Falar de Maria Marta Furlanetto é uma tarefa paradoxalmente simples e complexa. É extremamente simples dizer que Maria Marta é uma PROFESSORA (com todas essas letras maiúsculas mesmo!); outra coisa é desdobrar tudo o que essas letras maiúsculas representam. Talvez, o melhor é confessar a subdeterminação dos sentidos e fechar a apresentação somente com essa primeira afirmação. Maria Marta Furlanetto é uma PROFESSORA! Simples, elegante e com as bênçãos de Ockham.
Somos, contudo, teimosos. Maria Marta foi parte relevante de nossas vidas como nossa docente e, sorte nossa, colega de aventuras pós-graduadas. Formado, reencontrei-a [Fábio Rauen] como colega de equipe. Zelosa, cuidadosa com seus afazeres, carinhosa com seus colegas. Ainda hoje continuo ter o privilégio de dividir com ela a editoria de Linguagem em (Dis)curso. São quase quarenta anos de partilha de cada faceta dessa vida louca de stricto sensu.
Certa feita, lembro-me de entrar em sua sala na UFSC numa tentativa de encontrar portos mais seguros para minha tese. Como resposta, aquele sorriso enigmático (materno/fraterno) de quem sabia a resposta (ou, pelo menos, o caminho para encontrá-la), mas era eu quem deveria descobri-la. E, num átimo, mão ao lenço impecavelmente adornando seu pescoço, aquele olhar se dirige à estante de livros: “Quem sabe você lê esse”, “Quem sabe aquele”. Uma pilha de livros depois, eis que meu trabalho dava um salto quântico. Talvez seja esse um ingrediente essencial daquelas letras maiúsculas. A resposta sempre esteve naquele sorriso enigmático (ou quem sabe naquele lenço)... O que se passava ali, Marta não me contará, mas os resultados emergiam: éramos instigados a desenvolver todas as nossas potencialidades.
Minha [Andréia Daltoé] história com Maria Marta também é testemunho das letras maiúsculas de que fala Rauen. Lembro que, na primeira aula como sua aluna na Especialização em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa - Unisul, já lhe pedi para me orientar no trabalho final. Depois no Mestrado, o mesmo pedido. Que alegria: vivemos estes dois momentos tão de perto... Mais tarde, seríamos colegas no mesmo Programa, o que me enche de orgulho duplamente.
Tanto nas aulas, quanto nas orientações, sua presença era também ausência, na medida em que Maria Marta sabe sair de cena para dar o espaço necessário para sustentarmos um dizer. Em muitos de seus textos, ela discute teoricamente a questão da autoria e, na prática docente, encoraja-nos para tanto, permitindo-nos “o deslocamento, a inovação, a mudança - o que pode produzir a função autoral e, mais propriamente, o efeito-autor” (2018, p. 269).
Até hoje este desafio é uma questão em minha vida acadêmica, tanto como professora, quanto como orientadora/supervisora. Como possibilitar que, com nossas aulas e orientações, os alunos experienciem, em meio a todas as paráfrases do texto acadêmico, uma prática de escrita que permita gestos de autoria? Que produza efeitos de originalidade? Que suspenda a repetição e permita que o sentido inesperado se faça? Como fazer furo neste mundo da produtividade tomada enquanto quantidade como sempre foi uma preocupação desta autora?
Maria Marta nos ajuda com isso, recuperando o ditado de que “a pressa é inimiga da perfeição”, e nos convida: “Festejemos a slow science, ou seja, a ciência lúcida” (2018, p. 270). E é assim que continua nos provocando, sendo exemplo e nos colocando a trabalho: compromisso, ética e responsabilidade com o que fazemos.
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Enfim, é com grande satisfação que organizamos este dossiê temático para render justa homenagem a essa pessoa tão fundamental em nossa trajetória. Trata-se de uma coletânea de seis textos que representam uma pequena amostra da potência de suas contribuições para os estudos da linguagem.
O primeiro desses textos, de Richarles Souza de Carvalho (Unesc), intitula-se “Argumentum ad antiquinovitatem como estratégia da persuasão nostálgica no discurso publicitário”. Neste estudo, cunhando a noção de argumentum ad antiquinovitatem, Carvalho explora como o discurso publicitário utiliza estratégias persuasivas que evocam simultaneamente a memória e a nostalgia. Revelando como o novo e o antigo se entrelaçam para influenciar o consumidor moderno, o autor argumenta que o discurso publicitário constrói retoricamente, mesclando palavras e imagens, um processo que ele chama de persuasão nostálgica.
O segundo texto, de Alex Sandro Teixeira da Cruz (Unesc/Unisul), intitula-se “Maria Marta Furlanetto e a cronotopia: um passo além de Bakhtin”. Conforme Cruz, Furlanetto (2019) estende a noção de cronotopia para além da literatura romanesca, permitindo mobilizá-la em campos outros como a argumentação em tribunais. Cruz rememora sua tese, orientada por Maria Marta, na qual essa concepção estendida foi essencial para observar como as perspectivas enunciativas dos oradores tendem a evidenciar intercorrências espaçotemporais que os inspiram e lhes dão sustentação.
O terceiro texto, de Andréia da Silva Daltoé (Unisul), intitula-se “Da teatralização do discurso político à política do performativo”. Profundamente grata pelas contribuições de sua orientadora, Daltoé revisita seus escritos sobre o que havia chamado, em seu mestrado, de “teatralização do discurso político”, enquanto analisava entrevistas com candidatos ao pleito eleitoral antes e depois das eleições de 2000. Em seguida, reconhecendo os fundamentos da dissertação para seu processo acadêmico, Daltoé recupera sua tese sobre as metáforas de Lula, agora na UFRGS, e busca compreender o discurso político que organizou o governo de Jair Bolsonaro. Nesse percurso que vai da teatralização do discurso político à contribuição de Pêcheux sobre a política do performativo, Daltoé analisa como a relação entre política e teatro muda em seu percurso de pesquisa, ao mesmo tempo em que revela sua potência para pensar o funcionamento do político.
O quarto texto, “Pesquisa como ato ético e político: discurso e ensino e aprendizagem de línguas em linguística aplicada” conta com a autoria de Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC). Rodrigues discute a relação entre pesquisa em discurso e ensino de línguas, destacando a ética e a política envolvidas. Ela mostra como suas investigações foram inspiradas por questões práticas na educação linguística, especialmente no ensino de produção textual. “Em um excedente de visão do sujeito”, Rosângela recupera sua dissertação de mestrado para reconhecer que sua pesquisa sobre a heterogeneidade enunciativa no discurso literário em contos e crônicas deriva de inquietações de sua prática pedagógica. A autora se refere ao lugar do texto no componente curricular Língua Portuguesa para o ensino e a aprendizagem de práticas de linguagem, notadamente, a produção textual.
Vinicius Valença Ribeiro (IFSE) apresenta o quinto texto: “Autoria e estilo em diários de leituras de estudantes do Ensino Médio”. Influenciado por teorias discursivas de autores como Furlanetto e Bakhtin, seu estudo ilustra como esses diários refletem estilos menos convencionais. Para Ribeiro, a experiência com esses diários parece favorecer enunciados geralmente à margem da ordem do ensino convencional de língua e do discurso pedagógico instituído.
O sexto texto do dossiê, intitulado “Ensino Fundamental de 9 Anos: um olhar discursivo sobre a invisibilidade na escola”, conta com a autoria de Maria Sirlene Pereira Schlickmann (Unisul). Schlickmann analisa discursivamente a política do Ensino Fundamental de 9 anos, explorando seu potencial transformador. Mediante uma abordagem dialética, seu estudo contribui para o debate sobre a organização pedagógica nos anos iniciais. Seus achados sugerem que a Lei 11.274/2006 e as orientações pedagógicas dela decorrentes são potentes para superar a invisibilidade das crianças e para reconfigurar a escola, desde que sejam incorporadas pelos sujeitos (professores/equipe pedagógica) e materializadas na práxis.
Em suma, este dossiê não apenas celebra a contribuição acadêmica de Maria Marta Furlanetto; mas, sobretudo, destaca a diversidade e a profundidade dos estudos em Linguística Aplicada e Análise do Discurso que ela inspirou ao longo de sua carreira.
Seguem votos de leituras inspiradoras.
REFERÊNCIAS
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024