Resumo
O presente texto intenta explorar a ordem metodológica para o estudo da língua, tal como proposta pelo pensador russo Valentin N. Volóchinov, em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Para isso, são desenvolvidas três seções, que buscam corresponder aos três pontos da referida organização metodológica. Em um primeiro momento, o texto apresenta o vínculo estreito entre os tipos de comunicação, as práticas sociais e as formas específicas de enunciados. Em seguida, o texto concentra-se na parte extraverbal do enunciado. Posteriormente, o texto discorre a respeito da parte verbal do enunciado. Finalmente, em acréscimo a essas três seções, o texto avança uma breve exemplificação. Em seu todo, o presente texto contribui para reforçar o lugar especial que o pensador russo atribui à entonação expressiva, tomada como sendo a mais plena realização da avaliação social.
Palavras-chave:
Volóchinov; Enunciado; Avaliação social; Entonação expressiva
Abstract
The present text aims to explore the methodological order of study of language, such as proposed by Russian thinker Valentin N. Voloshinov, in his book Marxism and the Philosophy of Language. For this purpose, this text develops three sections, which seek to correspond to the three points of the methodological organization mentioned. Firstly, this text presents the close link between types of communication, social practices, and specific forms of utterance. Then, the present text focuses on the extraverbal part of the utterance. Subsequently, this text discusses the verbal part of the utterance. Finally, in addition to these three sections, this text provides a brief exemplification. The present text contributes to reinforcing the special place that the Russian thinker attributes to expressive intonation, taken as the most complete realization of social evaluation.
Keywords:
Voloshinov; Utterance; Social Evaluation; Expressive Intonation
Resumen
El presente texto intenta explorar el orden metodológico para el estudio del lenguaje tal como propuesto por el pensador ruso Valentin N. Volóshinov, en su obra “El marxismo y la filosofía del lenguaje”. Para ello, se desarrollan tres secciones que buscan corresponder a los tres puntos de la mencionada organización metodológica. En un primer momento, el texto presenta el estrecho vínculo entre los tipos de comunicación, las prácticas sociales y las formas específicas de enunciados. Luego, el texto se centra en la parte extraverbal del enunciado. Posteriormente, el texto trata acerca de la parte verbal del enunciado. Finalmente, además de estas tres secciones, el texto ofrece una breve ejemplificación. En su conjunto, este texto contribuye a reforzar el lugar especial que el pensador ruso atribuye a la entonación expresiva, considerada como la más plena realización de la evaluación social.
Palabras clave:
Volóshinov; Enunciado; Evaluación social; Entonación expresiva
deixasse a teoria dos gêneros de lado na educação básica.
O importante mesmo é que circulem, na escola, os discursos sociais.
Acho que esse é o coração da coisa: a circulação polêmica dos discursos sociais.
Carlos Alberto Faraco
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na obra Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico, orquestrei argumentos em favor do entendimento de que o núcleo duro do pensamento filosófico-linguístico de Valentin N. Volóchinov [1895-1936] consiste na exigência de que se dê ao caráter axiológico da linguagem o lugar que lhe é de direito, a saber, um lugar elementar para a compreensão da linguagem e da língua posta em uso. Na base dessa argumentação está uma investigação de como Volóchinov movimenta a ideia de avaliação social ao longo de seus principais escritos.
Agora, no rastro da referida obra, retorno a três escritos do pensador russo. Mais precisamente, retorno ao ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica”, ao livro Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem e, finalmente, ao ensaio “A construção do enunciado”.
Por um lado, o objetivo é jogar luz sobre a seguinte afirmação de Volóchinov:
a ordem metodologicamente fundamentada para o estudo da língua deve ser a seguinte: 1) formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas; 2) formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica; 3) partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual. (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 220).
Por outro lado, o objetivo é explorar o lugar de destaque que o autor confere à entonação expressiva, assumida como a mais plena realização da avaliação social.
Nessas condições, portanto, as próximas páginas apresentam três seções que buscam corresponder aos três pontos da supracitada organização metodológica proposta por Volóchinov. Além disso, apresentam uma quarta seção, cujo objetivo é pôr em cena uma breve exemplificação das considerações apresentadas.
2 VOLÓCHINOV, OS TIPOS DE COMUNICAÇÃO E AS PRÁTICAS SOCIAIS
No ano de 1926, Volóchinov publica aquele que, até onde se sabe, é seu primeiro escrito orientado para questões estritamente linguísticas e literárias. Trata-se do ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica” (daqui por diante, PVPP).
Ali, nas duas seções iniciais, nosso autor - que, vale destacar, era um pesquisador vinculado à Subseção de Metodologia da Literatura, no Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV) - afirma sua intenção de realizar uma “aplicação correta e produtiva da análise sociológica na teoria da arte e, em particular, na poética” (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 114). Para isso, então, faz uma breve apresentação do que entende como sendo “duas opiniões errôneas” (Volóchinov, 2019a, p. 114) em relação à poética teórica: de um lado, a orientação formalista; de outro, a orientação psicologista.1 1 A poética teórica, também denominada “estilística teórica”, diz respeito ao campo de estudos literários que, na Rússia dos tempos de Volóchinov, concentrava-se na “construção de princípios, conceitos e categorias de análise para a investigação literária” (Gomes, 2023, p. 93). Esse campo distingue-se da “estilística histórica”, cujo interesse era “investigar, sobretudo, o conceito designado pela expressão ‘estilo de época’” (Gomes, 2023, p. 93).
É justamente enquanto assinala as características das “duas opiniões errôneas” que Volóchinov deixa ver um esboço inicial do que, anos depois, afirmaria ser o primeiro ponto da “ordem metodologicamente fundamentada para o estudo da língua”, a saber, “as formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas” (Volóchinov, 2018, p. 220). Em outras palavras, é ainda em PVPP que Volóchinov delineia uma caracterização dos diferentes tipos de comunicação - ou, se se quiser, diferentes tipos de interação discursiva -, os quais eclodem de práticas sociais efetivamente realizadas.
Estritamente falando, em PVPP Volóchinov menciona a comunicação social, a comunicação ideológica, a comunicação artística - também denominada “comunicação estética” -, a comunicação política, a comunicação jurídica, a comunicação moral etc. (cf. Volóchinov, 2019a, p. 116). Anos depois, em Marxismo e filosofia da linguagem (daqui por diante, MFL), essa menção à existência de diferentes tipos de comunicação aparece, especialmente, quando o autor destaca a ideologia do cotidiano como sendo o elo entre a base socioeconômica - a infraestrutura - e os diversos campos de criação da cultura - a superestrutura (Volóchinov, 2018, p. 99). Ainda em MFL, o autor acrescenta a existência de uma comunicação religiosa (cf. Volóchinov, 2018, p. 99 e 112) e de uma comunicação da imprensa, que podemos denominar, simplesmente, “comunicação jornalística” (cf. Volóchinov, 2018, p. 215). Finalmente, em “A construção do enunciado” (daqui por diante, CE), o pensador russo aponta os seguintes tipos de comunicação:
1) a comunicação no setor produtivo (nas indústrias, nas fábricas, nos kolkhozes etc.); 2) a comunicação de negócios (nas instituições, nas organizações sociais etc.); 3) a comunicação cotidiana (encontros e conversas na rua, nos refeitórios coletivos, em casa etc.) e finalmente 4) a comunicação ideológica no sentido estrito da palavra: de agitação política, escolar, científica, filosófica, em todas as suas variantes. (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 269).2 2 Como se sabe, o ensaio “A construção do enunciado” é a segunda parte da série Estilística do discurso literário, que Volóchinov publicou no periódico de popularização científica Estudos da literatura: revista para autoformação. Uma vez que esse texto buscava alcançar um público mais amplo, fica justificado o aumento do tom marxista, marcado, por exemplo, pela aparentemente desnecessária especificação de uma comunicação do setor produtivo e de uma comunicação de negócios. Diga-se, de passagem, que esse aumento do tom marxista aparece, especialmente, no mais frágil texto de Volóchinov, o ensaio “O que é língua/linguagem?”, que abre a sua série Estilística do discurso literário.
Assim, de modo geral, “comunicação social” - por vezes, “interação discursiva” ou “comunicação discursiva” (cf., e.g., Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 98-99; 2019b, p. 269) - é o nome que nosso autor atribui ao grande quadro comunicativo que eclode das práticas sociais e no qual se manifestam os diferentes sistemas de crença, as diferentes visões de mundo que caracterizam uma sociedade. Desse modo, em relação à distinção marxista entre infraestrutura e superestrutura, a comunicação social deve ser compreendida como uma dimensão mais ampla, que abrange desde as interações relativas à infraestrutura até aquelas típicas da superestrutura.3 3 Em determinado momento de MFL, no que parece ser uma imprecisão terminológica, o autor chega a operar esse conceito sob o nome de “comunicação ideológica” (cf. Gomes, 2023, p. 48-49).
Nesse sentido, as interações relativas à infraestrutura formam a comunicação cotidiana, que pode ser vista como uma subdimensão no interior da comunicação social. É, pois, na comunicação cotidiana que se encaixa aquilo que, em PVPP, é designado como “discurso cotidiano comum” (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 117).4 4 Convém pontuar que a ideia de “comunicação cotidiana” aparece, explicitamente, apenas a partir de MFL. Semelhantemente, as interações típicas da superestrutura formam a comunicação ideológica, que também pode ser tomada como uma subdimensão no interior da comunicação social. É justamente na comunicação ideológica que se encaixam as comunicações próprias de cada esfera ideológica, ou seja, próprias de cada campo de criação da cultura, tal como a esfera artística, a esfera científica, a esfera jornalística, a esfera jurídica, a esfera política, a esfera religiosa etc.5 5 Em virtude de um entendimento instaurado pelo contexto intelectual alemão que vigorou no final do séc. XIX e início do séc. XX, a saber, o entendimento de que era necessário fazer distinção entre “filosofia” e “ciências empíricas” (cf. Beiser, 2017), Volóchinov distingue “comunicação científica” de “comunicação filosófica”. Aqui, abro mão dessa minúcia. Em termos visuais, é possível representar essa formulação da seguinte maneira:
A pertinência de indicar o modo como Volóchinov orquestra os diferentes tipos de comunicação em sua relação com as práticas sociais está justamente no fato de que, ao longo de seus escritos, nosso autor afirma uma estreita relação entre os tipos de comunicação e as formas específicas de enunciados, ou seja, os gêneros. Em PVPP, esse entendimento aparece, por exemplo, quando Volóchinov afirma que
o enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes do enunciado. O seu significado e a sua forma [i.e., a forma do enunciado] são determinados principalmente pela forma e pelo caráter dessa interação. (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 128, ênfase acrescida).
Esse mesmo entendimento, que anos depois estaria pressuposto em CE, aparece em MFL. Nesse texto de 1929, tal entendimento aparece na asserção de que “as condições, as formas e os tipos de comunicação discursiva, por sua vez, determinam tanto as formas quanto os temas dos discursos verbais [ou seja, dos enunciados]” (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 107). Em termos mais precisos, Volóchinov advoga que cada diferente tipo de comunicação, emergindo de práticas sociais singulares, prevê o uso de formas específicas de enunciados. Quer dizer, a comunicação artística, a científica, a jornalística, a jurídica, a política, a religiosa etc. ocorrem por meio de enunciados que não são construídos aleatoriamente, mas, sim, em consonância com estruturas que lhes são típicas, desenvolvidas por determinada sociedade sob certas condições históricas. Essas estruturas recebem a denominação “gênero”. E, com isso, postula o autor, “a classificação das formas do enunciado [i.e., a classificação dos gêneros] deve apoiar-se na classificação das formas de comunicação discursiva” (Volóchinov, 2018, p. 109).
3 VOLÓCHINOV E A PARTE EXTRAVERBAL DO ENUNCIADO
De fato, a relação estreita entre tipos de comunicação e seus respectivos gêneros pode conduzir a investigações que centralizem o conceito expresso pelo termo “gênero”. Entretanto, em que pese essa frutífera possibilidade, o que vemos nos escritos de Volóchinov não é uma preocupação com as particularidades dos gêneros, mas, antes, uma preocupação com a generalidade dos enunciados, concebidos como “unidades reais do fluxo da linguagem” (Volóchinov, 2018, p. 221). Dito de outro modo, Volóchinov não avança uma discussão sobre o que há de específico nos mais variados gêneros, mas, sim, uma reflexão sobre o que é constitutivo de quaisquer enunciados.
É por isso que, desde PVPP, em vez de dissecar gêneros, nosso autor insiste na ideia de enunciado concreto, o qual, frente ao atomismo linguístico que caracterizava a tradição ocidental, desponta como uma nova unidade de análise; unidade que coloca a comunicação social no centro dos estudos linguísticos e, por isso, solicita outras categorias. Daí, portanto, a concepção volochinoviana de que todo enunciado é constituído por duas partes, quais sejam, a parte extraverbal e a parte verbal.
Conforme lemos nos escritos de Volóchinov, a parte extraverbal, por vezes designada pela expressão “situação extraverbal”, refere-se àquilo que é tomado como subentendido - e, portanto, tende a ficar extra verbum, isto é, fora da palavra. Em contrapartida, a parte verbal refere-se àquilo que é expresso por meio de recursos fonéticos, morfológicos e sintáticos - sendo, consequentemente, verbalis, ou seja, constituída de palavras.
De maneira esquemática, é possível dizer que, para o pensador russo, a interação discursiva - seja na comunicação artística, científica, jornalística, jurídica, política, religiosa etc. - não é vista como operada por meio da “palavra abstrata e nua”, mas, sim, por meio do “enunciado concreto” (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 128-129). E uma vez que esse enunciado apresenta duas partes, compreender a interação discursiva exige mais do que uma consideração do “lado puramente verbal do enunciado” (Volóchinov, 2019a, p. 118): é preciso, também, considerar a dimensão não linguística do enunciado. É esse entendimento que, em MFL, aparece como o segundo ponto da organização metodológica proposta por Volóchinov e, em PVPP, assoma de trechos como o seguinte:
obviamente, a palavra na vida não é autossuficiente. Ela emerge da situação cotidiana extraverbal e mantém uma relação muito estreita com ela. Mais do que isso, a palavra é completada diretamente pela própria vida e não pode ser separada dela sem que o seu sentido seja perdido. (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 117).
Em mais detalhes, cabe dizer que a situação extraverbal, em PVPP, aparece sob vários nomes, tais como “situação cotidiana extraverbal”, “situação extraverbal do enunciado” e “contexto extraverbal” (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 117-118). E, a despeito da flutuação terminológica, o fato é que, nesse ensaio de 1926, o entendimento de Volóchinov a respeito da situação extraverbal já é suficientemente claro. Conforme sustenta,
a situação extraverbal não é em absoluto uma simples causa externa do enunciado, ou seja, ela não age sobre ele a partir do exterior, como uma força mecânica. Não, a situação integra o enunciado como uma parte necessária de sua composição semântica. Portanto, o enunciado cotidiano como um todo, como um todo consciente, é composto por duas partes: 1) a parte verbalmente realizada (ou atualizada) e 2) a subentendida. É por isso que é possível comparar o enunciado com o “entimema”. (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 120).
Posteriormente, em MFL, a situação extraverbal volta a aparecer sob diferentes nomes. Ali, inicialmente, fala-se, por exemplo, de “situação social concreta” (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 107-108), de “situação de realização do signo”, de “situação social concreta da vivência” e de “situação social” (Volóchinov, 2018, p. 134-135). É isso que se vê quando Volóchinov destaca a importância da situação extraverbal em relação ao discurso interior:
a compreensão de qualquer signo, tanto do exterior quanto do interior, está indissoluvelmente conectada a toda a situação de realização do signo. Mesmo na auto-observação essa situação aparece como um conjunto de fatos da experiência exterior que comenta e elucida o signo interior. Essa situação sempre é social. A orientação dentro da sua própria alma (auto-observação) é realmente inseparável da orientação dentro de uma situação social concreta da vivência. [...] o signo e sua situação social estão fundidos de modo inseparável. O signo não pode ser isolado da situação social sem perder sua natureza sígnica. (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 135).
Entretanto, depois do avançar das considerações de nosso autor, esboça-se uma interessante distinção: de um lado, a “situação extraverbal mais próxima”; de outro, a “situação mais ampla” (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 220). Nesse momento, mais do que estabelecer os critérios que permitam diferenciá-las, o pensador russo assinala para o fato de que a situação mais ampla, referida apenas como “situação”, deve ser pensada ao lado do conceito designado pelo termo “auditório” (Volóchinov, 2018, p. 221).6 6 De fato, o que leva Volóchinov a conceber o auditório como externo à situação - embora ambos integrem a parte extraverbal - não parece rastreável. Todavia, aqui, restrinjo-me à concepção do autor.
Ora, é exatamente isso que aparece, finalmente, em CE. Nesse ensaio de 1930, a situação extraverbal novamente passa a ser referida apenas como “situação”. Por um lado, isso fica claro quando nosso autor assume que, “além da parte verbal expressa, todo enunciado cotidiano [...] consiste de uma parte não expressa, porém subentendida e extraverbal (situação e auditório), sem a qual não é possível compreender o próprio enunciado” (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 269). Por outro lado, torna-se evidente quando Volóchinov sustenta:
os três aspectos subentendidos da parte extraverbal do enunciado, encontrados por nós - o espaço e o tempo do acontecimento do enunciado (o “onde” e o “quando”), o objeto ou tema do enunciado (“sobre o quê” se fala) e a relação dos falantes com o ocorrido (“avaliação”) - convencionamos chamar por uma palavra já conhecida: situação. (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 285).
Com essas duas citações de CE, não há dúvida de que se firma uma sutil modificação iniciada em MFL: a antiga “situação extraverbal”, agora apenas “situação”, permanece com seu caráter social e extra verbum, mas não é, ela mesma, a parte extraverbal. Em vez disso, a parte extraverbal do enunciado é constituída pela situação, mas, também, pelo auditório, que diz respeito à “presença evidente e necessária dos participantes da situação” (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 269). Essa ideia de auditório, aliás, tem elevada importância, uma vez que dá sustentação para ideias como “bilateralidade do enunciado” - em MFL, bilateralidade da palavra; em CE, bilateralidade do discurso - e “orientação social do enunciado”.
Com efeito, tal como MFL apresenta, a ideia de bilateralidade do enunciado não somente assevera a existência de um ouvinte e o fato de o enunciado estar direcionado para esse ouvinte, mas, sobretudo, o fato de que as características desse ouvinte influenciam o enunciado do falante ainda antes de sua concretização material. Nos termos do próprio autor,
efetivamente, o enunciado se forma entre dois indivíduos socialmente organizados, e, na ausência de um interlocutor real, ele é ocupado, por assim dizer, pela imagem do representante médio daquele grupo social ao qual o falante pertence. A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em relação ao interlocutor (em termos hierárquicos), se ele tem ou não laços sociais mais estreitos com o falante (pai, irmão, marido etc.). [...] Em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 204-205).
Contudo, em CE, o modo como Volóchinov faz suas afirmações parece anunciar uma distinção entre bilateralidade do enunciado, de um lado, e orientação social do enunciado, de outro. Mais precisamente, a bilateralidade do enunciado estaria restrita ao simples entendimento de que o enunciado prevê a presença de um ouvinte e de que, portanto, o enunciado é direcionado para esse ouvinte (cf. Volóchinov, 2019b, p. 267). Em contrapartida, a orientação social do enunciado evocaria o fato, já apontado em MFL, de que o enunciado, ainda antes de sua materialização, recebe influência decisiva do peso sócio-hierárquico do auditório presumido (Volóchinov, 2019b, p. 280).
Independentemente da união ou da separação entre bilateralidade do enunciado e orientação social do enunciado, soa evidente que, para o estudioso russo, o enunciado não apenas é elaborado em direção a um outro, mas, sobretudo, é elaborado em certa dependência desse outro. Quer dizer, quem enuncia - o falante - o faz considerando, sob diversos aspectos, aquele para quem enuncia - o ouvinte. Por isso, então, mesmo que o enunciado apresente traços da individualidade do falante, ele não deixa de ter uma natureza social.
Quanto aos três componentes da situação ressaltados em CE - ou seja, a realidade espaçotemporal do enunciado, o tema do enunciado e a relação valorativa dos falantes com o tema -, convém observar que, como aponta Volóchinov,
se os falantes não fossem reunidos por essa situação, se eles não tivessem uma compreensão comum do que está acontecendo, nem uma determinada opinião sobre isso, as suas palavras seriam incompreensíveis para cada um deles, sem sentido e desnecessárias. A comunicação ou interação discursiva só se realiza graças à existência de algo subentendido para eles. [...] de modo geral, nenhum enunciado - científico, filosófico, literário - pode existir sem um certo grau de subentendido. (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 285-286).7 7 Como se sabe, em PVPP, já se anunciava três componentes da situação (extraverbal): “1) o horizonte espacial comum dos falantes [...]; 2) o conhecimento e a compreensão da situação comum aos dois [falantes]; e finalmente 3) a avaliação comum dessa situação” (Volóchinov, 2019a, p. 118-119). Como se pode observar, há uma diferença sutil em relação ao que aparece, depois, em CE.
Antes de finalizar esta seção, cabe destacar que, ao apontar para a existência de uma “relação dos falantes com o ocorrido (‘avaliação’)” (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 285), nosso autor marca o fato de que o caráter axiológico da linguagem já está estabelecido na parte extraverbal do enunciado. Esse movimento - que, como veremos, é absolutamente importante - já está posto desde PVPP. Afinal, nesse ensaio, ao discorrer sobre o enunciado na comunicação artística - ou, se se quiser, na interação estética -, o pensador russo indica que a “relação avaliativa do autor com o conteúdo” não diz respeito às “avaliações ideológicas que, sob a forma de juízos e conclusões do autor, estão introduzidas no próprio conteúdo da obra”, mas, em vez disso, refere-se a uma “avaliação mais basilar e profunda realizada por meio da forma, que encontra sua expressão no próprio modo de visualizar e de posicionar o material literário” (Volóchinov, 2019a, p. 136).
Frente ao que foi dito, é possível considerar a seguinte representação visual:
4 VOLÓCHINOV E A PARTE VERBAL DO ENUNCIADO
Até aqui foi destacado que, para Volóchinov, há uma estreita relação entre os tipos de comunicação, as práticas sociais e as formas específicas de enunciados, isto é, os gêneros. Também foi especificado o fato de que, na ótica do estudioso russo, o enunciado, enquanto unidade da comunicação discursiva - unidade que se materializa em formas específicas, ou seja, em gêneros - constitui-se de duas partes: por um lado, a parte que tende a ficar fora da palavra; por outro lado, a parte que é expressa em palavras. Em consequência disso, foi possível apontar que a parte extraverbal do enunciado é constituída por auditório e situação, sendo que esta última engloba três elementos: a realidade espaçotemporal - que diz respeito ao “onde” e ao “quando” que subjazem a qualquer enunciado -, o tema - que concerne ao conjunto de objetos sobre o qual se versa - e, finalmente, a relação valorativa - que se refere à avaliação do falante sobre o tema explorado.
Diante disso, resta tratar da parte verbal do enunciado. Para tal, é preciso realizar uma importante consideração terminológica: com o intuito de fazer referência à parte verbal do enunciado, Volóchinov, por vezes, lança mão da palavra russa correspondente ao português “forma” - a qual, como sabemos, recebe diferentes acepções em outros tantos momentos (cf. Gomes, 2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023.).
Essa opção terminológica ganha lugar a partir de MFL. A título de exemplo, observe-se que, na terceira parte dessa obra, tal opção aparece quando Volóchinov, tratando do modelo sintático que denomina Discurso Indireto, realiza uma distinção entre modificação analítico-objetual e modificação analítico-verbal, concebendo que esta última “toma como objeto aspectos atinentes não ao conteúdo do enunciado, mas, sim, à forma” (Gomes, 2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023., p. 136). Além disso, essa opção por remeter à parte verbal mediante o termo “forma” aparece na sexta seção de CE, quando nosso autor anuncia que tratará da “forma do enunciado” (Volóchinov, 2019b, p. 286), a qual é o meio de concretização e realização tanto do conteúdo quanto do sentido do enunciado. Assim, parece razoável admitir que a parte verbal do enunciado é justamente aquilo que, em sua organização metodológica, na condição de terceiro e último ponto, Volóchinov indica como sendo as “formas da língua” que necessitam de uma “revisão” no que diz respeito à “concepção linguística habitual” (Volóchinov, 2018, p. 220).
Ora, se a parte verbal do enunciado equivale às formas da língua, nada mais natural do que questionar o que, exatamente, se quer dizer com a expressão “formas da língua”. Nesse sentido, então, convém observar as seguintes palavras de Volóchinov:
com efeito, de todas as formas da língua, as sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas do enunciado, isto é, daquelas dos discursos verbais concretos. Todos os desmembramentos sintáticos do discurso desintegram o corpo vivo do enunciado, e por isso são os que geram mais dificuldade ao serem relacionados ao sistema abstrato da língua. As formas sintáticas são mais concretas do que as morfológicas e as fonéticas, e estão ligadas de modo mais estreito às condições reais da fala. Por isso, na nossa compreensão dos fenômenos vivos da língua, justamente as formas sintáticas devem ter primazia sobre as morfológicas e as fonéticas. No entanto, do que foi dito, também se torna claro que o estudo produtivo das formas sintáticas só é possível no terreno de uma teoria bem elaborada do enunciado. (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 242).
Do trecho supracitado, resta claro que, para Volóchinov, as formas da língua correspondem àquilo que, muitas vezes, tem sido denominado “níveis de análise da língua”, cujos exemplos mais frequentes são o nível fonético, o nível morfológico e o nível sintático. Dessa maneira, ainda na esteira do excerto supramencionado, é possível dizer que, quando sugere uma “revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual” (Volóchinov, 2018, p. 220), nosso autor realiza um duplo movimento: por um lado, contesta a primazia que, na linguística europeia de seu tempo, foi alcançada pela reflexão fonética e morfológica; por outro lado, contesta a produtividade da reflexão sintática quando desgarrada de uma reflexão que considere o enunciado como um todo.
Quer dizer, para Volóchinov, não basta contestar a primazia alcançada pela reflexão fonética e morfológica, primazia baseada na orientação teórica e prática para o estudo de línguas não maternas, sem falantes e acessíveis apenas por meio de registros escritos - em suas palavras, “orientação teórica e prática para o estudo das línguas estrangeiras mortas conservadas nos monumentos escritos” (Volóchinov, 2018, p. 182). É preciso, ao mesmo tempo, chamar atenção para o fato de que a sintaxe não deve ser pensada “através dos óculos das formas fonéticas e morfológicas” (Volóchinov, 2018, p. 241), mas, sim, considerando a consciência do falante, o qual, não poucas vezes, opera determinadas construções sintáticas com vistas à promoção de fatores semânticos e/ou axiológicos.8 8 A esse respeito, pode-se conferir a discussão presente na segunda parte de Gomes (2023), intitulada “Valentin N. Volóchinov e o discurso reportado: uma querela axiológica”.
Frente a tudo isso, parece razoável admitir que, na reflexão de Volóchinov, executar uma revisão das formas da língua é o mesmo que lançar um outro olhar para a parte verbal do enunciado. E isso começa a efetivar-se quando o autor advoga que, à semelhança da parte extraverbal, a parte verbal do enunciado abarca três elementos: entonação da palavra, escolha da palavra e disposição da palavra.
Evidentemente, a escolha da palavra aponta para a seleção de recursos lexicais. De modo tão evidente quanto, a disposição da palavra refere-se à maneira de organização desses recursos lexicais. Assim, como não poderia deixar de ser, a parte verbal relaciona-se com a construção estilística do enunciado. Ocorre, porém, que há mais a dizer. Para Volóchinov, a discussão em torno da parte verbal passa, substancialmente, pela discussão sobre a entonação da palavra.
Com efeito, a entonação é explorada por Volóchinov, pelo menos, desde 1926, com a publicação de PVPP. Ali, pela primeira vez, nosso autor afirma que a entonação revela-se como a mais pura expressão da avaliação social. Além disso, é em PVPP que Volóchinov aventa, pela primeira vez, diferentes tipos de entonação, considerando que uma entonação pode ser “de júbilo, de pesar, de desdenho etc.” e mencionando, ainda, uma entonação “de reprovação indignada, mas suavizada pelo humor” (Volóchinov, 2019a, p. 123).
Em acréscimo, vale registrar que, em PVPP, repetidamente, Volóchinov assume a importância da entonação no estabelecimento de um vínculo entre parte verbal e parte extraverbal. Conforme escreve, “a entonação estabelece uma relação estreita da palavra com o contexto extraverbal: é como se a entonação viva levasse a palavra para fora dos seus limites verbais” (Volóchinov, 2019a, p. 123). E, mais adiante, acrescenta:
a entonação se encontra no limite entre a vida e a parte verbal do enunciado, é como se ela bombeasse a energia da situação cotidiana para a palavra, atribuindo ao todo linguisticamente estável um movimento histórico e um caráter irrepetível. (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 129).
Em MFL, Volóchinov não abandona a ideia de entonação. Na verdade, se, em relação a PVPP, restava uma dúvida quanto ao lugar da entonação - quer dizer, ela integra a parte verbal ou a parte extraverbal? -, é justamente MFL que, ainda antes do aparecimento de CE, ajuda a dirimir tal dúvida. Na magnum opus de Volóchinov, a entonação é apresentada como um elemento da parte verbal. É isso o que se pode afiançar quando o autor, ao indicar as “formas linguísticas” constituintes do enunciado, menciona “palavras, formas morfológicas e sintáticas, sons, entonação” (Volóchinov, 2018, p. 228).
De fato, Volóchinov realiza, em MFL, uma breve discussão sobre a entonação a partir de um excerto da obra Diário de um escritor, de Dostoiévski, tal como o fizera seu professor Lev Iakubínski, no artigo Sobre a fala dialogal, de 1923 (cf. Volóchinov, 2018, p. 233ss; JAKUBINSKIJ, 2015JAKUBINSKIJ, L. Sobre a fala dialogal. Tradução de Dóris de Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. São Paulo: Parábola, 2015., p. 70ss). Contudo, para nosso propósito, mostra-se mais significante pontuar que, em MFL, nosso autor volta a aventar diferentes tipos de entonação. Em termos mais precisos, Volóchinov menciona “entonações de resignação e de submissão” (Volóchinov, 2018, p. 210) e, mais adiante, indica a existência de entonações como “humor, ironia, amor ou ódio, enlevo ou desprezo” (Volóchinov, 2018, p. 258).
Finalmente, em CE, o estudioso russo, ao analisar um excerto da obra Almas mortas, de Gógol, registra a existência de uma “entonação insinuante e bajuladora” (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305., p. 304). Todavia, mais importante do que isso, assume que a entonação tanto orienta a escolha da palavra e a disposição da palavra - ou seja, os demais elementos da parte verbal - quanto é determinada pela situação e pelo auditório - vale dizer, pelos elementos da parte extraverbal. Isso significa dizer que, em CE, Volóchinov volta a ressaltar seu entendimento de que a entonação estabelece um estreito vínculo entre parte verbal e parte extraverbal. Logo, não parece equivocado sugerir uma imagem como a seguinte:
Estritamente falando, o que se busca registrar com essa imagem é o seguinte: uma vez que a relação valorativa é constituinte da parte extraverbal e que a entonação da palavra é constituinte da parte verbal, soa como corolário que a avaliação social - ou seja, “a atribuição de uma carga valorativa, interindividualmente construída, aos eventos, fenômenos e/ou objetos do mundo” (Gomes, 2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023., p. 35) - é o que há de comum entre a parte verbal e a parte extraverbal. Em outras palavras: verbalmente, a avaliação social manifesta-se na entonação das palavras; extraverbalmente, manifesta-se na relação valorativa. E isso torna possível dizer que parte verbal do enunciado e parte extraverbal do enunciado unem-se justamente no caráter axiológico da linguagem.
Por último, cabe registrar que, diferentemente do que seu confrade Pável N. Medviédev faz na obra O método formal nos estudos literários, de 1928, Volóchinov não aceita a distinção entre “entonação expressiva” e “entonação sintática” (cf. Medviédev, 2012, p. 185). Mais precisamente, Volóchinov compreende, sim, a existência de uma distinção entre a entonação (sonora) da palavra - “humor, ironia, amor ou ódio, elevo ou desprezo” (Volóchinov, 2018, p. 258) - e o acabamento (sonoro) que demarca as formas da totalidade do enunciado - “uma pergunta acabada, uma exclamação, uma ordem, um pedido” (Volóchinov, 2018, p. 221).9 9 Convém dizer que, no texto de arquivo “Os gêneros do discurso”, de Bakhtin, além da menção à “entonação expressiva” e a uma suposta “entonação de gênero”, tem-se uma brevíssima menção a uma “entonação gramatical” (Bakhtin, 2016, p. 56), que assume as mesmas características do que seria uma “entonação sintática” ou, nos termos de Volóchinov, uma “totalidade típica do enunciado”. Entretanto, nosso autor nega que o mencionado acabamento (sonoro) possa ser denominado “sintático”. Na verdade, no ensaio “Sobre as fronteiras entre a poética e a linguística”, publicado em 1930, o estudioso russo sugere que o acabamento sonoro não passa de mais uma das “condições linguísticas materiais da entonação de qualquer enunciado lido ou ouvido” (Volóchinov, 2019c, p. 228). Dito de outro modo, em vez de assumir o duo “entonação expressiva”/“entonação sintática”, Volóchinov parece admitir que, além da existência de uma entonação da palavra, há a ocorrência não de uma entonação sintática, mas, sim, de um acabamento típico do enunciado e que, diferentemente daquela, este acabamento não se vincula à avaliação social, sendo somente uma necessidade material das construções linguísticas.10 10 Em nota complementar presente no ensaio “Sobre as fronteiras entre poética e linguística”, Volóchinov vincula a ideia de “entonação sintática” ao trabalho do filólogo Eduard Sievers [1850-1932]. E, de fato, mesmo um olhar breve para a obra de Sievers parece justificar a vinculação feita por nosso autor. A título de exemplo, em texto publicado em 1912, intitulado “Über ein neues Hilfsmittel philologischer Kritik”, Sievers afirma que dois diferentes elementos se cruzam na melodia das frases individuais empíricas: por um lado, um tom que é natural das palavras, quando consideradas isoladamente; por outro lado, uma melodia que é ideal da frase. Para exemplificar a melodia que é ideal da frase, Sievers menciona os tons decrescentes típicos do final de frases declarativas simples, bem como os tons ascendentes que caracterizam o final de frases interrogativas que não apresentam palavras interrogativas. Ora, considerando esse exemplo, não parece desatino admitir, como Volóchinov, que o trabalho de Sievers é o germe da ideia de “entonação sintática”.
5 A TÍTULO DE EXEMPLO ...
Com vistas a tornar mais claras algumas das considerações feitas anteriormente, cabe avançar um breve movimento de exemplificação. Para isso, do ponto de vista da construção do enunciado, será abordado o que está disposto na Imagem 5:
Hoje, assim como na época, é possível que muitos leitores, num primeiro olhar, assumam não haver nada de inusitado no enunciado disposto na Imagem 5. Quer dizer, parece não causar estranheza que, em seu perfil oficial em determinada rede social, um veículo conhecido por seu vínculo temático com o agronegócio realize uma publicação a respeito do tema “laranja”. No entanto, à época da publicação, alguns leitores consideraram - obviamente, sem qualquer terminologia técnica - que a publicação era uma espécie de deboche. É isso o que apareceu em muitos comentários em resposta à publicação, como é possível observar na Imagem 6:
Em que pese a percepção dos leitores, o fato é que, evidentemente, a partir da Imagem 5, seria possível realizar uma ampla discussão sobre os diferentes recursos que cooperam para a construção do enunciado, como é o caso da fotografia - que registra máquinas na colheita de laranja - e do link - que direciona para um texto depositado em outro sítio eletrônico, fora dos domínios da rede social em que a publicação ocorreu. Entretanto, em razão dos propósitos do presente texto, convém ser mais específico.
Conforme pontuado nas páginas anteriores, a entonação expressiva é um elemento da parte verbal do enunciado e, nessa condição, influencia os demais elementos da parte verbal. Estritamente falando, a entonação expressiva orienta a escolha da palavra e a disposição da palavra.
Sendo assim, é possível dizer que, no caso do enunciado disposto na Imagem 5, a entonação expressiva orienta a opção pela palavra “laranjal”. Isso significa que, independentemente de nosso dissenso quanto à nomenclatura - chama-se “deboche”, “ironia”, “reprovação suavizada pelo humor” ou teria outro nome? -, a entonação expressiva leva a preterir o uso de palavras como “laranja” ou “citricultura”.
De semelhante modo, é a entonação expressiva que orienta a disposição das palavras, gerando, em uma ordem não canônica, a sentença “De laranjal o Brasil entende”. Isso quer dizer que, a despeito da designação que possamos lhe dar - “deboche”, “ironia”, “reprovação suavizada pelo humor” ou teria outro nome? -, a entonação expressiva leva a preterir a organização sintática “O Brasil entende de laranjal”, assim como “O Brasil entende de citricultura”, “O agronegócio brasileiro entende de laranja” etc.
Evidentemente, mais do que dizer que a entonação expressiva influencia os demais elementos da parte verbal do enunciado, é necessário mostrar como isso ocorre. Entretanto, para tal, é preciso começar a considerar o fato de que essa entonação expressiva, como já dito, é determinada pelos elementos da parte extraverbal, a saber, a situação - vale lembrar: constituída por realidade espaçotemporal, tema e relação valorativa - e o auditório. Nesse sentido, então, convém trazer a lume a Imagem 7:
Como se pode observar nessa imagem, no dia 4 de fevereiro de 2019 uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S. Paulo trouxe à tona a existência de um “esquema de candidaturas laranjas”, relacionado a um dos ministros de um governo que se propalava incorruptível. Sem dúvida, esse dado já aponta alguns dos elementos que constituem a parte extraverbal do enunciado disposto na Imagem 5 - ou seja, aquele publicado em rede social. Entretanto, seria um equívoco sugerir que a reflexão a respeito da realidade espaçotemporal possa ser limitada à atribuição de nomes para o espaço e para a época que caracterizam um enunciado. De semelhante modo, seria um equívoco supor que a reflexão em torno do tema seja algo restrito ao nome que se pode dar para um determinado assunto.
Em vez disso, no que toca à realidade espaçotemporal, é necessário ser mais específico e pôr em relevo o fato de que o espaço virtual em que o enunciado em questão foi concretizado trazia consigo, naquele momento histórico, uma identidade afeita ao engajamento político e à comicidade. Foi justamente essa característica do referido espaço virtual que tornou socialmente aceitável que o falante - um perfil jornalístico, tematicamente vinculado ao agronegócio - construísse seu enunciado atribuindo à palavra “laranjal” uma entonação expressiva mais relacionada à comicidade. Logo, a entonação expressiva que incidiu sobre a palavra “laranjal” sofreu influência da realidade espaçotemporal.
De maneira semelhante, uma observação mais específica a respeito do tema deve considerar que ele reclamava ser movimentado mediante recursos lexicais como “laranja” ou “laranjal”. Assim, uma vez que tais recursos lexicais eram comuns tanto à agenda política quanto à agenda agroeconômica, o tema permitiu que o falante - vale reforçar: um perfil jornalístico, tematicamente vinculado ao agronegócio -, sem se descaracterizar, construísse seu enunciado atribuindo à palavra “laranjal” uma entonação expressiva mais relacionada à comicidade. Portanto, a entonação expressiva que incidiu sobre a palavra “laranjal” sofreu influência do tema.
Frente a tudo isso, e de volta à questão da escolha das palavras, deve-se acrescentar que a opção pela palavra “laranjal” - em lugar de palavras como “laranja” ou “citricultura” - acontecia justamente no momento em que, a partir da troça e do achincalho nas redes sociais, tal palavra alcançava lugar nas manchetes e nos comentários sobre política partidária (cf. Imagem 8). Assim, independentemente do nome que queiramos lhe atribuir - vale repisar: chama-se “deboche”, “ironia”, “reprovação suavizada pelo humor” ou teria outro nome? -, a entonação expressiva determinou a opção pela palavra “laranjal”.
Em paralelo a isso, cabe retornar à questão da disposição das palavras. Mais precisamente, cabe acrescentar que a opção por dispor as palavras em ordem não canônica - lembremo-nos: “De laranjal o Brasil entende”, em vez de “O Brasil entende de laranjal” - manifestava um direcionamento de foco para o que seria o núcleo do complemento verbal - isto é, para o termo “laranjal” -, cuja utilização cômica vinha se destacando nas redes sociais. Desse modo, a entonação expressiva determinou a disposição das palavras.11 11 Nesse sentido, aliás, até mesmo a ausência de ponto final está relacionada à entonação expressiva escolhida. Afinal, não raras vezes, a escrita sem pontuação manifesta-se como indício de comunicação não monitorada e/ou despretensiosa por meio de rede social ou canais de bate-papo.
Em adição ao que já foi dito a respeito da construção do enunciado disposto na Imagem 5, convém registrar a questão da relação valorativa. Para construir o enunciado sem comprometer de todo sua identidade - qual seja, a de um perfil jornalístico, tematicamente vinculado ao agronegócio - e sem deixar de manifestar sua relação valorativa com o tema, o falante valeu-se de um meio um tanto criativo: realizou seu enunciado dando à palavra “laranjal” uma entonação expressiva específica. Sendo assim, a relação valorativa do falante com o tema também influenciou a entonação expressiva e, por conseguinte, a escolha e disposição das palavras.
Finalmente, no que tange ao auditório, mais do que identificá-lo como sendo um público presente em redes sociais, é preciso considerar seu peso sócio-hierárquico. Ao que parece, o peso sócio-hierárquico do auditório previsto indicava poucos efeitos negativos - tais como cancelamento de assinatura - e, certamente, mais efeitos positivos - tais como um possível engajamento com o perfil, o que poderia acarretar, inclusive, maior faturamento com publicidade no sítio eletrônico. Com isso, a entonação expressiva que incide sobre a palavra “laranjal” foi influenciada pelo peso sócio-hierárquico do auditório previsto.
A essa altura, diante do que foi dito nessa seção, soa claro que, aqui, mais importante do que encontrar nomes com os quais se possa identificar as diferentes partes do enunciado - p. e., realidade espaçotemporal: Brasil, em fevereiro de 2019; auditório: público de determinada rede social -, convém estar atento para as dinâmicas por trás de cada conceito. E essas dinâmicas, deve-se dizer, revelam o óbvio: a distinção entre parte extraverbal e parte verbal é de ordem puramente teórico-metodológica, não devendo, portanto, ser considerada como registro de uma sequência, aprioristicamente determinada, que se efetiva na construção do enunciado.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente texto, foi explorada a ordem metodológica que Valentin N. Volóchinov propôs, em MFL, para o estudo da língua. Nesse caso, além de observar o vínculo estreito entre os tipos de comunicação - ou, se se quiser, tipos de interação discursiva -, as práticas sociais e as formas específicas de enunciados - ou seja, gêneros discursivos -, foi possível verificar a distinção entre parte verbal e parte extraverbal do enunciado, bem como averiguar, em mais detalhes, o lugar que o autor atribui à entonação expressiva, tomada como sendo a mais plena realização da avaliação social.
Ao fim e ao cabo, tudo leva a crer que, de fato, a ordem metodológica proposta por Volóchinov dá testemunho de que o autor compreendia seu pensamento filosófico-linguístico como contendo implicações para o processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, de tudo o que foi dito, parece justo ressaltar, novamente, duas questões. A primeira questão consiste no fato de que, ao longo de seus escritos, nosso autor não se concentra em discutir o que é específico de um determinado gênero discursivo, mas, sim, o que é constitutivo de qualquer enunciado. A segunda questão consiste no fato de que, ao longo de seus escritos, nosso autor insiste na ideia de que, no enunciado, a avaliação social manifesta-se extraverbalmente - na relação valorativa do falante com o tema - e verbalmente - na entonação expressiva que incide sobre uma palavra, isto é, sobre um elemento lexical específico.
Obviamente, a primeira questão não implica qualquer cruzada teórico-metodológica contra o estudo dos gêneros discursivos. Mais pertinente do que isso, a primeira questão implica assumir que um entendimento mais refinado da construção do enunciado - o que, passando pelos gêneros, abrange desde as práticas sociais até a disposição das palavras - tende a proporcionar ferramentas de alcance mais amplo para o estudo da língua.
Decerto, a segunda questão leva a reconhecer a necessidade de algum rigor terminológico, a fim de que não mencionemos uma “entonação do enunciado”, haja vista que o enunciado é o todo que inclui a parte verbal, onde se encontra a entonação. Mais importante do que isso, porém, a segunda questão implica admitir que, como atestado por Volóchinov e seus confrades, “não existe um enunciado sem avaliação” (Volóchinov, 2018VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322., p. 236).
REFERÊNCIAS
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- BEISER, F. Depois de Hegel: a filosofia alemã de 1840 a 1900. Tradução de Gabriel Ferreira. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2017.
- FARACO, C. A. Bakhtin tem algo a dizer ao ensino de português? In: Webinário ProfLetras UNESP. YouTube: GED - Grupo de Estudos Discursivos, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9_JfmI_085Y&t=4300s Acesso em: 1 mar 2024.
» https://www.youtube.com/watch?v=9_JfmI_085Y&t=4300s - GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023.
- JAKUBINSKIJ, L. Sobre a fala dialogal. Tradução de Dóris de Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. São Paulo: Parábola, 2015.
- MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
- VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 81-322.
- VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146.
- VOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019b. p. 266-305.
- VOLÓCHINOV, V. N. Sobre as fronteiras entre a poética e a linguística. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019c. p. 183-233.
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A poética teórica, também denominada “estilística teórica”, diz respeito ao campo de estudos literários que, na Rússia dos tempos de Volóchinov, concentrava-se na “construção de princípios, conceitos e categorias de análise para a investigação literária” (Gomes, 2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023., p. 93). Esse campo distingue-se da “estilística histórica”, cujo interesse era “investigar, sobretudo, o conceito designado pela expressão ‘estilo de época’” (Gomes, 2023, p. 93).
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Como se sabe, o ensaio “A construção do enunciado” é a segunda parte da série Estilística do discurso literário, que Volóchinov publicou no periódico de popularização científica Estudos da literatura: revista para autoformação. Uma vez que esse texto buscava alcançar um público mais amplo, fica justificado o aumento do tom marxista, marcado, por exemplo, pela aparentemente desnecessária especificação de uma comunicação do setor produtivo e de uma comunicação de negócios. Diga-se, de passagem, que esse aumento do tom marxista aparece, especialmente, no mais frágil texto de Volóchinov, o ensaio “O que é língua/linguagem?”, que abre a sua série Estilística do discurso literário.
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Em determinado momento de MFL, no que parece ser uma imprecisão terminológica, o autor chega a operar esse conceito sob o nome de “comunicação ideológica” (cf. Gomes, 2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023., p. 48-49).
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Convém pontuar que a ideia de “comunicação cotidiana” aparece, explicitamente, apenas a partir de MFL.
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Em virtude de um entendimento instaurado pelo contexto intelectual alemão que vigorou no final do séc. XIX e início do séc. XX, a saber, o entendimento de que era necessário fazer distinção entre “filosofia” e “ciências empíricas” (cf. Beiser, 2017BEISER, F. Depois de Hegel: a filosofia alemã de 1840 a 1900. Tradução de Gabriel Ferreira. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2017.), Volóchinov distingue “comunicação científica” de “comunicação filosófica”. Aqui, abro mão dessa minúcia.
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De fato, o que leva Volóchinov a conceber o auditório como externo à situação - embora ambos integrem a parte extraverbal - não parece rastreável. Todavia, aqui, restrinjo-me à concepção do autor.
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Como se sabe, em PVPP, já se anunciava três componentes da situação (extraverbal): “1) o horizonte espacial comum dos falantes [...]; 2) o conhecimento e a compreensão da situação comum aos dois [falantes]; e finalmente 3) a avaliação comum dessa situação” (Volóchinov, 2019aVOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2019a. p. 109-146., p. 118-119). Como se pode observar, há uma diferença sutil em relação ao que aparece, depois, em CE.
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A esse respeito, pode-se conferir a discussão presente na segunda parte de Gomes (2023GOMES, F. A. Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico. São Paulo: Contexto, 2023.), intitulada “Valentin N. Volóchinov e o discurso reportado: uma querela axiológica”.
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Convém dizer que, no texto de arquivo “Os gêneros do discurso”, de Bakhtin, além da menção à “entonação expressiva” e a uma suposta “entonação de gênero”, tem-se uma brevíssima menção a uma “entonação gramatical” (Bakhtin, 2016, p. 56), que assume as mesmas características do que seria uma “entonação sintática” ou, nos termos de Volóchinov, uma “totalidade típica do enunciado”.
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Em nota complementar presente no ensaio “Sobre as fronteiras entre poética e linguística”, Volóchinov vincula a ideia de “entonação sintática” ao trabalho do filólogo Eduard Sievers [1850-1932]. E, de fato, mesmo um olhar breve para a obra de Sievers parece justificar a vinculação feita por nosso autor. A título de exemplo, em texto publicado em 1912, intitulado “Über ein neues Hilfsmittel philologischer Kritik”, Sievers afirma que dois diferentes elementos se cruzam na melodia das frases individuais empíricas: por um lado, um tom que é natural das palavras, quando consideradas isoladamente; por outro lado, uma melodia que é ideal da frase. Para exemplificar a melodia que é ideal da frase, Sievers menciona os tons decrescentes típicos do final de frases declarativas simples, bem como os tons ascendentes que caracterizam o final de frases interrogativas que não apresentam palavras interrogativas. Ora, considerando esse exemplo, não parece desatino admitir, como Volóchinov, que o trabalho de Sievers é o germe da ideia de “entonação sintática”.
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Nesse sentido, aliás, até mesmo a ausência de ponto final está relacionada à entonação expressiva escolhida. Afinal, não raras vezes, a escrita sem pontuação manifesta-se como indício de comunicação não monitorada e/ou despretensiosa por meio de rede social ou canais de bate-papo.
Editor de Seção:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
23 Fev 2024 -
Aceito
16 Mar 2024