Open-access Do mistério das eras do gelo às mudanças climáticas abruptas

From the mystery of ice ages to abrupt climate change

RESUMO

O problema da era do gelo foi o primeiro e, até algumas décadas atrás, o único debate relevante sobre as mudanças climáticas, emergindo como uma discussão da geologia, que não foi capaz de equacioná-lo. Ficou como um mistério que transitou, no século XIX, pela matemática e astronomia e foi objeto de especulações na geofísica e geoquímica sem que uma solução satisfatória fosse encontrada. A resposta básica para a ocorrência das eras do gelo foi dada por Milankovitch, com sua teoria matemática da insolação, na década de 1940. Todavia somente a consolidação da paleoclimatologia, na década de 1970, ofereceu as evidências necessárias para comprová-la. O refinamento desses estudos paleoclimatológicos acabou revelando, todavia, um fenômeno inesperado, a saber, que as transições de estados de equilíbrio no sistema climático aconteceram muito rapidamente no passado. As mudanças climáticas da era do gelo do pleistoceno ocorreram de maneira abrupta e radical, em uma negação do gradualismo. Em consequência, o atual aquecimento global deve ser visto como um fenômeno muito mais perigoso e imprevisível do que usualmente apresentado.

PALAVRAS-CHAVE Idades do gelo; Eras do gelo; Paleoclimatologia; Pleistoceno; Holoceno; Meteorologia; Ciências do clima; Aquecimento global; Mudanças climáticas abruptas; Núcleos de gelo

ABSTRACT

The ice age problem was the first and, until a few decades ago, the only relevant debate on climate change, emerging as a discussion in geology, which was unable to frame it. It remained a mystery in the nineteenth century, being discussed in mathematics and astronomy, and it was a matter of speculation in geophysics and geochemistry without a satisfactory solution. The basic explanation for the occurrence of ice ages was given by Milankovitch, by means of his mathematical theory of insolation in the 1940s. Nevertheless, only the consolidation of paleoclimatology, in the 1970s, provided the necessary evidence to prove it. The refinement of these studies in paleoclimatology, however, brought to light an unexpected phenomenon: the transition between equilibrium state in the climate system took place very quickly in the past. Climate change in the Pleistocene Ice Age was abrupt and radical, contrary to any gradualism. Therefore, the current global warming should be seen as a much more dangerous and unpredictable phenomenon, in comparison with the way it is usually presented.

KEYWORDS Ice ages; Paleoclimatology; Pleistocene; Holocene; Meteorology; Climate science; Global warming; Climate change; Ice cores

INTRODUÇÃO

O problema da existência da era do gelo (ou glacial) foi o primeiro e, até algumas décadas atrás, o único debate relevante sobre as mudanças climáticas; por um século e meio os dois tópicos quase se confundiam. A questão da era do gelo emergiu em uma discussão vinculada não à meteorologia ou à climatologia, então praticamente inexistentes como disciplinas científicas, mas à geologia, que se consolidou associada ao debate sobre a antiguidade da Terra e ao ritmo com que se processavam as mudanças em sua superfície, no desmembramento disciplinar do grande campo da história natural (a revolução darwinista da biologia evolutiva foi outro vetor decisivo desse processo). Mas o paradigma uniformista estabelecido por Hutton e Lyell não permitia que a geologia respondesse à questão da origem da era do gelo, cuja existência foi trazida à luz principalmente por pesquisadores suíços. O problema transitou, então, pela matemática e astronomia e foi objeto de especulações na geofísica e geoquímica sem que uma solução satisfatória para sua causa fosse encontrada. No final do século XIX, novas pesquisas mostraram também que existiram diversas eras do gelo, que se alternaram com "períodos" interglaciais.

O final da última era do gelo inaugurou a atual fase interglacial, que segue até hoje chamada pelos geólogos de "época holocênica" (com pouco mais de dez mil anos de duração). Na nomenclatura geológica mais recente, a era cenozoica, iniciada a 65,5 milhões de anos, compreende um longo período terciário e, posteriormente, um período quaternário, iniciado a 2,6 milhões de anos. Esse período quaternário compreende uma época pleistocênica (de 2,6 milhões de anos até cerca de 10 mil anos atrás) e a época holocênica atual. Mas é importante distinguir entre essa terminologia geológica rigorosa e a forma como se utilizaram e se utilizam correntemente, inclusive nas discussões da climatologia, termos como "era" ou "eras", "época" ou "épocas", "período" ou "períodos", "idade" ou "idades" do gelo ou glaciais e interglaciais, empregados tanto para designar qualquer um dos períodos glaciais, como para designar o conjunto da época do pleistoceno, cobrindo mais de dois milhões de anos, e que é a época em que o clima da Terra passou a conhecer inúmeros "períodos" glaciais que alternaram com "períodos" interglaciais.

Quando, no início do século XX, as ciências do clima - e, em especial, a meteorologia - começavam a ganhar seus contornos atuais, a resposta básica para explicar a ocorrência das eras do gelo surgiu fora delas, dada por Milutin Milankovitch, que foi quem formulou, entre as duas guerras mundiais, uma teoria matemática da insolação que permitiu localizar nas combinações dos ciclos de variações na órbita da Terra ao redor do Sol a origem das eras glaciais. Porém a hipótese Milankovitch somente foi aceita quando a consolidação da paleoclimatologia, na década de 1970, ofereceu as evidências necessárias para comprová-la. A paleoclimatologia é uma disciplina que utiliza técnicas da climatologia, desenvolvidas na meteorologia, como a modelagem, combinada com métodos específicos para recuperar informações sobre os climas do passado, recorrendo a indicadores preservados em sedimentos oceânicos e lacustres, geleiras, rochas, sementes, corais, anéis dos troncos das árvores etc., de forma a construir grandes séries de informações sobre os estados pretéritos do sistema climático.

Todavia apenas alterações orbitais não permitiam entender porque variações tão pequenas na insolação da Terra produziam mudanças tão drásticas no clima. Para explicar isso, foi necessário analisar diversos rearranjos internos à dinâmica do clima e de outros componentes do sistema Terra. Nesse refinamento do estudo das eras do gelo, a climatologia acabou revelando um fenômeno inesperado: as transições de estados de equilíbrio no sistema climático, que é complexo e marcado por características caóticas, aconteceram muito rapidamente ao longo de 2,6 milhões de anos. O estudo da "era do gelo do pleistoceno" impôs a percepção de que as mudanças climáticas não ocorrem de forma lenta e gradual, mas de maneira abrupta e radical, por saltos de estado. Tal constatação significa que o atual aquecimento global é um fenômeno muito mais perigoso e cheio de consequências do que aquilo que é usualmente apresentado nas discussões sobre as mudanças climáticas.

1 DA METEOROLOGIA À GEOLOGIA: O OCEANO DE AR E O ENIGMA DAS ERAS GLACIAIS

O estudo do clima foi motivado, até o século XIX, pelo estudo do tempo e identificado com a meteorologia. Embora esse termo remonte a Aristóteles (1991) - o estudo das coisas que acontecem no céu terrestre -, a compreensão científica do que é a atmosfera é coextensiva ao surgimento e à trajetória da ciência moderna, com a passagem de observações qualitativas da natureza para descrições quantitativas. Ela começou, no século XVII, com Galileu concebendo o primeiro termômetro para marcar diferenças de temperatura. Fahrenheit inventou, quase um século depois, em 1712, o termômetro selado de mercúrio e a escala que recebeu seu nome (Celsius medindo o peso do ar inventaria outra escala em 1742). Entrementes, um discípulo de Galileu, Evangelista Torricelli, realizou experiências com o vácuo, medindo a pressão atmosférica e inventando o barômetro. Escrevendo para seu amigo Michelangelo Ricci, Torricelli afirmou: "vivemos submersos no fundo de um oceano de ar" (Torricelli apudWalker, 2007, p. 22).

É inspirado por Galileu e Torricelli que Pascal estimou o peso da atmosfera terrestre, Hooke criou a bomba de ar e Boyle demonstrou de forma inequívoca a existência do vácuo, a pressão do ar e a necessidade, pelos seres vivos, do ar para sobreviverem (cf. Shapin & Shaffer, 2011). No final do século XVIII, depois de Black ter descoberto o dióxido de carbono e Rutherford e Scheele o nitrogênio, Priestley e Lavoisier demonstraram a existência do oxigênio e seu papel na respiração e na vida (cf. Walker, 2007). Do outro lado do Atlântico, Benjamin Franklin também tinha demonstrado que as tempestades deslocam-se pelo espaço e que os relâmpagos são fenômenos elétricos. Desse modo, já se tinha, no início do século XIX, um conhecimento básico da composição da atmosfera e alguns instrumentos para estudá-la, como o termômetro, o barômetro e o higrômetro (usado para medir a umidade presente na atmosfera), além dos então recentes voos em balões (cf. Cox, 2002). Na segunda metade do século XIX, grande parte do planeta já era monitorado por estações meteorológicas, criando uma primeira infraestrutura global de coleta de dados, que o telégrafo permite compartilhar rapidamente, e que ofereceria as bases para uma primeira abordagem descritiva do clima (cf. Schmidt & Wolfe, 2009; Edwards, 2010).

Uma compreensão mais acurada da atmosfera e do clima dependia, todavia, de avanços na física e química que tratassem da relação entre energia e massa, da termodinâmica e do comportamento dos fluidos. Em 1824, Joseph Fourier, estudando a temperatura da Terra, perguntou-se por que ela não era tão fria quanto seria de se esperar e especulou que parte da resposta poderia ser a existência de gases atmosféricos que aprisionariam o calor que a Terra recebe do Sol, impedindo-o de dissipar-se completamente (a expressão "efeito estufa" só emerge na literatura científica em 1909, com Woods). Os estudos de Fourier são levados adiante por Claude Pouillet, que elaborou as primeiras estimativas do equivalente termal da radiação solar fora da atmosfera, a constante solar, e as primeiras estimativas do papel do vapor d'água na retenção do calor na atmosfera.

Mas o entendimento que a comunidade científica europeia tinha da atmosfera interagia, no início do século XIX, com a percepção advinda do estudo dos relevos e dos fósseis por uma história natural que mostravam que a Terra era muito mais antiga do que se admitia. Paolo Rossi (1992) demonstrou que, no início da física moderna, o problema da formação praticamente não se colocava (a exceção sendo Descartes); a filosofia natural deveria tratar do mundo tal como é, como posto em movimento por Deus. A legitimidade do estudo desse tipo de questão teve que ser estabelecida em numerosos embates ao longo de todo o século XVIII.

Uma vez estabelecida a legitimidade de uma investigação histórica acerca da natureza, reabriram-se alternativas com modelos teóricos fortemente divergentes: uma história feita de progressos lentos, de mudanças uniformes e imperceptíveis; ou, então, uma história intercalada de catástrofes violentas, feita de saltos qualitativos e revoluções. A seguir, contrapõem-se no interior das hipóteses catastrofistas todos quantos elegem para agentes principais o dilúvio, os terremotos, as erupções vulcânicas ou a ação da água ou do fogo. Como acontece quase sempre, as contraposições não são absolutas: dão lugar a entrelaçamentos singulares de teses diversas, a compromissos, a ecletismos (Rossi, 1992, p. 9).

A descoberta do tempo, a percepção de que uma duração quase infinita nos separava de nossas origens - Buffon referir-se-á ao "obscuro abismo" que se estende atrás do presente (cf. Rossi, 1992, p. 10) - foi uma revolução mental enorme. Herschel e Laplace devem, assim, na passagem dos séculos XVIII para o XIX, ser colocados em correspondência com Buffon e sua "história natural" e "história da Terra" e Hutton e sua "sucessão de mundos". Este é o pressuposto da consolidação disciplinar da geologia por Lyell e da biologia evolutiva por Darwin.

É nesse contexto que os naturalistas europeus começaram a perceber que em eras passadas o planeta poderia ter sido coberto por geleiras. A discussão surgiu, ainda no século XVIII, em virtude da última fase de avanços dos glaciares alpinos na conclusão do que os historiadores chamam de "pequena idade do gelo", um período de resfriamento do clima normalmente datado entre os séculos XIII e XIX. Ela foi estimulada pela montagem, realizada pelo naturalista alemão Tilesius em 1808, do esqueleto de um mamute encontrado por Mikhail Adams na Sibéria (que ficaria em exibição no Museu Imperial, em São Petersburg) e as intervenções de Cuvier defendendo a extinção de espécies. Ela encontra suas primeiras teorizações em Wahlenberg, que, em 1818, via a glaciação geral como um fenômeno regional da Escandinávia, e Esmark, que, em 1824, sustentava a existência de uma sequência global de idades do gelo em função de mudanças na órbita da Terra. Em paralelo, Ignace Venetz (depois de 1821), Jean de Charpentier (na década de 1830), Schimper (que cunha o termo "era do gelo" em 1837) e principalmente Agassiz construíam, na Suíça, a visão da existência de múltiplas eras do gelo, em um momento no qual a maioria dos geólogos pensava que a Terra estaria resfriando (cf. Woodward, 2014). A publicação de Études sur les glaciers, por Louis Agassiz, em 1840, no mesmo ano em que Dumont d'Urville descobre a Antártica (a Terra australis incognita, que vinha sendo objeto de viagens de exploração desde Thomas Cook), e a publicação de Théorie des glaciers de la Savoie, de Louis Rendu, um ano depois, estabeleceram as bases do que depois viria a ser a glaciologia (cf. Remy & Testut, 2006).

A geologia, que se debateu entre o uniformismo de Hutton (que enfatizava o papel da lenta erosão fluvial) e o catastrofismo de Buckland (que via no relevo heranças do Dilúvio), consolida-se como disciplina no cânon do uniformismo de Lyell. Agassiz foi capaz de convencer Buckland e, depois, Lyell de suas posições. Mas a incorporação das eras do gelo pela geologia foi superficial, pois, onde Agassiz via a atuação de geleiras gigantescas, Lyell sustentava que icebergs teriam transportados blocos de pedra para regiões que depois emergiram do fundo dos oceanos. Os vastos mantos de gelo da Antártida e da Groenlândia ainda eram praticamente desconhecidos dos europeus. Foi somente nas três últimas décadas do século XIX que a geologia reconheceu que a Terra teria sido coberta por vastos glaciares, passando a debater de forma mais sistemática se teriam ocorrido uma ou várias eras glaciais (cf. Kruger, 2013). No início do século XX, Penck e Bruckner mapearam as glaciações do quaternário na Europa, publicando Os Alpes na era do gelo em 1909 e estabelecendo o modelo geológico de quatro grandes eras do gelo (Gunz, Mindel, Riss e Wurm). Por volta da mesma época também ficou claro, com a descoberta da radioatividade, que a idade da Terra não era de apenas alguns milhões de anos, com os quais a ciência vinha trabalhando. Na década de 1860, William Thompson, depois, Lord Kelvin, havia estimado a idade da Terra em cem milhões de anos, difícil de compatibilizar com as descobertas da geologia; em 1897, estimou essa idade em 24 milhões de anos, tornando a compatibilização impossível. Já com o advento da radioatividade, Strutt sustentou, em 1905, a idade de dois bilhões de anos - hoje calculada em 4,54 bilhões de anos (cf. Malley, 2011; Powell, 2015) - para a Terra. A constatação da imensa profundidade do "abismo do tempo", com sua escala de bilhões de anos, seria um dos alicerces das ciências do sistema Terra no século XX (bem como para as ciências planetárias, a astronomia e a cosmologia).

A geologia tinha trazido à tona a questão das eras do gelo, mas não foi capaz de oferecer uma resposta sobre o que poderia provocar mudanças climáticas tão radicais. As pesquisas físico-químicas de John Tyndall levantaram pistas sobre essas mudanças, mostrando que a atmosfera poderia regular a perda de calor do planeta. Medindo a absorção de radiação infravermelha por distintos gases, ele demonstrou, em 1863, que o vapor de água, o dióxido de carbono e o metano poderiam produzir um aumento de temperatura. Porém uma explicação alternativa vinha sendo forjada desde que o matemático francês Joseph Adhemar propôs, em 1842, que as eras glaciais tinham sua dinâmica controlada por forças astronômicas, em especial, os ciclos de precessão dos equinócios. Foi, todavia, James Croll que forneceu, entre 1864 e 1890, uma explicação mais sistemática de como as eras glaciais poderiam ser o resultado das mudanças da insolação da Terra em função de oscilações em sua órbita ao redor do Sol. Porém as datações das eras do gelo eram imprecisas e a teoria de Croll previa glaciações apenas no hemisfério norte, o que levou ao seu descrédito nas décadas seguintes (cf. Flemming, 2010). Svante Arrhenius retomou e desenvolveu, em 1896, a visão de Tyndall e calculou o impacto da duplicação da quantidade de CO2 na atmosfera, prevendo que a continuidade da utilização de combustíveis fósseis pela humanidade - na sua época, o carvão - elevaria, a muito longo prazo, a temperatura média do planeta entre 2,5 e 4 graus, algo que ele considerava benéfico. Mas, na sequência, as experiências de outro sueco, Angstrom, que mediam a absorção de radiação infravermelha pelo CO2, levantaram questionamentos às conclusões de Arrhenius. As duas principais teorias construídas no século XIX para explicar as mudanças climáticas e as eras glaciais pareciam assim, no início do século XX, duvidosas (e diversas outras ainda vicejavam: mudanças na radiação do Sol; mudanças na posição dos polos; transformações na cobertura vegetal da superfície da Terra; gases expelidos por vulcões etc.) (cf. Flemming, 1998; Weart, 2004).

2 O CLIMA E A FORMAÇÃO DA METEOROLOGIA MODERNA

O estudo do clima do passado e das eras do gelo era dificultado pela ausência de um conhecimento sobre o funcionamento do sistema climático do presente. Hoje há uma narrativa linear dominante no discurso da climatologia sobre sua própria história. Nela, Fourier, Tyndall, Arrhenius, Callender e Kelling são apresentados retrospectivamente como aqueles que vão gradativamente fornecendo as bases científicas para o entendimento do efeito estufa, do ciclo do carbono e do aquecimento global antropogênico, reconhecido finalmente nos anos 1960. Mas a história real, pelo menos até então, é bem mais complexa e conheceu diversas rupturas e convergências de saberes que gradualmente foram estabelecendo e delimitando disciplinas e definindo os parâmetros de cientificidade para os pesquisadores da área (cf. Leite, 2015). Na origem do estudo do clima, uma abstração do tempo particular vivido localmente por cada ser humano e comunidade, estão elementos distintos que apenas se combinaram nas décadas de 1960 e 1970 para a compreensão da física e da química da atmosfera e sua dinâmica como parte do sistema Terra; o problema prático de assentar a previsão do tempo sobre bases matemáticas; e a resposta ao problema de por que existiram eras do gelo.

Frederik Nebeker (1995) constatou a existência de três tradições distintas naquilo que historicamente foi chamado de meteorologia: o registro e compilação das observações do tempo (chamado, na virada do século XX, de climatologia). A explicação teórica dos fenômenos atmosféricos com base em princípios gerais (que era uma parte da geofísica e da geoquímica e, em meados do século XIX, mesmo da astronomia, e que hoje constitui um dos núcleos da climatologia) e a atividade prática de previsão do tempo, da temperatura, do vento e da chuva (o que hoje chamamos de meteorologia) constituem as duas dimensões empíricas, teóricas e práticas da meteorologia, que se separaram no século XIX, após a invenção do telégrafo, desenvolvendo, cada uma, seus próprios métodos.

A meteorologia sinóptica foi a que primeiro avançou, promovendo, na segunda metade do século XIX, uma revolução prática na previsão do tempo (cf. Nebeker, 1995; Edwards, 2010). Elias Loomis produziu, em 1842, o primeiro mapa sinóptico do tempo, que possibilitava visualizar as características da atmosfera em um dado momento (pressão, temperatura, velocidade e direção dos ventos) em uma representação espacial; o mapa meteorológico seria a ferramenta básica de descrição, análise e prognóstico do tempo até o uso do computador e do satélite. Loomis também enfatizou a importância de uma rede disseminada de coleta de dados transmitidos por telégrafo para a produção de mapas.1 E, em meados do século XIX, Matthew Maury coletou os diários de navegação de grande número de embarcações, produzindo os primeiros mapas marítimos de ventos e correntes do mundo (cf. Cox, 2002). Com a formação de grandes redes de coleta e transmissão de informações sobre o tempo a previsão começou a estar assentada em bases mais objetivas, ainda que não quantitativas.

Havia, contudo, um conservadorismo da ciência sobre o tema que tornava o progresso na área lento; em muitos lugares, a meteorologia era uma atribuição da astronomia e tratava somente da descrição física da atmosfera; em outros lugares, a previsão do tempo era vista como atividade de charlatões. Apesar disso, houve uma grande pressão das marinhas das maiores potencias para que isso mudasse. A previsão sinóptica do tempo se impôs depois do naufrágio, durante a Guerra da Criméia, de mais de uma dúzia de navios da armada conjunta da Inglaterra, França, Áustria e do Império Otomano, no Mar Negro, em 13 de novembro de 1854, mobilizados na guerra contra a Rússia. Como essa tormenta cruzou o continente europeu, parecia aos militares que, na era do telégrafo, ela poderia ter sido prevista (cf. Barboza, 2012).

A partir daí, um primeiro sistema europeu de aviso de tempestades surgiu na Holanda, em 1860, seguido do sistema inglês em 1861 e do francês em 1863. Nos Estados Unidos, a formação de um serviço federal de meteorologia foi votada pelo Congresso em 1870, que o alocou junto ao exército; em 1891, ele foi transferido para o Departamento de Agricultura, tornando-se o Weather Bureau, que então contava com mais de 200 estações de coleta de dados.

Entrementes, estudando as obras de meteorologia do período anterior, William Ferrel foi capaz de descrever, a partir de 1856, a circulação geral da atmosfera, fundando a dinâmica dos fluidos geofísicos e oferecendo as primeiras bases científicas para a descrição do tempo. Em 1902, Teisserenc de Bort utilizando balões não tripulados descobriu (com Richard Assmann), a estratosfera, ajudando a consolidar a ideia de um sistema de camadas concêntricas de fluidos de diferentes densidades, central na geofísica, ideia depois apropriada por Wegener para formular sua concepção da deriva continental (cf. Cox, 2002).

Apesar desses avanços, mantinha-se, no início do século XX, uma clivagem aparentemente intransponível entre o estudo da atmosfera como atividade das ciências naturais e a previsão do tempo, uma arte exercida por pessoas experientes na leitura das informações coletadas pela rede de estações meteorológicas e expressas nos mapas sinópticos, cujo alcance vinha se ampliando há décadas sem maiores mudanças na forma de previsão, como um saber prático transmitido pelos mais experientes para novos aprendizes no interior dos serviços de meteorologia. Ao mesmo tempo, a coleta e armazenamento de bancos de dados sobre o tempo e o seu tratamento estatístico, feitos principalmente pela geografia, era chamada de climatologia, e desprovida de ambições teóricas, incapaz de se debruçar sobre problemas como os climas do passado remoto e a ocorrência das eras do gelo; para essa climatologia o clima seria, no seu horizonte de tempo, estável.

Foi então que a Escola de Bergen, estabelecida pelo norueguês Vilhelm Bjerknes, alicerçou a meteorologia de maneira direta nas ciências naturais, com equações capazes de, teoricamente, descrever e prever o tempo (atmosférico). No Instituto Geofísico de Bergen ele criou o mais influente centro de pesquisa sobre o tempo atmosférico, que foi capaz de fundir a nova geofísica, como previsão prática do tempo, com a meteorologia.2 Em seguida, o inglês Lewis Fry Richardson publicou em 1922, um estudo intitulado "Weather prediction by numerical process" (cf. Lynch, 2006; 2008). Em poucas palavras, ele equaciona o problema básico da modelização numérica do tempo solucionando as equações não lineares propostas por Bjerknes que, resolvidas, permitiam a previsão do tempo. Porém não existiam ferramentas para fazer isso rapidamente. Eram necessárias semanas de trabalho para fazer uma previsão de 24 horas. E "computador" era então o nome dado às pessoas (quase sempre mulheres) que faziam cálculos mecânicos necessários para muitas atividades científicas, de engenharia e de administração. Segundo Richardson, 64 mil "computadores" seriam necessários para acompanhar o tempo através do planeta. De qualquer modo, Bjerknes, Richardson e a Escola de Bergen tinham lançado o processo de quantificação da meteorologia, integrando-a plenamente na lógica das ciências naturais, mas a previsão do tempo não era operacional pela inexistência de computadores eletrônicos (cf. Friedman, 1993; Harper, 2008; Nebeker, 1995).

A meteorologia era, também, incapaz de conectar-se com a climatologia, uma disciplina de arquivistas e estatísticos (os "empiristas"), visando descrever tendências de longo prazo do clima. Julius von Hann, em seu Manual de climatologia, publicado em 1883, apresentou a climatologia como uma ciência descritiva auxiliar da geografia.3 Para estes pesquisadores, a atmosfera era um sistema muito complexo, que deveria ser estudado por métodos estatísticos, buscando regularidades a partir da análise de séries históricas. Como afirmou o meteorologista inglês Durst em l951, "a climatologia, como praticada no presente, é primariamente um estudo estatístico sem base na compreensão física que é essencial para o progresso" (Durst apudEdwards, 2010, p. 72).

Foram as consequências da Segunda Guerra Mundial que modificaram essa situação, em especial nos Estados Unidos. A guerra estimulou a formação de uma vasta rede de meteorologistas que tinham agora condições de definir e lidar com a atmosfera em termos matemáticos (cf. Leite, 2015). A guerra também abriu caminho para os grandes computadores eletrônicos, essenciais na montagem de toda a infraestrutura de pesquisa cientifica para a qual convergiam os esforços de instituições militares, acadêmicas e empresariais (cf. Akera, 2007; Isaacson, 2014). Daí nasceria a operacionalização da previsão numérica do tempo, proposta por John von Neuman. Para viabilizar sua construção, ele apresentou e coordenou o "Projeto meteorológico", a proposta do primeiro computador digital do mundo, que poderia não apenas prever o tempo, mas (sugeria) também poder controlá-lo de modo que o clima pudesse ser utilizado como uma arma de guerra contra os soviéticos (cf. Edwards, 2010; Hamblin, 2013; Harper, 2008).

Mas a teoria física e matemática da circulação da atmosfera ainda requeria desenvolvimentos, em especial no aprimoramento das equações não lineares que definiam o movimento da atmosfera. O equacionamento matemático da modelização numérica do tempo foi feito, no início dos anos 1950, por Jules Charney no marco do Projeto Meteorológico. Em 1954, a previsão numérica do tempo tornava-se regular nos Estados Unidos. Na década que se seguiu, diversos países dotaram-se de condições para prever o tempo com o auxílio de computadores. Esses avanços na computação e na meteorologia produziram uma revolução na climatologia, com o encontro da modelagem atmosférica de longo prazo por computadores com as novas pesquisas sobre o ciclo global do carbono (cf. Dalmedico, 2001; Edwards, 2010; Leite, 2015).

3 MILANKOVITCH, A PALEOCLIMATOLOGIA E A DINÂMICA DAS ERAS GLACIAIS

Mas os avanços na meteorologia pelos desenvolvimentos da Escola de Bergen e pela operacionalização da previsão numérica do tempo, bem como sua incorporação pela climatologia científica não forneceram, diretamente, uma explicação para a formação de eras do gelo. Isso acabou ocorrendo em um terreno disciplinar totalmente diferente, evidenciando a plasticidade das disciplinas nas ciências do sistema Terra, uma transdisciplinaridade que expressava o fato de que tratavam de subsistemas de um mesmo sistema, quando não abordagens distintas do mesmo processo. A solução inicial para o mistério das eras do gelo foi obra do engenheiro e matemático sérvio Milutin Milankovitch, que estudou em Viena antes da primeira guerra e reformulou a teoria astronômica como uma teoria matemática da insolação entre 1912 e 1941, retomando e consolidando as ideias de Croll. Milankovitch calculou os três parâmetros que determinam a posição da Terra em sua órbita ao redor do Sol:

  1. a sua excentricidade (o grau de alongamento da órbita elíptica da Terra, variando em um ciclo entre 95 e 125 mil anos e normalmente referido como o ciclo de cem mil anos);

  2. a sua obliquidade ou inclinação (a inclinação do Equador na elíptica, de aproximadamente 41 mil anos);

  3. a precessão (o movimento do eixo da Terra frente a estrelas fixas, de aproximadamente 23 mil anos).

O livro de Milankovitch, Teoria matemática dos fenômenos térmicos produzidos pela radiação solar (Théorie mathématique des phénomènes thermiques produtis par la ratiation solaire), publicado em 1920, influenciou fortemente o cientista alemão Wladimir Köppen, genro de Alfred Wegener, que publica em colaboração com Milankovitch, em 1924, Os climas do passado geológico (Die Klimate der geologischen Vorzeit). A colaboração de Milankovitch com Wegener seguiu até a morte deste último em 1930, na Groenlândia, onde buscava provas para a deriva dos continentes, e com Kopper, também até a morte deste em 1940, aos 93 anos. A teoria astronômica da insolação articulava processos da Terra sólida, hidrosfera, criosfera e atmosfera. Em 1941, pouco antes da invasão de Belgrado pelas tropas alemãs, Milankovitch publicou seu Canon da insolação e o problema das eras do gelo. Mas, mesmo depois da segunda guerra mundial, a teoria de Milankovitch sofreu com as imprecisões dos registros paleoclimatológicos e, em especial, com os questionamentos ao modelo das quatro glaciações alpinas descritas por Penck e Bruckner. Milankovitch morreu em 1958, aos 79 anos, vendo suas ideias ainda muito questionadas. Sua teoria só foi consagrada quando recebeu confirmações da paleoestratigrafia nos anos 1970.

Enquanto isso a teoria das mudanças climáticas pela alteração da composição da atmosfera também foi retomada. Callendar retornou aos estudos sobre o papel do dióxido de carbono na modificação do clima depois de 1938. Mas foram apenas trabalhos desenvolvidos na década de 1950 que permitiram compreender o ciclo global do carbono e seu papel na dinâmica do clima da Terra. A motivação para esse estudo deveu-se, antes de tudo, à necessidade de entender as precipitações radioativas decorrentes dos testes nucleares. Os cientistas passam agora a dispor de computadores e equipamentos mais sensíveis do que os das gerações anteriores e podiam medir a absorção da radiação não só ao nível do mar mas também em altas altitudes. Além disso, o movimento do carbono podia agora ser traçado graças a uma nova ferramenta, desenvolvida na esteira do projeto Manhattan, a análise do isótopo radioativo carbono 14, criada por Willard Libby. Assim, Gilbert Plass, Hans Suess, Roger Revelle e Charles Keeling puderam descrever, entre 1953 e 1960, a absorção de dióxido de carbono pela atmosfera e pelos oceanos. Graças à combinação do Ano Geofísico Internacional com uma disponibilidade provisória de fundos de origem militar, Charles Keeling, trabalhando para o Instituto Scripps de Oceanografia, realizou medições precisas da concentração de dióxido de carbono no alto do cume do Mauna Loa, no Havaí, e na Antártica, constatando - entre 1958 e 1960 - que a presença desse gás na atmosfera estava crescendo. Keeling foi capaz, na década seguinte, de montar uma estação permanente no Mauna Loa, tornando sistemático o monitoramento dos níveis de CO2 na atmosfera. O resultado foi o gráfico serrilhado que mostra que a evolução da presença de CO2 na atmosfera, que estava em 315 partes por milhão em 1959 e atingiu 400 partes por milhão em 2014 (cf. Archer, 2009, 2010; Weart, 2004).

Mas a relação entre as eras do gelo e o ciclo do carbono não era evidente e não parecia ser equacionada pela modelagem por computadores, a ferramenta básica da nova climatologia (cf. Leite, 2015; Weart, 2004; Edwards, 2010; Gramelsberger & Feichter, 2011). Para conectar os dois fenômenos, uma paleoclimatologia precisaria reconstruir as temperaturas passadas da Terra, evidenciando seu comportamento em sintonia com os ciclos de Milankovitch, e reconstruir também a composição pretérita da atmosfera do planeta, mostrando a relação entre as mudanças da temperatura e a presença do CO2 e outros gases na atmosfera, e ainda ser capaz de simular todos estes elementos em modelagens sofisticadas.

A paleoclimatologia teria que utilizar diferentes indicadores para reconstruir elementos do clima do passado, em um paciente trabalho de detetive, mas isso dependia de progressos científicos e técnicos em áreas as mais distintas (cf. Bradley, 1999; Cronin, 2010). Um primeiro indicador das mudanças climáticas antigas foi descoberto na Suécia do início do século XX, nos polens, o que permitiu ao seu estudo, a palinologia, acompanhar as mudanças no clima e nas camadas de gelo. Um caso rapidamente ganharia as páginas dos livros de história pelo impacto que pode ter tido na transição do paleolítico para o neolítico, isto é, para a sedentarização humana e o estabelecimento da agricultura: Knud Jessen constatou a presença, em camadas de sedimentos antigos, dos resistentes grãos de pólen de uma planta alpina da família das rosáceas, a Dryas octopelata, que floresce em ambientes frios. Distinguindo entre os polens encontrados em camadas estratigráficas muito antigas, o pólen mais antigo das Dryas (atualmente datado de 18 mil a 15 mil anos atrás) revela a existência de camadas de um período intermediário sem polens, assim como uma camada mais recente contendo novamente polens, chamada de Dryas recente, os pesquisadores podiam saber que, após o final da última era do gelo (datado, em estudos recentes, de 14.500 anos atrás) e o início do período atual de aquecimento (que caracteriza o Holoceno), uma nova onda de clima glacial tinha ocorrido (hoje datada de entre 12.800 e 11.500 anos atrás). Esse "sobressalto" era um grande problema para a visão dominante na geologia, que considerava que as mudanças climáticas ocorriam muito lentamente.

Gráfico 1
Temperatura média no centro da Groenlândia no final do Pleistoceno e no Holoceno a partir dos dados levantados no núcleo GISP2. Destacam-se as grandes flutuações no Pleistoceno, o repique do clima glacial no Younger Dryas e a estabilização da temperatura em patamares mais elevados no período Holoceno (reproduzido de Cuffey & Clow, 1997, p. 26.390).

A existência do Dryas recente seria corroborada também pela análise de sedimentos dos solos oceânicos proposta por Wolfgang Schott, onde a presença do carbonato de cálcio das conchas de diferentes animais em distintas camadas revelava a alternância entre águas mais quentes e mais frias. Mas as séries de informações mais longas e mais completas dependiam do estabelecimento da análise de isótopos de elementos presos em longos núcleos extraídos de perfurações nos leitos oceânicos e nas camadas de gelo, que funcionariam como autênticas janelas para o passado. Se dispusesse dessa ferramenta, a geologia e a paleoclimatologia poderiam passar a trabalhar não mais com datas relativas, mas com datas numéricas confiáveis, com números absolutos (ainda que dotados de uma margem estatística de insegurança).

Isso ocorreu com os desenvolvimentos da datação radiométrica. Isótopos radioativos que existem na natureza decaem uniformemente em outros elementos até tornarem-se estáveis e, como a velocidade em que isso acontece é conhecida, pode-se datar uma determinada rocha ou camada que contém esse elemento. O desenvolvimento do espectrógrafo de massa nos anos 1940 possibilitou a operacionalização desse método. O método de datação mais conhecido foi o desenvolvido, em 1947, por Willard Libby, a datação por rádio-carbono (cf. Edwards, 2012). O carbono contém seis prótons e seis nêutrons, sendo, por isso, chamado de carbono 12 (ou 12C), mas existem isótopos de carbono com oito nêutrons, radioativos e instáveis, que acabam transformando-se em nitrogênio 14; metade dessa transformação acontece em 5.730 anos. Quando um organismo morre, ele para de absorver carbono 14 da atmosfera e a quantidade de carbono 14 vai diminuindo, devido a sua transformação em nitrogênio e, assim, a proporção em relação ao carbono 12 vai também diminuir. Harold Urey já vinha estudando outro isótopo, o do oxigênio 18. Ele propôs que uma relação estável existia entre o oxigênio 16 (ou 16O, que contém oito prótons e oito nêutrons) e seu isótopo 18O (que contém dez nêutrons). A razão entre 18O/16O podia ser usada para determinar a temperatura das precipitações através do tempo. Os dois métodos - dos isótopos de carbono e de oxigênio - tornaram-se viáveis depois dos anos 1950, permitindo a datação de tempos geológicos relativamente recentes (outros isótopos são utilizados para datações na escala de bilhões de anos e outros métodos utilizados para curto prazo na escala de centenas e poucos milhares de anos).

Em 1947, o oceanógrafo sueco Borje Kullenberg projetou um dispositivo capaz de retirar longos núcleos de sedimentos macios dos leitos oceânicos, abrindo caminho para reconstruir a história do clima passado. Os foraminíferos, em especial, revelaram-se indicadores importantes das condições do passado. Quando esses minúsculos protistas morrem, suas conchas são depositadas no fundo do mar e sua presença em diferentes camadas de sedimentos permitem conhecer propriedades das águas onde eles viveram. Cesare Emiliani, que trabalhava no laboratório de Urey, procurou medir os isótopos de oxigênio nas minúsculas conchas de foraminíferos. Em 1955, ele apresentou um estudo em que reconstituía o registro das mudanças de temperatura ao longo de quase 300 mil anos. Polêmicas sobre essas datações e também outras utilizando 14C duraram quase duas décadas, envolvendo figuras fundadoras da paleoclimatologia, como Willi Dansgaard, Wallace Broecker, George Kukla e Nicholas Shackleton. Novos métodos, tais como a datação de corais de recifes fósseis por decaimento de isótopos de urânio e a análise e datação dos ciclos de reversão do campo magnético da Terra, foram introduzidos. Emiliani, Broecker, Kukla e outros foram convencendo-se de que as mudanças de clima coincidiam com os ciclos de Milankovitch. Uma consequência dessa abordagem, importante na época mas hoje superada, era que, na lógica dessas análises, a Terra deveria estar se encaminhando para uma nova era glacial (cf. Weart, 2004; Cox, 2005; MacDougall, 2013).

Muitos pesquisadores ainda relutavam em aceitar a teoria dos ciclos astronômicos, quando, em 1973, Shackleton forneceu dados bastante convincentes, empregando datação por potássio radioativo em um núcleo oceânico bastante longo e completo, o V28-238 (o 238º núcleo de sedimentos da 28ª viagem de pesquisa do Vema, navio do Observatório Geológico Lamont-Doherty, da Universidade de Columbia). Esse núcleo cobria um milhão de anos, incluindo a última reversão do polo magnético da Terra, 780 mil anos atrás. Os dados recolhidos mostravam a existência não das quatro eras do gelo propostas por Penck e Bruckner no início do século XX, mas de muitas eras glaciais ao longo de quase todo esse período (em uma proporção de cerca de 80 mil anos de eras glaciais, para cerca de 15 mil anos de eras interglaciais), com rápidas mudanças climáticas. Utilizando sofisticadas técnicas estatísticas, ficava evidente a existência, nesses dados, de ciclos globais ao redor de 20 mil e 40 mil anos, dominados por um ciclo forte de cem mil anos, todos previstos por Milankovitch. Em 1976, Hays, Imbrie e Shackleton publicaram a conclusão desses estudos, que é normalmente tomada como marco da aceitação ampla da teoria astronômica de Milankovitch (cf. Hays; Imbrie & Shackleton, 1976; Imbrie & Imbrie, 1986).

Mas os ciclos de Milankovitch, que ganharam reconhecimento acadêmico generalizado, foram incorporando novidades crescentes. Wallace Broecker propôs, em 1965, que o sistema climático atual tinha dois estados estáveis, o glacial e o interglacial, e que as mudanças na insolação da Terra deflagravam rápidas transições de estado. Em seguida, para explicar a profundidade das mudanças de temperatura, outros elementos e processos (nível de CO2, mudanças na circulação oceânica termoalina etc.) seriam introduzidos, e seus efeitos também teriam que estar inscritos em registros paleoclimáticos cada vez mais precisos. Por fim, a discussão sobre os ciclos de Milankovitch começa a desconectar-se do debate sobre uma futura era do gelo. Em 1975, o próprio Broecker publicava na Science um artigo, no qual afirma:

se o material particulado produzido pelo homem não é importante como uma das principais causas das alterações climáticas, um forte argumento pode sustentar que a presente tendência de resfriamento irá, dentro de algo como uma década, dar lugar a um aquecimento acentuado induzido pelo dióxido de carbono. Por analogia a eventos similares no passado, o resfriamento natural do clima desde 1940, foi mais do que compensado pelo efeito do dióxido de carbono, que em breve será manifestado. Quando isso acontecer, o aumento exponencial do teor de dióxido de carbono atmosférico tenderá a tornar-se um fator significativo e, no início do próximo século, vai ter conduzido a temperatura média planetária para além dos limites experimentados durante os últimos 1000 anos (Broecker, 1975, p. 460).

O problema futuro não seria mais o retorno das eras glaciais, mas antes seu desaparecimento como resultado das emissões de carbono originadas dos combustíveis fósseis queimados pelo mundo industrial. O que vinha sendo chamado de "Holoceno" poderia ser o início ou uma transição, em termos geológicos, para o "Antropoceno"?

4 NÚCLEOS DE GELO, NOVOS RITMOS E MUDANÇAS CLIMÁTICAS ABRUPTAS

Se a reconstituição das mudanças climáticas do passado não é mais o augúrio de uma futura era do gelo, ela permite, entretanto, avanços na compreensão da dinâmica passada de alternância de períodos de climas mais frios e secos, e climas mais quentes e úmidos, de eras glaciais e interglaciais que se desenvolveram na época pleistocena, ao longo dos últimos 2,6 milhões de anos, e que, com o Holoceno, iniciado há cerca de dez mil anos, compõe o período quaternário (em 2009, a União Internacional das Ciências Geológicas alterou a antiga data de início do Pleistoceno de 1,806 milhões de anos para os atuais 2,588 milhões de anos, estabelecendo 11.700 anos atrás, o fim do Dryas recente, como data de início do Holoceno). Mas, para isso, os cientistas teriam que estabelecer com muito mais precisão as informações sobre as temperaturas, a composição da atmosfera, a relação entre a atmosfera, os oceanos e a criosfera e a ocorrência de fenômenos como erupções vulcânicas e quedas de corpos celestes - dados até então originados principalmente de núcleos de sedimentos oceânicos e geralmente pouco precisos.

Informações mais acuradas foram sendo extraídas pelos núcleos de gelo retirados da Antártida e principalmente da Groenlândia, resultado de grandes investimentos em logística e instrumentos e de um trabalho de perfuração em condições muito difíceis. Sua origem pode ser rastreada até as pesquisas de Ernst Sorge, um membro da fatídica expedição liderada por Alfred Wegener à Groenlândia em 1930, que tinha mostrado ser possível distinguir variações anuais na densidade das neves dos verões e invernos do gelo antigo, aprisionado nos campos que recobrem a ilha. Sorge tinha também demonstrado a enorme profundidade desses campos no centro da Groenlândia. O gelo poderia ser um arquivo fiel da história atmosférica, caso seu conteúdo fosse decifrado (cf. Cox, 2005; Dansgaard, 2005; Langway, 2008; Jouzel, 2013; MacDougall, 2013).

O passo inicial para concretizar a extração de núcleos de gelo de grande profundidade foi dado, na década de 1950, pelo glaciologista Henri Bader, cientista-chefe do Snow, Ice and Permafrost Research Establishment (SIPRE), do exército norte-americano. Aproveitando o interesse dos militares durante a guerra fria pelo estudo dos campos de gelo do Ártico, ele propôs um programa de extração de núcleos de gelo da Groenlândia e da Antártida, iniciado em 1956 e alavancado, na sequência, pelas explorações e pesquisas do Ano Geofísico Internacional (AGI), em 1957-59 (cf. Belanger, 2006). Núcleos pequenos de cerca de 300 metros foram extraídos, com imensas dificuldades, durante o AGI, nas duas regiões. Em seguida, tendo como base Camp Century - a "cidade sob o gelo", uma base militar que o exército dos Estados Unidos começou a construir no norte da Groenlândia, em 1959, alimentada pela energia de uma usina nuclear - Chester Langway realizou várias perfurações para extração de núcleos na região. Em 1961, o SIPRE fundiu-se com outro laboratório do exército transformando-se no Cold Regions Research and Engineering Laboratory (CRREL). Suas pesquisas obtiveram, entre 1966 e 1968, os primeiros núcleos de gelo de grande profundidade em Camp Century (onde uma equipe atingiu o leito rochoso da região, à 1.387 metros), e na Antártida (onde uma perfuração na Estação Byrd atingiu, em 1968, 2.164 metros) (cf. Langway, 2008). Os núcleos de Camp Century e de Byrd, extraídos nos anos 1960, foram, na década de 1970, as principais fontes de informação para a reconstrução dos paleoclimas.

As amostras coletadas ainda na década de 1950 tinham sido submetidas por Samuel Epstein, do California Technological Institute (Caltec), à análise de isótopos de oxigênio que revelavam os ciclos anuais de acumulação de neve, tornando-se o procedimento padrão para o estudo dos núcleos de gelo. Depois de 1966, o programa de análise dos núcleos do CRREL, dirigido por Langway, animou uma rede de colaboração internacional, onde se destacaram também a atuação do dinamarquês Willi Dansgaard, da Universidade de Copenhague (que continuou refinando a análise da relação 18O/16O, maior nas camadas de verão e menor nas de inverno), e o geoquímico suíço Hans Oeschger, da Universidade de Berna (que mediu o 14C do CO2 recuperado das bolhas de ar dos núcleos e depois os níveis de CO2 e de CH4). A melhoria das técnicas de perfuração e análise permitiu extrair cada vez mais informações dos núcleos de gelo, não apenas indicações das temperaturas das camadas estratigráficas correspondentes às diferentes épocas, mas também a composição da atmosfera passada. Em 1969, Dansgaard apresentou em Yale sua primeira análise do registro no núcleo de gelo de Camp Century, recuperando o clima da Terra ao longo de cem mil anos. Ele observou a existência de múltiplas e rápidas mudanças no clima do período glacial, com grandes oscilações de temperatura entre períodos frios e breves períodos quentes, o que está em desacordo com o pressuposto de que as mudanças climáticas se dão de maneira lenta e gradual.

Langway, Dansgaard e Oeschger aprofundaram e refinaram a extração de informações em núcleos de gelo, e impulsionaram o Greenland Ice Sheet Program (GISP), um projeto concebido para extrair três longos núcleos na região. Eles mapearam toda a calota de gelo da Groenlândia e realizaram onze perfurações exploratórias entre 1971 e 1978. Eles foram capazes de testar seus métodos nos gelos de períodos mais recentes, inovando o conhecimento do impacto do clima, nos últimos séculos, sobre a história humana no hemisfério norte. Por outro lado, em virtude de restrições orçamentárias, o GISP acabou perfurando apenas um núcleo profundo até o leito rochoso, próximo a uma estação norte-americana de radar em Dye-3, no sul da ilha, uma localização muito quente que invalidava as análises do período do Holoceno, os últimos dez mil anos. A perfuração em Dye-3, iniciada em 1979, atingiu as rochas a 2.037 metros em 1981, retirando um núcleo de excelente qualidade para o Pleistoceno, que foi submetido a uma análise preliminar ainda no local. Dessa forma já em 1982 os pesquisadores puderam apresentar suas novas conclusões, que corroboraram e precisaram as descobertas de Camp Century.

Os pesquisadores dinamarqueses e suíços já tinham, então, pleno domínio das técnicas capazes de análise da composição das bolhas de ar e outros elementos aprisionados nos núcleos de gelo. As bolhas de ar eram atmosferas fósseis, a partir das quais era possível a reconstituição de suas temperaturas e composições. Uma forte correlação começava a ser estabelecida entre o nível de CO2 na atmosfera e a temperatura passada do planeta: durante as eras glaciais a atmosfera continha um terço a menos de CO2 do que no século XX, ao passo que essa quantidade aumentava nas eras interglaciais.

As comparações entre dados de diferentes fontes permitiram, em 1984, montar um mapa mais detalhado das mudanças climáticas durante a última era do gelo, com Dansgaard e Oeschger identificando, na Groenlandia, pelo menos 24 eventos de mudanças abruptas do clima. Eles localizaram dois ritmos de variações muito mais rápidos do que aqueles propostos pela teoria de Milankovitch, a saber, a precessão (23 mil anos), a inclinação (41 mil anos) e a excentricidade (cem mil anos).

Uma primeira nova regularidade é um ciclo mais curto de frequência elevada, variando entre 1.500 e 4.500 anos, que Wallace Broecker batizou de "eventos Dansgaard-Oeschger" (eventos D-O). Ele ocorre no hemisfério norte e é marcado por aquecimentos brutais de mais de 10°C por vezes em menos de uma década, com um resfriamento gradual que termina em um forte período glacial, para depois conhecer um novo rápido aquecimento.

Uma segunda regularidade é um ciclo mais longo de frequência baixa, variando de cinco a dez mil anos, que também tinha sido detectado pelo oceanógrafo alemão Hartmut Heinrich em análises de núcleos do solo oceânico no Atlântico Norte, sendo, por isso, batizado de "eventos de Heinrich". Ele é igualmente marcado por mudanças rápidas de temperatura, mas enquanto o hemisfério sul continua aquecendo, o hemisfério norte conhece um resfriamento rápido. Heinrich detecta, nesses núcleos, tanto a presença de detritos rochosos continentais maiores no leito oceânico como uma grande presença de um plâncton foraminífero de águas polares. A explicação proposta por Heinrich consiste em que fragmentos de rochas oriundos de glaciares foram transportados para o Atlântico por um aumento do número de icebergs de glaciares continentais enquanto derretiam.

Wallace Broecker já tinha lançado, antes, a hipótese de que as mudanças climáticas abruptas do período glacial podem ser explicadas por alterações na circulação oceânica global, que provocam o desligamento periódico da circulação termoalina. O processo pelo qual as águas quentes e salinas da corrente do golfo afundam no Atlântico Norte e seguem em direção do Atlântico Sul e depois dos demais oceanos seria, nesta hipótese, bloqueado pelo fluxo de águas doces e frias provenientes do derretimento das geleiras da América do Norte e da Groenlândia. Assim, a interação atmosfera/criosfera/oceano explica um problema apontado na dinâmica dos ciclos de Milankovitch, o de que as variações de insolação não podem promover mudanças climáticas tão intensas. Mecanismos complexos de feedback sobredeterminam e tornam complexos os ciclos astronômicos de Milankovitch, multiplicando as pequenas mudanças de temperatura provocadas pela variação periódica da insolação; pelo menos 50% da amplificação exigida podem originar-se das variações de CO2 previamente existente na atmosfera.

As novas perfurações dos anos 1990 confirmaram essa nova temporalidade dos processos climáticos do passado, revelada por Camp Century e Dye-3. Um consórcio de universidades europeias promove o Greenland Ice Core Project (GRIP), que atinge 3.029 metros em 1992, e, em 1993, uma nova perfuração, envolvendo doze universidades norte-americana, a GISP-2, atinge o leito rochoso da geleira a 3.053 metros de profundidade. A distância entre as duas perfurações é de apenas 20 milhas, o que permite uma comparação dos resultados e uma precisão sem igual na datação das mudanças ocorridas nos últimos cem mil anos. Outras perfurações longas foram feitas, posteriormente, na Groenlandia (North GRIP e NEEM). Como destacam Mayewski e White (2002), após GISP-2 impôs-se, de maneira taxativa, a constatação de que eventos de mudanças climáticas rápidas são naturais e foram frequentes no passado, muito antes de os seres humanos iniciarem seu grande experimento de geoengenharia batizado de aquecimento global. Passou a ser incontestável que o clima não se modifica de maneira lenta e gradual, mas de forma brusca e radical (cf. Broecker et al., 1990; Dansgaard et al., 1993; Severinghaus & Brook, 1999; Broecker & Kunzig 2008). Dansgaard e colaboradores precisaram, inclusive, quão abruptas foram as mudanças climáticas que marcaram o fim do Dryas recente: elas ocorreram em apenas vinte anos (cf. Dansgaard et al., 1989). A Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, preocupada com o impacto disso sobre as mudanças climáticas, constituiu um grupo de trabalho para tratar do tema (cf. NAS, 2002). A combinação de forças externas e internas ao sistema climático, marcado por sua enorme complexidade e múltiplos mecanismos de feedback, traz todas as marcas de uma dinâmica não linear (cf. Alley, 2000).

Os resultados das perfurações na Groenlândia foram confirmados também pelas difíceis explorações na Antártida. Diversas equipes franco-russas analisaram sucessivos núcleos de perfurações realizadas na estação russa de Vostok, na Antártida, situada sobre um remoto lago subterrâneo.4 O seu núcleo 5G foi retirado em 1995, atingindo 3.623 metros e permitindo reconstituir o clima e o nível de CO2 dos últimos 420 mil anos (cf. Petit et al., 1999). A perfuração no Dome C, uma área com baixa acumulação de neve, atingiu, em 2005, o leito rochoso, recuperando um núcleo de gelo que cobria mais de 800 mil anos. O time japonês que trabalhou no Dome F obteve, em 2007, um núcleo que abrangia 720 mil anos. E o projeto West Antarctic Ice Sheet (WAIS) extraiu um núcleo de 3405 metros em uma região de grande acumulação de neve, que cobria apenas os últimos 62 mil anos, o que propiciou a obtenção de registros de altíssima definição (Jouzel, 2013).

Os núcleos de gelo são apenas uma das técnicas de obtenção de informações paleoclimatológicas e muito se avançou em outras técnicas desde que Shackleton analisou os núcleos de sedimentos marinhos recolhidos pelo Vesta nos anos 1970. Estas análises confirmaram o ritmo frenético de mudanças climáticas por um período muito mais longo do que aquele que podia ser recuperado pelos núcleos mais longos da Groenlândia (que atingiam no máximo 123 mil anos) e da Antártica (que atingiam no máximo 800 mil anos), impondo uma nova agenda de pesquisa e tornando a paleoclimatologia uma peça central nos debates sobre o aquecimento global. Os relatórios sobre as bases físicas da ciência do clima do IPCC trazem agora um alentado capítulo sobre "informação dos arquivos paleoclimáticos" (IPCC, 2013, p. 384-464).

A expressão "idade do gelo" ou "era do gelo" adquiriu também uma conotação mais ampla nos anos 1990 com o surgimento de evidências geológicas de que a Terra teria sido, em passados geologicamente mais remotos, totalmente coberta por neve, fornecendo evidências a favor da hipótese da Terra bola de neve (snowball Earth). Sugerida teoricamente pelo climatologista russo Mikhail Budyko, sua existência começou a ser sustentada empiricamente por Joseph Kirschvink (1992). Hoje, elas sugerem que, começando há 715 milhões de anos, a Terra foi coberta de gelo por 120 milhões de anos; mas a Terra teria sido totalmente nevada em outras oportunidades (cf. Walker 2003).

Gráfico 2
Vostok, Antártida, 1999 - O clima dos últimos 420.000 anos. (Fonte: Petit et al., 1999; U. S. Global Change Research Program. Disponível em: <http://www.usgcrp.gov/usgcrp/Vostok.jpg>.)

Muitas questões sobre as eras do gelo permanecem em aberto. Por que, em primeiro lugar, a era do gelo do Pleistoceno se iniciou há 2,6 milhões de anos? Será porque, como argumentam alguns pesquisadores, a formação do istmo do Panamá, neste período, separou as águas do Caribe daquelas do Pacífico? Ou foi uma consequência final de um longo processo de sequestro de carbono que acompanhou a formação do Himalaia? Por que a frequência dominante dos ciclos de Milankovitch foi, no último milhão de anos, a dos ciclos de cem mil anos? Por que o Holoceno se mostrou um período interglacial tão longo e relativamente estável? Será porque, como propõe Ruddiman (2003), a atividade humana impacta o clima global há já muito tempo, através da agricultura? Essas e outras questões, que escapam ao alcance desse artigo, têm composto a agenda da paleoclimatologia nesse século XIX.

5 EVENTOS PASSADOS, AMEAÇAS FUTURAS

Em 21 de junho de 2012, os coordenadores do projeto de perfuração do lago El'gygytgyn,5 na Sibéria Oriental, 100 quilômetros ao norte do Círculo Polar Ártico, lançaram um comunicado de imprensa resumido suas descobertas até aquele momento, divulgadas no dia anterior em artigo na Science (cf. Melles et al., 2012). Esse comunicado, baseado na análise de um núcleo de sedimentos do fundo do lago, recolhido em 2009, afirmava:

As primeiras análises do mais longo núcleo de sedimentos já extraído em terra no Ártico, publicado esta semana na revista Science, documenta que intervalos de calor intensos, mais quentes do que os cientistas pensavam ser possíveis, ocorreram aí ao longo dos últimos 2,8 milhões de anos. Além disso, esses períodos de calor extremo correspondem estreitamente com momentos em que partes da Antártida estiveram livres de gelo e também quentes, sugerindo forte conectividade climática inter-hemisférica. (...)

Os núcleos de sedimentos do Lago El'gygytgyn refletem a história climática e ambiental do Ártico com grande sensibilidade. As propriedades físicas, químicas e biológicas dos sedimentos correspondem ao padrão glacial/interglacial conhecido globalmente como eras glaciais. No entanto, é evidente que algumas fases quentes são excepcionais, marcadas por uma atividade biológica extraordinariamente alta no lago, bem acima dos pontos mais baixos de ciclos climáticos bastante regulares. Para quantificar as diferenças climáticas associadas com interglaciais de intensidade variáveis, quatro fases quentes foram investigadas em detalhe: as duas mais recentes, interglaciais "normais", desde 12 mil anos atrás e há cerca de 125.000 anos atrás, e dois dos "super" interglaciais, há cerca de 400.000 e há cerca de 1,1 milhões de anos atrás.

De acordo com reconstruções do clima baseadas nas amostras de pólen recolhidas, as temperaturas do verão e a precipitação anual durante os "super" interglaciais foram cerca de 4 a 5 graus Celsius mais quentes e cerca de 12 polegadas (300 mm) mais úmidas do que durante os interglaciais normais. Os climas super-interglaciais sugerem que é praticamente impossível que a camada de gelo da Groenlândia tivesse existido na sua forma atual nesses momentos.

Simulações utilizando um modelo climático de última geração mostram que a alta temperatura e precipitação durante os "super" interglaciais não podem ser explicados pelos parâmetros orbitais da Terra ou por variações apenas nos gases de efeito estufa na atmosfera, os quais os geólogos costumam ver dirigindo o padrão glacial/interglacial durante as eras do gelo. Isso sugere que feedbacks climáticos adicionais estão operando. Os cientistas suspeitam que o gatilho para interglaciais intensos pode estar na Antártida. Trabalhos anteriores pelo programa internacional ANDRILL descobriram intervalos recorrentes durante os quais o manto de gelo da Antártida ocidental derreteu. O presente estudo mostra que alguns desses eventos combinam muito bem com os "super" interglaciais no Ártico (ICDP, 2012, on line).

A ideia de que a era do gelo do Pleistoceno tinha conhecido períodos de intenso calor já estava presente em outras pesquisas. Mas agora os pesquisadores demonstraram, com segurança, a existência de períodos "super-interglaciais", com temperaturas no norte da Sibéria bem mais elevadas do que atualmente. Além disso, a extração dos núcleos em El´gygytgyn indica uma interdependência entre processos climáticos nos dois hemisférios, reforçando a preocupação com as consequências de perdas de gelo simultâneas no Ártico e na Antártica, com enormes repercussões para o nível do mar.

O gradualismo e a linearidade tornaram-se, depois do século XIX, um a priori epistemológico para conceber a dinâmica da Terra, do clima e mesmo da vida. A sabedoria convencional e a ciência de então, envoltas pela ideologia do progresso, tinham sacramentado a ideia de que a Terra era estável, embora a descoberta das eras do gelo tivesse imposto a presença de mudanças, mas em uma história estabelecida em uma escala de tempo longuíssima (comprovada pela descoberta da radioatividade no início do século XX) e, portanto, que deviam ocorrer muito lentamente. Essa noção continuou aprisionando as ciências da Terra e da vida ao longo do século XX, resistindo na geologia inclusive à revolução da tectônica de placas da década de 1960. Foi somente nos últimos anos que grandes rupturas da história da Terra (como a formação da Lua, a Terra bola de neve, as extinções em massa do final do Permiano e do final do Cretáceo) passaram a figurar nos manuais de geologia como "eventos". Tome-se, por exemplo, a reformulação do manual de Kent Condie, inicialmente lançado em1976 como Tectônica de placas e evolução da crosta (Plate tectonics and crustal evolution) e reformulado, depois de 2005, como A Terra como um sistema planetário em evolução (Earth as a Evolving Planetary System) (cf. Condie, 2012).

É em função dessa lógica gradualista que, ainda hoje, mesmo as melhores modelagens do clima futuro da Terra, como aquelas com as quais trabalha o IPCC, têm dificuldades de reproduzir processos não lineares, marcados por mudanças de estado, subestimando sistematicamente a intensidade de certas mudanças. A moderna teoria matemática do caos sustenta que sistemas dinâmicos fluidos como o clima não podem ser objeto de previsões totalmente seguras.

Os anos 1980 reintroduziram com peso, na climatologia, os saltos que os geólogos quiseram tirar de cena, desde o século XIX, com sua visão de mundo uniformitarista. Ao mesmo tempo, esse uniformitarismo (uniformidade) era questionado na própria geologia pela descoberta de irídio na fronteira K-T, o que acabou conduzindo à localização da cratera Chicxulub no Golfo do México, que seria responsável pela extinção em massa do cretáceo (cf. Alvarez, 1997; Amsden, 2011; Benton, 2003; Glen, 1994; Huggett, 2006; Powell, 2015; Schild, 2011; Oreskes, 2003, Frankel, 2012). Isso levou, na geologia, à relegitimação de um neocatastrofismo, que teria que estar presente ao lado do gradualismo tradicional.

O problema de uma duração quase infinita que nos separa de nossas origens deu formato aos desdobramentos da história natural na geologia e na biologia evolutiva do século XIX, e continuou operando no século XX na cosmologia e agora parece impor um deslocamento na percepção do lugar da humanidade na história com a irrupção da "big history" (cf. Christian, 2004). Mas as últimas décadas do século XX impuseram uma mudança profunda também na percepção do ritmo da história natural, que representou a ruptura com uma temporalidade uniformista e gradualista, "a qual durante muito tempo constituiu o principal suporte filosófico das ciências da Terra e que agora está sendo revisto a fim de acomodar um crescente neocatastrofismo" (Glen, 2007, p. 160).

Dependendo da disciplina, essa mudança recebeu nomes distintos. Também ganhou destaque nas ciências da sustentabilidade a ideia, paralela àquela do "antropoceno", de que vivemos uma "grande aceleração" (cf. Steffen et al., 2007). O sentido geral dessas formulações - que faz parte da mesma epistemologia que vem afirmando o sentido holístico das ciências do sistema Terra analisado por Edwards (2010) - foi o de destacar quer a possibilidade de grandes catástrofes, quer a emergência de períodos de grande aceleração dos tempos.

Um dos principais historiadores da geologia, William Glen, destaca o impacto dessas concepções filosóficas.

O uniformitarismo atuou em sentido contrário à ideia de que a iniciativa humana poderia afetar as ações globais e o equilíbrio da natureza. Durante o período de um século, a uniformidade tem simplesmente inibido as catástrofes globais - sobretudo as de ocorrência repentina - para explicar o passado ou prever o futuro. Essa concepção uniformitarista constitui um compartimento estanque emotivo-intelectual contra o espectro da imprevisibilidade e a incerteza de um mundo natural hostil. A noção de catastrofismo - que desempenha um papel antitético em relação à do uniformismo - convida-nos a aceitar a imprevisibilidade como parte da ordem regular e uma ferramenta para "retrodizer" o passado e predizer o futuro. A ciência está fundamentalmente encarregada de tornar a natureza cada vez mais previsível, seja uma maciça erupção vulcânica, seja uma mudança climática letalmente estressante para a humanidade, ou um devastador impacto meteórico (Glen, 2007, p. 160-1).

O estudo das eras do gelo desvendou um passado da Terra bastante inóspito, em que mudanças climáticas abruptas e radicais são a norma e não uma exceção. A era do gelo do Pleistoceno, iniciada há 2,6 milhões de anos atrás, conheceu pelo menos 49 oscilações entre frio e calor, alternância de estados que nada tem a ver com médias, com forte predominância de períodos frios e secos, bastante inóspitos à vida: no último milhão de anos, em 75% do tempo prevaleceram eras glaciais. Mas ela foi também pontuada não só por eras interglaciais, mas também por super-interglaciais, com temperaturas muito mais elevadas do que as atuais e desgelo não só de partes importantes da Groenlândia, mas também da península Antártica. Isso hoje provocaria, para a civilização contemporânea, a inundação de milhões de quilômetros de regiões costeiras muito baixas, densamente povoadas e a destruição de parte significativa da infraestrutura ali existente, para além do impacto ambiental e social catastrófico das mudanças climáticas sobre os processos hídricos, a oferta de água potável e a agricultura (ver Klein, 2014). A paleoclimatologia parece oferecer, ao retratar inúmeros momentos do passado geológico e climático recente da Terra, os melhores vislumbres do futuro que pode nos aguardar em um piscar de olhos geológico.

AGRADECIMENTOS

O artigo aqui publicado faz parte da pesquisa viabilizada pela bolsa de pós-doutorado da Fapesp junto ao Projeto Temático 2011/51614-3, "Gênese e significado da tecnociência: Das relações entre ciência, tecnologia e sociedade".

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  • 1
    Loomis apoiou-se em trabalhos desenvolvidos na década anterior. A meteorologia prática emerge com William Redfield descrevendo, em 1831, a trajetória dos furacões que, nascendo na região tropical, golpeavam a costa leste dos Estados Unidos, com ventos que seguiam o sentido anti-horário. James Espy descreveu as correntes de convecção, o movimento ascendente do ar quente. E Coriolis forneceu as bases, em 1835, para integrar as duas formulações no que hoje é conhecido como força inercial ou efeito Coriolis (cf. Cox, 2002).
  • 2
    Bjerknes desenvolveu importantes estudos sobre os princípios matemáticos da dinâmica dos fluidos no final do século XIX, rapidamente reconhecidos como relevantes para a geofísica, em especial para o estudo da atmosfera e dos oceanos. Reorientando-se para a meteorologia em 1904, Bjerknes, então com 42 anos, estabeleceu um programa de pesquisa cujo objetivo era transformar a meteorologia, menosprezada como disciplina acadêmica, em uma ciência exata, com equações que, baseadas em leis da termodinâmica e da mecânica de fluidos, descrevessem com exatidão a dinâmica da atmosfera. Ele fundou, em 1912, o Instituto de Geofísica da Universidade de Leipzig e, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, transferiu-se para a Noruega, onde, em 1917, fundou o Instituto Geofísico de Bergen, que se transformou também em um centro de previsão do tempo, capacitando seus cientistas como meteorologistas práticos e lançando um novo olhar sobre a meteorologia, centrado nos deslocamentos das massas de ar (cf. Friedman, 1993). Em Bergen, o filho de Vilhelm, Jacob Bjerknes, descobriu a frentes que acompanham os deslocamentos dos ciclones; Halvor Solberg identificou "famílias" de ciclones acompanhando as frentes polares; Tor Bergeron completou o estudo dos ciclones; e Carl-Gustaf Rossby se formou, levando em seguida o acúmulo da Escola de Bergen para os Estados Unidos, onde se tornaria, depois dos anos 1930, a figura mais influente na meteorologia daquele país (cf. Cox, 2002).
  • 3
    O geógrafo Eduard Bruckner, também alemão, defendeu, a partir das séries estatísticas acumuladas, a existência de ciclos climáticos universais de 35 anos, preocupando-se com suas consequências e defendendo ações políticas para mitigar seu impacto. Outros, como Abbe Cleveland, que dirigia o Weather Bureau dos EUA, enfatizavam as dificuldades, na ausência de uma teoria geral da circulação, de ultrapassar a abordagem descritiva da meteorologia sinóptica (cf. Edwards 2010).
  • 4
    O lago Vostok, recoberto há 15 milhões de anos por uma camada de gelo de quatro quilômetros de altura, é o sexto maior do mundo. A Estação de Pesquisa de Vostok foi estabelecida pela União Soviética em 1957 sobre aquilo que se comprovou, em 1993, ser um lago. Em 1983, a estação registrou a temperatura mais baixa até então marcada na Terra, 89,2 graus abaixo de zero.
  • 5
    O lago El'gygytgyn foi formado a 3.6 milhões de anos atrás, quando um grande meteoro atingiu a Terra, abrindo uma cratera de impacto de 18 quilômetros de diâmetro, com uma superfície de 110 km2. Ele nunca foi coberto por glaciares, de forma que os 400 metros de sedimentos no seu fundo constituem um registro único das mudanças climáticas ao longo de todo esse período.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015
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