Open-access Conhecimento de pescadores tradicionais sobre a dinâmica espaço-temporal de recursos naturais na Chapada Diamantina, Bahia

The knowledge of traditional fishermen regarding the spatio-temporal dynamics of natural resources in the Chapada Diamantina region, state of Bahia

Resumos

O conhecimento ecológico tradicional de uma população de pescadores da APA de Marimbus-Iraquara, foi estudado visando obter informações relacionadas à percepção local sobre distribuição espacial e sazonal dos recursos naturais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas livres e semi-estruturadas, observações diretas, turnês guiadas e coletas de material zoológico. Os resultados sugerem a existência de um amplo conhecimento ecológico tradicional sobre as espécies e os ecossistemas locais, especialmente no que se refere à ictiofauna.

Chapada Diamantina; conhecimento tradicional; etnoecologia


This paper examines the traditional ecological knowledge of a community of fishermen that live in the APA Marimbus-Iraquara (Conservation Unit). The study aimed at collecting information regarding mainly local perception about the spatial and seasonal distribution of natural resources. Data were collected using open and semi-structured interviews, field observation and guided tours. Also, zoological and botanical materials were collected. The study results indicate the existence of a broad local ecological knowledge about species and ecosystems, particularly in relation to fish species.

conservation unit; traditional knowledge; ethnoecology


ARTIGOS

Conhecimento de pescadores tradicionais sobre a dinâmica espaço-temporal de recursos naturais na Chapada Diamantina, Bahia

The knowledge of traditional fishermen regarding the spatio-temporal dynamics of natural resources in the Chapada Diamantina region, state of Bahia

Flávia de Barros Prado MouraI, 1; José Geraldo Wanderley MarquesII

IMuseu de História Natural, Universidade Federal de Alagoas, Rua Aristeu de Andrade, 452, Farol, CEP 57051-090, Maceió, AL, Brasil

IIDepartamento de Biologia, Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Av. Universitária, s/n, Km 03, BR 116.Campus Universitário, CEP 44031-460, Feira de Santana, BA, Brasil

RESUMO

O conhecimento ecológico tradicional de uma população de pescadores da APA de Marimbus-Iraquara, foi estudado visando obter informações relacionadas à percepção local sobre distribuição espacial e sazonal dos recursos naturais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas livres e semi-estruturadas, observações diretas, turnês guiadas e coletas de material zoológico. Os resultados sugerem a existência de um amplo conhecimento ecológico tradicional sobre as espécies e os ecossistemas locais, especialmente no que se refere à ictiofauna.

Palavras-chave: Chapada Diamantina; conhecimento tradicional; etnoecologia.

ABSTRACT

This paper examines the traditional ecological knowledge of a community of fishermen that live in the APA Marimbus-Iraquara (Conservation Unit). The study aimed at collecting information regarding mainly local perception about the spatial and seasonal distribution of natural resources. Data were collected using open and semi-structured interviews, field observation and guided tours. Also, zoological and botanical materials were collected. The study results indicate the existence of a broad local ecological knowledge about species and ecosystems, particularly in relation to fish species.

Keywords: conservation unit; traditional knowledge; ethnoecology.

Introdução

O conhecimento ecológico/biológico sob domínio intelectual de populações tradicionais tem sido estudado com diversas abordagens, revelando sistemas de classificação de animais e plantas (Jensen 1985, Berlin 1992, Mourão & Nordi 2002, Montenegro 2002), estratégias de coleta/captura de espécimes (Marques 1991, 1995, Lévi-Strauss 1987, Hanazaki 2003, Begossi 2006, Souto 2007), medicina/farmacologia (Elisabetsky 1987, Figueredo et al. 1993, Silva 1997), astronomia (Ribeiro 1987), além de técnicas de uso e manejo de recursos naturais (Anderson & Anderson 1983, Posey 1983, 1984, 1987). Muitos conhecimentos tradicionais têm sido usados para a elaboração de hipóteses testáveis, tanto nas pesquisas botânicas/farmacológicas (Cox & Balick 1994), quanto nas zoológicas/ecológicas (Marques 1991).

Populações tradicionais possuem técnicas próprias de uso e manejo dos recursos naturais, através das quais interferem no processo de sucessão ecológica, promovem a regeneração de áreas degradadas, a ciclagem de nutrientes e o aumento da riqueza de espécies nos ecossistemas manejados (Posey 1983, 1984, Morin-Labatut & Akatar 1992, Balée 1994). A consistência e a adequação do conhecimento tradicional ao manejo e à conservação local de recursos, levaram alguns pesquisadores a sugerir seu uso na definição de propostas oficiais de manejo e conservação (Morin-Labatut & Akatar 1992), ou para gerar desenvolvimento com sustentabilidade ecológica e cultural (Posey 1984, Overal & Posey 1996).

Na Chapada Diamantina, por exemplo, ainda sobrevivem dezenas de populações humanas relativamente isoladas, vivendo da agricultura de subsistência e de atividades extrativistas como a pesca, a caça, a coleta de mel e a retirada de madeiras. O conhecimento local, assim como as necessidades econômicas e culturais das populações tradicionais, têm sido desconsiderados na formulação de políticas de desenvolvimento para a região, que privilegiam o turismo de massa, gerando, como conseqüência, impactos negativos sobre o ambiente e a cultura.

O objetivo deste trabalho foi descrever o conhecimento ecológico local sobre a dinâmica espacial e sazonal de espécies e dos ecossistemas que compõem uma área úmida, conhecida como marimbus. A área, situada dentro de uma Unidade de Conservação (APA de Marimbus - Iraquara) na Chapada Diamantina, é utilizada para a realização de atividades extrativistas de subsistência por pescadores tradicionais que vivem num povoado denominado de Remanso. Também foram investigadas possíveis similaridades entre o conhecimento local e a literatura científica disponível, particularmente sobre estilos reprodutivos de peixes (Balon 1975), como forma de reforçar o aspecto de complementaridade entre estas duas formas de conhecimento.

Metodologia

1. Área de estudo e população

A Chapada Diamantina é um extenso planalto (38.000 km2), que corresponde a 15% do Estado da Bahia (Funch 1997). Constitui-se de um mosaico paisagístico que apresenta variações fisionômicas a distâncias muito curtas: sobre solos de fertilidade média e alta desenvolvem-se florestas e caatingas, seguindo principalmente os níveis de precipitação e profundidade do solo; sobre solos pobres e ácidos desenvolvem-se diversos tipos de cerrado; as regiões de planícies periodicamente alagadas, de solos aluviais, apresentam cobertura constituída por vegetação hidrófila; nas margens dos rios desenvolvem-se matas ciliares e ripárias.

Em 1985, o Decreto nº 91655 criou o Parque Nacional da Chapada Diamantina, colocando parte da Chapada sob proteção da Legislação Federal. A Área de Proteção Ambiental de Marimbus-Iraquara foi criada pelo Decreto Estadual nº 2216, em 1993, visando ampliar o limite da área protegida (Urplan 1996). A APA abrange 1.254 km2, com trechos de cinco municípios, três dos quais - Lençóis, Andaraí e Palmeiras - também têm parte de suas terras localizadas no Parque Nacional.

Na porção da APA a leste do Parque Nacional, a maior precipitação permite a ocorrência de matas mesófilas cujo estrato superior atinge cerca de 15 a 20 metros de altura. Nesta porção, devido à confluência de rios em uma zona de relevo muito plano, uma grande área marginal fica sujeita a inundações periódicas (Lima & Nolasco 1997). As áreas periodicamente alagáveis, cobertas por vegetação hidrófila, principalmente das famílias Araceae e Cyperaceae, são denominadas localmente de marimbus. Matas, rios, lagoas e marimbus caracterizam e distinguem essas terras, onde está situado o povoado do Remanso, dando suporte a uma população de aproximadamente 206 pessoas que praticam agricultura de subsistência e pescam nos rios e lagoas.

A escolha deste grupo humano deve-se aos seguintes aspectos: a) a riqueza de espécies e a singularidade dos ecossistemas por eles utilizados (matas, rios, lagoas e zonas alagáveis, que excetuam suas terras da paisagem predominante na Chapada Diamantina, e conferem à área uma elevada riqueza de espécies própria das zonas ecotonais); b) o seu isolamento relativo (o acesso ao povoado ainda se faz por uma precária estrada não pavimentada, praticamente intransitável na estação das chuvas, vivendo a população sem acesso a serviços essenciais); c) maior vulnerabilidade aos impactos ambientais aos quais tanto o grupo humano quanto os ecossistemas estão sujeitos (provocados pelo turismo desordenado, feito em uma APA, e não em um Parque Nacional, como ocorre em outras áreas da Chapada); d) a escassez de dados relacionados à fauna da área dos marimbus; e e) habilidade com a qual a população humana interage localmente com recursos naturais, principalmente com os recursos aquáticos, sendo reconhecidos na região como pescadores habilidosos.

2. Coleta de dados

Nos três meses iniciais de trabalho foram visitadas 20 residências do povoado (60%) para entrevistas iniciais. Foi utilizada nesta etapa a "metodologia geradora de dados"(Posey 1987), que se baseia em perguntas abertas, visando obter o máximo de informações e categorias locais. Nesta etapa foram identificados cinco especialistas ou consultores culturais, entre pessoas que são reconhecidas pela população e se auto-reconhecem como os principais detentores de conhecimentos sobre os recursos locais. Com os consultores culturais, utilizando-se terminologias e conceitos locais já identificados na etapa inicial, foram realizadas entrevistas temáticas. As entrevistas tiveram duração variando de 15 a 60 minutos. Ao todo foram realizadas de duas a cinco entrevistas com cada consultor. As entrevistas foram gravadas e transcritas em caderno de campo.

O modelo da união das diversas competências (Hays 1976, Werner & Fenton, 1973) foi utilizado para a sistematização dos dados. Para verificar a consistência e validade das informações obtidas foram utilizadas duas técnicas de controle: na primeira recorreu-se a entrevistas repetidas em situações sincrônicas e diacrônicas (Marques 1991), nas quais perguntas eram feitas a pessoas diferentes em tempos muito próximos, ou a mesma pessoa em períodos distintos; na segunda utilizou-se a técnica de grupos focais (Oliveira & Werba 1999) adaptada à circunstância de formação espontânea de grupo, ou seja, aproveitando-se da existência de grupos formados para desempenho de atividades comunitárias rotineiras. A estes grupos submetiam-se perguntas cujas respostas haviam sido anteriormente discrepantes entre pescadores distintos, incentivando-se, então, o debate informal, no qual o pesquisador assumia o papel de mediador.

Para observações de campo e coleta de dados sobre os locais onde estão localizados os recursos, usou-se a técnica de"turnês guiadas"pela área de estudo (Spradley & McCurdy 1972). Complementarmente, foi solicitada a um dos consultores culturais a elaboração de um"mapa"da área estudada, como forma de verificar a percepção local sobre o ecozoneamento. O modelo de "mapa mental" tem sido empregado amplamente na representação de lugar, apoiadas em teorias da Psicologia, Cartografia e Geografia (Archela et al. 2004). O "mapa" obtido foi inicialmente copiado em papel vegetal e, em seguida escaneado e ilustrado com auxílio de computação gráfica.

As espécies coletadas (n = 18) foram preparadas segundo as técnicas usuais para material zoológico e inseridas nas coleções científicas da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade Federal de São Carlos, onde foram identificadas. As demais espécies (mamíferos, aves e plantas) foram identificadas através de pistas taxonômicas fornecidas pela população local, material de coleção científica coletado na área, disponível na Universidade Estadual de Feira de Santana e consulta a bibliografia (Urplan 1996). Duas espécies de peixes não foram coletadas. De acordo com a descrição morfológica e etológica feita pelos pescadores, eles podem corresponder respectivamente a Brycon lundi (Reinhardt, 1877) e Conorhynchus conirostris (Valenciennes, 1840), com ocorrências registradas para a bacia (Santos 2003).

Resultados e Discussão

1. Percepção espacial e "mapa mental"

A área onde está situado o povoado do Remanso caracteriza-se pela presença de uma zona central –os marimbus - periodicamente alagada e coberta por vegetação hidrófila, a partir da qual, centrifugamente, rios, lagoas e matas se sucedem. A partir do "mapa mental" (Figura 1), pode-se identificar as zonas com grande nível de detalhamento. Entre os ecossistemas aquáticos, distinguem-se os rios (águas correntes), as lagoas (águas paradas) e os marimbus (cujos solos só se apresentam cobertos por água no período das enchentes). O "mapa" mostra no rio, ecozonas distintas, tanto de origem natural - "veio e corrida de rio" – que correspondem respectivamente a áreas de menor e maior correnteza, quanto antrópica - "canal e rio entupido" - o primeiro, cavado pelo homem, em meio aos marimbus e o segundo, fruto do assoreamento do rio.


Conhecer bem os ecossistemas locais, assim como os fatores ambientais que influenciam a distribuição e a abundância dos recursos, é fundamental na definição das estratégias de pesca, caça e coleta, que implicam escalas (espaciais e temporais) e instrumentos. Os pescadores consultados mostraram conhecer, com detalhes, a distribuição espacial dos peixes (Tabela 1), pelo menos no que se refere às vinte espécies de valor utilitário, as quais são classificadas como: "peixes do rio" (o pira, o piau, o uiú, o peixe-cachorro, o cumbá, a crumatá, a sabarona e a traíra cabeça-fina; "peixes que preferem a lagoa mas também andam no rio" (o apanhari, a traíra cabeça-de-lama, o jundiá, o corró-branco e o corró-preto); "peixes tanto do rio quanto da lagoa" (referido-se à maior plasticidade na ocupação de ambientes, exibida por peixes como: a piranha, o tucunaré, as piabas, o peixe-cobra, a matrinchã e o carí). Nenhum peixe foi reconhecido como tendo sua distribuição restrita à lagoa. O conhecimento local com relação à distribuição espacial dos peixes, tanto nas lagoas, quanto nos rios, mostrou-se consistente com a literatura disponível (Von Ihering 1928, Nomura 1976, Bittencourt & Cox-Fernandes 1990, Agostinho et al. 1995, Rantin et al. 1993).

A sofisticação do conhecimento local pode ser verificada, entre outros aspectos, pelo detalhamento com o qual os informantes distinguem, do ponto de vista ecológico, espécies do mesmo gênero reconhecendo, tanto a preferência da chamada traíra-cabeça-de-lama (H. malabaricus) por águas paradas de lagoas, quanto a distribuição restrita de traíra-cabeça-fina/guelra-de-veludo (H. cf. lacerdae) em águas correntes de rios. Rantin et al. (1993) afirma que H. malabaricus é amplamente distribuída em ambientes lênticos (lagos e lagoas), podendo habitar, inclusive, águas estagnadas, enquanto H. lacerdae habita exclusivamente águas bem oxigenadas.

Além das informações sobre a distribuição espacial dos peixes, através do depoimento de pescadores mais velhos, foi possível obter dados sobre mudanças ambientais causadas pela ação antrópica nos últimos anos, tal como o assoreamento dos rios e a introdução de espécies exóticas. Esta última ação teria alterado a composição da ictiofauna e, provavelmente, a densidade de algumas populações. O tucunaré teria"colocado muito peixe pra correr"ou"metido medo"nas espécies nativas. Os dados da literatura suportam essas afirmações das populações nativas, uma vez que se trata de uma espécie piscívora e agressiva (Jempsen et al. 1997).

O tucunaré, embora não seja uma espécie nativa, é aparentemente o peixe sobre o qual o conhecimento local se mostrou mais elaborado. Isso pode ocorrer porque ele foi introduzido há muito tempo (cerca de 30 anos segundo as informações locais) e hoje apresenta a maior importância pesqueira. Destacam-se os conhecimentos sobre a quantidade de ovos e tempo de incubação, além dos procedimentos de preparação do ninho e de covas ou "barrocas" no fundo do rio para abrigar filhotes recém-nascidos. Segundo as informações obtidas, o tempo de incubação dos ovos é de cerca de cinco dias. Afirmaram, ainda, que para cada ninho são construídas cinco a seis barrocas no fundo do rio. Segundo as informações locais, esse procedimento confere mais segurança contra predadores ou contra possíveis flutuações no nível das águas, uma vez que as covas encontram-se próximas às margens que eventualmente podem secar. As informações disponíveis na literatura ictiológica sobre substrato selecionado (Santos 1987), guarda do ninho pelo casal (Lowe-McConell 1987) e tempo dedicado ao cuidado com a prole (Junk 1983), em relação aos ciclídeos, estão de acordo com as informações fornecidas pelos pescadores (Tabela 2).

2. Percepção local sobre as variações sazonais

Ao longo de um ciclo anual, com duas estações bem definidas, fenômenos bióticos relacionados à fauna e à flora estruturam-se de forma dinâmica. Esse dinamismo é percebido e descrito pelos entrevistados, que reconheceram uma estação fria e seca, denominada localmente de "inverno", que vai de maio a setembro e outra quente e úmida, denominada de "verão", que se estende de outubro a abril. A informação é consistente com os dados oficiais para o município de Lençóis (Urplan 1996) relativos, respectivamente, às menores e maiores precipitações pluviométricas e às temperaturas médias de cada mês. Diversas espécies são usadas como indicadores biológicos relacionados às variações sazonais. A proximidade da estação das chuvas, por exemplo, é reconhecida por fenômenos tais como floração de espécies, migrações e canto de pássaros e reaparecimento de espécies de peixes e répteis.

Alguns exemplos de conhecimentos locais sobre aspectos fenológicos foram organizados sob a forma de um calendário (Figura 2) que evidencia a percepção local sobre período e as ocorrências bióticas e abióticas e as atividades produtivas desenvolvidas. O período de estiagem tem início no mês de maio, quando o calor e as chuvas são substituídos pelo frio seco. Entre outros fenômenos relacionados a esta mudança ambiental, os pescadores mencionam o início da época de postura do cágado d'água (Phrynops sp), que deixa o rio para enterrar seus ovos em terra seca. O mês de maio também é considerado como o mais perigoso com relação a acidentes com ofídios, havendo uma crença generalizada de que nesse mês as cobras ficam "chocas" e "apuram" o veneno. Uma possível explicação para este fato seria a de que, por ocasião da estiagem, após um longo período de chuvas, esses répteis ectotérmicos, buscassem as áreas abertas para termorregulação, sendo mais facilmente encontrados em estradas e áreas antrópicas, aumentando, conseqüentemente, o número de acidentes. Entretanto não existem dados oficiais que confirmem a informação.


No mês de junho o frio acentua-se (Figura 2), sendo acompanhado por neblina nas primeiras horas da manhã. A seca, que se prolongará pelos meses subseqüentes, seria anunciada pelo canto de aves como o caboré (Glaucidium sp.), o corujão (Bubo virginianus), a zabelê (Crypturellus noctivagus) e o anu (Crotophaga ani). A associação do canto de aves a fenômenos meteorológicos (ornitoáugures meteóricos) tem sido discutida por outros autores (Brandão 1949, Marques 1998, 1999). Este último autor salienta, para um ambiente de várzea no Estado de Alagoas, que algumas aves compõem, junto com outros animais, um conjunto de "bichos que aduvinham (sic.) o tempo". Duas aves citadas neste trabalho, o caboré (Glaucidium sp.) e a zabelê (Crypturellus noctivagus), também foram citadas pelo autor referido para a várzea alagoana, sugerindo que se trata de memes amplamente distribuídos em sociedades camponesas brasileiras.

As mudanças que ocorrem na ictiofauna, associadas aos fenômenos sazonais, podem estar relacionadas tanto a características biológicas das espécies (e.g., migrações com finalidades reprodutivas), quanto a respostas comportamentais a estímulos ambientais. Segundo os pescadores entrevistados, a chegada do "inverno" leva o peixe a proteger-se sob a vegetação aquática, para se "esconder do frio" ou para "dormir". Este fenômeno pode estar relacionado a uma menor taxa metabólica, associada a menor busca de alimento, o que interferiria diretamente na quantidade de pescado capturado. De acordo com os relatos, dentre as populações sujeitas a variações sazonais, a única cujo período de "reaparecimento" no rio coincide com o período de secas é a do jundiá (Rhamdia quelen); as demais "desaparecem" (tornam-se escassas e/ou de difícil captura) nesse período, "reaparecendo" somente com a "chegada das águas" (Figura 2).

No ápice da estação seca, a população muda o local e a estratégia de pesca, optando por praticá-la nas lagoas isoladas. Segundo os pescadores entrevistados é muito mais fácil capturar os peixes nessa época, devido ao espaço restrito a que ficam limitados com o baixo nível de água nas lagoas (Figura 2). Assim, embora os meses de agosto, setembro e outubro, ainda façam parte da estação fria, geralmente são meses considerados bons para a pesca. Era nesse período que outrora se realizava a pesca do "tingui" , uma técnica, atualmente em desuso, que utilizava uma trepadeira como veneno. Segundo Heizer (1987), o uso de espécies vegetais como veneno de pesca é um hábito altamente arraigado na América do Sul, onde mais de uma centena de plantas já foram citadas como venenos, tendo algumas das plantas utilizadas sido domesticadas pelo homem a ponto de perderem a capacidade de reprodução espontânea. A espécie utilizada no Remanso corresponde a uma Sapindaceae (Serjania sp.), que segundo o autor referido pertence a um gênero amplamente usado no sul do Brasil.

Nos dois últimos meses de seca, inicia-se o preparo da terra, através da queima (coivara) de antigas roças ou capoeiras novas para plantio, fato este que se dará com a chegada das chuvas (Figura 2). Nesse período, incêndios nos marimbus são freqüentes. O fogo é conseqüência de uma tentativa local, aparentemente bem sucedida, de manejar o ecossistema aquático. Segundo as informações, a cada três anos toda área de marimbus deve ser renovada para que não "apodreça". Para sua renovação, a cada ano uma parte é queimada de forma rotativa. A queima provoca renovação da vegetação hidrófila e interrompe a sucessão ecológica. Este procedimento, ainda não registrado para a região, sugere que não só a população vem sendo mantida pelo seu ambiente, mas que o contrário também pode ser verdadeiro. Justifica-se uma pesquisa mais detalhada sobre o uso do fogo e suas conseqüências no ecossistema.

A estação de chuvas e das enchentes, iniciada em outubro ou novembro, repercutiria, não só na reprodução dos peixes migratórios, como também na renovação de águas e peixes das lagoas marginais que ficam isoladas no período de estiagem (Figura 2). Nessa época, segundo as informações locais, verifica-se a reprodução de peixes conhecidos por "desovarem na corrida das águas e não botarem sentido ao ninho" (uiú, crumatá, sabarona, cumbá, piau, piaba-zoião, piaba). Segundo a literatura (Von Ihering 1928, Nomura 1976, Bittencourt & Cox-Fernandes 1990), estas espécies realizam migração no período das enchentes, desovando em águas correntes e não exibindo cuidados parentais. Para estas, conhecidas na literatura científica (Vazzoler 1996) como "espécies não guardadoras", o período reprodutivo e as variações sazonais estão intimamente relacionados. Segundo as informações locais, o uiú é o primeiro peixe que "aparece" nos períodos de enchentes (de novembro a abril), seguido de crumatás, piaus, cumbás e dois tipos de piabas. É no período de migração com finalidades reprodutivas que o rio torna-se mais piscoso, devido ao "reaparecimento" de muitos peixes.

Segundo os pescadores entrevistados, quanto ao período reprodutivo, alguns peixes são tão "certeiros" que podem ser usados como bioindicadores climáticos (para "adivinhar o tempo"). O início do período reprodutivo de algumas espécies, indicado pelo desenvolvimento gonadal, pode ser facilmente observado pelo aumento do volume do seu abdome no período imediatamente anterior à chegada das chuvas. Isto ocorre com as espécies que realizam migração com finalidades reprodutivas e não põem guarda aos ninhos (Von Ihering 1928, Nomura 1976). Ainda de acordo com as informações locais, quando "a chuva esperada não vem" a crumatá pode morrer com as "ovas empedradas na barriga". Esta informação não encontra suporte na literatura disponível, entretanto fenômeno semelhante já foi relatado por Godinho (1975), para uma espécie de truta (Tabela 3). Outra observação local sobre a reprodução das espécies não guardadoras refere-se à baixa taxa de sobrevivência de jovens em relação às espécies guardadoras de ovos (Tabela 3). Uma informação sobre o piau é sustentada pela literatura científica e refere-se à produção de "roncos" no período reprodutivo (Tabela 3).

Assim como a estação seca, a estação das chuvas também é anunciada pelos cantos de aves que são percebidas pela capacidade de "adivinharem chuva" (ornitoáugures meteóricos). Entre eles a aracuã (Ortalis guttata ?) e a andorinha (Hirundinidae) (Figura 2). É provável que as enchentes provoquem a fertilização das águas, com benefícios para a ictiofauna, a partir da incorporação de matéria orgânica proveniente dos marimbus. Isto ocorreria tanto a partir da decomposição de folhas mortas, como do aporte de cinzas, em decorrência das queimadas.

Na área estudada as interações homem/ambiente são fortemente mediadas pelo conhecimento tradicional, bastante elaborado, usado para definir estratégias de apropriação dos recursos ou para o manejo dos ecossistemas.

A queima dos marimbus, de forma rotativa, apresenta-se como uma possível estratégia de manejo do ecossistema que pode ter grande repercussão no seu atual estágio de sucessão.

Ao longo do ciclo anual, diferentes pressões predatórias são exercidas pela atividade pesqueira: ora sobre as espécies lóticas (pescadas no rio, nas enchentes); ora sobre as espécies lênticas (pescadas nas "lagoas secas", no período de estiagem).

Os resultados aqui apresentados sugerem a existência de um amplo conhecimento ecológico local sobre as espécies e os ecossistemas, especialmente no que se refere à ictiofauna. O diálogo entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico pode contribuir para a adoção de políticas de gestão dos recursos naturais na área de estudo, considerando-se principalmente a escassez de dados científicos sobre os ecossistemas aquáticos da Chapada Diamantina.

Recebido em 18/10/2006

Versão reformulada recebida 31/08/07

Publicado em 17/09/2007

ISSN 1676-0603.

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    Autor para correspondência: Flávia de Barros Prado Moura, e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      18 Out 2006
    • Revisado
      31 Ago 2007
    • Aceito
      17 Set 2007
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