Resumos
O tratamento tradicional da fístula aorto-entérica secundária baseia-se na retirada cirúrgica da prótese, desbridamento aórtico, enxerto extra-anatômico, ou in situ, nos casos em que o campo cirúrgico apresenta-se sem sinais de infecção. Recentemente, alguns autores vêm preconizando o tratamento endovascular em pacientes instáveis e com alto risco cirúrgico. Apresentamos um relato de caso de paciente portador de fístula aorto-entérica secundária tratado inicialmente por via endovascular.
aneurisma; enxerto vascular; fístula do sistema digestório; procedimentos endovasculares
Traditional treatment of secondary aortoenteric fistula is based on open surgery followed by device removal, aortic debridement and extra-anatomic or in situ by-pass when no signs of local infection are found. Recently, some authors have been advocating endovascular treatment in unstable and high-risk patients. We present a case report of a patient who underwent initial endovascular treatment of a secondary aortoenteric fistula.
aneurysm; vascular grafting; digestive system fistula; endovascular procedures
RELATO DE CASO
Relato de caso de tratamento endovascular de fístula aorto-entérica secundária
A case report of an endovascular treatment of secondary aortenteric fistula
Fabio Henrique RossiI; Nilo Mitsuru IzukawaII; Akash Kuzhiparambil PrakasanIII; Heraldo Antônio BarbatoIII; Antonio KambaraIV; Patrik Bastos MetzgerV; Frederico Augusto de Carvalho Linhares FilhoV; Camila Baumann BetelliV
IDoutor em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP) São Paulo (SP), Brasil. Médico assistente da seção médica de Cirurgia Vascular e membro do Centro de Intervenções Endovasculares (CIEV) do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil
IIDoutor em medicina pela USP São Paulo (SP), Brasil. Chefe da seção médica de Cirurgia Vascular e do CIEV do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil
IIIMédico assistente da seção médica de Cirurgia Vascular e membro do CIEV do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil
IVMestre em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) São Paulo (SP), Brasil; Chefe da seção médica de Radiologia e do CIEV do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil; Membro titular do Colégio Brasileiro de Radiologia São Paulo (SP), Brasil
VMédico aprimorando do CIEV do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil
Correspondência Correspondência Fabio Henrique Rossi Av. Dante Pazzanese, 500 Ibirapuera CEP 04012-909 São Paulo (SP), Brasil E-mail: vascular369@hotmail.com
RESUMO
O tratamento tradicional da fístula aorto-entérica secundária baseia-se na retirada cirúrgica da prótese, desbridamento aórtico, enxerto extra-anatômico, ou in situ, nos casos em que o campo cirúrgico apresenta-se sem sinais de infecção. Recentemente, alguns autores vêm preconizando o tratamento endovascular em pacientes instáveis e com alto risco cirúrgico. Apresentamos um relato de caso de paciente portador de fístula aorto-entérica secundária tratado inicialmente por via endovascular.
Palavras-chave: aneurisma; enxerto vascular; fístula do sistema digestório; procedimentos endovasculares.
ABSTRACT
Traditional treatment of secondary aortoenteric fistula is based on open surgery followed by device removal, aortic debridement and extra-anatomic or in situ by-pass when no signs of local infection are found. Recently, some authors have been advocating endovascular treatment in unstable and high-risk patients. We present a case report of a patient who underwent initial endovascular treatment of a secondary aortoenteric fistula.
Keywords: aneurysm; vascular grafting; digestive system fistula; endovascular procedures.
Introdução
A fístula aorto-entérica secundária representa uma situação rara, mas extremamente grave, que pode ocorrer após a cirurgia aórtica. Ocorre em 0,3 a 2,5% dos casos cirúrgicos e menos frequentemente após o tratamento endovascular. É definida como uma comunicação anômala entre a prótese e o tubo digestório, podendo ocorrer em qualquer um de seus segmentos, sendo mais comum com o duodeno. Sua apresentação clínica envolve a hemorragia gastrointestinal em 70%, sepsis em 16% ou ambas as condições em 14% dos casos1,2.
Os métodos diagnósticos mais utilizados são a tomografia computadorizada, a esofagoduodenogastroendoscopia e a arteriografia. Apesar do domínio das técnicas cirúrgicas utilizadas, um grande número de pacientes evolui para o óbito (35-75%)3. Dessa forma, o tratamento endovascular surgiu como alternativa, sobretudo nos pacientes que se apresentam com instabilidade hemodinâmica. O objetivo do nosso estudo foi relatar um caso de fístula aorto-entérica secundária tratado em nosso serviço e realizar uma revisão da restrita literatura comparativa entre os tratamentos cirúrgicos convencional e endovascular.
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, 66 anos de idade, hígido e muito ativo, manifestava história de fezes sanguinolentas e hematoquesia havia uma semana. Apresentava história pregressa de enxerto aorto-bi-ilíaco com prótese de Dacron por aneurisma de aorta abdominal há 11 anos. Encontrava-se em preparação para correção endovascular de pseudoaneurisma localizado em boca anastomótica ilíaca esquerda. Não referia demais queixas vasculares. Tinha como antecedentes hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia e ex-tabagismo. Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, levemente hipocorado e afebril. Demonstrava massa abdominal palpável e dolorosa, sem sinais de peritonite. Ao exame vascular, apresentava todos os pulsos palpáveis, exceto os pós-poplíteos que se apresentavam diminuídos em sua amplitude. Os exames laboratoriais revelaram hemoglobina de 9,8 g/100 mL e hematócrito de 28%. Apresentava leucocitose de 12.000/mm3, sem desvio à esquerda. O coagulograma, ureia, creatinina, sódio, potássio e enzimas hepáticas eram normais.
O paciente foi submetido à nova angiotomografia, de urgência, com fase arterial e venosa quando foi evidenciada a presença de, além do volumoso pseudoaneurisma, já demonstrado na anastomose ilíaca esquerda, imagem sugestiva de sangramento e infecção retossigmoideana (Figura 1). Logo após o exame, o paciente apresentou sangramento profuso e grave queda da pressão arterial. Nossa primeira hipótese diagnóstica foi de ruptura do pseudoaneurisma; como se apresentava em condições clínicas desfavoráveis para a cirurgia convencional, o paciente foi encaminhado imediatamente para a realização de tratamento endovascular. A infecção e a lesão sigmoideana seriam tratadas em um segundo tempo, com o paciente em condições mais estáveis.
O paciente foi submetido à anestesia geral e mantido em hipotensão permissiva. As duas femorais foram imediatamente dissecadas e puncionadas sobre visualização direta. Foi então implantada endoprótese Gore Excluder 23×120×10 sem dificuldades técnicas, uma vez que a anatomia apresentou-se favorável para a realização do procedimento. (Figura 2).
O paciente permaneceu na unidade de terapia intensiva por 72 horas. Após uma semana de observação, já na enfermaria, período em que permaneceu estável clínico-laboratorialmente, o paciente apresentou novo sangramento, dessa vez em pequena quantidade e sem repercussão hemodinâmica. Optamos pela realização de laparotomia exploradora imediata, pois, em nossa opinião, esse novo episódio de sangramento, associado com os sinais radiológico de infecção, colocava o paciente sob risco de novo sangramento, profuso e fatal. Durante o ato operatório, foi verificada a presença de contaminação grosseira por fezes no local do pseudoaneurisma e fístula entérica. Optou-se pela realização de ligadura da aorta e artérias ilíacas, retirada das próteses cirúrgica e endovascular, desbridamento amplo do tecido necrótico e infectado, e lavagem da cavidade abdominal. Foi ainda realizada colostomia em alça para permitir posterior correção e enxerto axilo bifemoral. O paciente evoluiu com instabilidade hemodinâmica refratária às medidas clínicas adotadas e óbito no primeiro dia de pós-operatório.
Discussão
Na atualidade, a grande maioria dos pacientes acometidos por fístulas aorto-entéricas secundárias é tratada por meio da retirada cirúrgica imediata da prótese, ou endoprótese, desbridamento do material necrótico e infeccioso, ligadura e sutura aórtica, e realização de enxerto extra-anatômico, ou in situ, com prótese impregnada em rifampicina, ou menos comumente com veia autógena do sistema venoso profundo. Esses procedimentos prolongados são associados a altíssimos índices de morbimortalidade1,2.
O tratamento endovascular tem se demonstrado uma alternativa terapêutica viável, associada a menor trauma e tempo cirúrgico, menor necessidade de transfusão sanguínea e menores índices de morbimortalidade. Entretanto, essa conduta é raramente realizada, pouco descrita, e não existem estudos randomizados e séries controladas que verificaram o real benefício clínico desse tipo de conduta3.
No caso clínico aqui apresentado, apesar da estabilidade inicial, o paciente evolui com choque hemorrágico durante a internação, o qual foi prontamente revertido com o implante emergencial de uma endoprótese bifurcada, que interrompeu o sangramento e permitiu a estabilização hemodinâmica. Essa modalidade de tratamento envolve menores perdas sanguíneas e, possivelmente, foi importante para o sucesso terapêutico inicial nesse paciente. Na segunda cirurgia, foi verificada a presença de infecção grosseira das próteses, motivo pelo qual foi necessária a retirada delas e execução de cirurgia complexa e demorada. Alguns autores, no caso de ausência de sepsis, preconizam o tratamento endovascular associado à antibioticoterapia prolongada e seguimento clínico3,4, o que não foi possível em nosso caso em razão da presença de infecção grosseira. A reconstrução do trato intestinal, a limpeza e o desbridamento cirúrgico do tecido necrótico parecem melhorar os resultados5,6.
Dados da literatura apontam que, apesar dos favoráveis resultados iniciais obtidos com o tratamento endovascular, pode haver recidiva da infecção e do sangramento. Essa evolução desfavorável parece acometer sobretudo aqueles pacientes portadores de sepsis em sua apresentação inicial7,8. Em nosso caso, embora não haja sepsis como apresentação inicial, durante a laparotomia exploradora, realizada após o segundo episódio de sangramento, pode ser verificada a presença de infecção grosseira, inclusive com a presença de conteúdo fecal.
Kakkos et al.8 recentemente publicaram uma metanálise sobre os resultados obtidos com o tratamento endovascular: em 59 casos descritos na literatura, verificaram sucesso técnico em 93% e mortalidade após 30 dias de acompanhamento de 8,5%. Ao seguimento tardio, 10 (19%) pacientes evoluíram com recidiva de sangramento. Dezessete (32%) pacientes desenvolveram sepsis, e foram tratados clinicamente em 8 casos (7 com sucesso). Os pacientes que tiveram reconstrução do trato intestinal evoluíram com menores índices de recidiva (p=0,022). A mortalidade após 12 e 24 meses de acompanhamento foi 15% e 19%, respectivamente, significantemente pior quando houve recidiva de sangramento (p=0,001). O prognóstico foi pior na presença de sepsis pré-operatória, fístula com o intestino grosso, correção cirúrgica convencional, não correção cirúrgica do tubo digestório e recorrência da fístula. Os autores concluem que o tratamento endovascular apresenta resultados aceitáveis a curto e médio prazo e, na atualidade, mortalidade menor do que aquela obtida com o tratamento cirúrgico convencional9.
Existem poucos estudos, não há definições e não há consenso sobre quais pacientes devem ser submetidos aos dois métodos de tratamento. A hemorragia ocasionada pela fístula aorto-entérica, associada a quadro séptico ou não, é sempre um evento catastrófico, e em pacientes instáveis o procedimento cirúrgico convencional está associado a altíssimos índices de mortalidade.
Concluímos que o tratamento endovascular da fístula aorto-entérica secundária pode representar uma alternativa inicial ao tratamento cirúrgico convencional em pacientes sem sinais clínicos e operatórios de sepsis e infecção grave, sobretudo em pacientes instáveis e com alto risco cirúrgico.
Submetido em: 25.01.12.
Aceito em: 21.06.12
Conflito de interesse: nada a declarar
Fonte de financiamento: nenhuma
Contribuições dos autores
Concepção e desenho do estudo: FHR
Análise e interpretação dos dados: FHR, NMI, HAB
Coleta de dados: FHR, AKP, HAB, AK, PBM, FACLF, CBB
Redação do artigo: FHR
Revisão crítica do texto: NMI
Aprovação final do artigo*:FHR, NMI, AKP, HAB, AK, PBM, FACLF, CBB
Análise estatística: NSA
Responsabilidade geral pelo estudo: FHR
Informações sobre financiamento: FAJ
*Todos os autores leram e aprovaram a versão final submetida ao J Vasc Bras.
Trabalho realizado no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia São Paulo (SP), Brasil.
- 1. Kuestner LM, Reilly LM, Jicha DL, Ehrenfeld WK, Goldstone J, Stoney RJ. Secondary aortoenteric fistula: contemporary outcome with use of extraanatomic bypass and infected graft excision. J Vasc Surg. 1995;21:184-95; discussion 195-6. PMid:7853593.
- 2. Sharif MA, Lee B, Lau LL, et al. Prosthetic stent graft infection after endovascular abdominal aortic aneurysm repair. J Vasc Surg. 2007;46:442-8. PMid:17826231. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2007.05.027
- 3. Burks JA, Faries PL, Gravereaux EC, Hollier LH, Marin ML. Endovascular repair of bleeding aortoenteric fistulas: a 5-year experience. J Vasc Surg. 2001;34:1055-9. PMid:11743560. http://dx.doi.org/10.1067/mva.2001.119752
- 4. Baril DT, Carroccio A, Ellozy SH, et al. Evolving strategies for the treatment of aortoenteric fistulas. J Vasc Surg. 2006;44:250-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2006.04.031
- 5. Laganà D, Carrafiello G, Mangini M, et al. Endovascular treatment of anastomotic pseudoaneurysms after aorto-iliac surgical reconstruction. Cardiovasc Intervent Radiol. 2007;30:1185-91. http://dx.doi.org/10.1007/s00270-007-9047-0
- 6. Brountzos EN, Vasdekis S, Kostopanagiotou G, et al. Endovascular treatment of a bleeding secondary aorto-enteric fistula. A case report with 1-year follow-up. Cardiovasc Intervent Radiol. 2007;30:1037-41. PMid:17546398. http://dx.doi.org/10.1007/s00270-007-9099-1
- 7. Antoniou GA, Koutsias S, Antoniou SA, Georgiakakis A, Lazarides MK, Giannoukas AD. Outcome after endovascular stent graft repair of aortoenteric fistula: A systematic review. J Vasc Surg. 2009;49:782-9. PMid:19028054. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2008.08.068
- 8. Kakkos SK, Antoniadis PN, Klonaris CN, et al. Open or endovascular repair of aortoenteric fistulas? A multicentre comparative study. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2011;41:625-34. PMid:21324718. http://dx.doi.org/10.1016/j.ejvs.2010.12.026
- 9. Kakkos SK, Papadoulas S, Tsolakis IA. Endovascular management of arterioenteric fistulas: a systemic review and meta-analysis of the literature. J Endovasc Ther. 2011;18:66-77. PMid:21314352. http://dx.doi.org/10.1583/10-3229.1
Correspondência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2012 -
Data do Fascículo
Set 2012
Histórico
-
Recebido
25 Jan 2012 -
Aceito
21 Jun 2012