Resumos
O objetivo deste artigo é investigar as percepções e representações sociais do consumidor na rede de pirataria e propor uma alternativa de princípio estratégico de combate a esse comércio ilegal a partir de um modelo de rede que inclui o ator consumidor. A afirmativa básica é que a pirataria se organiza no formato de rede, onde o consumidor é um ator importante, que mantém a rede em razão de suas específicas percepções e representações sociais sobre o governo, sobre as empresas fabricantes, sobre os camelôs e sobre si próprio, percepções essas que abrangem mais do que o preço, que é o fator mais pesquisado no tema de pirataria. A base teórica de apoio é o conceito de rede social que existe como pano de fundo nas redes de negócios, com seus fatores de interdependência, comprometimento, expectativas e representações sociais, bem como o conceito de nó, que é a unidade de estudo das redes. Realizou-se uma pesquisa com grupos de adolescentes e adultos, e os dados mostraram a presença de representações sociais positivas sobre a ponta da pirataria, que é o camelô, e representações sociais negativas sobre o governo e as empresas que combatem a ilegalidade. Nas conclusões, mostra-se que há um ganho de compreensão quando se inclui o ator consumidor na rede, tanto no que se refere à manutenção do comércio pirata quanto às estratégias de combate. Como conclusão secundária importante, considerando os resultados abaixo do esperado por parte do governo no combate à pirataria, sugere-se um princípio estratégico a partir das redes sociais. A premissa da proposta é que só se combate uma rede a partir de outra rede, conforme atestam alguns exemplos de organizações sociais e comerciais.
Consumidor; Pirataria; Redes; Estratégias de combate; Percepções
This article's objective is to investigate the awareness and social representations of consumers in a piracy network, and to forward an alternative strategic principle to fight this illegal form of commerce, taking the network model with the inclusion of the consumer as its departing point. Its basic assertion is that piracy can be understood to be organized according to a network, where the consumer is an important actor, who upholds the net due to his specific perceptions and social representations about the government, the products' manufacturers, the camelôs (street vendors), and about himself. These perceptions include themes that are beyond price, that is the most surveyed variable in this domain. This work is supported by the social network theory, that makes up the big picture where business networks are included, involving the notions of interdependence, commitment, expectations, social representations, as well as the concept of the "tie", which is the study unit that constitutes the network. A focus group survey was conducted with adolescents and adults, where it has become evident the perception of positive social representations relative to piracy, that is the camelô, while the government and the companies that fight piracy have been portrayed negatively. In this work's conclusions, it is shown that there is a gain in comprehension of the situation when the consumer is included in the network picture, in relation to the pirate commerce preservation, as well as to the combat strategies. In an important parallel conclusion, and considering the less than expected results on the government's part in the fight against piracy, it is suggested a strategic principle that flows from social networks. The assumption of this proposal is that it is only possible to fight a network from the perspective of another one, as it is stated in examples of social and business organizations.
Consumer; Piracy; Networks; Strategies of combat; Perceptions
RECURSOS E DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL
Uma investigação sobre o ator consumidor na rede de pirataria e uma proposta de alternativa de estratégia de combate
An investigation about the consumer actor in the piracy network and a strategy combat alternative proposal
Ernesto Michelangelo GiglioI; Arnaldo Luiz RyngelblumII
IDoutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Paulista (Unip). Rua Renato Egidio de Souza Aranha, 736, Vila São Francisco - São Paulo - SP - Brasil - CEP 05353-050. E-mail: ernesto_giglio@yahoo.com.br
IIDoutor em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV). Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Paulista (Unip). Rua Ministro Ferreira Alves, 33, Perdizes - São Paulo - SP - Brasil - CEP 05009-060. E-mail: arnaldory@yahoo.com.br
RESUMO
O objetivo deste artigo é investigar as percepções e representações sociais do consumidor na rede de pirataria e propor uma alternativa de princípio estratégico de combate a esse comércio ilegal a partir de um modelo de rede que inclui o ator consumidor. A afirmativa básica é que a pirataria se organiza no formato de rede, onde o consumidor é um ator importante, que mantém a rede em razão de suas específicas percepções e representações sociais sobre o governo, sobre as empresas fabricantes, sobre os camelôs e sobre si próprio, percepções essas que abrangem mais do que o preço, que é o fator mais pesquisado no tema de pirataria. A base teórica de apoio é o conceito de rede social que existe como pano de fundo nas redes de negócios, com seus fatores de interdependência, comprometimento, expectativas e representações sociais, bem como o conceito de nó, que é a unidade de estudo das redes. Realizou-se uma pesquisa com grupos de adolescentes e adultos, e os dados mostraram a presença de representações sociais positivas sobre a ponta da pirataria, que é o camelô, e representações sociais negativas sobre o governo e as empresas que combatem a ilegalidade. Nas conclusões, mostra-se que há um ganho de compreensão quando se inclui o ator consumidor na rede, tanto no que se refere à manutenção do comércio pirata quanto às estratégias de combate. Como conclusão secundária importante, considerando os resultados abaixo do esperado por parte do governo no combate à pirataria, sugere-se um princípio estratégico a partir das redes sociais. A premissa da proposta é que só se combate uma rede a partir de outra rede, conforme atestam alguns exemplos de organizações sociais e comerciais.
Palavras-chave: Consumidor; Pirataria; Redes; Estratégias de combate; Percepções.
ABSTRACT
This article's objective is to investigate the awareness and social representations of consumers in a piracy network, and to forward an alternative strategic principle to fight this illegal form of commerce, taking the network model with the inclusion of the consumer as its departing point. Its basic assertion is that piracy can be understood to be organized according to a network, where the consumer is an important actor, who upholds the net due to his specific perceptions and social representations about the government, the products' manufacturers, the camelôs (street vendors), and about himself. These perceptions include themes that are beyond price, that is the most surveyed variable in this domain. This work is supported by the social network theory, that makes up the big picture where business networks are included, involving the notions of interdependence, commitment, expectations, social representations, as well as the concept of the "tie", which is the study unit that constitutes the network. A focus group survey was conducted with adolescents and adults, where it has become evident the perception of positive social representations relative to piracy, that is the camelô, while the government and the companies that fight piracy have been portrayed negatively. In this work's conclusions, it is shown that there is a gain in comprehension of the situation when the consumer is included in the network picture, in relation to the pirate commerce preservation, as well as to the combat strategies. In an important parallel conclusion, and considering the less than expected results on the government's part in the fight against piracy, it is suggested a strategic principle that flows from social networks. The assumption of this proposal is that it is only possible to fight a network from the perspective of another one, as it is stated in examples of social and business organizations.
Keywords: Consumer; Piracy; Networks; Strategies of combat; Perceptions.
1 INTRODUÇÃO
O fenômeno mundial da pirataria causa enormes prejuízos às empresas e ao governo (BSA-IDC, 2007), ensejando esforços de combate a essa prática ilegal de negócios. Relativo a esses esforços, foi criado no Brasil, em 2005, o Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), que organizou um documento com 99 diretrizes indicando ações dos governos federal, estaduais e municipais e de empresas e entidades. O plano sugere uma ação conjunta, mas os consumidores são avaliados como atores passivos, o que implica apenas receber o reforço de campanhas de educação.
Em contraste com essa preocupação do governo e das empresas, o dia a dia nas grandes cidades brasileiras mostra uma convivência rotineira da população com a pirataria. Do norte ao sul do país, como é possível observar, as barracas improvisadas são montadas e as vendas realizadas. Será que os consumidores não têm a mesma percepção que o governo e as empresas sobre o perigo e a ilegalidade da pirataria? Alguns trabalhos têm procurado investigar o assunto (MOSCHIS; COX, 1989; ALBERS-MILLER, 1999; MATOS; ITUASSU, 2005), com foco nas variáveis tradicionais de compra definidas pelo marketing, ou seja, o preço, a disponibilidade e a oportunidade, num raciocínio econômico e racional. Alguns sinais, no entanto, apontam a existência de outras variáveis (BAZANINI et al., 2006; REHDER, 2007), uma vez que pessoas com poder aquisitivo suficiente para comprar o produto legal acabam consumindo o pirata.
Neste trabalho, parte-se de outra perspectiva teórica. Afirma-se que o fenômeno da pirataria, com a inclusão do ator consumidor, pode ser apropriadamente compreendido no referencial dos conceitos de redes de negócios, especificamente a teoria sobre a estrutura dos nós, nas quais os consumidores jogam um importante papel na sua manutenção.
Conforme Rowley (1997), os nós são estruturados pelos participantes, pelo conteúdo e pela forma de relação, conforme detalhado adiante. Afirma-se que a forma de relação dos consumidores com os vendedores piratas é organizada e influenciada por conteúdos de representações sociais positivas sobre os papéis de comprador e vendedor, e representações sociais negativas sobre os papéis do governo e das empresas, representações estas nascidas de uma rede social antecedente ao consumo. Em outros termos: os consumidores compram produtos piratas não só porque o preço é mais oportuno, mas também porque consideram justos e aceitáveis os esforços do camelô para trabalhar, enquanto o governo e as empresas são percebidos de forma negativa. São essas representações que mantêm o comércio pirata.
2 REFERENCIAL TEÓRICO: CONCEITOS SOBRE REDES
A grande convergência sobre o conceito de rede é que ela é relacionamento (BURT, 1976; TICHY; TUSHMAN; FOMBRUN, 1979). Os conceitos de redes estão organizados em dois paradigmas dominantes na literatura internacional: um fundado em preceitos da sociologia e outro em preceitos da economia. A visão social de redes de negócios é defendida por Castells (1999). Conforme o autor, a sociedade atual caracteriza-se por sua estrutura em rede, a qual se repete e se reorganiza nas várias sub-redes, incluindo as de negócios. Entender um negócio do ponto de vista das redes sociais traz a vantagem de eliminar algumas divisões clássicas de análises de mercado, como macro e microambiente, já que são diferentes manifestações da mesma estrutura e fenômeno, além de possibilitar um exame de variáveis importantes tais como confiança, expectativas, comprometimento e oportunismo nas relações, uma vez que essas formas transpassam as várias modalidades de relações (TICHY; TUSHMAN; FOMBRUN, 1979; NOHRIA; ECCLES, 1992).
O outro paradigma, com base na economia, afirma que as redes são planejadas, construídas e mantidas pelas empresas com intuitos estratégicos. A estrutura e a dinâmica das redes são controladas por uma governança, ou seja, um conjunto de regras de participação, benefícios e sanções, limites e papéis definidos. O princípio que rege toda a ação é econômico e estratégico, buscando vantagens competitivas tais como poder de compra, barreiras de entrada na rede e custos baixos (NOHRIA; ECCLES, 1992; RUDBERG; OLHAGER, 2003).
Os dois paradigmas não são mutuamente exclusivos e possuem pontos de interseção. Alguns autores afirmam que a causalidade da rede de negócios cria a rede social (GRANOVETTER, 1985), já outros entendem que a existência de uma rede social possibilita o nascimento e crescimento das redes de negócios (CASTELLS, 1999). Quando o fenômeno analisado abrange serviços nos quais o governo tem maior participação, tais como bancários, de saúde, turismo e educação, os artigos utilizam tanto o conceito de uma rede social preexistente, como comunidades de bairros e outras associações, quanto o conceito de formação estratégica da rede (RUDBERG; OLHAGER, 2003; BALESTRIN; VARGAS, 2004; TÁLAMO; CARVALHO, 2004), incluindo os conceitos de supply chain (STEVENS, 1989). A rede social, nesses casos, é colocada como um pano de fundo que dá sentido e orientação para as relações comerciais. É essa a linha de raciocínio adotada neste trabalho.
O nó é o conceito central nos dois paradigmas. O nó é a estrutura de relação entre dois ou mais atores que pode conter e revelar aspectos sociais e comerciais importantes da rede. Conforme Freeman (1989), existem vários modos de investigar redes, mas a unidade mínima de análise é o nó, que é a ligação entre dois atores. Rowley (1997), ao ratificar a multiplicidade de atores nas redes, destaca a necessidade de se partir de uma díade e afirma que os estudos de redes devem entender como a relação entre dois ou mais atores constitui o pano de fundo das transações de negócios e estrutura essas transações. Segundo Recuero (2004), a teoria dos grafos constitui a base para as pesquisas das estruturas sociais numa visão sistêmica, e a unidade de análise pode ser a relação entre dois ou mais atores. Existe, portanto, entendimento de que a análise do nó implica a possibilidade de se criarem afirmativas sobre a rede. A pesquisa bibliográfica revelou os seguintes fatores comuns presentes num nó, os quais são relatados por autores de redes frequentemente referenciados, como Tichy, Tushman e Fombrun (1979), Nohria e Eccles (1992) e Gulati e Gargiulo (1999):
A. Variáveis relativas ao fator conteúdo transacional, que se referem ao que transita entre dois ou mais atores: 1. expressões de afeto; 2. expressões de força e poder; 3. fluxo de informações, produtos e/ou serviços.
B. Variáveis relativas ao fator natureza do nó, que indicam as características de união entre dois ou mais atores: 1. intensidade; 2. reciprocidade; 3. clareza de expectativas; 4. multiplicidade de relações.
C. Variáveis relativas aos fatores sociais presentes no nó: 1. confiança; 2. expectativas; 3. representações sociais; 4. comprometimento.
Os artigos analisados na pesquisa bibliográfica abrem um leque de temas a partir dessa classificação básica. No entanto, ao se comentar sobre o consumidor, a tendência é colocá-lo numa posição passiva, como ator que realiza apenas a troca final. Os seus conteúdos transacionais, suas ligações e seus fatores sociais nas relações com os atores (empresas) da rede não são pesquisados. Neste artigo, busca-se incluir o consumidor nos fluxos rotineiros da rede, principalmente no conjunto de fatores do item C, ou seja, as variáveis relativas aos fatores sociais dos nós do ator consumidor com outros nós da rede, exemplificados no caso de suas relações com o comércio pirata, bem como com os nós dos atores que combatem a pirataria, tais como empresas legalmente estabelecidas e o governo. Segundo nosso entendimento, são essas relações sociais entre os atores de um mercado que orientam e legitimam a compra do produto pirata, o que, em última instância, mantém o mercado ilícito.
Seguem as definições das variáveis, com algumas hipóteses sobre o que seria esperado entre os atores do comércio pirata.
Define-se confiança como a disposição que tem uma pessoa em colocar-se na dependência de outra (MORGAN; HUNT, 1994). Em negócios, significa, por exemplo, que o consumidor compra e consome um serviço de um fornecedor sem ter dúvida sobre o atendimento e os resultados. Aplicando ao mercado pirata, esperar-se-ia que a compra estaria condicionada à ausência da confiança, uma vez que existem incertezas sobre a origem e qualidade do produto e sobre as pessoas envolvidas em sua comercialização.
Define-se expectativa como a ideia de um estado futuro a ser alcançado pelo consumidor, tanto relativo aos resultados do uso de produtos como sobre os relacionamentos (WOODRUF, 1997; GIGLIO, 2005). Em negócios, significa, por exemplo, que um consumidor que se dirige a uma assistência técnica levando um aparelho para consertar tem uma expectativa de solução do problema e de um atendimento que diminua sua frustração. Aplicando ao mercado pirata, esperar-se-ia que a compra e o consumo de um produto pirata seriam influenciados por expectativas negativas sobre os resultados, ou sobre o atendimento, ou seja, o consumidor tem baixas expectativas sobre o futuro que resulta dessa transação.
Define-se representação social como a imagem social particularizada pelas experiências de cada pessoa sobre os fenômenos, incluindo empresas e outras pessoas (MOSCOVICI, 1988). As representações sociais são julgamentos a respeito dos fenômenos do mundo, que guiam o comportamento. Os meios de comunicação de massa, como novelas e programas humorísticos, são veículos que transmitem esses conteúdos das representações sociais. Aplicando ao mercado ilegal, esperar-se-ia que os produtos piratas seriam investidos de representações sociais negativas, o que criaria resistências ao consumo dos produtos.
Define-se comprometimento como a disposição de valorizar e considerar as expectativas, a confiança e as representações sociais dos outros sobre o seu comportamento (GRANOVETTER, 1985). Alguns autores têm preferido o termo imbricamento, que caracteriza mais fortemente a rede de reciprocidade econômica e social em que um ator está envolvido. Um exemplo seria entregar um serviço no prazo em que foi acordado, mesmo que para tal seja necessário certo sacrifício social e econômico. Aplicando ao mercado pirata, esperar-se-ia que o consumidor não teria comprometimento com o vendedor do produto pirata, uma vez que suas representações sociais são negativas, sua confiança é nula ou pequena, e sua expectativa é baixa ou nula.
A tarefa de investigar a presença dessas variáveis na perspectiva dos consumidores se justifica na medida em que a eficácia do combate à pirataria, vista por meio dos dados do governo e das empresas, mostra limitações. O índice de produtos pirateados em CD, por exemplo, saltou de 3% para 59% do total entre 1997 e 2002 (FOLHA ONLINE, 2006). Assim, espera-se que a inclusão do consumidor como ator ativo nos planos de combate poderia indicar um caminho alternativo. Trabalhos anteriores (CRAVENS; PIERCY, 1994; LUO et al., 2004; GIGLIO; KWASNICKA; SANTOS, 2006) afirmaram a necessidade de se incluir o consumidor nas relações das redes de negócios.
3 A INCLUSÃO DO CONSUMIDOR NOS CONCEITOS DE REDE E AS IMPLICAÇÕES PARA PESQUISAS
O nascimento de redes está associado a um conjunto de fatores tais como as demandas contínuas dos consumidores por inovações e serviços, o acesso a informações, a tendência da valorização da customização, o que exige uma integração cada vez maior entre as empresas. Alguns desses itens mostram a importância da presença do consumidor como ator causal e participante da formação e rotinas das redes, o que é raramente considerado tanto nos artigos teóricos quanto nos relatos de casos. Para preencher a lacuna, propõe-se um modelo de rede que inclui o consumidor, conforme a demonstra a Figura 1, construída na forma de um sistema, cuja resposta de saída é o valor para o consumidor.
A figura mostra a unidade relacional entre atores, que é o nó, formada pelo conteúdo do fluxo e pelas decisões. Conforme conceitos de redes (GRANOVETTER, 1973; CASTELLS, 1999; GULATI; GARGIULO, 1999), cada ator mantém nós com outros atores, o que dá sentido e justificação à palavra "rede". A Figura 1, portanto, representa espacialmente a estrutura de uma rede a partir de sua unidade, o nó. Conforme Castells (1999), essa estrutura é influenciada por um subsistema superior constituído pelos modos de relações comerciais entre as pessoas, ou seja, os modos de produção, de consumo, de poder e de experiência. Finalmente, como pano de fundo e sistema mais amplo, os comportamentos dos atores são influenciados pelas variáveis sociais, ou seja, a confiança, as expectativas, as representações sociais e o comprometimento, que são o objeto desta investigação. Essa visão de um contexto associado às redes foi analisada e justificada por Anderson, Hakansson e Johanson (1994).
Comparado a outras construções de modelos de redes que servem de parâmetros para pesquisas, tais como em Tichy, Tushman e Fombrun (1979), Nohria e Eccles (1992), Gulati e Gargiulo (1999) e Hoffman, Molina-Morales, Martínez-Fernandez (2007), o modelo proposto resgata a finalidade tradicional da existência de organizações, que é o atendimento ao consumidor (DRUCKER, 1993). No campo específico do combate à pirataria, a não inclusão do consumidor como ator ativo pode ser, segundo nossa interpretação, um dos principais motivos para os resultados abaixo do esperado pelo governo. Tomando como exemplo o citado documento de 99 ações do CNCP, a estratégia funda-se na repressão governamental sobre os fornecedores e no esforço comercial das empresas prejudicadas, buscando valorizar os seus produtos. É interessante notar que, em trabalhos que analisaram a percepção dos próprios agentes do governo no combate à pirataria (RYNGELBLUM, 2005; RYNGELBLUM; GIGLIO, 2006), os entrevistados relataram entender a pirataria como uma rede, mas não se referiram ao consumidor como ator importante da sua manutenção. Neste artigo, afirmamos que é possível entender a manutenção da rede do comércio ilegal a partir da perspectiva do consumidor e desde aí construir uma estratégia de combate.
4 A COMPLEXIDADE DO MERCADO PIRATA
A pirataria é um problema mundial que exige esforços de combate na mesma escala. A China é um dos países que mais produzem produtos piratas, e as pressões internacionais não têm sido eficientes para diminuir sua produção. Considera-se pirata a replicação de determinado produto sem o consentimento do fabricante original, sem o pagamento de licença ou patente, ou sem o pagamento dos direitos de autoria. Sua comercialização pode ser feita sob a forma de falsificação, cópia com intenção de imitar o material original, replicação de marca e logotipo, sem cópia dos produtos propriamente, envio da réplica pela internet, no caso de músicas, softwares, filmes etc.
Esse mercado foge à circunstância de análise da estratégia competitiva tradicional, racional e econômica, porque a situação é mais complexa. Além de não configurar uma concorrência convencional, a lógica utilizada pelo produtor e outros atores piratas escapa à racionalidade instrumental em vários aspectos (CLEGG, 1990): na definição do preço de venda, na distribuição, na qualidade do produto, nos volumes disponibilizados, na informação de quem e quantos são os produtores envolvidos. Por essa razão, um modelo de análise do fenômeno da pirataria precisa ser amplo o suficiente para considerar as alternativas de ação de um grande número de atores envolvidos tanto na estrutura de funcionamento do comércio ilegal quanto em seu combate. Dessa forma, algumas pesquisas que utilizam os conceitos de mercado tradicional sobre o consumo de produto pirata (MATOS; ITUASSU, 2005; BAZANINI et al., 2006) pouco contribuem para a compreensão e o combate, uma vez que desconsideram o quadro de complexidade que envolve a existência de uma rede ilegal extremamente flexível.
A mesma visão tradicional é encontrada em alguns artigos da área de direito, que analisam o comportamento desviante (MOSCHIS; COX, 1989; LAGRECA; HEXSEL, 2004), e na área da psicologia, que abordam o consumo não ético (COX; COX; MOSCHIS, 1990; ALBERS-MILLER, 1999). Esses textos buscam os motivos pessoais que levam ao comportamento desviante e não ético. Matos e Ituassu (2005), por exemplo, analisaram a influência da norma subjetiva, experiência anterior e atitudes na composição da intenção de compra de produtos piratas de uma amostra da população brasileira. Os conceitos desses fatores seguem o raciocínio da psicologia do indivíduo, o qual, segundo nossa interpretação, não alcança a multiplicidade de atores no fenômeno e a estrutura em rede.
Além desse enfoque do estudo do indivíduo, com suas cognições e atitudes, a tendência dos artigos é valorizar o preço como variável principal de escolha, numa abordagem econômica, ou de compra de oportunidade. Dessa forma, o consumo de produto pirata é colocado num esquema teórico de compra normal, como se fosse uma escolha comercial nos padrões normais de eliminação de alternativas. Essa visão do consumo pirata também está presente no documento do CNPC, com sugestões para as empresas diminuírem o preço de seus produtos, lançando linhas populares. Entendemos que esse enfoque não é o mais adequado, principalmente pelos seguintes motivos:
A. A compra e o consumo pirata não são uma compra de mercado normal, pois reside nisso uma atitude ilegal.
B. Existem indícios baseados em pesquisas de mercado1 1 Realizou-se um levantamento das matérias publicadas e acessíveis no portal da Folha Online, e selecionaram-se algumas relevantes para a afirmativa. O endereço inicial é < http://search.folha.com.br/search?site=online&q=pirataria>. Acesso em: jan. 2008. de que pessoas com poder econômico para comprar um produto legal adquirem o pirata.
C. Os aspectos culturais de reputação, confiança e representação social sobre os atores piratas e os atores legais podem ser variáveis importantes na disposição à compra.
D. O mercado pirata está organizado num formato de rede, em que a interdependência, a criatividade e a flexibilidade dos fornecedores, unindo-se à aceitação e à participação do consumidor, mantêm o fluxo econômico e de produtos. Essa rede inclui uma infinidade de atores fabricantes (nacionais e internacionais), transportadores (por todos os meios), armazenadores, distribuidores, vendedores, vigilantes, só para citar os mais conhecidos.
Sobre os aspectos culturais, Bazanini et al. (2006) realizaram uma pesquisa em que ficou claro que o combate à pirataria não precisa centrar-se no preço. Utilizando um referencial de consumo como um processo em etapas, os autores mostraram que o passo anterior ao consumo, ou seja, o nascimento da intenção de compra, tem um padrão considerado normal e que, na compra pirata, existe um desvio dessa normalidade. O desvio ocorre por alterações no tempo de reflexão, no uso específico de uma ética permissiva e oportunista e na ausência de representações sociais negativas sobre os vendedores piratas. Em resumo, nessa pesquisa a oportunidade e a imitação eram os fatores de compra, e os aspectos éticos eram colocados em segundo plano pelos consumidores.
Existem indícios, portanto, de que a participação do consumidor na pirataria não se dá exclusivamente pelo preço e de que uma pesquisa que siga a racionalidade econômica do mercado pode não esclarecer a permanência da pirataria. Com base no modelo apresentado na Figura 1, o qual é decorrente da análise e reflexão da bibliografia, criaram-se as seguintes afirmativas orientadoras sobre os fatores sociais, as quais nortearam a pesquisa:
A. Não há relação de desconfiança na compra pirata.
B. Não há expectativa com conteúdo negativo na compra pirata.
C. Não há representação social negativa sobre a pirataria.
D. Há representação social negativa sobre o governo e as empresas que combatem a pirataria.
E. Há comprometimento com os representantes da pirataria.
F. As condições anteriores explicam a manutenção do comércio pirata.
As afirmativas negam os resultados lógicos esperados, isto é, essas variáveis culturais criam um pano de fundo favorável à pirataria, quando o esperado seria o oposto, considerando a ética dos atores consumidores.
5 PLANO METODOLÓGICO E APRESENTAÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA
Como se trata de um tema ainda pouco investigado dentro do referencial teórico de redes, o caminho metodológico mais adequado é a realização de uma pesquisa exploratória para, conforme Mattar (1996), prover o pesquisador de maior conhecimento sobre o tema e, segundo Malhotra (2001), ajudar a compreender a situação-problema. De acordo com Bardin (2004), para explorar um fenômeno pode-se partir de algumas variáveis já utilizadas, embora ainda não completamente aceitas ou verificadas. É o caso em questão, uma vez que as variáveis de conteúdo transacional, conteúdo social e estrutura da rede têm sido investigadas, mas as generalizações ainda estão em aberto.
A fim de manter coerência teórica, com atenção ao relacionamento, optou-se por realizar a técnica de focus group, em que se adota um roteiro estruturado com base nas afirmativas orientadoras apresentadas nas variáveis de 1 a 4 do Quadro 1 e em algumas variáveis complementares, analisadas nas pesquisas sobre redes, conforme explicitado no referencial teórico. De acordo com Aaker, Kumar e Day (2001), a técnica de focus group é adequada para pesquisar ideias, emoções e atitudes sobre um determinado tema, e o fato de estar em grupo parece facilitar a espontaneidade dos participantes.
Foram coletados dados de três grupos, sendo dois de universitários e um grupo de adultos de um curso de alfabetização na cidade de São Paulo, seguindo uma análise de conteúdo temático conforme preceitos explicitados por Bardin (2004).
5.1 APRESENTAÇÃO DOS DADOS
O grupo 1 era composto de nove alunos universitários do último ano do curso, com idade entre 21 e 22 anos, residentes na cidade de São Paulo. O grupo 2 era composto de oito universitários do primeiro ano do curso, com idade entre 17 e 18 anos, residentes na cidade de São Paulo. O grupo 3 era composto de oito adultos, com idade entre 30 e 40 anos, alunos de um curso de alfabetização na cidade de São Paulo.
Conforme as regras de apresentação de dados de pesquisas qualitativas, apresentam-se as análises de cada grupo para depois buscar as convergências e diversidades entre eles.
5.1.1 Comentários sobre o grupo 1
A análise mostrou a predominância de representações negativas sobre o governo, as empresas e os órgãos repressores; e representações positivas sobre os consumidores e os camelôs, a partir de uma racionalização de que ambos não têm alternativas. O encontro entre o consumidor e o camelô é justificado pela situação social e econômica do país, isto é, como não há trabalho para todos e a cultura brasileira é oportunista, o mercado pirata existe e floresce. Como inexistem aspectos éticos e estímulos controladores (polícia), a compra pirata ocorre num clima de rotina, sem medo, com os consumidores não preocupados em exibir um comportamento ilícito.
Esses universitários, no final do seu curso, entendem como ponto básico da existência da pirataria a solução dos desejos em contraposição aos limites financeiros dos consumidores e a oportunidade da presença do produto pirata, tudo somado à cultura de oportunismo do consumidor, ou seja, não adianta alguém ir contra, porque os outros não vão ajudar. Sobre as afirmativas orientadoras já explicitadas, a afirmativa A - "Não há relação de desconfiança na compra pirata" - não foi mantida, pois existe desconfiança sobre o produto pirata, mas isso não elimina a compra, uma vez que o consumidor assume o risco. A afirmativa B - "Não há expectativa com conteúdo negativo na compra pirata" - se mantém, uma vez que existiram afirmativas de que em alguns casos os produtos piratas são tão bons quanto os originais. A afirmativa C - "Não há representação social negativa sobre a pirataria" - se mantém, pois não se encontraram imagens negativas sobre a pirataria, ao contrário, o camelô é visto como um trabalhador esforçado. A afirmativa D - "Há representação social negativa sobre o governo e as empresas que combatem a pirataria" se mantém, pois o grupo foi veemente nas imagens negativas sobre o governo e as empresas "exploradoras". Sobre a afirmativa E - "Há comprometimento com os representantes da pirataria" -, os dados não são conclusivos, embora pareça predominar certo descompromisso quanto aos vendedores piratas. A afirmativa F - "As condições anteriores explicam a manutenção do comércio pirata" - se mantém, uma vez que o conjunto e a tendência das afirmativas anteriores explicam a manutenção da pirataria.
O grupo não afirma que o consumidor é um elo importante na cadeia, sustentando a ideia de que o comercio pirata se mantém, qualquer que seja o comportamento do consumidor. Sua compra não alimenta a pirataria e sua negativa não acaba com o problema. Essa visão de passividade facilita a intenção de compra, uma vez que sua negativa não resolve nada. A rede maior do crime organizado também não é visualizada. Paradoxalmente, no entanto, a solução mais convergente no discurso do grupo foi a educação no longo prazo.
5.1.2 Comentários sobre o grupo 2
Esse grupo é composto de oito universitários do primeiro ano de uma faculdade na cidade de São Paulo, portanto com alguns anos de idade a menos que os componentes do grupo anterior. A análise do discurso do grupo apresentou a tendência clara de uma imagem negativa do governo, o que se inferiu de frases tais como "É só dar um presente para o fiscal que fica tudo certo", "O povo é imediatista" e "Dando pão e circo, está tudo bem".
Coerentes com alguns estudos sobre adolescência (ABERASTURY; KNOBEL, 1992), as pessoas desse grupo colocam toda a solução e todo o fracasso nos poderes instituídos. Trata-se de um grupo crítico que considera as ações do governo como fachadas, pois elas não combatem efetivamente o problema. Os exemplos vêm de cima e não há crença na autoridade do governo. Não há crédito na fiscalização, pois todos são corruptos. O povo brasileiro não tem cultura e consciência de combate ao crime. É burro para votar e burro para combater. O governo não quer que o povo tenha conhecimento, e os professores não irão se esforçar se tiver um curso de pirataria. Pela televisão seria possível fazer uma educação nesse sentido.
Esses jovens na faixa de 18 anos sugerem que se baixem os impostos e os preços para combater a pirataria. As campanhas não dão resultados porque as pessoas não entendem. Os locais piratas deveriam fechar e não apenas confiscar o material. Metade do grupo acredita no poder da educação, a outra metade não. Esta última só acredita no preço e alega que as pessoas não têm consciência da pirataria, pois são imediatistas e egoístas.
Não acreditam em alguma forma de combate à pirataria, pelo menos a partir dos fiscais, que são corruptos. O problema estrutural envolve a pobreza da população, preços altos dos produtos, impostos altos e incompetência generalizada do governo. Uma esperança estaria na educação no longo prazo (embora, paradoxalmente, saibam que não tem relação nenhuma com os problemas estruturais).
Sobre as afirmativas, pode-se concluir que a afirmativa A se manteve, pois não há relação de desconfiança na compra pirata, ao contrário, o grupo acredita na qualidade do produto e na confiabilidade do vendedor. A afirmativa B se manteve, pois não há expectativa com conteúdo negativo na compra pirata. A afirmativa C também se manteve, pois não se encontram representações sociais negativas sobre a pirataria, mas sim positivas. A afirmativa D se mantém, pois o grupo foi unânime nas suas representações sociais negativas sobre o governo, os órgãos repressores e as empresas. A afirmativa E se manteve, pois existe confiança, representação social positiva e expectativa positiva, o que cria um comprometimento, por exemplo, com fidelidade e recompra. A afirmativa F é mantida sem nenhuma restrição, pois se encontraram todas as condições do pano de fundo social que mantêm a pirataria.
5.1.3 Comentários sobre o grupo 3
O grupo 3 é composto de oito adultos, alunos do curso supletivo de um colégio tradicional de São Paulo, pessoas com renda baixa e cargos simples, como empregadas domésticas e ajudantes. Essas pessoas entendem e aceitam a condição do camelô e do mercado pirata, porque enxergam como uma via de trabalho e também de adquirir certos produtos. Existem alguns problemas de qualidade, mas o preço é o pilar de tudo. O horizonte da rede é limitado, uma vez que essas pessoas enxergam a relação comercial imediata e não veem o esquema de crime organizado. Por isso mesmo, acham normal a ideia de legalizar o camelô ou de dar emprego para todos esses desempregados. Por parte do governo, a saída é diminuir os impostos. Não acreditam em educação, porque o sistema não funciona, uma vez que os alunos passam sem saber.
A tendência observada nesse grupo foi a predominância de representações positivas sobre o camelô e o consumidor. Esse grupo é constituído de pessoas pobres e com pouca educação (estão sendo alfabetizados agora) que consideram praticamente normal a compra de produtos piratas, porque não veem alternativas. Tal como no grupo 1, o encontro entre o consumidor e o camelô é justificado pela situação social do país. Mais do que outros grupos, os integrantes do grupo 3 defenderam o camelô e contaram histórias de pessoas próximas que tiveram que entrar nessa rede. São histórias de pressões dos lojistas e dos fiscais para manter o camelô no trabalho. Há uma identificação sobre a origem do camelô (muitos nordestinos) com a origem dos sujeitos do grupo (maioria de nordestinos).
Predominam as representações negativas sobre o governo, considerando os impostos altos e a corrupção generalizada, como na polícia, que utiliza os estoques apreendidos para repassar aos camelôs e ganhar dinheiro. Não veem possibilidades de o governo combater a pirataria, porque não há interesse. Assim, o mercado pirata fica instituído, uma vez que o grupo explica sua existência pelos problemas sociais e econômicos. Em nenhum momento houve manifestação da ligação entre o mercado pirata e o crime organizado. Na verdade, os integrantes ficaram até surpresos em saber que a compra de produto pirata constitui crime.
O grupo acredita que ações isoladas (como propaganda ou repressão) não resolvem o problema. Sobre o consumidor, entende que ele é individualista e oportunista, e esse é o motivo de poucos resultados relativos às campanhas na televisão. A propaganda maciça, por exemplo, não acabaria com a pirataria porque o aspecto econômico continua sendo o principal. Quanto ao governo, a corrupção não permite um combate eficaz.
Esse grupo não confirmou plenamente nossa afirmativa orientadora de que existem outros fatores além do preço, mesmo com a insistência em exemplos em que o preço não era o principal. A afirmativa A se manteve, uma vez que a relação é de confiança e apoio. A afirmativa B se manteve, já que não se veem riscos no ato e no produto. A afirmativa C se manteve, pois não há representação social negativa sobre a pirataria. A afirmativa D se manteve, pois existem fortes representações sociais negativas sobre o governo e as empresas que combatem a pirataria. A afirmativa E não foi rejeitada, pois há um grau de confiança no camelô, as expectativas não são negativas e o lado repressor é avaliado de uma forma negativa. A afirmativa F se manteve, já que o discurso predominante do grupo coloca que as condições sociais, econômicas e institucionais explicam a manutenção do comércio pirata.
5.2 OS RESULTADOS DA ANÁLISE DOS GRUPOS
Para fins de visualização rápida, apresentam-se no Quadro 2 os resumos das convergências e da diversidade das respostas nos três grupos.
As convergências mais fortemente estabelecidas ocorreram na variável V.3a, com o julgamento de serem a pirataria e o camelô um mal necessário; na V.3b, com representações negativas sobre o governo; na V.5, com um conceito de interdependência necessária; na V.9, com o consumidor visto num papel passivo, sem nenhum poder ou controle; na V.10, com um conceito de que não é crime comprar e consumir produto pirata; e na V.11, com a percepção de extrema dificuldade ou mesmo nulidade no combate à pirataria.
A existência de representações sociais negativas sobre o governo e positivas sobre os camelôs é, segundo nossa interpretação, um dos principais fatores que alimentam o mercado pirata.
As divergências mais fortemente estabelecidas ocorreram na variável V.1, sobre confiança; na V.4, sobre comprometimento, em que as respostas nem sempre se referiram ao que se pretendia coletar; e na V.8, sobre os ganhos e satisfação.
As variáveis V.2, sobre expectativas, V.6, sobre amplitude e densidade dos nós, e V.7, sobre reputação, não puderam ser coletadas em todos os grupos, impedindo a análise de convergências e diversidade.
O conjunto de dados nos permite as seguintes linhas conclusivas sobre as afirmativas:
Afirmativa A: Não há relação de desconfiança na compra pirata. Em dois grupos, surgiram evidências de confiança no camelô, entendendo-se a transação como normal no mercado. Essa evidência é importante para indicar que campanhas tentando mostrar a transação como de alto risco talvez não sejam assim percebidas pelos consumidores.
Afirmativa B: Não há expectativa com conteúdo negativo na compra pirata. Algumas manifestações parecem indicar que os ganhos do consumo pirata podem superar os riscos, mas os dados não foram suficientes para uma linha conclusiva mais fundamentada.
Afirmativa C: Não há representação social negativa sobre a pirataria. Essa afirmativa foi fortemente mantida pelos discursos. Tanto os produtos piratas quanto os camelôs são vistos como alternativas de solução de problemas da população e não como crimes.
Afirmativa D: Há representação social negativa sobre o governo e as empresas que combatem a pirataria, sendo o complemento negativo da afirmativa C. Governo e empresas são vistos como corruptos e exploradores, que só visam a seus interesses.
Afirmativa E: Há comprometimento com os representantes da pirataria. Em consonância com as afirmativas A e B, como não há desconfiança nem percepção de altos riscos, surge um grau de comprometimento suficiente para o consumidor acreditar no camelô e no produto, entendendo estar ajudando-o a trabalhar, principalmente no discurso do grupo 3. No entanto, não chega a caracterizar a fidelidade ou o esforço de realizar o prometido, em razão das expectativas do outro. O camelô não é um ator com o qual o consumidor se comprometa nem quanto a esforços nem quanto a fidelidades de longo prazo.
Afirmativa F: As condições anteriores explicam a manutenção do comércio pirata. Excetuando-se a afirmativa B e os limites da D, as outras constroem um quadro que explica a manutenção do comércio pirata. Ao aceitar o produto e o camelô, quando imagina estar ajudando e tendo seus problemas resolvidos, ao contar com uma representação negativa das empresas e do governo, fica o consumidor em estado de prontidão para o consumo de produtos piratas; e, quando o realiza, ele não considera uma infração. Entende-se que, dessa forma, ações de repressão e educação que venham das empresas e do governo não terão o impacto e a credibilidade necessários. Seria necessário alterar o conteúdo das representações sociais sobre os atores, seus papéis e seus produtos, principalmente por meio de um consenso entre os meios de comunicação para que as novas representações sejam veiculadas (FRANCO, 2004).
6 CONCLUSÕES
O objetivo deste artigo foi investigar os nós do ator consumidor em suas relações com a rede de pirataria e propor uma alternativa de princípio estratégico de combate a esse comércio ilegal a partir de um modelo de rede que inclui o ator consumidor nos seus vários papéis, o que não se realizou até o momento, já que a tendência dos artigos é ressaltar a relação de compra e a valorização da variável preço. A afirmativa básica é que a pirataria se organiza no formato de rede, onde o consumidor é um ator importante que mantém a rede por causa de suas específicas percepções e representações sociais sobre o governo, sobre as empresas fabricantes, sobre os camelôs e sobre si próprio, percepções essas que abrangem mais do que o preço. A base teórica de apoio é o conceito de rede social (CASTELLS, 1999) como um pano de fundo para as relações comerciais na rede, com seus fatores de interdependência, comprometimento, expectativas e representações sociais, bem como o conceito de nó (FREEMAN, 1989; ROWLEY, 1997), que é a unidade de estudo das redes. Os resultados da pesquisa realizada com grupos de adolescentes e adultos mostraram a presença de representações sociais positivas sobre a ponta da pirataria, que é o camelô, e representações sociais negativas sobre o governo e as empresas que combatem a ilegalidade. Assim, o trabalho contribui de três formas. Primeiro, mostra o ganho teórico que se obtém na capacidade explicativa de um modelo que inclui o ator consumidor na rede. Segundo, ao aplicar-se esse modelo no fenômeno da pirataria, mostra um ganho de compreensão tanto no que se refere à manutenção do comércio pirata quanto às estratégias de combate, quando comparado aos resultados de artigos que utilizam premissas econômicas e de concorrência tradicionais. Em terceiro lugar, ao se analisar a ineficiência das estratégias das empresas e do governo em combater a pirataria, foi possível sugerir um caminho a partir das redes sociais. A premissa da proposta é que só se combate uma rede a partir de outra rede. A seguir, exploram-se as três contribuições.
6.1 SOBRE A INCLUSÃO DO ATOR CONSUMIDOR NA REDE
Segundo Castells (1999), somos todos atores em redes de relacionamentos, quer tenhamos consciência ou não de nossa inserção. O que caracteriza a sociedade em rede é a partilha de valores culturais, como interdependência, confiança, comprometimento e expectativas. Consoante com afirmativas da sociologia (DI NALLO, 1999) e do existencialismo (HEIDEGGER, 1981), esse sistema sociocultural não é exatamente estático, no sentido de valores imutáveis. Pelo contrário, os atores podem se apropriar de suas formas conforme conveniências situacionais.
Nesse sistema sociocultural, ocorrem os relacionamentos classificados em encontros de produção, consumo, poder e/ou experiência. Os papéis que os atores jogam nessas relações são flexíveis e intercambiáveis, justamente porque o contexto sociocultural suporta variações. Em cada nó da rede, os diferentes papéis se modificam conforme o objetivo da relação (produção, consumo, poder, experiência) e a predominância de variáveis sociais.
O consumidor, como ator nas redes de negócios, joga um papel importante, nem sempre reconhecido (CRAVENS; PIERCY, 1994; GIGLIO; KWASNICKA; SANTOS, 2006) na manutenção das redes. No caso do comércio ilegal, os planos de combate têm concentrado esforços na repressão dos fornecedores, deixando em plano secundário a mudança da posição dos consumidores na rede.
Ao propor um modelo de inclusão do consumidor na teia da rede, como demonstrou a Figura 1, e investigar suas percepções no fenômeno específico da pirataria, abre-se um campo de reflexões e pesquisas que mostrou ter capacidade explicativa e de aplicação, conforme se verificou na pesquisa de campo.
6.2 SOBRE AS PERCEPÇÕES DO ATOR CONSUMIDOR NA REDE DE PIRATARIA
Para investigar as percepções do ator consumidor sobre suas relações na rede de pirataria e nas ações de combate a ela, utilizando o modelo proposto, foi realizada uma pesquisa com a técnica de grupo focal com três conjuntos de consumidores: dois com universitários adolescentes e um com adultos de um curso de alfabetização. A análise sustentou a afirmativa sobre o ganho de compreensão do fenômeno quando se incluiu o consumidor nos vários modos de relacionamento. A revisão bibliográfica mostrou que a tendência dos estudos era valorizar a relação de troca e a importância da variável preço, enquanto a pesquisa atual mostrou a importância de se investigarem os fluxos e modos de relações do ator consumidor com os atores da rede pirata a partir dos fatores sociais, já que possibilitou afirmar serem esses fatores em parte responsáveis pela manutenção do comércio ilegal.
Houve convergência dos conteúdos de algumas variáveis, destacando-se: a existência da confiança na transação comercial com o camelô; representações sociais positivas sobre esse ator; representações sociais negativas sobre o governo e as empresas; a percepção de que o consumo pirata não é um crime, ao contrário, é uma solução para problemas financeiros e sociais; o julgamento de que o consumidor é um ator passivo nesse mercado, nada podendo fazer para mudar a situação; e, em consequência de tudo, a conclusão de que as ações repressivas não fazem efeito.
6.3 SUGESTÃO DE UM CAMINHO DE COMBATE
A terceira contribuição do artigo, com base nos resultados da pesquisa que indicaram os problemas e limites das ações atuais de combate à pirataria, foi a possibilidade de apresentar uma sugestão de um outro caminho. Ficaram claros pela análise dos dados quais são os fatores que mantêm o comércio pirata, indo além da variável preço. Assim, os princípios orientadores para a construção de uma estratégia de combate seriam:
Compreender a pirataria como um fenômeno de rede, com um tamanho e densidade enormes, quando se considera a ilegalidade no mundo, com seus braços com o crime organizado.
Apesar dessa diversidade e complexidade, existem contextos específicos, como no caso do Brasil, em que alguns problemas econômicos e sociais, aliados à falta de recursos dos órgãos de fiscalização, criam uma atmosfera de aceitação passiva dos atores sobre a presença dos ambulantes.
Para entender a manutenção da rede pirata, torna-se necessário incluir o consumidor como ator ativo. A pesquisa mostrou que o conjunto de algumas disposições, tais como a valorização do oportunismo, a aceitação do ator camelô e a existência de imagens negativas sobre o governo, cria um contexto que leva ao consumo do produto pirata como se fosse uma transação comercial normal. Por ser socialmente legitimada, a compra pirata não é vista como crime, o que não gera culpa e não mobiliza ações de combate.
Para combater uma rede, é necessária outra rede, com a participação e integração dos atores. Em relação ao ator consumidor, a força inicial dessa outra rede estaria no desenvolvimento de representações sociais contrárias àquelas que hoje mantêm o status de aceitação do comércio pirata. Os elementos constitutivos dessa abordagem foram apresentados pelos três grupos analisados: dar poder e força ao consumidor; criar um claro vínculo mental entre a pirataria e o crime organizado; e criar representações positivas sobre o governo, em ações conjuntas de toda a comunidade, tal como ocorreu na cidade de Maringá, com o projeto SER Maringá, em que o governo e os aposentados iniciaram um movimento de moralização2 2 As informações sobre esse movimento foram obtidas em < http://www.sermaringa.org.br/participar.php>. Acesso em: jan. 2008. .
A adoção desses princípios orientadores pode iniciar uma mudança do contexto.
O artigo, portanto, apresenta uma contribuição teórica ao campo dos conceitos de redes, por meio de um modelo que inclui o consumidor como um nó importante. Mostra que o modelo é aplicável inclusive a fenômenos de redes de negócios que transcendem a normalidade econômica e, com base nos resultados sobre as percepções do consumidor sobre o comércio pirata, sugere uma linha orientadora para as estratégias de combate, até então pouco eficientes.
Submissão: 29 mai. 2008.
Aceitação: 14 jan. 2009.
Sistema de avaliação: às cegas tripla.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Ago 2009
Histórico
-
Aceito
14 Jan 2009 -
Recebido
29 Maio 2008