Editorial
Este número de Scientiæ udia reúne contribuições que se localizam nas fronteiras entre as ciências humanas, as ciências biológicas e as ciências exatas. Em virtude disso, os artigos são marcados pela interdisciplinaridade, muito embora seja sempre difícil definir exatamente o que isso significa. O leitor perceberá, no entanto, que os assuntos tratados oferecem aportes teóricos oriundos da psicologia, da antropologia e demais ciências sociais, mas também da história da medicina e da biologia, bem como de áreas de cunho tecnológico aplicadas a fenômenos historicamente vinculados à filosofia. O caráter fronteiriço deste número fica de todo evidente na entrevista concedida por César Ades, a qual engloba temas variados que dificilmente podem ser enquadrados em disciplinas estanques.
Vladimir Safatle abre a presente edição discutindo os conceitos de saúde e de doença na obra de Georges Canguilhem. A questão que se coloca é se o sofrimento, experimentado pelos sujeitos quando acometidos por alguma patologia, é simplesmente um fato "que fala por si mesmo" ou se é uma experiência circunstanciada por elementos sociais e históricos. Mostrando como a obra de Canguilhem se articula tanto com a fenomenologia quanto com a epistemologia histórica, Safatle elucida a distinção canguilhemeana entre o normal e o patológico na clínica médica assunto retomado e desenvolvido por Michel Foucault, discípulo de Canguilhem. Para além de uma visão puramente fisiológica e quantitativa das patologias, Canguilhem discute a significação da anormalidade, tanto em sua dimensão subjetiva quanto social. Isso remete à problemática de que os sujeitos não somente se sentem doentes, mas efetivamente vivenciam os estados patológicos com todas suas significações sócio-históricas. Canguilhem então defende que a saúde significa uma flexibilidade nas relações entre o organismo e o ambiente. Tal ponto vista tem consequências de largo alcance, dentre elas o fato de que uma normatividade vital engendra também uma normatividade social.
Na sequência, Sandra Caponi analisa o legado de Emil Kraepelin no que diz respeito aos diagnósticos das enfermidades psiquiátricas. A partir do exame histórico dos conceitos de degeneração e de herança mórbida, Caponi mostra como Kraepelin foi responsável pelo surgimento de um sistema classificatório que, em linhas gerais, informa grande parte da psiquiatria contemporânea. A autora discute como, a partir da década de 1970, um grupo de estudiosos denominados de neokraepelinianos pretendeu afastar a psiquiatria de tudo aquilo que não fosse considerado "científico", no intuito de promover uma abordagem clínica de orientação biológica, alicerçada em diagnósticos descritivos objetivos. Com efeito, o movimento resultou nos atuais manuais de diagnóstico das doenças psiquiátricas, com profunda influência na maneira como tais enfermidades são diagnosticadas e tratadas. Incidentalmente, o artigo de Caponi é em alguma medida complementar ao de Safatle, de modo que os leitores poderão cotejar os pontos de vista de Kraepelin e de Canguilhem, e conferir o antagonismo de suas respectivas abordagens.
No terceiro artigo, Richard Simanke e Fátima Caropreso fazem um balanço das rupturas e das continuidades entre as obras iniciais de Freud, marcadamente neurológicas, e o subsequente desenvolvimento da psicanálise. No entender dos autores, há algum exagero nas apreciações dos comentadores sobre o suposto abandono, por parte de Freud, de um modelo neurológico da mente, dado que, de fato, a metapsicologia freudiana reiteradamente se ocupa com esse tipo de problema. Por meio de uma exegese dos textos metapsicológicos, incluindo aqueles que forneceriam indícios de uma ruptura completa, Simanke e Caropreso mostram que o que se abandonou foi a teoria das localizações cerebrais, presente no início do pensamento freudiano. Enfim, uma teoria neurológica da mente, embora inviável à época em virtude das dificuldades inerentes a tal tarefa, sempre esteve no horizonte da psicanálise. O reconhecimento dessa continuidade, por sua vez, pode dar suporte aos estudos integrativos entre a psicanálise e as neurociências, uma área de investigação que vem ganhando destaque principalmente na última década.
No quarto artigo, Luciana Kind oferece um interessante estudo sobre as definições de morte cerebral. A partir de documentos estatutários acerca desse polêmico assunto, a autora analisa o itinerário do debate que, entre outras coisas, tem profundas implicações legais. Nesse contexto, são analisadas as variações da definição de morte cerebral, tais como a whole brain death, brain stem death e higher brain death. Cada uma dessas vertentes incorpora elementos característicos, envolvendo a conceituação sobre o que é um organismo, o que é uma pessoa e o papel do cérebro como locus da consciência e da estabilidade moral. Essa jornada por uma "boa" definição de morte nos remete, enfim, a diferentes conceituações sobre o ser humano. O artigo de Kind mostra, em seu todo, como a consolidação da definição de morte cerebral como fato médico, e sua justificação como fato jurídico, se deu em meio a uma negociação de argumentos entre as partes, com consequências práticas de largo alcance, especialmente no que diz respeito às políticas de transplantes de órgãos.
O quinto artigo do presente número consiste em uma reflexão sobre as contribuições de Henri Bergson no que concerne à relação entre o riso e a vida, e como tal relação pode lançar luz sobre a ciência e, mais especificamente, sobre a antropologia. Na visão de Messias Basques, o riso, entendido como forma de entendimento, estabelece uma assimetria epistemológica entre os cientistas e o público leigo. A partir disso, o autor problematiza as distinções entre conhecimento e crença, verdade e superstição, ciência e não-ciência. Ao longo do artigo, Basques focaliza mais detidamente as consequências do pensamento bergsoniano para a antropologia, com referência, entre outras coisas, ao predomínio da inteligência sobre a intuição. Nesse ínterim, o riso poderia se afirmar como um momento de conciliação entre uma antropologia mais formal, de um lado, e uma mais alegre e imaginativa, de outro.
Na sequência, Nicholas Lechopier analisa as chamadas pesquisas participativas comunitárias, que paulatinamente têm alterado as concepções epistêmicas e éticas sobre as práticas de investigação com seres humanos. Tomando como exemplo uma pesquisa "ecossistêmica" realizada com populações ribeirinhas na Amazônia, o autor reflete sobre a responsabilidade dos pesquisadores em áreas nas quais as esferas da investigação e da ação parcialmente se superpõem. A ambiguidade dessa situação gera tensões que afetam o quadro conceitual habitual da ética da pesquisa. Ao longo de seu artigo, Lechopier analisa detidamente os dilemas éticos e metodológicos de tais pesquisas participativas comunitárias, instando os pesquisadores a se manterem vigilantes com relação a uma possível confusão entre essas duas esferas da realidade, as quais são vivenciadas diferentemente pelos pesquisadores e pelas comunidades concernidas.
Os dois últimos artigos deste número envolvem a utilização de ferramentas computacionais em domínios historicamente associados às ciências humanas. Rafael Wild, Vanessa Maurente, Cleci Maraschin e Maria Cristina Biazus investigam os pressupostos epistemológicos contidos na tentativa de se criar um sistema computacional capaz de lidar com o conhecimento de senso comum. De fato, a Inteligência Artificial tem uma história de sucesso no que concerne a sistemas especialistas dirigidos a tarefas bem delimitadas e algoritmizáveis. No entanto, o chamado conhecimento de senso comum apresenta dificuldades, em virtude da amplidão da base de conhecimento necessária para implementar um tratamento adequado do assunto. Os autores analisam essas dificuldades e mostram como existem pressupostos epistemológicos subjacentes a tais projetos, tais como a própria noção de que o conhecimento de senso comum seja representável. Além disso, o artigo examina a premissa de que "aquilo que as pessoas sabem" é de caráter consensual e universal.
Luiz Henrique Dutra, Cezar Mortari, Jerzy Brzozowski e Thiagus Batista encerram a sessão de artigos com uma contribuição concernente ao estabelecimento de um modelo nomológico da atividade científica no que tange, mais especificamente, à publicação de artigos. A partir de uma análise pragmática da investigação científica, em convergência com o ponto de vista de Patrick Suppes sobre o que significa uma escolha livre, os autores procuram representar as possíveis trajetórias de tipos de publicação disponíveis aos cientistas. Por meio de um modelo que toma as trajetórias de publicação como processos estocásticos conhecidos como cadeias de Markov, o artigo propõe um procedimento experimental capaz de modelar matematicamente a pragmática da investigação científica. Embora tal abordagem possa ser criticada por exemplo, mediante o argumento de que a intencionalidade e a liberdade dos cientistas não se coadunam com qualquer modelo nomológico o tratamento matemático desse assunto tem significativa importância, tanto pelo valor contido em qualquer descrição mais apurada da atividade científica, quanto pelas controvérsias que a implementação de modelos desse gênero costumam suscitar na filosofia da ciência.
Encerrando o número, Scientiæ udia tem a satisfação de publicar uma entrevista concedida por César Ades, um pesquisador que definitivamente não se enquadra nos estereótipos disciplinares. No início da entrevista, Ades rememora seus anos de formação, suas oscilações entre a filosofia, a psicologia e a biologia, as quais se sintetizam em sua trajetória na área da etologia. Ele também aborda temas tais como o da antropomorfização dos sentimentos dos animais e as questões éticas envolvendo o uso de animais em pesquisa. Além disso, o entrevistado reflete, mais pormenorizadamente, sobre as relações entre a filosofia e a história da ciência e a atividade científica propriamente dita, bem como sobre os limites éticos da experimentação com humanos e com animais. Em sua totalidade, a entrevista fornece aos leitores um panorama abrangente, e de primeira mão, dos desafios e das satisfações de uma destacada e longeva trajetória científica.
RENATO RODRIGUES KINOUCHI
editor associado
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Ago 2011 -
Data do Fascículo
2011