Chapeuzinho Vermelho por meio de uma representação, em que elas próprias seriam os personagens. Perguntou quem gostaria de participar como primeiro grupo, e as crianças manifestaram interesse em representar o conto para a turma. Tivemos a manifestação de 18 crianças da turma. A professora dividiu-os em grupos de cinco, de acordo com a indicação do personagem que cada um queria representar. Duas crianças participaram de dois grupos. As situações de produção da narrativa de cada grupo se deram em dois dias e em dois momentos distintos da rotina diária. A atividade de dramatização aconteceu na sala de leitura; a professora organizou o espaço imitando o palco e os assentos da plateia de um teatro.
A proposta era de que as crianças representassem os personagens manipulando os elementos simbólicos que já haviam sido usados por ela, como objetos substitutivos (os fantoches e/ou os gorros apresentados na Figura 1). Para isso, ela disponibilizou em uma mesa todos esses recursos e cada criança escolhia qual representação utilizaria para participar da encenação. Poucos grupos utilizaram os fantoches. Embora a maioria tenha reproduzido o padrão de cores dos gorros estabelecidos pela professora nos momentos de contação (Gorro vermelho - Chapeuzinho; Gorro bege - Mamãe; Gorro branco - Vovó; Gorro preto - Lobo; Gorro marrom - Caçador), as crianças podiam modificar a qualquer momento e criar estratégias pessoais para a atividade.
A seguir, transcrevemos a narrativa produzida por um dos grupos da turma.
Chapeuzinho Vermelho - Grupo 1
Chapeuzinho - Lá, lá, lá, lá, lá, … (Cantarolando e dançando de um lado para outro)
Mamãe - Chapeuzinho! (Levantando a mão coberta pelo gorro)
Chapeuzinho - Oi mamãe! (Direcionando o seu gorro para o gorro de Lorena)
Mamãe -Vai levar esses doces para a sua vovó que está doente. Mas, Chapeuzinho, deixa eu te falar um negócio. Não fale com estranhos e vá pelo caminho da estrada.
Chapeuzinho - Tá
Mamãe -Tchau, Chapeuzinho.
Chapeuzinho -Tchau, Mamãe.
Chapeuzinho - Lá, lá, lá... Pela estrada afora eu vou bem sozinha.
Caçador, Mamãe, Chapeuzinho juntos - Levar esses doces para a vovozinha. Pela estrada afora eu vou bem sozinha...
Vovó - É só a Chapeuzinho!
Chapeuzinho - Ela mora longe, o caminho é deserto e o lobo mal passeia aqui por perto. (Balançando o corpo no lugar)
(Caçador empurra o Lobo para próximo da Chapeuzinho, indicando que é a sua vez de participar da dramatização)
Lobo - Oi Chapeuzinho, onde você tá indo? (Com voz rouca)
Chapeuzinho - Eu estou indo levar esses doces para minha vovozinha porque ela está muito doente.
Lobo - Então vamos pegar flores e apostar uma corrida pela floresta (voz baixa e rouca)
Chapeuzinho -Vamos!
Chapeuzinho - Lá, lá, lá, lá... Pela estrada afora eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovozinha. Ela mora longe, o caminho é deserto e o lobo mal passeia aqui por perto. (Balançando o corpo e circulando por todo o tapete)
(Caçador conduz Lobo próximo a vovó, auxilia a colocação do gorro branco dentro do gorro preto e pede para a Vovó se afastar do tapete)
Chapeuzinho - Toc, toc (batendo no ar) - Trouxe doces pra você vovó!
Lobo - Pode entrar netinha (voz rouca)
(Mamãe conduz Chapeuzinho sussurrando as falas seguintes em seu ouvido)
Chapeuzinho - Vovozinha que olhos grandes você tem...
Lobo - É pra te ver melhor, netinha.
Chapeuzinho - Vovozinha, que orelhas grandes você tem.
Lobo - Pra te ouvir melhor.
(Vovó se aproxima da Chapeuzinho e do Lobo sem o gorro nas mãos, escondendo-o atrás de seu corpo)
Chapeuzinho - Vovozinha, que braços longos você tem.
Lobo - É pra te abraçar
Chapeuzinho - Que dentes grandes você tem.
Lobo - É pra te comer!
(Mamãe auxilia Chapeuzinho a tremer e movimentar o gorro como se estivesse fugindo do Lobo)
(Caçador e Mamãe controlam a organização do grupo que estava encenando no tapete/palco. Eles tiram o gorro que representa a vovó de dentro do gorro do Lobo e o devolve para a Vovó)
(Caçador encena com Lobo gesticulando com os gorros e pede para o Lobo abaixar de costas para as crianças que assistiam)
(Caçador aproxima Chapeuzinho da Mamãe e orienta que elas continuem com as falas Caçador - Vai, vai.
Chapeuzinho - Mamãe...
Mamãe - Oi filha. Filha você não falou com estranhos, falou?
Chapeuzinho - Falei mamãe, eu não te obedeci
Mamãe - Filha tem que me obedecer, e se o lobo te pega?
Chapeuzinho - Ele já me pegou e o caçador me salvou
Mamãe - Tá bom filha, desculpa! (De frente para Chapeuzinho encostando seu gorro no gorro vermelho)
Mamãe - E quem gostou da história bate palma! (Dirigindo-se a quem assistia)
(E todos batem palmas)
A produção de narrativa oral registrada nos revela aspectos importantes do modo de as crianças significarem a própria situação discursiva e os conhecimentos culturais emergentes dela. Na dinâmica das relações, observamos significações coerentes e exitosas para o contexto comunicativo em questão, bem como a objetivação de discursos que revelam conhecimentos elaborados sendo integrados às formas de produção individual (nota-se que durante a encenação as crianças se preocupam em pronunciar as palavras sem marcas da oralidade cotidiana, exemplo entrar, flores, você, trouxe).
A preocupação das crianças em intervir e interagir no/com o discurso dos outros e com os outros, sejam eles os parceiros de turma ou os personagens do conto, é bastante interessante. Nesse complexo sistema de interações, entram em jogo discursos utilizados pelas crianças, como representação das falas dos personagens, em outros tempos e espaços. As elaborações individuais e coletivas vão transformando, modificando e superando as dificuldades encontradas na própria dinâmica da prática em curso, como podemos ver no momento em que o “Caçador” e “Mamãe” se esforçam para tirar o gorro que representa a Vovó de dentro do gorro do Lobo e o devolvem para a Vovó representando a mudança física e espacial da Vovó, que ora está na barriga do Lobo, ora está fora dela.
No trecho em que o “Caçador conduz o Lobo próximo da Vovó, auxilia a colocação do gorro branco dentro do gorro preto e pede para a Vovó se afastar do tapete”, a criança está utilizando combinações entre situações experimentadas pelos personagens do conto e suas próprias vivências. O Caçador representa a cena do Lobo engolindo a Vovó quando coloca o gorro branco dentro do gorro preto. Trabalha, portanto, sem hesitar, no campo imaginativo criado pela professora, mas por ele apropriado. Ele também introduz conhecimentos externos à trama do conto, porém inerentes à situação de narrar em público, quando pede para a Vovó se afastar como se estivesse querendo que a personagem não fosse mais vista pela plateia, já que estava dentro da barriga do Lobo. Não bastava o gorro não ser mais visto. Raciocínio semelhante acontece com a Vovó, quando se aproxima da Chapeuzinho e do Lobo escondendo o gorro atrás de seu corpo. A criança parece demonstrar preocupação em não deixar dúvidas sobre a ausência da personagem em determinado momento da trama narrada. E escolhe fazer isso escondendo o gorro que utilizava para mediar a representação da personagem, colocando-o num ângulo não acessível para a plateia. A mesma preocupação em que a dramatização fique compreensível aos olhos da plateia está presente quando a Mamãe conduz a Chapeuzinho, sussurrando as falas que devem ser pronunciadas em seguida no ouvido da colega/personagem, para que as crianças que assistiam não ouvissem e não interpretassem como fala da personagem Mamãe, uma vez que de fato não era.
Está em jogo, portanto, sofisticada capacidade de desdobramento das posições ocupadas pelas crianças: todos os que estão representando a história ocupam o lugar do personagem, esmerando-se em agregar detalhes que deem mais plausibilidade à dramatização (é o caso, por exemplo, de a criança que representa o Lobo mudar a entonação de voz, falando com timbre rouco, quando se dirige a Chapeuzinho); no caso das crianças que estão no papel de Caçador e da Mamãe, esse jogo fica ainda mais complexo, pois se colocam também no lugar dos personagens dos colegas (ao ajudá-los a se recordarem de falas e ações relevantes) e no lugar da plateia (nas intervenções sussurradas, no encaminhar personagens para fora da cena no momento correto, etc.). Nesse ponto ainda é interessante notar que, embora representando dois personagens, que podem ser considerados coadjuvantes, as crianças ocupam lugar de destaque e são imprescindíveis para o desenvolvimento da trama, dirigindo os personagens principais.
Na dinâmica do processo investigativo voltado especificamente para o trabalho com contos, percebemos que, para além de narrar os contos e dialogar sobre eles, tal recurso cultural apresentava relevância para refletir sobre problemas dos seres humanos e sobre suas soluções. Para as crianças experimentarem o legado cultural que constitui sua educação moral e integrá-lo nos modos culturais de interação social, transformando e modificando suas condições culturais de existência de modo mais elaborado, buscamos envolvê-las em situações discursivas que articulassem diferentes significações e dizeres sobre os contos e obras literárias.
Para Vygotsky (1998), o texto literário propõe uma ação na esfera imaginativa e cria uma nova relação entre situações reais e situações imaginativas. Amplia, ainda, o campo de significados e auxilia na formação de relações entre os planos da vida real, da imaginação e da fantasia, em que se criam e se seguem regras para satisfação dos desejos. Por isso passamos a escolher com maior cuidado os livros disponibilizados para a turma, principalmente os que levavam a atividades voltadas para o processo de alfabetização. Os recursos linguísticos apresentados e o potencial para mobilizar interações desenvolventes mediadas pela linguagem oral, pela leitura e pela escrita da turma foram sendo considerados na escolha das atividades.
4.3 AS DIFICULDADES PARA MOSTRAR AOS PAIS E FAMÍLIAS A RELEVÂNCIA DO TRABALHO COM A LITERATURA
A literatura infantil é um importante elemento cultural que se funde no processo de desenvolvimento psíquico por mobilizar a atividade criadora humana, a imaginação. É grande a potencialidade desse gênero, que propicia a fruição do texto, o prazer pela leitura, amplia as possibilidades de experimentação e enriquece as experiências discursivas.
A criação verbal, como dito anteriormente, estando no campo do imaginário, foi sendo mediada pela contação de histórias da professora, pelo livro, pela fala das crianças, pelas experiências vividas também pela escrita. Ainda que muitas elaborações possam se ter mantido intactas e não tenham sido verbalizadas, o envolvimento das crianças no desenrolar das práticas pedagógicas, os olhares curiosos e atentos, a ansiedade de intervir na fala do amigo, de representar os personagens, entre outras manifestações, nos indicam que o funcionamento mental de todos estava se tornando cada vez mais elaborado.
A diversidade de atividades que foi sendo viabilizada no processo de alfabetização, resultante do permanente diálogo entre professora e pesquisadora, foi se tornando uma marca importante do trabalho de Kátia. Importante aqui ressaltar que, na parceria, não se tratava apenas de discutir atividades, planejar sequências didáticas, analisar, do ponto de vista estritamente pedagógico, o que vinham realizando.
As situações pedagógicas experimentadas passaram a possibilitar maior interação dos elementos culturais envolvidos nas práticas discursivas, inclusive aspectos gráficos como entonação, segmentação das palavras, relação entre sons e letras, etc., de forma desenvolvente e brincante. No confronto da modulação da compreensão de cada criança e na interação entre saberes, elas se apoiavam em elementos mais abstratos (gráficos e sonoros) e demonstravam maior controle e consciência de sua participação, inclusive maior consciência fonológica, com palavras e textos que faziam sentido para elas e que lhes eram necessárias. Cada retrabalho com um mesmo conto ia se constituindo de diversos modos, apoiados em diversos recursos linguísticos e articulados a diversos sujeitos, marcados por diversas vivências e ocupando diferentes lugares de participação nas interações discursivas da turma. Com isso, a prática de alfabetização da turma se configurava como lugar de contradições e de possibilidades de ação, articuladas à imaginação, mas também à memória. A relativa pluralidade de significados previstos para cada momento discursivo, segundo Mortatti (2018), pôde ser constatada em cada modo de interação com o conto, em que as significações e os sentidos alcançados não eram únicos e nem infinitos, eram singulares e provisórios.
Contudo, ainda que o desenvolvimento da linguagem em suas diferentes formas tenha alcançado caráter envolvente nas mediações da professora, entrelaçando a escrita, os gestos, a fala e o jogo de faz de conta, a compreensão modulada da docente sobre a riqueza da literatura para o processo de alfabetização ainda se mostra tímida e firmada em conhecimentos empíricos de efeito moralizante. Podemos constatar isso no discurso da professora relatando para as famílias das crianças o trabalho desenvolvido com o conto Chapeuzinho Vermelho:
Nos meses de Agosto e Setembro, nossa turma conheceu a História da Chapeuzinho Vermelho. Através desta história cantamos, brincamos, criamos desenhos lindos, recontamos a história e até criamos uma versão diferente. Aprendemos a não falar com estranhos, a obedecer as pessoas e a respeitar os mais velhos. Nos divertimos muito! (Kátia - 01/10/2022)
Como podemos ver, o processo de incorporação das mudanças é complexo e tem caráter longitudinal. As reflexões construídas semanalmente, a partir do diálogo entre professora e pesquisadora, não foram suficientes para romper com formas mais aligeiradas de perceber as contribuições do trabalho com a literatura - o destaque para as possibilidades de desenvolver/incutir valores e temas moralizantes - nem para construir formas mais acuradas, refletidas teoricamente de esclarecer aos pais por que o trabalho diário com os contos é tão relevante - destacando-se o trabalho sofisticado de formas discursivas desenvolventes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento de significação aqui constituído nos permitiu ampliar sentidos sobre a importância das experiências educacionais ligadas à arte, à leitura de literatura, ao desenho, à pintura, assim como à escrita e às ciências no processo de formação plena de potencialidades humanas durante a infância. A mediação docente pôde ser problematizada e ressignificada ao longo das relações e interações das crianças com os contos, seus enredos e seus personagens. Mas, ainda assim, a valorização da literatura como apoio a ensinamentos moralizantes se mantém central na perspectiva pedagógica da professora.
Por isso ressaltamos a importância de que, ao lançar mão do trabalho com a literatura, bem como com práticas discursivas colaborativas com o professor, não devemos ter expectativas de benefícios imediatos, com finalidades práticas, aplicáveis, empíricas e pautadas no senso comum. Para que o trabalho aconteça de forma desenvolvente, a literatura precisa ser revisitada, frequentemente, nas pautas de formação inicial e continuada voltadas para a alfabetização na Educação Infantil, não como situações pontuais e isoladas.
Reconhecemos na literatura infantil uma forma de arte, que revela possibilidades de, pelo trabalho de imaginação da realidade, envolver conhecimentos sobre o real, identificar contradições e posicionar-se ética e politicamente. E consideramos que, em contextos sociais, onde muitas vezes parece quase não haver caminhos para a transformação da realidade, encontramos, na literatura, formas inclusive de iluminar novos rumos para nossos alunos e professores.
REFERÊNCIAS
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- DANGIÓ, M. C dos S.; MARTINS, L. M. A alfabetização sob o enfoque Histórico-Crítico: contribuições didáticas. Campinas, São Paulo. Autores Associados, 2018.
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- ZILBERMAN, R. A Literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
18 Mar 2022 -
Aceito
12 Out 2023