Resumos
Este trabalho propõe uma incursão histórica na formação de Cataguases-MG, a fim de compreender como os mitos fundadores e as tradições inventadas imputam sentidos a cidades, objeto cada vez mais presente dentro dos estudos organizacionais. As tradições inventadas e os mitos fundadores constituem um elo indestrutível na medida em que as tradições representam um passado que deve ser preservado como forma de recobrar mudanças significativas na sociedade. Essas tradições demandam necessariamente formas de serem reconhecidas como novo status e se apoiam nos aparatos legal, político, cultural e econômico, sendo mais fortes quando mais coesas e institucionalmente amparadas forem. A construção do trabalho se deu a partir da consulta a acervos públicos municipais e nacionais datados a partir de 1906, bem como da análise de obras reconhecidas como biografias oficiais sobre a cidade. Os dados foram tratados a partir de uma análise marxista do discurso, de forma que este se configure um elemento ideológico de uma superestrutura que mantém relação dialética com a base, com as questões da vida social. Os achados conduzem à existência de três núcleos de mitos fundadores, ligados ao desbravamento, à fundação do município e à vocação econômica e cultural da cidade. A transição entre estes dois últimos mitos fundadores é central neste trabalho, pois diz respeito a uma batalha entre representantes da oligarquia agrária e das indústrias. É nessa transição que se desvelam as tradições inventadas, na medida em que a vocação modernista demarca a passagem de cidade conservadora para a cidade progressista. A tradição modernista imposta à cidade é decorrência de uma disputa pelo controle político da cidade da qual um dos grupos participantes era formado por industriais. Assim, o capital vê na arquitetura moderna não apenas a possibilidade de assumir o controle político, como também de demarcar a fundação de uma nova cidade, distinta daquela herdada de uma economia cafeeira gerida por velhas oligarquias.
Mitos fundadores; Tradições inventadas; Sentidos de cidades; Materialismo; Marxismo
This paper aims a historical incursion into the formation of Cataguases-MG to understand how founding myths and invented traditions ascribe meanings to cities, which is an object increasingly present within the organizational studies. Invented traditions and founding myths constitute an indestructible link in that traditions represent a past that should be preserved as a way of regaining significant changes in society. This tradition demands ways to be recognized as the new status quo and rely on legal, political, cultural and economics apparatus, being stronger when tradition becomes more cohesive and institutionally supported. This study is based on the examination of local and national public collections dating from 1906 as well as the analysis of works recognized as official biographies of the city. Data were analyzed from a Marxist perspective, so that discourse could be viewed as an ideological element of a superstructure that holds dialectical relationship with the base, with issues of social life. The findings lead to the existence of three cores founding myths relating to the clearing, the foundation and the economic and cultural vocation of the city. The transition between these two last founding myths is central to this work, as it concerns a battle between representatives. The invented traditions are unveiled in this transition period, to the extent that the modernist calling delimits the change from the conservative to the progressive city. The imposed modernist tradition is a result of a dispute over political control of the city, in which one of the groups of participants consisted of industrialists. Thus capital sees in modernist architecture not only the possibility of taking over political control, but also of defining the foundation of a new town, distinct from the one inherited from a coffee economy run by old oligarchies.
Founding myths; Invented traditions; Meanings of cities; Materialism; Marxism
Este trabajo propone una incursión histórica por la formación de Cataguases-MG con el objetivo de entender cómo los mitos fundacionales y las tradiciones inventadas atribuyen significados a las ciudades, objeto cada vez más presente dentro de los estudios organizacionales. Las tradiciones inventadas y los mitos fundacionales constituyen un vínculo indestructible en las tradiciones, pues representan un pasado que debe ser preservado como una manera de recuperar los cambios significativos de la sociedad. Esta tradición exige necesariamente formas de ser reconocida como un nuevo estatus ya que se basa en los aparatos legal, político, cultural y económico. Y cuanto más cohesionada y amparada institucionalmente sea esta tradición, más fuerte se presenta. La construcción de este trabajo ha empezado por la consulta a los archivos públicos locales y nacionales, con documentos que datan a partir de 1906, así como el análisis de las biografías reconocidamente oficiales de la ciudad. Los datos fueron analizados a partir del discurso marxista, de modo que este pudiera ser tratado como un elemento ideológico de una superestructura que mantiene relación dialéctica con la base, es decir, con los temas de la vida social. Los análisis conducen a la existencia de tres núcleos de mitos fundacionales, relacionados con el descubrimiento, la fundación y la vocación económica y cultural de la ciudad. La transición entre estos dos últimos mitos fundacionales es el tema central de este trabajo, pues trata de la batalla entre los representantes de la oligarquía agraria y de las industrias. Y es justo en esta transición que se destapan las tradiciones inventadas, en la medida que la vocación modernista es el marco del paso de una ciudad conservadora para una ciudad progresista. La tradición modernista impuesta a la ciudad es el resultado de una disputa por el control político en la que uno de los grupos participantes fue formado por la industria. De este modo el capital ve en la arquitectura moderna no sólo la capacidad de asumir el control político, sino que también la posibilidad de demarcar las bases de una nueva ciudad, diferente de aquella heredada de una economía cafetera gestionada por viejas oligarquías
Mitos fundacionales; Tradiciones inventadas; Sentidos de ciudad; Materialismo; Marxismo
1 INTRODUÇÃO
Italo Calvino, em As cidades invisíveis, remete a Zora como lugar que tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto. Seus espaços podem ser armazenados de acordo com o que cada um desejar recordar, ao passo que a memória faz da cidade uma armadura. Essa relação que estabelecemos com lugares implica, antes de tudo, o conjunto de todas as relações histórico-sociais construídas que faz do espaço algo habitado e vivido.
Embora a reflexão de Calvino que toma Zora como lócus revele a essência da relação que indivíduos estabelecem com os lugares, os processos de formação das cidades têm se mostrado diametralmente opostos à possibilidade de vivência citadina – não obstante os constantes esforços de ressignificação dos lugares. Refiro-me de maneira mais direta às intervenções de grupos de poder econômico e político na transformação das cidades, em particular na determinação do que deve ou não ser configurado como identidade.
Essa significação é, por vezes, fruto de um processo arbitrário que parte dos interesses de grupos dominantes e motivada pelo exercício do poder manifesto em searas diversas. Quase sempre tomada como decorrência de um processo histórico homogêneo e espontâneo, a imputação de um sentido ou identidade aos lugares complementa o domínio econômico já existente. É na relação dialética entre base e superestrutura que se estabelece a correspondência de uma dominação mais ampla, que recobra para esses grupos o direito da determinação.
Apesar de sua dinamicidade, esse processo requer cristalização para se tornar recíproco, necessita criar um ponto de referência. Essa referência tem passado fundamentalmente por dois complexos categóricos que auxiliam a explicação do sentido imputado a lugares, sendo estes a criação dos mitos fundadores e a invenção de tradições. Os mitos fundadores operam na demarcação dos momentos de transição ao novo tempo, bem como se consolidam como representantes de um povo por conduzi-los nos momentos marcantes (Chauí, 2000). Recobram para si tanto transformação perante o velho quanto manutenção ante o novo. É sobre esse novo mantido pelos grupos de poder que repousam as tradições inventadas. Estas corroboram a referida mitificação por estabelecerem um conjunto de práticas, símbolos e construções de determinações localizadas que se assumem como sociais, como marca de um povo e de sua capacidade produtiva. As tradições aqui são operacionalizadas de forma a atender a seus idealizadores, sendo levadas, num segundo momento, a um traço distintivo do lugar. Essas tradições intentam ainda imputar os lugares de memória, em sentido oposto ao descrito por Calvino, e sublimando as contradições sociais existentes que tendem ao heterogêneo.
A partir da potencialidade que os complexos categóricos mitos fundadores e tradições inventadas apresentam, proponho, neste trabalho, uma incursão por elementos da formação histórica de Cataguases-MG, cidade do interior mineiro conhecida pela vocação modernista pautada na produção cinematográfica de Humberto Mauro, pelo movimento literário Verde e, sobretudo, pelas obras arquitetônicas. O caso Cataguases se mostra profícuo, uma vez que a vocação cultural é também marco de transição tanto econômica quanto política.
Além desta introdução, o trabalho apresenta cinco seções subsequentes. A primeira trata dos aspectos teóricos dos mitos fundadores e das tradições inventadas, em particular os desenvolvidos por Chauí (2000) e Hobsbawm (1984a, 1984b). Na sequência, apresento as orientações metodológicas e analíticas, cujas bases fundamentais se assentam sobre o materialismo histórico dialético e a construção discursiva bakhtiniana. As duas próximas seções tratam efetivamente das construções dos mitos e das tradições na velha e na nova Cataguases. Por fim, são apresentadas as considerações finais do trabalho, com base no objetivo proposto.
2 CIDADES, MITOS FUNDADORES E TRADIÇÕES INVENTADAS
Antes de adentrar teoricamente nos mitos fundadores e nas tradições inventadas, é necessário destacar que esta incursão se inspira, de certa forma, em trabalhos desenvolvidos na área dos estudos organizacionais. De forma mais ampla, o tema espaço tem se tornado cada vez mais recorrente nos trabalhos da área, tanto em análises para dentro da organização quanto nas interfaces com outros componentes do espaço em que estão inseridas. Parte desses trabalhos tende a enfocar mais intimamente os processos de formação espacial sobre a via econômica (Spink, 2001; Vieira & Vieira, 2002), dada a multiplicidade de produções possíveis pelo sujeito no espaço. Outros trabalhos voltavam sua lente para a ótica relacional das construções de dimensão social e simbólica (Pereira & Carrieri, 2005; Mac-Allister, 2001; Gomes da Silva & Wetzel, 2007; Saraiva, 2009), principalmente na produção identitária apreendida em relação aos sujeitos e ao que se denomina lugar.
Além do tema espaço, outras incursões desvelaram a pertinência de ter a cidade como objeto de estudo, com o deslocamento da análise para uma dimensão horizontal um pouco mais ampla, em que as cidades são vistas como organizações de grande complexidade (Fischer, 1996; Czarniawska, 1997), dada a coexistência de processos individuais e coletivos (Mac-Allister, 2001). Dentro dessas possibilidades, destacam-se os trabalhos de Mac-Allister (2001), particularmente no que tange ao desenvolvimento de organização-cidade, bem como os de Saraiva (2009) e Saraiva e Carrieri (2012), também direcionados ao desenvolvimento desse conceito com a incorporação de novas nuanças, como a dinâmica simbólica, a partir da substituição identitária de Itabira da Vale para a Itabira do Drummond. Sob essa perspectiva, navegar sobre as águas dos mitos fundadores e das tradições inventadas desvela outra janela teórica para compreender processos de dominação que transitam entre os níveis econômico, simbólico e político.
Diante da possibilidade supracitada, recorro aqui às bases teóricas sobre os mitos fundadores e as tradições inventadas. No sentido etimológico, o mito está presente em narrativas mitológicas a fim de explicar os acontecimentos a partir da vontade dos deuses (Eliade, 2000). No plano antropológico, o mito funciona como uma saída imaginária para tensões e conflitos de ordem material (Chauí, 2000). É neste plano que reside o mesmo caráter das tradições inventadas como funcionalidade. Enquanto estas cristalizam as práticas do passado como legítimas e representantes de um povo, os mitos fundadores demarcam a condução dos momentos marcantes de um passado supostamente glorioso, a entrada de um novo tempo, novas ideias e valores, que, segundo Chauí (2000, p. 9), “quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. A fundação, nesse caso, se apresenta como autônoma ao processo de transformação intrínseco à história. O momento fundador se descola de seus predecessores e busca a eternização futura, e é justamente essa característica que torna a fundação mitificada e a figura do mito fundador possível.
As tradições inventadas consubstanciam o processo de mitificação dos fundadores das cidades, abarcando tanto tradições realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas como aquelas mais difíceis de ser localizadas e identificadas, surgidas em período limitado e determinado de tempo, mas que se estabeleceram com enorme rapidez. Conceitualmente, devemos considerar tradições inventadas o “conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas” (Hobsbawm, 1984b, p. 9). Essas práticas de natureza ritualística ou simbólica visam atribuir valores e normas de comportamento por meio da repetição, de forma a estabelecer significados que vinculam as práticas a um passado histórico. Esse passado, real ou forjado, impõe práticas fixas (institucionalizadas ou não). Qualquer mudança deve manter relações com o precedente (Hobsbawm, 1984b).
As tradições inventadas e os mitos fundadores constituem um elo indestrutível na medida em que as tradições representam um passado que deve ser preservado como forma de recobrar mudanças significativas na sociedade (Sá Junior, 2012). Essas tradições demandam necessariamente formas de serem reconhecidas como novo status e se apoiam nos aparatos legal, político, cultural e econômico, sendo mais fortes quando mais coesas e institucionalmente amparadas forem (Hobsbawm, 1984a). Entretanto, essas tradições apresentam um caráter contraditório que as tornam inventadas, assim como mitos os fundadores. Ao mesmo tempo que representam o início de uma nova era, um estágio de desenvolvimento histórico, essas tradições são descoladas do mesmo processo histórico do qual supostamente emergiram. Nesse movimento de abstração a-histórica, cria-se a figura dos mecenas, dos responsáveis por grande parte dessas tradições, das novas eras inauguradas.
Comuns em momentos de transição, as tradições inventadas e os mitos fundadores são fortemente produzidos nos embates, de forma que sob a posse do poder político criem-se patrimônios artísticos e histórico-geográficos (Chauí, 2000). Esses elementos são determinados a partir do aspecto funcional que atende a seus idealizadores, mas que, num segundo momento, são levados à categoria de patrimônio de um povo, pois podem ser facilmente destituídos da razão de posse, uma vez que a propriedade deles tende a se dissipar em sua aparência.
É importante demarcar também que tanto as tradições inventadas quanto os mitos fundadores fundam, em suas empreitadas, um invólucro de unicidade entre os indivíduos que são solapados pelas tradições. A chancela de uma identidade de um povo a partir das tradições apresenta, ao mesmo tempo, uma concordância com a razão diferenciadora perante outros povos e certa homogeneidade dentro de si, negando as diferenças de classes por suprimir da ordem material as relações sociais (Sousa, 2011). É nesse bojo que se localiza, por exemplo, a ideia desenvolvimentista amparada no modernismo como expoente artístico no século XX (Chauí, 2000; Furtado, 1984), a fim de sacramentar uma vocação genuinamente brasileira que rompesse com a dependência econômica e cultural do país ante a Europa.
A cristalização desses momentos históricos e de seus mártires-mecenas deve ser tratada tanto sob os efeitos no lado dominante como no lado dominado:
[...] do lado dos dominantes, ele [o mito fundador] opera na produção da visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio das redes de favor e clientela, do ufanismo nacionalista, da ideologia desenvolvimentista e da ideologia da modernização, que são expressões laicizadas da teologia da história providencialista e do governo pela graça de Deus; do lado dos dominados, ele se realiza pela via milenarista com a visão do governante como salvador, e a sacralização-satanização da política (Chauí, 2000, p. 86).
O legado das tradições imputa aos mitos fundadores o direito sobre a determinação – que evidentemente é social, mas não simétrica – do que deve ser reconhecido como representativo. Ao mesmo tempo, ratifica a posição dos instauradores dessas práticas como indivíduos a serem reverenciados, perante os quais se cria uma dívida pelo aparente legado que nem mesmo a própria história pode sanar. Chauí (2000) destaca que essa “dívida” é a mesma geradora das políticas paternalistas, marcadas fortemente pelo clientelismo e pelas trocas de favor. Dessa forma, estabelece-se a ilusória harmonia numa sociedade na qual a divisão de classe é naturalizada por práticas que sublimam o caráter histórico e as determinações materiais da vida social (Chauí, 2000).
De acordo com Souza (1994), a história e a memória brasileira estão impregnadas pelos valores associados às ideias das elites políticas, econômicas e culturais, de forma que a atribuição dos sentidos à realidade esteja articulada nas escritas e narrativas, componentes da história oficial. Nessa história oficial, os mitos e as narrativas funcionam como explicações à organização da vida material, imputando sentidos à trajetória social, econômica e política, lançando luz sobre os heróis e fatos memoráveis da nossa história (Souza, 1994).
A demarcação por essas elites pode ser identificada nas mudanças imputadas também a cidades, em particular na tentativa de forjar um consenso identitário e territorial a partir de processos de retradicionalização e reinvenção espacial das festas, monumentalidade arquitetônica, entre outros. Para Lefebvre (1969), esse assalto à cidade praticado por quem detém o poder econômico passa, muitas vezes, por um processo de caráter espontâneo, natural e sem intenção, em vez de uma particularidade do processo de dominação.
Delle Donne (1990) estabelece uma ligação direta entre a invenção das tradições e a manutenção de famílias dominantes que organizam uma rede social densa e manipuladora, que passa pelos papéis desempenhados no sistema produtivo e implica a socialização das novas gerações, a partir do gerenciamento dos meios de comunicação de massa e da instituição pública, e adotando uma política de marginalização com base nas forças intelectuais.
O poder de grupos específicos, familiares ou não, pode se manifestar direta ou indiretamente, todavia implicando sobremaneira a dinâmica da cidade. Na relação com o capital, são projetadas ideias que indicam a investida em se criar na cidade o sentido unitário que Lefebvre (1969) resgata nos Estados-nações. Pereira (2008), em estudo sobre a atuação empresarial perante a cidade, ressalta que a coexistência de empresas e/ou organizações com “investidas” no controle social implica disputas por controle social, materializadas na definição de seus lugares de poder.
3 MATERIAL DE ANÁLISE E ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA
Este estudo foi conduzido sob os moldes de uma investigação histórica a partir do acesso às bases documentais que buscam retratar a formação de Cataguases-MG. Por partir de um pressuposto no qual os discursos em si já são repletos de contradições, e que estas ganham proporções ainda maiores quando no confronto entre dois ou mais discursos, optei por tratar tanto de documentos oficiais da cidade quanto de documentos pessoais – como correspondências – e publicações que se lançam na tentativa de constituir uma biografia da cidade.
Entre os documentos oficiais, cabe destacar a análise do jornal Cataguazes que desde 1906 é o veículo oficial de informação da cidade, sob o controle da prefeitura municipal. Do jornal analisei as edições que compreendem os anos de 1906 a 1964. Já a consulta em alguns acervos se deu de maneira mais direcionada. No caso do Museu Histórico Alípio Vaz, interessaram-me as leis provinciais da fundação do município, a carta de doação do terreno no período do Império e os critérios utilizados na definição do traçado e distribuição dos lotes. Já nos arquivos do Centro de Documentação Histórica, os documentos referentes à disputa política entre famílias da cidade, como processos e ações populares. Por fim, os arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde as buscas me levaram às correspondências dos membros da família Peixoto com arquitetos modernos e mentores intelectuais, entre os quais se destaca Marques Rebelo.
Em complemento à análise dos arquivos supracitados, optei por tratar também das publicações sobre a história da cidade e o patrimônio histórico. Destaco aqui a análise da obra de Enrique de Resende (1969), intitulada Pequena história sentimental de Cataguases. Essa obra é tomada por muitos como a principal biografia da cidade e contém elementos que reluzem as contradições que mencionei, principalmente por se tratar de um autor que descende da família legalmente fundadora do município, os Vieira de Resende. Além do livro publicado por Enrique de Resende, foram analisados os quatro volumes do livro Memória e patrimônio cultural de Cataguases (Alonso, 2012a, 2012b, 2012c, 2012d).
Os documentos foram analisados à luz do materialismo histórico de orientação marxiana, no que concerne aos aspectos metodológicos e analíticos. A concepção materialista da história deve ser encarada como base da explicação histórica, mas não a explicação histórica em si (Hobsbawm, 1998). No materialismo histórico, é por meio da dialética que as múltiplas determinações entre base e superestrutura são apreendidas, tendo centralidade o desenvolvimento das forças produtivas humanas, a base, contudo, sem implicar em absoluto em qualquer relação determinista ou mecânica. É necessário reforçar esse caráter dinâmico evocado no movimento dialético da base e da superestrutura para que não se denote ao materialismo histórico função determinista e sim dialética, que por consequência imprime dinamicidade. Devem-se, pois, considerar, em cada realidade, a apreensão de suas próprias contradições, suas dinâmicas próprias (interna) e suas transformações (Lefebvre, 2006).
A base representa a existência real dos homens, todas as relações de produção correspondentes a uma determinada fase do desenvolvimento humano. Em sua dialética interna, ou seja, a partir das próprias contradições nos modos de produção de uma certa época, temos o caráter processual da base. A essa base dinâmica corresponde uma superestrutura também dinâmica que agrega elementos como o aparto jurídico, a política, a cultura, entre outros, que não refletem direta e mecanicamente o modo de produção da base em si, mas as relações da vida social nas quais é central o modo de produção econômica (Williams, 2011). Especificamente nos elementos constituintes da superestrutura, qualquer tentativa de compreender o processo de desenvolvimento e seus estágios em um campo específico da vida humana, como a ciência, a filosofia, a arte, a política ou a religião, apenas a partir de suas próprias contradições e reformulações, de sua dialética interior (Lukács, 2010), no curso da história, é equivocada. A compreensão do desenvolvimento desses campos só é possível a partir da relação de cada uma dessas esferas entre elas e com o correspondente estágio de desenvolvimento econômico e suas especificidades – donde resulta o caráter materialista do método histórico em Marx.
A análise dos dados empregada neste artigo é estritamente qualitativa e se baseia na concepção marxista da linguagem e do discurso desenvolvida por Mikhail Bakhtin. A importância do discurso se faz presente em virtude do desenvolvimento da filosofia burguesa por meio da palavra (Bakhtin, 2009). A ideologia no discurso deve ser encarada não apenas como parte de uma realidade, mas também como forma de refletir ou refratar essa mesma realidade. O componente ideológico traz consigo um significado que remete a algo situado fora de si mesmo, de forma que os signos presentes no discurso sejam fundamentais para a apreensão da ideologia, dado o caráter intersubjetivo do discurso (Barros, 2005). É preciso ressaltar que esse processo ideológico que se manifesta por meio dos signos só se torna criação ideológica na consciência em sua conexão com o real, tanto na produção por parte da classe dominante quanto na apreensão/resistência por parte da classe dominada. Segundo Bakhtin (2009, p. 35), o ideológico só pode ser explicado no “material social particular de signos”.
Esse caráter material atribuído à ideologia discursiva só pode ser compreendido na relação entre base e superestrutura (Bakhtin, 2009). Para o autor, a explicação de uma relação entre a base e um fenômeno isolado qualquer só pode representar valor cognitivo se esse fenômeno estiver acompanhado de seu contexto ideológico. Analogamente, o conteúdo dialético da superestrutura só permite a compreensão de uma transformação ideológica a partir de uma imediata relação com as transformações na base. Essa dinamicidade garante não o caráter determinista, mas as transformações operacionalizadas na própria ideologia, por meio de sua dialética interna, das suas próprias contradições, em consonância – mas não necessariamente sincronizada – com as relações materiais por meio da dialética externa.
4 OS MITOS FUNDADORES DA VELHA CATAGUASES
Cataguases-MG está situada na Zona da Mata mineira, distante 320 km de Belo Horizonte e 120 km de Juiz de Fora, cidade referência da região. A ocupação do território no qual se situa a cidade foi adensada quando do interesse da Coroa portuguesa em aumentar o cerco ante o escoamento ilegal do ouro e diamantes extraídos, particularmente no século XVII (Gomes, 1974). Operando junto aos capitães-gerais e ao governador de São Paulo, a Coroa portuguesa restringiu o escoamento do ouro e diamantes proibindo a abertura de novas trilhas e fortalecendo os mecanismos de repressão.
Nesse rígido controle da Coroa portuguesa, restava apenas uma área crucial, incrustada entre Rio de Janeiro e São Paulo, portanto de fácil saída para o oceano. Além de ser uma rota importante para o escoamento da produção aurífera no centro do Estado, a Zona da Mata se viu também como região de potencial a ser explorado. Entretanto, como a abertura de novos caminhos não era de interesse da Coroa, tendo em vista a complexidade do controle sobre o fluxo das extrações, apenas dois ranchos foram abertos na região1.
O mais importante deles se localizava à margem esquerda do Rio Paraíba, denominado Rancho de Além Paraíba. O outro se situava a aproximadamente 60 km dali, às margens do Rio Meia Pataca2. O potencial aurífero nas proximidades desses ranchos levou a Terceira Divisão Militar do Rio Doce, comandada por Henrique José de Azevedo, a ordenar, nos anos 1830, a abertura de uma estrada que deveria ligar a província de Minas Gerais aos Campos de Goitacazes (hoje Campos, Rio de Janeiro), recortando o vale do Rio Pomba, afluente do Paraíba (Cardoso, 1956). Para comandar essa empreitada, foi nomeado o desbravador francês Guido Thomaz Marlière, coronel comandante das Divisões Militares do Rio Doce e diretor-geral dos Índios (Almeida, 2004). Guido Marlière recebeu do alferes Henrique José de Azevedo um terreno destinado à construção de uma igreja em homenagem a Santa Rita de Cássia e à fundação de um povoado, denominado Santa Rita do Meia Pataca3, que posteriormente se tornaria o município de Cataguases.
O desaquecimento das atividades auríferas observado na metade do século XIX fez emergir a necessidade de novas formas de ocupação econômica no lugar. Assim como em grande parte do país, o foco recaiu sobre a produção cafeeira baseada no trabalho escravo, sendo proprietários de terras os desbravadores atraídos pela expectativa da exploração de diamantes nos rios da região. Em complemento, há, nesse período, o incremento das atividades comerciais, a fim de atender os produtores de café. Cardoso (1956) afirma que esse progresso material foi responsável pela emancipação do arraial à categoria de Vila de Cataguases, em 18754, não apenas viabilizado pelas estruturas de produção baseadas no trabalho escravo e no comércio, mas também em função da presença da Estrada de Ferro Leopoldina que dinamizava o comércio local e da própria produção cafeeira.
É necessário ressaltar que a condição que eleva o arraial à categoria de vila não se dá apenas pelo fortalecimento econômico do lugar, mas também em virtude dos laços políticos de algumas figuras. Em 1842, chegou à região o major Joaquim Vieira da Silva Pinto, ou simplesmente major Vieira, como era conhecido, instalando-se imediatamente na Fazenda Nossa Senhora da Glória. Dono de muitas terras e escravos5, exercendo o poder com mãos de ferro, como salienta Almeida (2004), major Vieira detinha também grande poder político. Agraciado com o posto de major da Guarda Nacional, tornou-se o responsável pelo destino do povoado, fundando uma oligarquia que manteve o domínio político na região por mais de meio século (Costa, 1977).
Souza (1994) destaca que os mitos fundadores são formatados a partir das narrativas espetaculares que visam se constituir ou que são levadas à condição de história oficial de um povo. Nesse caso em particular, o processo contém em si uma sacralização do major Vieira como desbravador e fundador do município de Cataguases-MG. Essa sacralização é cunhada de modo bastante peculiar na obra de seu descendente Enrique de Resende (1969), que recebe o honesto título de Pequena história sentimental de Cataguases. Ao contrário do homem austero, dono de grandes propriedades de terras, que guiava com mãos de ferro seus escravos, o mito fundador do major Vieira é talhado por Enrique de Resende (1969, p. 24) de forma heroica:
Eis senão quando, em 1842, dá entrada nestas paragens, provindo da Lagoa Dourada, um respeitabilíssimo varão, com todas as características de bandeirante audaz – Joaquim Vieira da Silva Pinto, mais tarde o Major Vieira – que, seguido de escravos, e abrindo picada na mata virgem, fundou a Fazenda do Glória, um latifúndio de milhares de alqueires de terras, a três léguas do povoado, fazendo-se o chefe incontrastável de toda a região, que passou a obedecer-lhe, pelo seu prestígio, e a admirá-lo pela sua conduta.
Estabelecer um caráter mais ou menos autoritário do major Vieira e de seus métodos perante seus pares no período do desbravamento tenderia ao anacronismo. Porém, é inegável que a figura de fundador do major Vieira, um sujeito que “amava os fortes e abominava os fracos” (Resende, 1969, p. 25), é construída com base nos seus atos de bravura e liderança, marcada por características positivas que, se ausentes, colocariam em dúvida a existência da atual Cataguases. A narrativa se constrói vazia de crítica e ignora por completo a ocupação arbitrária das terras habitadas pelos índios que ali se encontravam. A figura do mito mantém relação de distanciamento e aproximação do cargo que ocupava Joaquim Vieira da Silva Pinto. Se, por um lado, Resende (1969) constrói a narrativa enaltecendo a figura do major Vieira como grande cumpridor de suas atribuições, sabido da responsabilidade do cargo que ocupara e da missão desbravadora a ele destinada, o autor, por outro, não menciona em absoluto que o ethos do herói só se tornou possível porque, antes de tudo, major Vieira estava respaldado por um elevado poder concedido pelo Império.
Outra passagem importante na narrativa de Resende (1969, pp. 25-26) nos permite visualizar como a austeridade de Joaquim Vieira da Silva Pinto é abrandada pelas contingências que o autor faz questão de ressaltar na construção do mito:
Levianos são aqueles que se não pejam de tão temerário juízo. Ora, o Major Vieira chegou ao Meia Pataca, onde tudo se achava ainda por fazer, no ano de 1842. Grande senhor de escravos, proprietário de imenso latifúndio, desbravador de terras, chefe de numeroso clã, responsável pelo destino de um povoado, que tão cedo perfilhara, cabia-lhe, naturalmente, manter a ordem e fazer a justiça em toda aquela extensa região.
[...]
E não o fosse ele, não dispusesse da força moral de que dispunha, e já naquela época se teria desfeito o sonho de Marlière. Bandoleiros da pior espécie, criminosos da pior estofa, que desciam do Sapé e da Serra da Onça, e de outros valhacoutos de assassinos e ladrões, para invadir o povoado, pilhando e matando – estes, sim – conheceram todo o peso da autoridade do Major. E tão bem o conheceram, que dentro em breve não mais havia criminosos na região. Muitos deles, segundo a lenda, fugiam, à simples enunciação do seu nome, que lhes soava como um látego.
Quanto aos escravos, tratava-os como o faziam os demais senhores, e na conformidade com os usos e costumes daquela ignominiosa quadra da vida brasileira. Senhores cruéis, houve-os, sem dúvida, ao tempo da escravatura, mas não nos consta, a nós descendentes diretos do Major Vieira, que este se incluísse entre aqueles. Fazia-se respeitar, é claro. E nisso era implacável.
Nesse fragmento, Resende (1969) recobra para major Vieira o papel de guardião das idealizações de Guido Marlière, o homem que permitiu que o arraial um dia pensado pelo explorador francês se mantivesse vivo, apesar das investidas de marginais. A civilização aqui aparece como positiva, como alternativa ao habitat selvagem povoado por índios que ali se encontravam. Novamente contraposições ao ethos austero do major Vieira são resgatadas, de forma que a postura firme do personagem se justificasse pela necessidade de proteção aos indivíduos que habitavam o arraial. Dessa forma, não apenas se justifica o traço negativo da personalidade do mito, mas também a ele é dirigido o reconhecimento por ter protegido a população contra criminosos de outras redondezas. Trata-se aqui de uma gratidão que ressoa em toda a construção do mito, pois não apenas cria uma dívida dos habitantes perante o major Vieira, mas deflagra também um conjunto de relações pautadas no paternalismo que desencadearam trocas de favores e que posteriormente são utilizadas para contrabalancear aspectos negativos que poderiam colocar em dúvida a figura do mito.
O papel de guardião de ordem se presta como contraponto ao autoritarismo que possa recair sobre a figura do major Vieira. Porém, outros elementos auxiliam a suavizar ainda mais essa carga, naturalizando tanto o status adquirido pelo mito quanto sua postura perante os escravos. Quando Resende (1969) ilustra a posição do major Vieira como possuidor de escravos e de grandes latifúndios, faz isso de forma a-histórica, como se tal condição fosse exterior a todo e qualquer processo de formação e ocupação no Brasil. A condição que torna o major Vieira o bastião daquele território é apresentada como dada, natural, assim como a própria existência dos senhores e dos escravos, e, por se apresentar como tal, naturaliza também todo o processo de dominação e obediência, tornando obscurecida toda e qualquer contradição.
Se havia riscos de relativa confusão entre o papel de fundador ou desbravador desempenhado por major Vieira, esse risco se tornou volátil com a carga hereditária presente na criação dos mitos. Afinal, a manutenção do poder e dos grandes feitos na família não apenas consolida os mitos, como também reforça a naturalidade com que são designadas as incumbências de proteger a população comum. É nesse esteio que surge uma nova figura, o coronel José Vieira de Resende e Silva, que mantém em família o papel fundador do município de Cataguases-MG, dando sequência aos trabalhos desbravadores do pai, major Vieira, epicamente narrado por Resende (1969, pp. 28-30):
Quando, em 1842, Major Vieira se transportou, com a família, para o Curato do Meia Pataca, e aí fundou a Fazenda da Glória, destaca-se, entre seus filhos varões, o de nome José, que, contando apenas treze anos de idade, já se entusiasmava com a obra de desbravamento e civilização, virilmente empreendida pelo pai, naqueles rincões bravios.
[...]
Concluídos os estudos, e voltando, agora, definitivamente, ao Meia Pataca, José Vieira de Resende e Silva incluía na sua bagagem dois grandes e inalienáveis patrimônios: a instrução, que era o curso de humanidades, e a estima de vários jovens, seus colegas, que se fariam, mais tarde, personalidades de relevo na política e na administração da Província.
[...]
Aiuruoca, era ele eleito deputado provincial, e reeleito no biênio seguinte, quando ocupou, na Assembleia, o cargo de secretário da mesa.
[...]
Entretanto, na Assembleia, e fora dela, José Vieira de Resende e Silva pensava e repensava na criação da Vila do Meia Pataca, ou seja, aquela que seria a sede do futuro município de Cataguases. A tarefa apresentava-lhe difícil, senão mesmo irrealizável. Mas, com o imenso prestígio do pai, e o seu próprio, somado ao de inúmeras e altas personalidades políticas, que o honravam com a verdadeira e afetuosa estima, não se entibiou o grande batalhador, e, a 25 de novembro de 1875, era sancionada a Lei Provincial n. 2.180, que, no seu artigo primeiro, assim rezava:
“Fica criado o município de Cataguases, composto das freguesias do Meia Pataca, Laranjal e Empoçado, desmembradas dos municípios de Leopoldina, Ubá e Muriaé, e das freguesias de Santo Antônio do Muriaé e Capivara. A sede do município será no Meia Pataca, elevado à categoria de Vila, que se chamará Cataguases”6.
A construção do mito a partir da narrativa de Resende (1969) nos permite verificar que a manutenção do poder está ancorada na continuidade senhorial passada de pai para filho, nas vantagens extraídas do contato direto com outros grupos influentes e com o casamento, todos elementos constituintes da história de famílias mineiras como a própria história da política mineira, destacado por Horta (1956 como citado em Almeida, 2004) e pesquisado por Almeida (2004). Todo esforço de mitificação do coronel Vieira é também a confirmação do mito major Vieira; a construção do espírito bastião do filho só fora possível pelos incontáveis exemplos de bravura do pai.
Em paralelo, Resende (1969) destaca a rede de influência política a que o coronel Vieira fora exposto durante o período em que estudou no Colégio Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, cujos amigos ocupariam mais tarde importantes cargos. Compõe-se aqui um típico cenário político das velhas oligarquias agrárias, no qual as trocas de favores e as relações pessoais são determinantes para as decisões tomadas em favor de certos indivíduos ou grupos políticos. Por fim, a trajetória de coronel Vieira é atravessada pelo casamento com Feliciana Vieira de Resende e Silva, filha do coronel José Dutra Nicácio. É dessa união que se inicia o terceiro período da mitificação fundadora de Cataguases. Não apenas por concentrar em si mais poder político e econômico, uma vez que se trata de duas famílias latifundiárias, mas por se iniciar um poder hegemônico que perdurou sobre a cidade por quase cem anos.
Antes de entrar nesse amplo domínio que consolida a mitificação fundadora da cidade, é necessário estabelecer uma relação que vai de encontro ao caráter natural com que a bravura da família Vieira é reconstituída. A condição de classe dominadora, concentrada no clã dos Vieiras, parte de um amplo domínio das esferas econômicas e políticas, base e superestrutura no espaço em análise. A base, o domínio econômico a partir de um modo de produção escravista e da apropriação privada das terras desbravadas, só se tornou possível com o suporte da chancela política que ordena major Vieira, elemento da superestrutura. Aqui é possível notar uma múltipla implicação, que politicamente ampara o direito do major Vieira – e obviamente de outros latifundiários – em estabelecer naquelas terras a produção escravista, que, por sua vez, dialeticamente, se fortalece em termos políticos por lograr-se para si, dado o amplo domínio econômico, o dever da proteção dos habitantes daquele povoado.
É somente no caráter natural que as contradições permanecem veladas, de forma que a vocação desbravadora iniba aquilo que lhe dá origem e o que ela gera por consequência. Quando Marx e Engels (2007) estabelecem a divisão do trabalho material e espiritual, tratam justamente do esforço que a classe dominante emprega nas atividades do pensamento, a partir da formulação de ideias que consubstanciam e justificam as relações de base, e que se manifestam fortemente nas instâncias da superestrutura. A classe dominada operacionaliza a base a partir da força de produção que gera todos os bens imediatamente necessários à manutenção da vida e, com isso, libera a classe dominante para empregar seu tempo em atividades como política, cultura, ciência, filosofia e religião.
A trajetória do clã dos Vieiras parte de uma prerrogativa política – precedida pelo poder econômico – concedida pelo Império que os isenta de empregar sua força de trabalho na transformação da terra, uma vez que, para isso, as mesmas condições imputadas lhes reservam um exército de mão de obra escrava. O produto dessa dominação das forças de trabalho que gera ainda mais poder político permite que os demais membros da família dediquem seu tempo aos estudos, ao desenvolvimento das atividades de pensamento, que, noutro momento, se reconvertem sobre as forças de trabalho ampliando seu domínio, na mesma proporção que as terras produtivas são agregadas pelo poder político e pelos matrimônios estabelecidos. É na abstração de todo esse processo que o mito é criado, ancorado na naturalização das relações de dominação, sem que haja qualquer resquício de contradição tanto no âmbito econômico quanto político. A partir desse esboço, a história oficial da cidade oblitera todo caráter dialético interno e externo, negando inclusive a existência de vencidos, uma vez que a luz é lançada somente sobre os vencedores.
Com a morte do coronel Vieira, em 1881, Resende (1969) afirma ter-se encerrado o primeiro capítulo da história política e administrativa. Todavia, caberia a outro descendente – um sobrinho – do clã dos Vieiras a ocupação do espaço deixado pelo coronel, sendo essa hereditariedade política exposta por Almeida (2004). Astolfo Dutra Nicácio – filho da irmã de coronel Vieira – percorre, em sua trajetória política, os cargos de vereador, presidente da Câmara Municipal e agente executivo, deputado estadual, deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados por seis mandatos consecutivos. A ocupação desses cargos levou a uma centralização de toda a vida política da cidade em sua figura até 1920. Após a sua morte, em 1924, coube a seu filho Pedro Dutra Nicácio continuar o legado da família, sendo eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Mineiro (PRM) (Almeida, 2004).
A trajetória de Pedro Dutra Nicácio, sobrinho do coronel Vieira, é fundamental para a demarcação simbólica dos Vieira de Resende como mitos fundadores da cidade. Em 1931, Pedro Dutra Nicácio é nomeado prefeito, como forma de recompensa por ter apoiado a Aliança Liberal e o presidente de Minas Gerais, Olegário Maciel, na contenção do movimento revolucionário liderado por Vargas. A manutenção do poder na mão dos descendentes da família Vieira de Resende permite a tentativa de resolução de um dilema que se manteve irresoluto e ao mesmo tempo silenciado. O nascimento do território que se tornara Cataguases era creditado tanto a Guido Marlière, em razão de sua missão desbravadora e da elaboração do primeiro traçado da então Santa Rita do Meia Pataca, quanto a major Vieira e coronel Vieira, por politicamente terem levado o território à condição de município.
Embora Enrique de Resende (1969) tente estabelecer uma complementaridade entre os papéis desempenhados por Marlière e pelos Vieira de Resende, há que se registrar a concorrência entre os dois mitos fundadores nas homenagens impressas a obras de utilidade pública que historicamente contribuem para a manutenção e o fortalecimento dos mitos.
Ainda na década de 1920, sob a chefia política de Astolfo Dutra Nicácio (pai de Pedro Dutra), deu-se início à construção de uma escola pública que levaria o nome do então prefeito Astolfo Dutra e que, posteriormente, seria renomeada Escola Estadual Coronel Vieira. Até aquele instante, nenhum tipo de homenagem dessa natureza havia sido prestado a Marlière. Esse quadro se altera em 1928 em função de uma política do governo do Estado de Minas de valorização da memória de Guido Marlière em toda a região. A saída encontrada pelos Vieira de Resende fora acatar as determinações do governo do Estado, contudo reservando, para a escola homônima ao desbravador francês, uma localização de menor prestígio e circulação na cidade.
5 MITOS FUNDADORES E AS TRADIÇÕES INVENTADAS DA NOVA CATAGUASES
A manutenção do poder político até a década de 1930 nas mãos dos Vieira de Resende, de certa forma, dividia o papel de mito fundador entre Guido Marlière – graças à intervenção do governo estadual – e coronel Vieira, que a reboque trazia a figura do pai, major Vieira. O poder político da família Vieira de Resende era reflexo de uma herança oligárquica e, como extensão, tanto suportava os latifúndios da família como era amparado pelo poder econômico que ela gerava.
Entretanto, a centralidade dos latifúndios na economia da região se reduziu profundamente já no início do século passado, deteriorando-se por completo com a crise do café nos fins dos anos 1920. Concomitante à crise na produção cafeeira, em Cataguases fazia-se notar o crescimento da atividade industrial têxtil, deflagrando o que posteriormente se denominou vocação industrial da cidade. A atividade industrial tem seu início com a chegada de Manuel Inácio Peixoto, imigrante português que acumulou capital após o trabalho na estrada de ferro em Sorocaba-SP e que se estabeleceu como comerciante na cidade, transformando-se posteriormente num rico industrial.
Não apenas a centralidade econômica se apresentava em transição, mas também o controle político. É no “encontro” das famílias Vieira de Resende e Peixoto que se deflagra uma nova faceta da disputa pela fundação de Cataguases. Entretanto, nesse momento, trata-se não da fundação institucional, mas de uma cidade que se pretende nova, guiada pela transição entre a cidade agrária e a cidade industrial, alinhada com a ideia de progresso que pairava sobre o Brasil pós-Revolução de 1930.
Embora indissociáveis, as esferas de disputa política e econômica se apresentavam como mundos à parte, sendo a primeira de domínio da família Vieira de Resende e regida sobre os pilares da velha oligarquia agrária. Todavia, a economia se mostrava cada vez mais dependente das indústrias têxteis controladas pela família Peixoto. A interseção dessas duas esferas é deflagrada nas décadas de 1930 e 1940, quando Pedro Dutra toma como proposta política central questionamentos contra a degradação das condições de trabalho vigentes nas indústrias.
Por sua vez, a família Peixoto se lança nas disputas eleitorais, com vistas à expansão do poder na cidade. Essa inserção era não apenas a ampliação do poder, mas também uma resposta àquilo que ensejava contrário. Em contraposição às propostas de Pedro Dutra, os Peixotos, industriais que se denominavam progressistas e desenvolvedores de Cataguases, propuseram a instauração de uma cidade de vanguarda no campo das artes modernas (Almeida, 2004), alegando que suas indústrias cumpriam as obrigações legais e exerciam a função social que cabia a toda e qualquer empresa, no caso fornecer emprego, remuneração e ajuda nas dificuldades.
O resultado das eleições levou ao poder político a família Peixoto, que se lançou à fundação de uma cidade de vanguarda não apenas como escape às questões trabalhistas, mas também como forma de se consolidar como responsável pelo início de uma Cataguases moderna. Alinhados ao ideário progressista nacional pós-Revolução de 1930, que, entre outras características, asseverou sobre a necessidade de criar uma revolução estética como afirmação da identidade nacional a partir do modernismo, os Peixotos decidem implementar um projeto urbanístico com base na arquitetura moderna. Em reforço, afirmavam ser esta uma investida salutar que recobraria o legado deixado na cidade pela Revista Verde7, no fim da década de 1920.
É aqui o ponto crucial da tradição inventada. Essa proposta continha em si dois elementos complementares. A implementação de um projeto arquitetônico moderno demarcaria o legado da família Peixoto ao recorrer às edificações e aos paisagismos monumentais – como os citados por Hobsbawm (1984b) e Lefebvre (1999) – e também cumpriria a função de reviver, reinventar a tradição moderna da cidade nascida no fim dos anos 1920. Em complemento, fundava uma nova época na cidade, literalmente concretizando a transição da velha Cataguases rural e agrária para a nova Cataguases urbana e industrial, num importante passo para definir a figura do mito fundador no período pós-desbravamento.
A incorporação de obras da arquitetura moderna na cidade se inicia do estreito relacionamento entre Marques Rebelo e Francisco Inácio Peixoto. Por indicação de Rebelo, Francisco Inácio Peixoto recorre a Oscar Niemeyer para projetar sua residência. Niemeyer fica então responsável pelo projeto arquitetônico, cabendo a Joaquim Tenreiro o mobiliário, a Burle Marx o paisagístico e a Jan Zach e José Pedrosa as esculturas.
A proposta de um projeto urbanístico de cunho moderno se mostrava cada vez mais limitada e restritiva, servindo apenas à elite econômica da cidade. De fato, a adesão a projetos arquitetônicos modernos se fazia presente, mas a partir dos laços sociais entre as famílias abastadas da cidade – em especial com os Peixotos – que passaram a buscar indicações de arquitetos que pudessem projetar suas casas.
Escassos foram os projetos que efetivamente tiveram caráter público ou que se lançavam como tal. Com o apoio do irmão Manuel Peixoto, então prefeito da cidade, Francisco Inácio recorre novamente a Niemeyer para projetar o Colégio de Cataguases, cuja obra se inicia em 1945. Além do projeto arquitetônico de Niemeyer, a obra é composta do painel Tiradentes, de Cândido Portinari8, do mobiliário de Joaquim Tenreiro e de uma escultura de Jan Zach.
Com o andamento da obra do Colégio de Cataguases, a arquitetura moderna se faz cada vez mais presente na cidade, de forma que Rebelo envia a Francisco Peixoto, em 1945, algumas considerações a respeito de um projeto de urbanização. Posteriormente, Rebelo recomenda um projeto de cidade a ser elaborado por Aldary Toledo, reafirmando a importância deste para Cataguases e o impacto direto nas pretensões da família Peixoto. Rebelo assevera claramente o efeito positivo da arquitetura moderna no propósito de domínio político e econômico ao afirmar que “as prefeituras devem fazer empréstimos para construir obras para o povo. O povo não tem nada. E vocês nunca mais perderiam eleições”9.
Em complemento, outras obras que pretensamente assumiriam caráter público foram construídas, como o Educandário Dom Silvério, a Praça Rui Barbosa e a Matriz de Santa Rita de Cássia, construída entre 1944 e 1968. A Matriz de Santa Rita de Cássia pode ser tomada como símbolo do projeto ideológico modernista implantado na cidade, uma vez que sua construção substitui a antiga igreja em estilo neogótico, construída em 1894. Projetada por Edgar Guimarães do Valle, a matriz assume formas modernas inspiradas em uma asa de avião, contando com uma abóboda e uma torre em concreto armado de complexa construção – o que pode ser facilmente verificado nos 24 anos de obra.
De acordo com Miranda (1995), a construção da Matriz de Santa Rita não passou ilesa às críticas. Primeiro, pelo volume de recursos consumidos na obra. E, fundamentalmente, pela resistência à igreja de arquitetura moderna tanto pelo seu formato quanto pelo apego sentimental dos habitantes à antiga construção. Apesar das ressalvas, o projeto de vanguarda modernista seguiu seu rumo.
A tática adotada pelos mecenas tinha como propósito anular construções em estilos distintos ao modernismo, coibindo assim a disputa no plano estético a fim de sanar dúvidas a respeito dos ares modernistas da cidade – e que mais tarde se consolida no processo de tombamento –, cujo projeto coincidia e complementava o estágio de desenvolvimento econômico baseado na industrialização, semelhante ao propósito modernista em nível nacional observado a partir da Revolução de 1930. Não apenas reorganiza um lócus carregado de significado para a população católica, maioria na cidade, como estende a obra da arquitetura moderna às obras públicas, reforçando o discurso acerca do caráter social desse estilo arquitetônico.
A fim de consolidar o predomínio político e econômico na cidade por meio das investidas em obras supostamente públicas, a construção do Cine Teatro Edgard surge – a partir das conversas entre Rebelo e Peixoto – com o intuito de criar um espaço que abrigaria um cinema e um clube nos moldes do antigo Cine Teatro Recreio. O projeto de dominação empreendido por Francisco Inácio Peixoto fica ainda mais evidente quando o projeto moderno do Cine Edgard visa substituir o antigo Cine Teatro Recreio, de arquitetura eclética. Assim, mantinha-se a tradição do cinema em conjunto com a tradição nascente10, a arquitetura moderna. Embora as ideias de Marques Rebelo e Francisco Peixoto fossem coerentes com os propósitos, aquele, por considerar os riscos financeiros de tal empreendimento, sugere então a este que combinasse a construção do cinema a um edifício comercial ou hoteleiro11, culminando com a construção do Hotel Cataguases.
A tradição inventada de uma cidade modernista se torna cada vez mais evidente ao observarmos a produção e o consumo elitista dessa arquitetura, cujo resultado e origem na manutenção da ordem econômica e política se fazia valer. Indubitavelmente a arquitetura moderna cumpre seu papel de restaurar o passado glorioso e restritivo do Movimento Verde, e de demarcar na cidade o início de um novo tempo, de uma tradição modernista que se universaliza e constitui uma vocação cultural para a cidade, sem concorrer com sua outra vocação, a industrial, pelo contrário, de mútuo apoio.
Nesse processo de transição da Cataguases conservadora, imantada nas velhas oligarquias agrárias, para a Cataguases vanguardista, progressista e impulsionada pela força da industrialização, é possível identificar o papel que Hobsbawm (1984b) atribui à invenção das tradições como marca de uma nova era, fundamentalmente aquelas que configuram mudança de poder. É nessa transição que a dita vocação cultural da cidade começa a se cristalizar. O embate político entre as duas famílias supracitadas – Dutra e Peixoto – deflagra o ideal de uma elite industrial em cravar uma identidade para a cidade e, ao mesmo tempo, escamoteia discussões mais incômodas aos proprietários dos meios de produção.
O processo de modernização da cidade constituiu-se, de certa forma, pela aparência pública que as demandas particulares assumiram. Nesse caso, é possível afirmar que o legado modernista torna-se um instrumento gerador de identidade para a elite local, ao passo que permite a afirmação do status social e econômico dessa mesma elite (Couto, 2004). Penetrando na contradição entre a cidade monumental e a cidade ordinária, Cataguases vivencia nas décadas de 1940 e 1950 o que Hobsbawm (1984a) caracteriza ser a cristalização de um período através dos monumentos construídos. Forja-se aqui um senso identitário da cidade, um legado que se perpetuou na memória dos desavisados. Como aparatos dessa nova cidade, temos o aspecto institucional enquanto instância de poder legítima, somado ao domínio econômico exercido na cidade, também mantenedor de uma ideologia e da produção e reprodução de uma identidade ligada à família Peixoto.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se inspira em outras produções que buscaram incorporar a cidade como objeto de pesquisa dentro dos estudos organizacionais, não obstante as dificuldades e limitações de qualquer tentativa de ponto de chegada ante um objeto tão complexo e polifônico. O resgate dos mitos fundadores e das tradições inventadas permitiu entender a relação dialética que combina fundamentalmente economia, política e cultura. Em particular, desvelar na cidade, como objeto dos estudos organizacionais, a desnaturalização das tradições – em Cataguases, a cidade modernista – ao amarrá-las necessariamente às contradições presentes no processo de formação econômica.
A partir desse mote, é possível afirmar que os mitos fundadores da velha Cataguases são particularmente sacralizados na obra de Enrique de Resende (1969), intitulada Pequena história sentimental de Cataguases e considerada uma espécie de biografia da cidade. O autor busca atribuir legitimidade ao papel de guardião desempenhado pelos seus antepassados. O caráter protetor concentra também as justificativas para o que pode dar conotação negativa à figura de major Vieira, na medida em que sua austeridade e a forma implacável com que tratava os fracos e os escravos eram provas de força de quem não fraquejava diante das adversidades. Diante desses elementos que cercam a constituição do mito fundador, predomina o caráter a-histórico de sua formação, de forma que o status adquirido seja naturalizado, inibindo contrapontos à sua constituição como grande oligarca e senhor de escravos.
O controle econômico e a proteção conferida aos habitantes são reverberados no domínio político, cujo comando se perpetuou até a entrada em cena dos mitos fundadores da nova Cataguases. O legado da família Vieira de Resende estava estreitamente vinculado ao domínio oligárquico e à economia cafeeira. A substituição do café pelas indústrias deflagrou mudanças que vão além das econômicas, de forma que instaura uma disputa pelo poder político no século XX, uma disputa entre as famílias Vieira de Resende e Peixoto.
Essa transição é marcada pelo ethos progressista requerido pelos Peixotos, a fim de estabelecer os pilares do período que se descortinava. A instauração de um novo mito exigiu a clara demarcação de que aquele período representava um ponto de inflexão na cidade, um rompimento com uma herança que em nada condizia com as demandas da nova cidade em vias de progresso. É dessa necessidade de concretizar a Cataguases progressista que se deu a incursão dos Peixotos pela arquitetura moderna, vocação já ensaiada nos anos 1920 com a Revista Verde.
Entretanto, a demarcação da nova cidade se apresentou restritiva. A partir dos objetivos políticos, o capital confere caráter público a investidas estritamente privadas, deflagrando o que denomino ser a invenção da tradição modernista de Cataguases. É nesse percurso que está a inexorável ligação entre os mitos fundadores e a invenção de tradições. Os propósitos dessa tradição nos conduzem ao fortalecimento do mito fundador na transição de uma cidade agrária para uma cidade industrial que recobra um passado também modernista a fim de justificar as investidas presentes, substituindo a cidade cujas lembranças em nada combinavam com o ar progressista tecido pelas indústrias.
As tradições inventadas operacionalizam um sistema identitário para os moradores da cidade que visa impor homogeneização. Apesar da descrença ante a capacidade prática das tradições inventadas junto aos citadinos, uma vez que as tradições, de certa forma, forjam um sentido de cidade que ressoa mais entre os forasteiros do que entre aqueles que nela habitam, é fundamental considerar que essas mesmas tradições inibem possibilidades outras de configuração da cidade já no direcionamento prático das decisões econômicas, políticas e culturais para o que se estabeleceu a partir dessa tradição.
Os acontecimentos culturais são sempre recobrados para justificar a incursão pela arquitetura moderna como apenas um ponto de chegada de uma vanguarda que sempre se mostrou, passando tanto por Humberto Mauro quanto pelos Verdes. Particularmente no caso destes últimos, recobra-se aí a raiz modernista que já germinava na cidade e que se consolida com as obras arquitetônicas. Qualquer análise a respeito de Cataguases e de seus elementos superestruturais deve ser guiada em sua correspondência com os elementos de base, como o desdobramento de um projeto modernista que foi apresentado como contraproposta à discussão das péssimas relações de trabalho, e, ao mesmo tempo, reconduzindo o capital à proteção de um projeto cultural que aponta para o futuro, digno da cidade industrial e progressista.
Não obstante o caráter vanguardista que se tentou impor tanto sobre a cidade industrial quanto sobre os elementos culturais, as mudanças impostas pelos Peixotos se mostraram conservadoras. Desvela-se aqui outra forma de dominação e dependência, na qual as cercas das fazendas são substituídas pelos muros das fábricas, prevalecendo o espírito do coronelismo arraigado nas velhas oligarquias, em que a pese a substituição do açoite e da bravura pela condescendência e pelo zelo dos industriais que ofertam empregos. Em paralelo a essa nova configuração de base, verificou-se a continuidade de uma superestrutura que legitimava o controle das relações de produção, todavia não mais composta apenas do domínio político, mas se estendendo também à dominação cultural, cujos propósitos foram utilizados como interesse da cidade progressista, mas que alargou ainda mais a distância histórica entre capital e trabalho, fundando na cultura outro mecanismo distintivo.
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1
Processo de tombamento de Cataguases ocorrido em 1994.
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2
O nome Meia Pataca se deve à extração de meia pataca de ouro por volta de 1800.
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3
Doação do terreno por Henrique José de Azevedo e seu delineamento por Guido Marlière, de 7 de abril de 1841. Informação obtida no arquivo do Museu Histórico Alípio Vaz.
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4
Lei Provincial n. 2.180, de 25 de novembro de 1857. Informação obtida no arquivo do Museu Histórico Alípio Vaz.
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5
O coronel Vieira possuía 119 escravos matriculados em seu nome, em 24 de agosto de 1872 (Caldas, 2012).
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6
Apesar de criado em 1875, o município de Cataguases só foi inaugurado em 7 de setembro de 1877. De acordo com Resende (1969), o nome Cataguases é reflexo de uma atitude sentimental do coronel Vieira, uma vez que, dentre as paisagens da infância, uma das mais significativas era a do pequenino Rio Cataguases, onde se banhava quando criança ainda na Fazenda do Rochedo, onde nascera.
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7
Publicada entre 1927 e 1929, a Revista Verde reuniu diversos literários da cidade, entre os quais se destacaram Enrique de Resende, Rosário Fusco, Guilhermino César, Francisco Inácio Peixoto e Ascânio Lopes. A revista contou com o apoio de modernistas de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Juiz de Fora, rendendo algumas contribuições de Mário de Andrade, Pedro Nava, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Marques Rebelo, Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
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8
O painel Tiradentes de Portinari está atualmente exposto no Memorial da América Latina, após a sua compra pelo governo do Estado de São Paulo, em 1975. No lugar original de sua instalação no então Colégio de Cataguases foi instalada uma réplica do painel.
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9
Carta de Marques Rebelo a Francisco Inácio Peixoto, de 31 de julho de 1945 (Miranda, 1995). Os diversos registros pelos quais empreendi busca das correspondências entre Marques Rebelo e Francisco Peixoto sinalizam que a carta, em seu original, está nos arquivos da Coleção Plínio Doyle da Fundação Casa de Rui Barbosa. Entretanto, tanto na busca prévia pelos arquivos existentes no acervo quanto na consulta in loco durante minha estada na Casa de Rui Barbosa, a referida carta não constava nos arquivos.
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10
Cataguases é lócus de um marco no cinema nacional, pois abriga as primeiras produções de Humberto Mauro, cineasta que viveu na cidade durante a infância e juventude e que lá produziu as obras Valadião, o Cratera (1925), Na primavera da vida (1926), Thesouro perdido (1927), Brasa dormida (1928), O fox-trot de uma cidade (1929) e Sangue mineiro (1929), conhecidas como Ciclo de Cataguases.
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11
Carta de Marques Rebelo a Francisco Inácio Peixoto, de 14 de fevereiro de 1945. Disponível nos arquivos da Coleção Plínio Doyle da Fundação Casa de Rui Barbosa.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Nov-Dec 2014
Histórico
-
Recebido
20 Jun 2014 -
Aceito
03 Nov 2014