Open-access Conselheiros Tutelares: Um estudo acerca de suas representações e de suas práticas

Child Protection Counselors: A survey on their representatios and practices

Resumo:

O texto traz dados acerca das representações dos conselheiros tutelares do estado do Rio de Janeiro. Em 2006, 226 conselheiros responderam a questionários e 11 foram entrevistados; em 2010, 10 conselheiros foram entrevistados. Os resultados mostram e discutem discrepâncias entre as propostas do Estatuto da Criança e do Adolescente e as representações dos conselheiros que participaram dos trabalhos, sobretudo no que diz respeito ao lugar da família enquanto responsável pela garantia de direitos de crianças e adolescentes.

Palavras-chave: direitos da criança; Conselho Tutelar; representações sociais

Abstract:

This text provides data about social representations of Child Protection Counselors. In 2006, 226 counselors answered to a questionnaire and 11 were interviewed; in 2010, another 10 other were interviewed. The results show and discusses discrepancies between the proposals of the Statute of Children and Adolescents and the representations of the directors in charge, especially when regarding the family as responsible for the rights of children and adolescents.

Keywords: children rights; Child Protection Counselors; social representations

São inúmeras as mudanças buscadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90); elas abarcam uma concepção inovada da infância e da adolescência e uma forma outra, sem equivalente na história brasileira, de fazer política pública, pautada no diálogo entre governo e sociedade civil. Muito se tem escrito acerca dos sucessos e insucessos dos resultados dessas propostas. Argumenta-se, grosso modo, que a maioria das inovações do Estatuto é ainda mera intenção, mesmo após seus 20 anos de vigência. Não sem razão, as análises mais relevantes argumentam que os suportes institucionais, imprescindíveis para assegurar os direitos de crianças e adolescentes, ainda são insuficientes ou ineficazes (Gonçalves e Garcia, 2007).

É certo que há muito a aprimorar no que diz respeito à disponibilidade de recursos institucionais. Uma outra questão, no entanto, permanece a nosso ver pouco tratada, embora igualmente relevante. Ela diz respeito aos novos atores sociais postos em cena pela Estatuto: os conselheiros de direitos e os conselheiros tutelares. O presente texto deve ser entendido como uma tentativa de enfrentar essa questão, analisando o modo como os conselheiros tutelares têm ocupado o lugar que lhes é destinado pela lei.

Alguns trabalhos têm realizado levantamento de dados que possam, captando os resultados dos trabalhos conduzidos nos Conselhos Tutelares, dar conta da assistência prestada ali: quantas crianças, adolescentes e famílias recorrem a essa organização, quais direitos reivindicam, que respostas lhes são oferecidas. O texto que trazemos aqui trabalha com uma perspectiva diversa. A nós importa, principalmente, captar aquilo que habita as concepções dos conselheiros: como eles compreendem essa demanda, como interagem com a clientela, como interpretam os direitos e como lêem sua própria função. Neste sentido, não trabalhamos com dados objetivos, mas com as representações que regem as decisões tomadas no cotidiano do funcionamento dos conselhos tutelares.

Essa linha de análise parte de um pressuposto: uma transformação substantiva como a proposta pelo Estatuto requer mudança de mentalidades, sobretudo entre aqueles que se colocam como operadores centrais do processo. A questão que o texto se propõe a enfrentar pode então traduzir-se em uma pergunta: quais concepções de infância, adolescência, direitos e política pública circulam entre os conselheiros tutelares? E ainda, principalmente: como o conselheiro entende a parceria com a família, instituição que a Constituição1 e o Estatuto2 nomeiam como a primeira responsável pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes?

Uma palavra acerca do lugar da família no paradigma legal

A família é uma instituição que tem papel vital na proteção e transmissão do capital social e cultural. Ao inserir o indivíduo na ordem social, imprime sentido simbólico à vida e constitui o sujeito, estabelecendo as bases para sua inserção na cultura e constituindo-se como um dos pilares dos processos de filiação. Desde a Idade Média, a instituição familiar exerce a regulação social e responde por processos próprios à sociabilidade primária, assumindo a responsabilidade pela proteção próxima dos sujeitos (Castel, 2000).

Quando recorre à expressão sociabilidade primária,Castel (2000) quer firmar uma relação de oposição e complementaridade às formas de sociabilidade secundária, definidas como “a participação em grupos, supondo uma especialização das atividades e das mediações institucionais” (Castel, 2000, p. 48). No modelo por ele proposto, a emergência da assistência especializada, ou secundária, conecta-se diretamente às falhas na assistência não especializada, ou primária; o sistema de assistência social estruturado ao longo dos últimos séculos é, portanto, análogo à família, opera sobre a mesma lógica da proteção e visa assegurar a filiação onde a família não foi capaz de provê-la; para tanto, a assistência soma à proteção os dispositivos de vigilância e controle, necessários para que as falhas da família possam ser detectadas e corrigidas. Essa polaridade do sistema socioassistencial, sempre articulado entre a proteção e a vigilância, é o pano de fundo da presente discussão.

A longevidade da família, afirmada por Castel (2000) e inúmeros outros autores, tem sido atribuída à sua enorme capacidade de auscultar e atender a demandas. Como afirma Sarti (2004, p. 122), “a família é ao mesmo tempo autorreferida (...) e permanentemente influenciada pelo mundo exterior”. Ela pode ser entendida como uma janela do sujeito para o mundo, uma via de ressonância entre os espaços público e privado que produz efeitos sobre ambos (Scheinvar, 2006). Essas referências reúnem os elementos que tanto permitem afirmar a plasticidade da família enquanto instituição quanto explicar sua enorme capacidade de adaptação às transformações externas, responsável ao menos em parte pela sua longevidade (Sousa e Peres, 2002); são esses processos de contínua mudança que permitiriam compreender as múltiplas formas que a família assume no presente, organizando-se ora nos moldes higiênicos ora segundo modos de funcionamento mais afins às exigências postas pela história de vida e pelas demandas de seus membros. No Brasil, Borges (2006, p. 162) mostra, com base em dados censitários, que a família brasileira tem cada vez mais se estruturado como família monogâmica, situando a mãe como principal provedora; nas palavras da autora, “entre 1995 e 2004 caiu de 58,9% para 49,9% a contribuição do chefe ou pessoa de referência do sexo masculino e, acompanhando o aumento do número de famílias com chefia feminina, as chefes mulheres aumentaram a sua contribuição para a massa de rendimentos das famílias metropolitanas de 11,3% para 16,9%”. Em outros termos, falar em plasticidade da instituição familiar é reconhecer a família como um complexo sistema que articula, no interior, o conjunto de demandas de seus integrantes e que se submete, ao mesmo tempo, aos reclamos de vigilância e controle que lhe chegam do exterior, resultando daí suas múltiplas formas de organização. A hegemonia está no modelo ideal, que no Brasil responde ao Higienismo, mais que nas formas reais de funcionamento que assume.

O reconhecimento da família como instituição que faz o diálogo entre o público e o privado colou a ela um sentido privilegiado, tornando-a sujeito e objeto de governo. O higienismo, surgido na França dos finais do século XIX, forjou o modelo de família nuclear e tomou-o como pilar da filantropia (Donzelot, 1986). Apenas para retomar aquilo que é central para a presente discussão, lembramos que o Higienismo rege-se por expectativas precisas quanto às formas de funcionamento dos indivíduos: normatiza suas condutas, designa o que é bom e saudável para a vida familiar e com isso penetra a vida dos sujeitos e das famílias. A filantropia completa esse processo quando substitui a assistência caritativa pelo conselho técnico que guia a família na direção do modelo de família nuclear. Trata-se, portanto, de um desenho de regulação (Foucault, 2004).

O higienismo chegou ao Brasil no início do século XIX (Freire Costa, 2003) e teve seu auge na primeira metade do século XX, quando influenciou fortemente os primeiros Códigos de Menores (Rizzini, 2008). Entre nós, o Higienismo aliou-se a matrizes assistencialistas mais tradicionais, caracterizadas por auxílios emergentes, paliativos e superficiais, terminando por constituir políticas sociais descaracterizadas, sem um projeto político claro (Vasconcelos e Morgado, 2005). Segundo Sposati et al. (2002), ao longo de quase todo o século XX as políticas sociais brasileiras foram dominadas pela intenção de calar conflitos e perpetuar relações sociais de dominação e exclusão; nas palavras de Sheinvar (2006), elas primam pela individualização, tratando cada caso como único e esgotado em si mesmo, sem propiciar recursos para reverter as condições que o produziram.

Na análise de Castel (2000), os dispositivos de vigilância e controle que sustentam esses modelos de política pública fortaleceram-se na sociedade pós-salarial. Também para ele, o assistencialismo e o higienismo distanciam-se daquilo que se poderia qualificar como política de família se, por política, entendermos um conjunto de ações deliberadas e coerentes, assumidas pelo Estado, no intuito de produzir impactos positivos sobre a família e o social. Para superar esse modelo e instituir os laços de filiação, que se estruturam em primeiro plano a partir da unidade familiar, seria necessário que as demandas da família encontrassem eco nas instituições públicas e no Estado, único modo de promover a inserção social dos sujeitos (Castel, 2000).

Quando a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente pregam a infância e a adolescência como grupos etários postos sob os cuidados da família, da sociedade e do Estado3, apontam para uma co-responsabilidade que responde (em tese) ao desenho proposto por Castel (2000). Chamados a integrar o conjunto de dispositivos sociais capazes de promover a filiação, sociedade e Estado fazem-se representar nos Conselhos de Direitos e devem agir emprestando suporte à família; os Conselhos Tutelares, por sua vez, têm a missão de promover o direito onde ele não é atendido e resgatá-lo, quando violado.

No que diz respeito mais especificamente aos Conselhos Tutelares, sua característica central faz com que seus integrantes sejam postos em contato, em primeira mão, com as demandas pelo atendimento ou ressarcimento do direito. O conselheiro recebe os familiares, as crianças ou os adolescentes que buscam fazer vigorar o direito e aplica em primeira instância as medidas definidas pela lei. Para tanto, ele é demandado a acolher a questão apresentada, a realizar um diagnóstico situacional das urgências e prioridades nelas contidas e a decidir – dentre o elenco de medidas aplicáveis – quais as mais adequadas, à luz dos recursos disponíveis no território em que atua. O modo como cada conselheiro representa a demanda e o direito a ela vinculado constitui, por isso, um ponto nevrálgico do processo de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Neste sentido é que afirmamos que o conselheiro tutelar é a face visível do Estatuto e seu primeiro intérprete para grandes segmentos da população: no complexo processo que faz viger o Estatuto, o conselheiro tutelar faz a política tornar-se uma prática.

O ato de aplicar a medida requer um sem número de interpretações; o direito, anunciado em linhas gerais, deverá articular-se ao caso concreto, revelar seus desvãos, submeter-se a um crivo que avalia erros e acertos – perigosa aproximação da vigilância. Impossível presumir que, sob o impacto da demanda e sob a pressão da urgência das decisões, o conselheiro não se deixe guiar pelo modo como representa o direito, as instituições e seu próprio fazer profissional. Ele rege-se, como todos os sujeitos, pelas suas próprias representações.

Quando nos referimos à representação da demanda e à representação do direito, fazemos alusão ao conceito de representações sociais, tal como formulado por Moscovici (1978). Extraídas do conjunto de valores compartilhados e informadas também pela experiência imediata, as representações sociais comportam e produzem a diversidade cultural, assim como sustentam o conjunto de crenças que reproduz a cultura e alimenta a tradição. Como lembra Jodelet (2001), a representação social opera como guia de ação que interfere e dirige decisões e atos no espaço social.

Tomando esses pressupostos como referência, parece lícito supor que, no dia-a-dia do Conselho Tutelar, a distância entre aquilo que o Estatuto prega como tese – a interlocução entre família, sociedade e Estado – e a realidade – a demanda concreta pelo direito negado ou violado e as formas de ressarci-lo – seja preenchida pelo conjunto de crenças dos conselheiros. Nessa linha, a política social, na prática, sofreria forte impacto das representações desses atores sociais, o que justifica a presente análise. Essa a questão que nos propusemos a investigar, colhendo dados de campo que agora permitem discutir as representações de família entre os conselheiros tutelares do Estado do Rio de Janeiro, e seus reflexos na prática de tratamento da infância, da adolescência e da família.

Metodologia

O projeto Justiça para a criança: limites e possibilidades de ação dos conselheiros tutelares visava investigar as representações sociais dos conselheiros tutelares do Estado do Rio de Janeiro. Numa primeira fase do trabalho, foram remetidos questionários, por via postal, a todos os 112 Conselhos Tutelares do Estado do Rio de Janeiro; considerando que cada Conselho é integrado por 5 membros, o universo da pesquisa compunha-se de 560 sujeitos. Responderam o instrumento 226 Conselheiros Tutelares, numa taxa de retorno de 40,3%, pouco usual em investigações do gênero; atribuímos a alta taxa de devolução ao apoio expresso da Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio de Janeiro (ACTERJ) e do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (CEDCA).

O questionário era estruturado, composto por 39 questões. Algumas delas apresentavam uma afirmação sobre a qual o conselheiro era solicitado a manifestar discordância ou concordância e foram apresentadas na forma de Escala Likert da qual foi suprimida a opção neutra; outras questões apresentavam situações que deveriam ser objeto de priorização, expressa através de pontos (foram usadas escalas de 1 a 5 ou de 5 a 10 , dependendo da situação apresentada). O questionário trazia ainda um jogo de palavras, onde o conselheiro era convidado a manifestar-se de modo livre e conciso sobre temas previamente definidos.

As entrevistas contaram com um roteiro construído a partir das principais questões identificadas na análise das respostas ao questionário; o roteiro de entrevista abordava temas que mereceriam esclarecimento ou que era de interesse aprofundar.

O presente trabalho analisa 12 questões, parte do jogo de palavras e vale-se ainda de material coletado em 11 entrevistas semi-estruturadas, aplicadas na segunda fase do trabalho, bem como de outras 10 entrevistas com o mesmo roteiro, realizadas 4 anos mais tarde, em 2010. Os dados quantitativos foram analisados através do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS). O jogo de palavras e as entrevistas foram objetos de categorização.

Resultados quantitativos

Dos 226 conselheiros tutelares que responderam ao questionário, a maioria (62,8%) é do sexo feminino; 31,0% são homens e 6,2% não declararam o sexo. A faixa etária varia entre 21 e 80 anos, com maior concentração entre 41 a 45 (17,0%), 45 a 50 (17,0%) e 31 a 35 anos (15,0%). No total, 58,6% têm idade superior a 35 anos. Quanto ao perfil de escolarização, 49,3% dos conselheiros tem nível superior, 44,9% ensino médio e 5,8% ensino fundamental.

No que diz respeito ao trabalho junto a crianças e adolescentes anterior à função de conselheiro tutelar, exigência comum para o exercício do cargo, note-se (Gráfico 1) que cerca de 1/3 dos entrevistados (33,6%) está na área há pelo menos 10 anos, tempo que pode chegar a incorporar o trabalho sob a vigência do antigo Código de Menores. Esse dado ganha relevo quando cotejado com a avaliação da importância dessa experiência para o adequado exercício da função de conselheiro, afirmada por 91,8% dos respondentes (Gráfico 2). Mesmo quando comparada a fatores como capacitação profissional, formação superior, trabalho comunitário ou vivência pessoal, essa experiência é o item mais valorizado (Gráfico 3).

Gráfico 1
Tempo de Experiência prévia de trabalho na área da Infância
Gráfico 2
Grau de concordância quanto à importância da experiência prévia para o exercício da função de Conselheiro Tutelar
Gráfico 3
O que é mais importante para ser um bom conselheiro tutelar

Outro subconjunto de questões visava avaliar quais, na percepção dos conselheiros tutelares, seriam os principais violadores dos direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.4 Desse subconjunto, sobreleva o elevado índice de respostas (54,3%) que atribui à família o lugar de principal agente violador dos direitos da criança. O Estado aparece com 23,3%, seguido pela sociedade (17,1%) e pela própria criança e/ou adolescente (5,2%) (Gráfico 4). Essa pontuação é elemento central na presente análise.

Gráfico 4
O agente que mais viola os direitos da Criança e do Adolescente

Os dados apresentados no Gráfico 5 comparam duas linhas de questões: de um lado, as impressões do conselheiro acerca do direito mais comumente reclamado; de outro, a importância que ele próprio atribui a cada área do direito, dentre as cinco mencionadas pelo Estatuto. Na percepção dos respondentes, a convivência familiar e comunitária é o segundo direito mais violado (pontuação média de 2,49) e o segundo em importância para a criança e o adolescente (2,10).

Gráfico 5
Comparação entre a percepção da demanda e a importância atribuída a cada área do direito (1 = mais frequente e mais importante)

No Jogo de Palavras, as expressões relacionadas ao tema “família” mostram que, para os entrevistados, essa instituição ocupa lugar central na formação da criança e do adolescente. A Tabela 1 indica as categorias, seguidas das respectivas incidências.

Tabela 1
Jogo de Palavras

O último subconjunto de dados apresentados aqui diz respeito à responsabilidade dos atores sociais pela proteção dos direitos da criança e do adolescente e à avaliação dos conselheiros quanto à qualidade dos recursos disponíveis para o atendimento a esses direitos. No que diz respeito à responsabilidade dos atores, foi apresentada uma relação de instituições e, para cada uma delas, solicitada atribuição de uma nota na escala de 0 a 10. Como pode ser verificado no Gráfico 6, o conselheiro vê a si próprio como o principal responsável dentre todos os atores enumerados, com média final de 8,9; seguem-se a Justiça para a Infância e a Adolescência (8,3), a família (8,1), o governo (7,2) e a sociedade (6,8). Numa questão de conteúdo correlato, os conselheiros foram convidados a avaliar a eficácia de seu próprio trabalho, positivamente avaliado em 89,8% dos casos, conforme dados apresentados no Gráfico 7.

Gráfico 6
Responsabilidade pela proteção dos direitos da Criança e do Adolescente
Gráfico 7
Avaliação do próprio trabalho

Solicitados a atribuir uma nota aos recursos institucionais disponíveis para o atendimento dos direitos em seus municípios, os conselheiros mostram considerá-los insuficientes. Em particular, os recursos destinados ao atendimento ao direito à convivência familiar e comunitária atingem a média de 5,29, numa escala de 0 a 10 (Tabela 2).

Tabela 2
Avaliação dos recursos municipais para o atendimento dos direitos

Na retaguarda – ou seja, nas instituições públicas e privadas que asseguram o direito em primeira instância – reside de fato grande parte das dificuldades de implantação do Estatuto. A literatura tem sido unânime nessa avaliação ao longo dos últimos anos (Carvalho e Almeida, 2003; Vasconcelos e Morgado, 2005; Scheinvar, 2006; Gonçalves e Garcia, 2007) e os próprios Conselheiros Tutelares queixam-se, com freqüência e razão, da escassez de recursos para encaminhamento: faltam programas e faltam vagas nos programas. Os dados colhidos no campo mostram, além disso, com clareza, que a retaguarda é avaliada como escassa e ineficaz em todas as áreas.

Discussão dos resultados junto aos Conselheiros Tutelares

Os dados apresentados no tópico anterior sugeriam algumas linhas de análise. Destacamos aqui que a quase totalidade dos entrevistados reconhece a experiência, não a formação, como o fator que possibilita o melhor desempenho da atribuição de conselheiro e que a grande maioria considera que presta um serviço de qualidade, a despeito das conhecidas deficiências de recursos institucionais.

Do ponto de vista do conteúdo do trabalho cotidiano, as respostas deixam entrever a centralidade do tema da família: é com o direito à convivência familiar que eles mais comumente se vêem envolvidos, é a família a principal violadora dos direitos mas é também a família a instituição basilar, qualificada como fundamental no cenário de defesa dos direitos. Apesar de reconhecerem a família como base, no entanto, eles se afirmam como os principais responsáveis por assegurar os direitos da infância. Esses aspectos permitem desdobrar um outro conjunto de questões. Sem poder contar com a família, nem tampouco com a retaguarda de serviços, o que sustentaria a avaliação positiva que eles fazem de si mesmos? Se reconhecem a família como central, como operam diante dela, tida como principal violadora? Quais razões levam os conselheiros a afirmar a centralidade da família e ao mesmo tempo apresentarem-se como os principais defensores de direitos dos seus filhos? A que modelo de família e de política suas concepções remetem? Esse conjunto de indagações foi discutido junto aos conselheiros, nas duas séries de entrevistas cujos resultados apresentamos e discutimos a seguir.

Perspectivas de transformação e limites de mudança: os novos atores sociais

Por que afirmar a centralidade da família quando o direito à vida é nomeado pelos conselheiros como o mais importante? Retomamos a distinção entre zoé e bíos5 para afirmar que a concepção que embasa o direito à vida como fundamental, entre os conselheiros entrevistados, está conectada mais estritamente à vida biológica.

Ah! Direito ao nascimento [...] A criança nasceu né, tem o direito a nascer, desde o momento que foi a concepção, eu acho que tem que ser preservado o direito de nascer e aí, a nascer, até formar uma criança (2006, Beth, 48 anos).

Por que é mais importante? Ué... porque se a criança não está viva, nem pode falar de outros direitos... ela precisa estar viva, né, para então a gente poder trabalhar os direitos, pra gente buscar os outros direitos... (2010, Laura, 30 anos).

Essa interpretação pode ser atestada também, por contraste, na fala dos conselheiros que defendem a primazia do direito à convivência familiar e comunitária:

Olha, eu entendo o direito à vida e saúde quando você tem condições [...] de ter, primeiro, o espaço da sua família..., né, você ter direito a estar com a sua família [...], a você viver a experiência de família, né, eu vejo isso como um direito à vida (2006, Carmem, 42 anos).

Mas a vida depende da família, né? Não é só porque um bebê nem vai sobreviver sem ninguém cuidar dele [...] é porque a criancinha só vai ser gente grande se tiver alguém ensinando ela a ser gente grande, virar gente grande (2010, Ana, 42 anos).

Quando afirma o direito à vida e à saúde, o Estatuto o toma em seu sentido ampliado, expandindo-o para além do biológico; a leitura do art. 7º 6 indica, com efeito, que vida e saúde representam uma alavanca para a cidadania, visto que a existência da criança está ancorada na vida biológica, mas alcança o desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência. O art. 7º fala, portanto, da existência simbólica e política do sujeito, um sentido que não comparece nos pronunciamentos dos entrevistados. Por isso é que entendemos ser possível falar da centralidade da instituição familiar do ponto de vista dos conselheiros, pois é nela que eles fazem repousar os mecanismos para efetivar direitos e cidadania de crianças e adolescentes.

Não é óbvia, no entanto, a representação da instituição familiar trazida pelos conselheiros. Já vimos que a família é apontada como a instituição mais importante na promoção dos direitos da criança e do adolescente; ao mesmo tempo, ela é nomeada como a principal violadora desses mesmos direitos; ademais, o Conselho Tutelar é descrito como a principal instituição responsável pelos direitos. Como compreender essa conjunção de representações? Essa a questão que nos propomos agora a discutir.

Como a família é concebida? Em 2006, os conselheiros foram convidados a discorrer sobre sua importância:

Convivência familiar e comunitária eu até já coloquei um pouquinho na outra resposta, né. É... eu vejo a dificuldade que as famílias estão encontrando pra manter essa convivência. Porque hoje em dia a gente sabe que a mulher não é mais a dona de casa, né, ela é a dona, mas ela também é que provê o sustento da família. Então a mãe, né, a mulher hoje em dia ficou muito afastada desse convívio familiar com os filhos, o que dificulta muito a integração familiar (2006, Carmem, 42 anos).

... o que eu mais comento hoje é que o problema dos adolescentes é a família falida. Pra mim a família falida é que causa isso tudo. [...] É um detalhe interessante para se resolver. Tem que sentar. É muita conversa. Pra acertar esse Brasil, só acertando esse lado da família falida. Da família vem a sociedade, vem a pessoa própria, né? (2006, Bruno, 37 anos).

Em 2010, eles foram instados a se pronunciar mais detidamente sobre o lugar da mãe e do pai, as responsabilidades de cada um e de todos, na educação dos filhos:

Pra mim, a mãe precisa mesmo dar uma dedicação maior. Isso até pode ser meio antigo, né, meio velho, mas se a mãe não tá ali na hora que a criança precisa, pra um dever de escola, com as más companhias, quem é que vai ver isso, quem vai fazer isso? Acho que tá difícil porque a mulher tem que trabalhar, né? Eu mesma não tô aqui? Mas precisa dar um jeito de ser as duas coisas... Pra isso precisa também da ajuda do homem, do pai, fazer sozinha é muito mais difícil... E isso tá cada vez mais comum... é um problema, mesmo (2010, Carolina, 45 anos).

O modelo de família perseguido corresponde, nessas descrições, ao desenho higiênico que, como sabemos, trouxe a exigência da indissolubilidade dos laços conjugais e designou à mulher o lugar de cuidadora e ao homem, a função de provedor. Não obstante o fato de que a organização familiar haja se adequado a novas exigências, como a participação feminina no mundo do trabalho, e a despeito de que a dissolução do matrimônio seja hoje social e legalmente aceita, vemos que a visão da família nuclear segue habitando as mentalidades e rege as intervenções dos conselheiros. Nesse contexto, a violação dos direitos de crianças e adolescentes parece decorrer, na visão dos entrevistados, da dissolução da família:

... que isso acontece hoje né, a gente tá vivendo essa realidade, infelizmente, não é uma família, hoje não é pai, mãe, bonitinho né, mesmo que lá tenha violência doméstica em último grau, mas que a sociedade anterior cobrava isso né. O pai e a mãe... não havia desquite, não havia divórcio, hoje não, a mãe ela com os filhos é família, o pai com os filhos é família. É a base de tudo a família. Tudo. E hoje um dos maiores violadores do direito da criança, o que eu percebo, no meu município, 90%, 95% é a família. Depois que vem o Estado (2006, Beth, 48 anos).

Mas tem mesmo, muita violência dentro de casa. A gente vê toda hora no Conselho, é surra, é abuso... Você também vê no jornal, toda hora, né? [...] Acho que tem a ver sim, porque olha só: se a criança cresce organizada, se a casa tá organizada... organizada assim eu digo, alguém que tá ali cuidando dela, prestando atenção no crescimento dela... então, aí ela mesma vai se proteger, porque já aprendeu isso dentro de casa, entende? Aí ela mesma vai poder cuidar de si quando cresce, e a gente não ia ver tanto direito desrespeitado. Então, tá tudo ligado. Eu acho mesmo que por isso é que a família é importante, começa em casa... (2010, João, 52 anos).

Desse conjunto de pronunciamentos é que será possível deduzir as razões que justificam a percepção de que o Conselho Tutelar é o guardião-mor dos direitos: a família é tomada como fundamental, como a base de tudo; mas ela falha naquela que é sua missão primordial e por isso o conselheiro – com a autoridade que lhe é designada pelo Estatuto – entra em cena para ocupar seu lugar. Ele é então erigido à condição de principal responsável pela criança em decorrência de um suposto fracasso familiar.

É possível proteger direitos de crianças e adolescentes sem (ou eventualmente contra) a família e sem recursos providos pelo Estado? Sim, alegam os conselheiros. Já vimos que eles consideram que prestam um bom trabalho; já vimos que a qualidade do serviço ofertado nos Conselhos Tutelares faz frente, inclusive, à escassez de recursos públicos. Como mostram os entrevistados,

... se tem uma criança que está desabrigada [...] e a gente não tem para onde levar essa criança, porque não tem um abrigo. Aí a gente procura alguém da família, mais próximo da família e deixa a criança provisoriamente. O certo, o ideal seria fazer isso num abrigo. Até seria mais fácil para a gente, porque como Conselheiro, sair às vezes a noite, para fazer uma diligência dessa, e até você encontrar uma família que mora lá não sei aonde, fica naquela... então, aí, se tivesse um abrigo ficaria muito mais fácil (2006, Sandra, 41 anos).

... eu fico muito feliz, tem vários casos que dão certo... eu recebi uma família que a mãe tava tentando vaga numa escola há um ano, parece brincadeira, há um ano, e ela não conhecia o Conselho Tutelar, né? ... aí foi lá, conversou com a gente, eu dei a requisição para a CRE [Coordenadoria Regional de Educação], na outra semana as crianças estavam estudando, então quer dizer, isso não tem preço... isso é que faz motivar (2006, Joana, 26 anos).

ainda não tem, ainda não tem... parece que a gente sempre enxuga gelo. Porque pra cada abrigo construído precisava mais dez, parece que o problema cresce mais do que a gente consegue correr atrás... aí a gente acaba se virando com o que tem, entendeu? Fazendo o que pode, o melhor pra criança, com aquilo que tem. Até por isso é que eu acho que o conselheiro é um herói, entendeu? Porque ele faz uma grande coisa, mesmo quando a família não tá ali, cumprindo sua parte... correndo atrás do serviço que não tem, pra proteger a criança... levando até pra casa algumas vezes... eu nunca fiz isso não, não acho certo não... mas tem colega que faz e eu não posso nem criticar porque... vai fazer o que? (2010, Carla, 29 anos)

Essas não são posturas isoladas. Nascimento e Scheinvar (2007) registraram condutas similares adotadas em situação onde a mãe não obteve acesso gratuito à medicação prescrita a sua filha na rede municipal de saúde; ao recorrer ao Conselho Tutelar, essa mãe teve seu pedido encaminhado a uma instituição filantrópica para que, assim, o direito da criança pudesse ser assegurado. Como aqui, o conselheiro adota postura assistencial, se não caritativa, o que descaracteriza o direito e esvazia o cunho político da reivindicação que a demanda carrega.

O que emerge dos fatos descritos acima é uma concepção segundo a qual a família deve prover todos os cuidados; na sua ausência, o conselheiro tutelar ocupa o lugar de guardião, seja recolhendo a criança que precisa, mas não dispõe de um abrigo, seja secundando o legítimo pedido da família por uma vaga na rede escolar, direito constitucional assegurado pelo Estatuto e basilar na formação cidadã. Tudo decorre, na sua representação, de uma família que, por organizar-se fora dos padrões higiênicos, revela-se incapaz de sustentar seu lugar simbólico e prover o direito. Temos aqui uma reprodução de diagnósticos que há anos apontam para essa destituição, sem, contudo, mostrarem-se capazes de enfrentá-la:

Para Borges (2006, p. 164), essa discussão interessaria,

particularmente, às mulheres, vítimas de uma valorização espúria no mercado de trabalho – que usa as suas competências, mas não as remunera dignamente, na maior parte das vezes; na família – onde agrega às históricas funções “do lar”, as de chefe de família sem ter, em contrapartida, a valorização social desses papéis e, finalmente, também nas políticas sociais que, abstraindo a carga de trabalho e de responsabilidade que hoje elas acumulam, vêm lhes delegando as funções de gestoras de dois tipos de transferências públicas: parcos recursos financeiros e os fardos adicionais gerados pelas políticas que, de várias maneiras, acabam levando à desinstitucionalização dos cuidados com os doentes, incapazes, e crianças pequenas, etc (Borges, 2006, p. 164).

Numa demonstração de que, mesmo no afogadilho dos afazeres cotidianos, é possível libertar-se do “aqui e agora” e adotar uma perspectiva teórica ampliada (Fonseca, 2005), registramos o depoimento de uma conselheira entrevistada:

Então eu acho que nesse primeiro momento quem tem que assumir a prioridade é o Estado. Por exemplo, políticas públicas, né? E aí, sim, eu acho que vem a família, né, sendo apoiada por essas políticas e tal, e aí eu acho que ela tem condições de se responsabilizar. E depois a sociedade num acompanhamento dessas políticas, desse trabalho e tal, e uma cobrança, né, da garantia dos direitos da criança, eu vejo mais ou menos por aí (2006, Júlia, 38 anos).

Problematizando a ação do conselheiro

O Estatuto foi promulgado há 20 anos, mas pode ainda ser considerado um instrumento novo: a amplitude das transformações que propõe requer uma mudança significativa no paradigma das políticas públicas voltadas para a infância. Ao anunciar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos sob a responsabilidade conjunta da família, da sociedade e do Estado, a lei indaga tanto a tradição assistencial – pois busca articular direitos e atendê-los por intermédio de políticas cidadãs – quanto o modelo higiênico – visto que abandona suas referências normativas e entende que toda família deverá ser amparada pela máquina pública no exercício de suas funções sociais, através de programas de orientação e auxílio.

Para nos aproximarmos da proposta trazida pelo Estatuto, longe ainda de ser implementada, é necessário, sem dúvida, que as instituições sociais se organizem de modo a responder àquilo que ele carrega de mais inovador: a perspectiva de construção de políticas públicas que se distanciem tanto da lógica assistencial-caritativa quanto dos dispositivos higiênicos que se pautam na vigilância, mais que no direito. Para tanto, carecemos de operadores sociais voltados para apreender, no cotidiano dos sujeitos, nos desvãos do direito e nos relatos levados aos balcões das políticas públicas, onde precisamente a proposta do Estatuto é descumprida.

No curso dos trabalhos de investigação ao longo dos quais foram colhidos os dados aqui discutidos, preocupamo-nos em apresentá-los aos conselheiros tutelares, submetendo a presente análise a seu crivo; a esse conjunto de atores foi dado ouvir as interpretações que oferecemos e apresentar alternativas a elas, algumas das quais efetivamente incorporadas ao presente trabalho. Das discussões travadas, queremos destacar um aspecto fundamental: a leitura dos dados foi inicialmente tomada como uma crítica incontornável ao trabalho do conselheiro; esses temores, acolhidos e tomados como objeto de análise, foram também eles incorporados ao processo de reflexão crítica que desejamos empreender e que só conquista seu propósito quando entendido como tarefa conjunta entre os conselheiros e todos aqueles que empreendem uma análise sobre seu fazer. Por isso, parece vital alertar desde já que a crítica trazida aqui quer encontrar os obstáculos ao Estatuto enquanto projeto político, no propósito de enfrentá-los e superá-los. Os conselheiros tutelares ocupam lugar central nesse processo e nessa condição é que se tornam objetos necessários de estudo.

A análise de Castel (2000), trazida no início do presente texto, sustenta que as formas de solidariedade primária e secundária dialogam entre si e pautam-se na vigilância e no controle. Ao longo da mesma obra, o autor propõe que os laços de solidariedade que constituíram a sociedade salarial têm sido progressivamente esgarçados, pela via da destituição do trabalho, da ascensão da lógica de mercado e pelo esvaziamento da esfera pública, estatal, o que na sociedade pós-salarial tem reforçado a perspectiva da vigilância e impossibilitado os processos de filiação. Em tal contexto, o fortalecimento dos vínculos de filiação estaria na dependência da retomada da ação do Estado, amparando o conjunto de instituições sociais que organizam a solidariedade.

A tese que trazemos aqui é que, ao referir a co-responsabilização da família, da sociedade e do Estado na defesa dos direitos da infância, o Estatuto atende àquela lógica. No entanto, essa forma de solidariedade – onde o Estado é parceiro imperativo – não tem resistido à tradição nacional, habituada a praticar uma política assistencial e caritativa para os desvalidos, nem tampouco aos seguidos anos de desmonte da máquina pública nacional, que sob a égide do bem-estar sempre esteve aquém do necessário e, nos anos neoliberais, eximiu-se de examinar as demandas dos segmentos mais pobres. As iniciativas recentes de valorização dos equipamentos sociais, por exemplo, com a instalação dos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), ainda parecem insuficientes para enfrentar a demanda acumulada ao longo de todas as últimas décadas.

Na lógica do Estatuto, seria desejável que o Conselho Tutelar reafirmasse na família os laços que a organizam, fortalecendo tanto sua ascendência sobre os membros que deve proteger quanto o acesso aos recursos que a fortalecem enquanto instituição de referência. No primeiro caso, a demanda que a família traz ao Conselho Tutelar precisaria ser entendida como a vocalização de um direito que ainda não encontrou a devida assistência; no segundo, seria preciso que a família fosse tomada como instituição para a qual convergem as formas de assistência; articuladas, essas linhas de intervenção poderiam vir a sustentar a co-responsabilização a que se refere o Estatuto. Ao contrário de reafirmar o modelo higiênico de família nuclear, uma intervenção desse teor exige respeito às formas com que cada família tem-se reorganizado internamente de modo a fazer frente às demandas contemporâneas – o trabalho feminino, a presença crescente da mulher à frente da organização familiar, os múltiplos e diversos arranjos familiares –, que não chegam a indagar seu lugar de agentes primários de socialização.

Ao representar a família como a principal fonte de violação do direito, e ao vincular a violação a um suposto desvio do cuidado higiênico, os conselheiros tutelares produzem dois equívocos. Em primeiro lugar, passam a perseguir a crença no modelo higiênico, ignorando que as transformações em curso é que conferem vitalidade e viabilidade à família enquanto instituição; nesse percurso, desautorizam e enfraquecem a família tal como ela se organiza hoje. Além disso, ao eximirem-se de examinar onde as falhas familiares decorrem da ausência das formas de solidariedade secundária, enfraquecem o diagnóstico das ausências nas políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência, deixando de atender a uma atribuição que o Estatuto também lhes endereça: assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente (art. 136, IX). Esses equívocos, articulados entre si, colocam o risco da desfiliação:

Há risco de desfiliação quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é insuficiente para reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção (Castel, 2000, p. 51).

É essa mesma conjugação de equívocos que permite, ademais, compreender a razão que leva o conselheiro tutelar a representar a si próprio como o principal agente responsável pelos direitos assegurados no Estatuto: pois se ele entende que a criança não conta nem com a família nem tampouco com recursos públicos, então a garantia do direito estará dada no desempenho pontual do conselheiro, sobre exigências também pontuais dos sujeitos. Essa interpretação, no entanto, coloca em risco aquilo mesmo que o Estatuto quer garantir: a cidadania de nossas crianças e de nossos adolescentes.

Não é sem razão que Castel (2000: 588) afirma que “o Estado é ainda a instância através da qual uma comunidade moderna se representa e define suas escolhas fundamentais”. Para fazê-lo, será necessário que o conselheiro – aqui tomado com um dos representantes do Estado – encarregue-se de tornar visíveis as demandas pelo direito, requalificando seus titulares e reassegurando o lugar da família como seu reclamante legítimo e primeiro.

A cidadania não poderá ser assegurada se a ação do conselheiro tutelar se caracterizar como pontual e individualizada já que, como vimos, esse é o viés que tipifica as políticas assistenciais tradicionais. Incorrendo nesses equívocos, o conselheiro estaria retrocedendo aos recursos de vigilância e controle que pautaram as políticas assistenciais voltadas para a infância antes que o Estatuto chegasse para anunciar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Incorrendo nesses equívocos, o conselheiro estaria colocando em curso a tutela dos sujeitos – e não, como quer o Estatuto, a tutela dos direitos.

  • 1
    Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
  • 2
    Art. 4° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
  • 3
    Na forma dos já citados art. 227 da Constituição Federal e 4°. da Lei 8069/90.
  • 4
    Convém esclarecer aqui que a expressão agente violador remete àquele que, em tendo a responsabilidade de prover o direito, não o faz. Nos termos legais, podem constituir-se como agentes violadores do direito a família, as entidades civis ou o Estado. A título de exemplo: o direito da criança à escolarização tanto pode ser violado pela família, se esta não matricula o filho sob sua guarda, quanto pelo Estado, se este não provê a escola sem a qual o direito não poderá ser assegurado.
  • 5
    Os gregos “serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo (Agamben, 2004: 9).
  • 6
    Estatuto, art. 7°, caput: A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. (grifos nossos)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2011
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