Resumo
Sistemas de transporte visam melhorar as condições de mobilidade. Podem, no entanto, provocar efeitos negativos sobre os deslocamentos, como é o caso do efeito barreira. O objetivo deste estudo é avaliar se uma via urbana se constitui em uma barreira para deslocamentos a pé, bem como identificar variáveis que alteram a percepção dos pedestres sobre esse efeito. A via estudada, localizada em uma cidade média (São Carlos, SP), apresenta intenso tráfego motorizado. Um questionário foi utilizado para identificar características pessoais (idade, renda, etc.) e padrões de viagens e mobilidade (dificuldades de caminhar, percepções sobre o tráfego, etc.). Os dados de 103 respondentes foram examinados com o teste Qui-quadrado de independência, em busca de evidências de associações entre as dificuldades enfrentadas pelos entrevistados ao andar a pé e suas características individuais e percepções do efeito barreira. No caso da percepção do efeito barreira devido à velocidade e ao volume de tráfego, há evidências de associação entre os trechos que exigem esforço físico excessivo, ruas muito largas e poluição sonora ou do ar. Assim, a via analisada representa, em alguns aspectos, uma barreira aos deslocamentos a pé.
Palavras-chave:
Efeito barreira; Separação da comunidade; Pedestres; Infraestrutura de transporte; Modos não motorizados
Abstract
Transport systems are designed to improve mobility conditions. Nonetheless, they can also have negative impacts on displacements, such as the barrier effect. The aim of this study is to evaluate whether or not an urban street acts as a barrier to walking trips and to identify variables that change the perception of pedestrians about this effect. The road studied, located in a medium-sized city (São Carlos, SP), has intense motorized traffic. A questionnaire was designed to register personal characteristics (age, income, etc.) as well as mobility patterns (difficulties in walking, perceptions about traffic, etc.). Data from 103 respondents were examined using the Chi-squared test of independence to look for evidence of associations between the difficulties faced by respondents when walking and their individual characteristics and perceptions of community severance. In the case of perception of the barrier effect due to traffic speed and traffic volume, the results showed evidence of an association between stretches that require excessive physical effort, very wide streets and noise or air pollution. Thus, the study indicates that the street analysed constitutes, in some aspects, a barrier to walking trips.
Keywords:
Barrier effect; Community severance; Pedestrians; Transport; Infrastruture; Non-motorised mode
Introdução
Os sistemas de transporte desempenham um papel fundamental para a sociedade, visto que disponibilizam acesso às diversas oportunidades. Dessa maneira, melhorar o acesso aos sistemas de transporte pode melhorar o bem-estar e a qualidade dos deslocamentos, e diminuir o índice de exclusão social de alguns grupos da sociedade (THOREAU; MACKETT, 2015THOREAU, R.; MACKETT, R. L. Transport, social exclusion and health. Journal of Transport and Health, v. 2, n. 4, p. 610-617, 2015. ; VAN SCHALKWYK; MINDELL, 2018VAN SCHALKWYK, M. C. I.; MINDELL, J. S. Current issues in the impacts of transport on health. British Medical Bulletin, v. 125, n. 1, p. 67-77, 2018. ; VAN ELDIJK et al., 2020VAN ELDIJK, J. et al. Missing links: quantifying barrier effects of transport infrastructure on local accessibility. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v. 85, 2020.). Em contrapartida, os sistemas de transporte também provocam alguns efeitos negativos para a sociedade, de acordo com Anciaes, Jones e Metcalfe (2018ANCIAES, P. R.; JONES, P.; METCALFE, P. J. A stated preference model to value reductions in community severance caused by roads. Transport Policy, v. 64, p. 10-19, jan. 2018.), como congestionamentos, riscos de acidentes, ruído, poluição do ar e da água, e mudanças climáticas, entre outros efeitos que prejudicam o tráfego de pessoas e veículos.
Um desses efeitos, denominado efeito barreira, ocorre quando uma infraestrutura de transporte age como uma barreira aos deslocamentos de pedestres e ciclistas. No caso de ruas e vias urbanas, a velocidade e o volume de tráfego atuam como barreiras que impedem ou dificultam significativamente os deslocamentos locais a pé ou de bicicleta e o acesso a bens e serviços, o que compromete o bem-estar da população (ANCIAES, 2015ANCIAES, P. R. What do we mean by “community severance”? Street Mobility and Network Accessibility Series, University College London, Londres, Working Paper n. 4, 2015. Disponível em: Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1527807/1/Anciaes_ucl_streetmobility_paper04.pdf . Acesso em: 8 jun. 2020.
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). Nos últimos anos, alguns estudos têm buscado entender os efeitos das infraestruturas de transporte no cotidiano dos indivíduos (ANCIAES et al., 2016ANCIAES, P. R. et al. Urban transport and community severance: linking research and policy to link people and places. Journal of Transport and Health, v. 3, n. 3, p. 268-277, 2016.; GUO; BLACK; DUNNE, 2001GUO, X.; BLACK, J.; DUNNE, M. Crossing pedestrians and dynamic severance on urban main roads. Road and Transport Research, v. 10, n. 3, p. 84-98, 2001. ; LARA; RODRIGUES DA SILVA, 2018LARA, D. V. R.; RODRIGUES DA SILVA, A. N. Questões de equidade associadas a barreiras de transportes em uma cidade média. In: CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO EM TRANSPORTE DA ANPET, 32., Gramado, 2018. Anais[...] Rio de Janeiro, 2018. , 2019LARA, D. V. R.; RODRIGUES DA SILVA, A. N. Equity issues associated with transport barriers in a Brazilian medium-sized city. Journal of Transport and Health, v. 14, p. 100582, jul. 2019.; MINDELL et al., 2017MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. ; NIMEGEER et al., 2018NIMEGEER, A. et al. Experiences of connectivity and severance in the wake of a new motorway: implications for health and well-being. Social Science and Medicine, v. 197, p. 78-86, 2018.; SILVA JUNIOR; FERREIRA, 2008SILVA JUNIOR, S. B.; FERREIRA, M. A. G. Rodovias em áreas urbanizadas e seus impactos na percepção dos pedestres. Sociedade & Natureza, v. 20, n. 1, p. 221-237, 2008. ; VAN ELDIJK et al., 2020VAN ELDIJK, J. et al. Missing links: quantifying barrier effects of transport infrastructure on local accessibility. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v. 85, 2020.).
Esse processo é frequente em cidades de maior porte, onde a frota de veículos motorizados é expressiva, sobretudo onde a repartição modal tem forte participação de viagens em veículos motorizados individuais. Isso não é comum, por outro lado, em cidades pequenas, fato que se reflete inclusive em uma carência de referências bibliográficas sobre o assunto. A questão levantada neste estudo, no entanto, diz respeito às cidades que se encontram no meio desse espectro, as chamadas cidades médias. Será possível falar em efeito barreira nesse contexto específico?
Com o propósito de contribuir para uma resposta à questão acima, o principal objetivo deste estudo é identificar se há indícios de que uma via importante de uma cidade média brasileira (ou seja, com população entre 100 e 500 mil habitantes), selecionada por apresentar elevado tráfego de veículos motorizados, atua como barreira aos deslocamentos de pedestres, além de registrar a percepção dos usuários sobre as dificuldades encontradas nos deslocamentos a pé pela região. Para orientar o desenvolvimento do trabalho, foram consideradas algumas questões. É possível afirmar que, em alguns aspectos, a via selecionada atua como uma barreira para a região de estudo? Caso isso se confirme, existem evidências de associação entre as dificuldades enfrentadas pelos pedestres e:
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suas características individuais;
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suas percepções do efeito barreira devido à velocidade de tráfego; ou
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suas percepções do efeito barreira devido ao volume de tráfego.
Para isso, o presente estudo apresenta uma análise exploratória dos dados de entrevistas realizadas com moradores e frequentadores da via selecionada para análise. Os resultados descritos se baseiam essencialmente na percepção dos entrevistados sobre a velocidade e o volume de tráfego na região, e consideram as características individuais dos respondentes e as dificuldades que enfrentam como pedestres. A metodologia é baseada em uma análise descritiva e quantitativa dos dados, com o uso do teste Qui-quadrado de independência (χ²) para examinar associações entre as variáveis selecionadas.
Essa metodologia permite a compreensão da relevância do efeito barreira a partir das percepções dos entrevistados quanto às vias urbanas de grande tráfego de veículos motorizados. É possível replicar a metodologia deste estudo em outros municípios, em busca de padrões nas percepções dos pedestres quanto ao tráfego de veículos motorizados e de variações do efeito barreira.
A pesquisa contribui também para a identificação das principais causas das dificuldades relacionadas aos deslocamentos a pé na região, bem como para a identificação das características dos entrevistados, de suas interações sociais e de outros fatores que afetam suas viagens e mobilidade. Dessa maneira, a pesquisa traz benefícios indiretos à comunidade local, podendo servir de objeto de apoio à tomada de decisão de políticas públicas urbanas e de transportes direcionadas à construção de um ambiente seguro para os pedestres.
O artigo foi dividido em cinco seções. A primeira apresenta a introdução ao problema de pesquisa. Na segunda se realiza uma breve revisão da literatura acerca do efeito barreira. Em seguida os procedimentos metodológicos são apresentados, e por fim são indicados os resultados encontrados e as conclusões.
Revisão da literatura
Os sistemas de transporte concedem aos indivíduos acesso à diversas oportunidades, como educação, emprego, bens, serviços e lazer. A melhoria do acesso a esses sistemas pode trazer benefícios ao bem-estar e à qualidade dos deslocamentos (THOREAU; MACKETT, 2015THOREAU, R.; MACKETT, R. L. Transport, social exclusion and health. Journal of Transport and Health, v. 2, n. 4, p. 610-617, 2015. ; VAN ELDIJK et al., 2020VAN ELDIJK, J. et al. Missing links: quantifying barrier effects of transport infrastructure on local accessibility. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v. 85, 2020.; VAN SCHALKWYK; MINDELL, 2018VAN SCHALKWYK, M. C. I.; MINDELL, J. S. Current issues in the impacts of transport on health. British Medical Bulletin, v. 125, n. 1, p. 67-77, 2018. ). Por outro lado, os sistemas de transporte também têm efeitos negativos para a sociedade, como congestionamentos, riscos de acidentes, ruídos, poluição do ar e da água, e mudanças climáticas (ANCIAES; JONES; METCALFE, 2018ANCIAES, P. R.; JONES, P.; METCALFE, P. J. A stated preference model to value reductions in community severance caused by roads. Transport Policy, v. 64, p. 10-19, jan. 2018.). Além desses efeitos negativos, os sistemas de transportes podem causar segregação urbana de comunidades. Esse processo, também chamado de efeito barreira, ocorre quando uma infraestrutura de transporte ou altos índices de tráfego motorizado atravessam vizinhanças, interrompendo assim a mobilidade e a acessibilidade dos moradores e frequentadores locais.
O efeito barreira vem sendo estudado pelo menos desde a década de 1960 (ANCIAES, 2015ANCIAES, P. R. What do we mean by “community severance”? Street Mobility and Network Accessibility Series, University College London, Londres, Working Paper n. 4, 2015. Disponível em: Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1527807/1/Anciaes_ucl_streetmobility_paper04.pdf . Acesso em: 8 jun. 2020.
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), contudo no Brasil as pesquisas nessa área começaram por volta dos anos 2000. A princípio, o conceito do efeito barreira foi discutido por Appleyard e Lintell (1972)APPLEYARD, D.; LINTELL, M. The environmental quality of city streets: the residents’ viewpoint. Journal of the American Planning Association, v. 38, n. 2, p. 84-101, 1972. e Soguel (1995)SOGUEL, N. C. Costing the traffic barrier effect: a contingent valuation survey. Environmental & Resource Economics, v. 6, n. 3, p. 301-308, 1995. como o efeito do tráfego de veículos motorizados nos deslocamentos dos pedestres e nas interações dos indivíduos. Mais tarde, Guo, Black e Dunne (2001)GUO, X.; BLACK, J.; DUNNE, M. Crossing pedestrians and dynamic severance on urban main roads. Road and Transport Research, v. 10, n. 3, p. 84-98, 2001. argumentaram que o efeito barreira também está associado aos problemas causados aos deslocamentos dos pedestres em consequência de barreiras estáticas (vias expressas, em desnível, com existência de taludes elevados, etc.). Posteriormente, Anciaes (2015)ANCIAES, P. R. What do we mean by “community severance”? Street Mobility and Network Accessibility Series, University College London, Londres, Working Paper n. 4, 2015. Disponível em: Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1527807/1/Anciaes_ucl_streetmobility_paper04.pdf . Acesso em: 8 jun. 2020.
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e Mindell et al. (2017)MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. acrescentaram que o efeito barreira causa impacto negativo no comportamento, bem-estar e mobilidade dos indivíduos. No Brasil, os primeiros estudos sobre o efeito barreira abordaram o conceito como uma restrição ao movimento de pedestres de um lado para outro de uma via, causada pelo tráfego e pela infraestrutura viária (MOUETTE; AIDAR; WAISMAN, 2000MOUETTE, D.; AIDAR, T.; WAISMAN, J. Avaliação dos impactos do tráfego na mobilidade da população infantil. Revista Transportes, v. 8, p. 56-87, 2000. ; MOUETTE; WAISMAN, 2004MOUETTE, D.; WAISMAN, J. Proposta de uma metodologia de avaliação do efeito barreira. Revista dos Transportes Públicos - ANTP, v. 26, p. 33-54, segundo trimestre, 2004. ). Posteriormente, o efeito barreira veio a ser tratado como barreiras locais aos deslocamentos realizados por modos não motorizados (LARA; RODRIGUES DA SILVA, 2018LARA, D. V. R.; RODRIGUES DA SILVA, A. N. Questões de equidade associadas a barreiras de transportes em uma cidade média. In: CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO EM TRANSPORTE DA ANPET, 32., Gramado, 2018. Anais[...] Rio de Janeiro, 2018. ; SILVA JUNIOR; FERREIRA, 2008SILVA JUNIOR, S. B.; FERREIRA, M. A. G. Rodovias em áreas urbanizadas e seus impactos na percepção dos pedestres. Sociedade & Natureza, v. 20, n. 1, p. 221-237, 2008. ).
Com a transição da definição do conceito do efeito barreira, a compreensão do fenômeno e a busca de meios para medir seus impactos à comunidade evoluíram continuamente. O estudo desenvolvido por Mindell et al. (2017)MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. apresenta um conjunto de ferramentas para medir o grau do efeito barreira devido às ruas movimentadas e seus impactos. Uma dessas ferramentas consiste na avaliação das condições de saúde, bem-estar e mobilidade das pessoas de determinada região por meio de questionários. Com esses recursos, os autoresmostram que a proporção de pessoas com o bem-estar prejudicado é maior entre os entrevistados que moram mais próximos à região de estudo. Além disso, a avenida estudada promove segregação urbana da comunidade, que apresenta diferentes níveis de saúde e níveis de status socioeconômico. O ruído e a poluição do ar foram muito citados pelos entrevistados como um impedimento para o deslocamento a pé pela região (MINDELL et al., 2017MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. ). Adicionalmente, van Eldijk et a. (2020)VAN ELDIJK, J. et al. Missing links: quantifying barrier effects of transport infrastructure on local accessibility. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v. 85, 2020. propõem quatro indicadores de acessibilidade local - tempo de viagem, opções de destino, área de influência e eficiência dos serviços públicos (ambulâncias, transporte público, coleta de lixo, etc.) - para mensurar os impactos locais do efeito barreira provocado por infraestruturas de transportes.
No tocante às consequências associadas ao efeito barreira, o estudo realizado por Silva Junior e Ferreira (2008)SILVA JUNIOR, S. B.; FERREIRA, M. A. G. Rodovias em áreas urbanizadas e seus impactos na percepção dos pedestres. Sociedade & Natureza, v. 20, n. 1, p. 221-237, 2008. , em Uberlândia, MG, aponta como pontos mais relevantes a insegurança, a dificuldade de cruzamento da via, o desestímulo ao uso de passarelas, a alteração na quantidade de viagens por indivíduo e a alteração da qualidade ambiental ao redor da via de estudo. Além disso, o estudo indica que a velocidade e o volume do tráfego estão diretamente associados à insegurança, enquanto a alteração da qualidade ambiental é provocada, principalmente, pelo aumento do ruído e da fumaça causada pelos veículos.
O Plano Diretor de Mobilidade (PlanMob) (MINISTÉRIO..., 2015MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno de referência para elaboração de plano de mobilidade urbana. Brasília, 2015. ) apresenta que as viagens realizadas a pé e por bicicleta correspondem ao maior número de deslocamentos nas cidades com população superior a 60 mil habitantes; este valor é ainda maior em cidades menores. No entanto, muitas vezes esses deslocamentos são prejudicados devido a decisões de planejamento de sistemas de transportes que promovem o uso de transportes individuais motorizados. O tráfego de pessoas (pedestres, cadeirantes, idosos, gestantes ou pessoas com mobilidade reduzida) deve ser planejado a fim de assegurar as condições de segurança, a conectividade e o conforto; também deve existir infraestrutura adequada e gestão do tráfego motorizado para facilitar o deslocamento do indivíduo (MINISTÉRIO..., 2015MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno de referência para elaboração de plano de mobilidade urbana. Brasília, 2015. ). Além disso, as estatísticas sobre acidentes de trânsito mostram que a segurança é um problema para os deslocamentos a pé, e uma maneira de solucionar isso é melhorando a infraestrutura para pedestres e reduzindo os conflitos com os vários tipos de veículos (MINISTÉRIO..., 2015MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno de referência para elaboração de plano de mobilidade urbana. Brasília, 2015. ), situações estas que são características do efeito barreira.
Os pedestres são os usuários dos sistemas de transportes mais expostos e vulneráveis a acidentes de trânsito (MINISTÉRIO..., 2015MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno de referência para elaboração de plano de mobilidade urbana. Brasília, 2015. ; CANTILLO; ARELLANA; ROLONG, 2015CANTILLO, V.; ARELLANA, J.; ROLONG, M. Modelling pedestrian crossing behaviour in urban roads: a latent variable approach. Transportation Research Part F: Traffic Psychology and Behaviour, v. 32, p. 56-67, 2015. ). Segundo Cantillo, Arellana e Rolong (2015CANTILLO, V.; ARELLANA, J.; ROLONG, M. Modelling pedestrian crossing behaviour in urban roads: a latent variable approach. Transportation Research Part F: Traffic Psychology and Behaviour, v. 32, p. 56-67, 2015. ), as alternativas propostas pelos planejadores para redução dos acidentes, como passarelas e faixas de pedestres em cruzamentos sinalizados, geralmente implicam distâncias mais longas em comparação com travessias diretas, que, por sua vez, envolvem risco maior. Em um estudo de preferência declarada em áreas urbanas da Inglaterra, Anciaes, Jones e Metcalfe (2018)ANCIAES, P. R.; JONES, P.; METCALFE, P. J. A stated preference model to value reductions in community severance caused by roads. Transport Policy, v. 64, p. 10-19, jan. 2018. mostram que 69% dos entrevistados optam por não atravessar a rua devido à falta de segurança e perigo. Além disso, as dificuldades com relação à travessia também são advindas do tempo disponível de verde para pedestres (quando existe semáforo para pedestres) e da acessibilidade (altura dos botões do semáforo e existência de rampas para descida das calçadas às vias) (ANCIAES; JONES; METCALFE, 2018ANCIAES, P. R.; JONES, P.; METCALFE, P. J. A stated preference model to value reductions in community severance caused by roads. Transport Policy, v. 64, p. 10-19, jan. 2018.).
A dificuldade ou incapacidade de atravessar ruas é um dos impactos negativos que influencia diretamente nos deslocamentos a pé dos indivíduos (ANCIAES; JONES; METCALFE, 2018ANCIAES, P. R.; JONES, P.; METCALFE, P. J. A stated preference model to value reductions in community severance caused by roads. Transport Policy, v. 64, p. 10-19, jan. 2018.). Os idosos e as pessoas com mobilidade reduzida são os grupos sociais mais prejudicados nessa questão (MACKETT; TITHERIDGE; ACHUTHAN, 2010MACKETT, R.; TITHERIDGE, H.; ACHUTHAN, K. Improving access in St Albans: report on a consultation exercise. Londres: University College London, 2010. ). Além disso, o estudo realizado por Lara (2019)LARA, D. V. R. Community severance and vertical equity assessment with spatially aggregated data. São Carlos, 2019. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Operação de Sistemas de Transportes) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2019. mostra que os níveis de mobilidade urbana dos pedestres podem variar de acordo com fatores socioeconômicos (idade, renda, restrições de mobilidade e sexo).
Uma abordagem analítica para avaliação do efeito barreira com base na classificação da qualidade das passagens para pedestres em ferrovias e ruas urbanas foi proposta por Lara (2019)LARA, D. V. R. Community severance and vertical equity assessment with spatially aggregated data. São Carlos, 2019. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Operação de Sistemas de Transportes) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2019.. A autora apresentou dois estudos de caso que compreenderam infraestruturas ferroviárias e vias urbanas localizadas em São Carlos, SP, cidade brasileira de porte médio. As infraestruturas de transporte e a qualidade das passagens para pedestres foram estudadas e caracterizadas com base em dados agregados espacialmente. Como os dados agregados se referem a valores médios, não é possível capturar a percepção dos indivíduos tão precisamente quanto em uma pesquisa baseada em dados desagregados.
Em vista disso, a proposta do presente estudo é analisar, por meio de dados desagregados obtidos em questionários, evidências de que uma via de elevado tráfego de veículos motorizados localizada na mesma cidade estudada por Lara (2019LARA, D. V. R. Community severance and vertical equity assessment with spatially aggregated data. São Carlos, 2019. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Operação de Sistemas de Transportes) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2019.) atue como barreira para os deslocamentos dos pedestres pela região, justamente em busca de preencher a lacuna existente nos estudos já realizados. Além disso, com a perspectiva de efetuar uma comparação dos resultados com os de outras cidades, a metodologia proposta foi baseada no questionário sobre as condições de saúde, bem-estar e mobilidade das pessoas de determinada região desenvolvido por Mindell et al.(2017)MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. .
Materiais e métodos
Este estudo visa avaliar, por meio de entrevistas, se uma via urbana de tráfego intenso em uma cidade média constitui uma barreira aos deslocamentos a pé das pessoas que residem e frequentam a região. Os dados coletados são avaliados usando uma análise descritiva e quantitativa. Além disso, são verificadas evidências de associações entre as dificuldades enfrentadas pelos entrevistados ao andar a pé pela região e suas características individuais e percepções do efeito barreira usando testes Qui-quadrado de independência (χ²). Nesta seção apresenta-se a caracterização da via urbana, assim como a coleta de dados, as questões do questionário selecionadas para análise e os procedimentos de análise.
Área de estudo e cálculo amostral
O município de São Carlos, SP, possui população estimada de 251.983 pessoas, densidade demográfica de 195,15 hab./km² e área territorial urbana de aproximadamente 80 km² na sede do município (INSTITUTO..., 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades: censo demográfico de 2010. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama. Acesso em: 27 maio 2020.
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; PREFEITURA..., 2020PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS. Dados da Cidade. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/conheca-sao-carlos/115442-dados-da-cidade-geografico-e-demografico.html . Acesso em: 8 jun. 2020.
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). Segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (FUNDAÇÃO..., 2020FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS. Perfil dos municípios paulistas. 2020. Disponível em: Disponível em: https://perfil.seade.gov.br/ . Acesso em: 10 jul. 2020.
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), 16,7% de sua população têm idade inferior a 15 anos e 16,8% têm idade superior a 60 anos, sendo aproximadamente 100% da população atendida com serviços de coleta de lixo, abastecimento de água e tratamento de esgoto sanitário. Além disso, segundo a mesma fonte, a taxa de analfabetismo da população é de 3,7%, e cerca de 67% dos indivíduos entre 18 e 24 anos têm ensino médio completo, comparado a uma taxa de 57,9% para o estado de São Paulo.
A área selecionada para o estudo compreende um trecho de cerca de 1,5 km da Rua Miguel Petroni (Figura 1), via urbana com intenso tráfego de veículos motorizados e 4,9 km de comprimento no total. O trecho foi selecionado por apresentar volume de tráfego que varia entre médio e alto (600 e 1.000 veículos por hora) (SECRETARIA..., 2002SECRETARIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO E DESENVOLVIMENTO URBANO. Banco de dados sobre volume do tráfego no município de São Carlos. São Carlos, 2002.) e representar um desafio para a movimentação de pedestres e ciclistas, principalmente nos horários de pico. A Rua Miguel Petroni é caracterizada como principal, o sentido de tráfego é mão única, e, segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DEPARTAMENTO..., 2010DEPARTAMENTO NACIONAL DE INFRAESTRUTURA DE TRANSPORTES. Manual de projeto geométrico de travessias urbanas. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - Instituto de Pesquisas Rodoviárias, 2010. ), trata-se de uma via arterial secundária, com velocidade máxima permitida variando entre 50 km/h e 60 km/h.
Ainda sobre a região de estudo, segundo dados disponíveis no website da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SECRETARIA..., 2017SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SÃO PAULO. Dados estatísticos de crimes e mortes do estado de São Paulo. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Pesquisa.aspx . Acesso em: 10 jul. 2020.
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), a taxa de crimes/1.000 habitantes na região é 9,876, ante 16,485 do município em geral, e a taxa de homicídios/1.000 habitantes dela é 0,067, enquanto a de São Carlos é de 0,274. Portanto, a região da Rua Miguel Petroni apresenta índices de criminalidade e de homicídio inferiores aos índices totais da cidade. Sobre o uso do solo, a região divide-se entre residências e comércios de bens e serviços. Além disso, embora em alguns locais apresente semáforos e faixas de pedestres, como demonstrado na Figura 2, são comuns reclamações da população sobre a dificuldade de travessia na via e ocorrência de situações que apresentem perigo aos pedestres (G1, 2015G1. Faixas de pedestres apagadas podem causar acidentes em São Carlos, SP. 2015. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/10/faixas-de-pedestres-apagadas-podem-causar-acidentes-em-sao-carlos-sp.html . Acesso em: 8 jun. 2020.
http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao...
; SÃO CARLOS..., 2018SÃO CARLOS EM REDE. Miguel Petroni: um dos gargalos do trânsito para motoristas e perigo para pedestres em São Carlos. 2018. Disponível em: Disponível em: https://saocarlosemrede.com.br/miguel-petroni-um-dos-gargalos-do-transito-para-motoristas-e-perigo-para-pedestres-em-sao-carlos/ . Acesso em: 8 jun. 2020.
https://saocarlosemrede.com.br/miguel-pe...
).
Os dados censitários do IBGE de 2010 (INSTITUTO..., 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades: censo demográfico de 2010. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama. Acesso em: 27 maio 2020.
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) permitem ainda estimar que cerca de 15 mil habitantes residem em uma faixa de área distante em 800 m do trecho de seleção da via de estudo, demarcada na Figura 1, distância adotada por ser considerada razoável para os deslocamentos locais, inclusive a pé. Dessa forma, para garantir que a amostra coletada tenha representatividade estatística, considerando nível de confiança de 95% e erro amostral igual a 0,10, tem-se a quantidade amostral mínima de 96 pessoas. A amostra coletada para esta pesquisa tem perfil não probabilístico, visto que, para atingir a quantidade de questionários propostos, não foi feito sorteio de todas as residências e comércios presentes na área de estudo. Nesse sentido, pode ser tratada como uma amostra por conveniência.
Coleta de dados
Para avaliar se a via selecionada constitui uma barreira que interfere significativamente nos deslocamentos, nos acessos aos bens e serviços e no bem-estar da população, foi aplicado questionário com 37 questões e um espaço para opinião, como mostrado no Quadro 1. A formulação do questionário foi baseada no questionário desenvolvido por Mindell et al. (2017MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. ). A aplicação dos questionários por meio de entrevistas a moradores, trabalhadores e frequentadores da área de estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, sob o Parecer nº 4.043.848, de 2020.
As entrevistas, com cerca de 20 min de duração, foram realizadas pessoalmente, com o apoio de dispositivo eletrônico (smartphone) devido à conveniência para a coleta e a padronização dos dados. A coleta foi executada somente em voluntários com idade superior a 17 anos que tivessem realizado ao menos uma viagem a pé por dia na semana anterior à qual foi realizada a entrevista (semana de referência). A abordagem dos entrevistados foi realizada em casas, em apartamentos, em estabelecimentos comerciais locais e nas ruas, em horário comercial (entre 8h00 e 18h00), de segunda-feira a sexta-feira.
O questionário, desenhado para permitir diversas análises, foi dividido em quatro partes:
-
caracterização do entrevistado (idade, formação acadêmica, renda, endereço, estado de saúde, etc.);
-
interações sociais (contato com vizinhos, integração à região, confiabilidade das pessoas, medo de caminhar sozinho durante a noite, limpeza da região, etc.);
-
viagens e mobilidade (dificuldades de caminhar, deficiências, quantidade de viagens a pé e duração delas, existência de faixa de pedestres, se a velocidade e o volume do tráfego representam barreiras para atingir algum destino caminhando, caracterização da rua onde mora e da rua próxima que considera mais movimentada, etc.); e
-
espaço aberto para o respondente expor sua opinião (nesta parte as respostas foram gravadas em áudio).
Apesar de o questionário cobrir os diversos aspectos mencionados no item anterior, neste estudo foram apenas utilizados dados de questões específicas, como as da parte (a), sobre as características individuais dos entrevistados e da parte (c), sobre as dificuldades existentes no deslocamento a pé (questão 22 no Quadro 1, bem como no Quadro 2) e percepção do efeito barreira (questão 26). As respostas às questões da parte (c) permitem caracterizar se a via selecionada atua como barreira aos deslocamentos a pé da população no entorno da região de estudo. Além disso, essas respostas possibilitam verificar se existem evidências de associação entre as dificuldades enfrentadas pelos pedestres ao andar a pé pela região e suas percepções da velocidade ou do volume de tráfego dos veículos motorizados. Ademais, quando analisadas em conjunto, as respostas às questões das partes (a) e (c) permitem investigar se existem evidências de associação entre as dificuldades enfrentadas pelos pedestres e suas características individuais.
Procedimentos de análise
A análise das questões em que os entrevistados foram indagados sobre as dificuldades encontradas ao andar a pé pela região, bem como se a velocidade e o volume do tráfego impedem ou dificultam que eles atinjam seus destinos caminhando, permitiu avaliar se a via urbana analisada atua como uma barreira para a região, conforme indicado no Quadro 2. Em seguida, após uma análise exploratória para caracterização dos indivíduos e das demais respostas obtidas, foi aplicado o teste Qui-quadrado (χ²) de independência para tentar identificar possíveis associações entre as variáveis e, assim, indícios de fatores que afetam os deslocamentos a pé da população na região de estudo.
Questões utilizadas para avaliar se a Rua Miguel Petroni (São Carlos, SP) compreende uma barreira para o deslocamento de pedestres
O teste de independência empregado é um teste de hipótese amplamente utilizado para comparar proporções e avaliar a associação entre variáveis categóricas. A partir de tabelas de contingência das variáveis estudadas, calcula-se o valor de Qui-quadrado pela Equação 1 (AGRESTI, 2007AGRESTI, A. Contingency tables. In: AGRESTI, A.. An introduction to categorical data analysis. 2nd. ed. Hoboken: Wiley-Interscience, 2007.; YATES, 1934YATES, F. Contingency tables involving small numbers and the (2 test. Journal of the Royal Statistical Society, v. 1, n. 2, p. 217-235, supp. 1934. ) e seu respectivo p-valor. A partir do nível de confiança adotado e dos graus de liberdade da tabela de contingência, encontram-se os valores críticos de χ². Por fim, comparando-se os valores calculados com os valores críticos, é possível aceitar ou rejeitar a hipótese nula (H0) de independência entre as variáveis e verificar o grau de dependência entre elas.
Em que:
χ²: Qui-quadrado;
Observado: valores correspondentes aos coletados; e
Esperado: valores correspondentes aos esperados.
Além disso, foi calculado o valor residual padronizado de Pearson(Standardized Pearson Residuals - SPR), mostrado na Equação 2 (AGRESTI, 2007AGRESTI, A. Contingency tables. In: AGRESTI, A.. An introduction to categorical data analysis. 2nd. ed. Hoboken: Wiley-Interscience, 2007.). O SPR compara as células da tabela de contingência, mostrando o grau de dependência entre as variáveis e qual a que mais contribui para o resultado final do teste de χ². Segundo Agresti (2007)AGRESTI, A. Contingency tables. In: AGRESTI, A.. An introduction to categorical data analysis. 2nd. ed. Hoboken: Wiley-Interscience, 2007., para tabelas pequenas, um valor de SPR que exceda o valor 2 indica que a célula contribui muito para o valor do χ² e não se ajusta a H0.
Em que:
SPR: Standardized Pearson Residuals;
Ltotal: soma das contagens observadas na linha;
Ctotal: soma das contagens observadas na coluna; e
Total: soma de todas as contagens observadas.
Os resultados obtidos, mostrados na próxima seção, permitem avaliar se a Rua Miguel Petroni constitui uma barreira aos deslocamentos dos pedestres e se há evidências de associação entre as dificuldades presentes nos deslocamentos a pé e as características individuais, e a percepção da velocidade e/ou do volume do tráfego.
Resultados
Embora alguns estudos tenham nos últimos anos se dedicado a medir o efeito barreira relacionado aos sistemas de transportes, tal como caracterizado por Mindell et al. (2017MINDELL, J. S. et al. Using triangulation to assess a suite of tools to measure community severance. Journal of Transport Geography, v. 60, p. 119-129, 2017. ), na vida social da população e na capacidade dos indivíduos de usufruir de bens e serviços (ANCIAES et al., 2016ANCIAES, P. R. et al. Urban transport and community severance: linking research and policy to link people and places. Journal of Transport and Health, v. 3, n. 3, p. 268-277, 2016.; LARA, 2019LARA, D. V. R. Community severance and vertical equity assessment with spatially aggregated data. São Carlos, 2019. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Operação de Sistemas de Transportes) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2019.; LARA; RODRIGUES DA SILVA, 2018LARA, D. V. R.; RODRIGUES DA SILVA, A. N. Questões de equidade associadas a barreiras de transportes em uma cidade média. In: CONGRESSO DE PESQUISA E ENSINO EM TRANSPORTE DA ANPET, 32., Gramado, 2018. Anais[...] Rio de Janeiro, 2018. ; NIMEGEER et al., 2018NIMEGEER, A. et al. Experiences of connectivity and severance in the wake of a new motorway: implications for health and well-being. Social Science and Medicine, v. 197, p. 78-86, 2018.; SILVA JUNIOR; FERREIRA, 2008SILVA JUNIOR, S. B.; FERREIRA, M. A. G. Rodovias em áreas urbanizadas e seus impactos na percepção dos pedestres. Sociedade & Natureza, v. 20, n. 1, p. 221-237, 2008. ; VAN ELDIJK et al., 2020VAN ELDIJK, J. et al. Missing links: quantifying barrier effects of transport infrastructure on local accessibility. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v. 85, 2020.), tais estudos ainda estão limitados em termos de quantidade e abrangência. Um contexto específico que ainda carece de investigação é o caso das cidades médias, foco do presente estudo. Neste estudo, o caso de uma via urbana localizada na cidade de São Carlos, SP, é analisado por meio de dados desagregados baseados na percepção dos indivíduos potencialmente afetados, conforme se descreve na sequência.
Caracterização da amostra e da percepção sobre o efeito barreira
Neste estudo foram realizadas entrevistas em março de 2020 com moradores, trabalhadores e frequentadores da Rua Miguel Petroni, situados numa área de influência de 800 m no entorno da via. No total, foram coletadas 103 respostas válidas. Os entrevistados tinham 18 anos ou mais e eram de ambos os sexos. A distribuição de endereços dos entrevistados é indicada na Figura 3. Em uma análise preliminar dos dados coletados, observa-se que 66,0% dos respondentes são do sexo feminino, predominantemente entre 30 e 59 anos e com renda mensal de até 3 salários mínimos. Mais de 80,0% têm ensino médio completo (55,3% estão cursando ou já concluíram o ensino superior), uma característica particular da região de estudo. Além disso, 86,4% consideram o próprio estado de saúde excelente ou bom, como exibido na Tabela 1.
As respostas às questões que permitem caracterizar se a via selecionada atua como uma barreira para a região de estudo estão resumidas na Tabela 1. Essas respostas foram discriminadas pelas características dos indivíduos. As respostas das demais perguntas selecionadas, aquelas em que os entrevistados apontam as dificuldades encontradas ao andar a pé pela região (tais como a existência de rua congestionada ou perigosa devido ao tráfego, travessias inseguras, tempo do semáforo inadequado, poluição sonora ou do ar), são detalhadas na Tabela 2. Mediante as 103 respostas obtidas, observa-se que 55,3% e 56,3% dos entrevistados consideram em algum nível (raramente, às vezes, geralmente e sempre), respectivamente, a velocidade e o volume do tráfego um empecilho para seus deslocamentos a pé. Ou seja, a via analisada impediu ou dificultou que em algum momento os usuários atingissem seus destinos caminhando. Observa-se ainda na Tabela 1 detalhes por subgrupo, como o caso dos respondentes com estado de saúde Razoável/Ruim, que consideram com mais frequência a velocidade do tráfego motorizado como uma barreira.
Associação entre variáveis
A partir dos dados referentes às possíveis dificuldades encontradas nos deslocamentos a pé, às características individuais dos respondentes e à percepção dos usuários da velocidade e do volume do tráfego na região, foram elaboradas tabelas de contingências e aplicado o teste Qui-quadrado de independência. A princípio, os testes foram realizados entre as variáveis referentes às características dos respondentes e às perguntas sobre a percepção do efeito barreira, no entanto não foram encontrados indícios de associação entre essas variáveis. Ou seja, parece não existir associação entre a percepção do efeito barreira na via de estudo e as características individuais dos entrevistados com base apenas na velocidade e no volume de tráfego. Isso não significa, no entanto, que ocorra o mesmo em relação a cada uma das dificuldades para o deslocamento.
Dificuldades para deslocamento a pé e características individuais dos entrevistados
As características individuais dos respondentes foram confrontadas com as 11 alternativas binárias componentes da questão relacionada às dificuldades na realização de percursos a pé (Quadro 2), como mostrado na Tabela 2. Os resultados que apresentam associação com níveis de significância de 0,05 (α=5%) e 0,10 (α=10%) foram destacados na Tabela 2 com escalas de cinza escuro e cinza claro respectivamente.
Para um nível de significância de 0,05, os dados não permitem descartar associação entre a característica sexo e as dificuldades poluição sonora ou do ar e trechos que exigem esforço físico excessivo como empecilho para a travessia. Para esse mesmo nível de significância há indícios de associação entre a idade e a formação acadêmica com caminhos ruins, com iluminação e/ou pavimentação deficientes. Foi também verificado um p-valor inferior a 0,05 para as características do imóvel e as dificuldades medo de roubos, furtos ou violência e trechos que exigem esforço físico excessivo. Ainda considerando o nível de significância citado, não se pode descartar associação entre renda e a presença de obstáculos quedificultam ver os carros ao atravessar; e entre estado de saúde e semáforo com tempo insuficiente para realizar a travessia. Além disso, considerando o nível de significância de 0,10 (α=10%), os dados não permitem descartar associação entre as características relacionadas a sexo e imóvel com a dificuldade rua congestionada ou perigosa devido ao tráfego. Foi verificado também um p-valor inferior a 0,10 para associação entre estado de saúde e falta de cruzamentos acessíveis como uma dificuldade para a travessia.
Distribuição dos endereços (localização aproximada, de forma a preservar a privacidade dos respondentes) dos 103 entrevistados
Dificuldades para deslocamento a pé e percepção do tráfego motorizado
Para esta análise, os entrevistados foram divididos entre dois grupos, os que consideram a velocidade e o volume do tráfego como barreira aos deslocamentos a pé, e os que não consideram. No grupo “sim” foram agrupados aqueles que responderam que “às vezes”, “geralmente” ou “sempre” consideram a velocidade (36,9% do total) e o volume do tráfego (47,6% do total) como um impedimento para atingirem seus destinos caminhando. No grupo “não” foram agrupados os que responderam “raramente” e “nunca” para a mesma pergunta (63,1% para a velocidade e 52,4% para o volume do tráfego).
Os resultados da aplicação do teste de independência das respostas dos dois grupos de respondentes com as dez alternativas binárias relacionadas às dificuldades na realização de percursos a pé (Quadro 2) estão resumidos nas Tabelas 3 e 4, nas quais são apresentados os valores observados, os valores esperados (entre parênteses) e os valores dos resíduos padronizados de Pearson (em negrito). Na Tabela 3 é possível observar um p-valor inferior a 0,05 para as variáveis poluição sonora e do ar, trechos que exigem esforço físico excessivo e ruas muito largas (não dando tempo para atravessar), o que sugere a associação delas com a variável velocidade do tráfego. É possível notar também evidência de associação entre a velocidade e rua perigosa devido ao tráfego e presença de obstáculos dificultando a visualização dos veículos circulando, nestes casos para um nível de significância de 0,10.
De maneira geral, cerca de 60% dos entrevistados (62 dos 103) dizem não ter problema com poluição sonora e do ar na região de estudo. No entanto, quando se analisa o grupo de pessoas que consideram a velocidade do tráfego uma barreira para que realizem deslocamentos a pé, 57,9% destes se incomodam com a poluição. Além disso, um valor de SPR maior do que 2,0 significa que as células têm valores observados muito acima ou muito abaixo dos valores esperados, o que contribui para um valor final elevado de Qui-quadrado (χ²) (Tabela 3).
É possível observar um p-valor inferior a 0,05 (e um valor de SPR maior do que 2,0) para as variáveis trechos que exigem esforço físico excessivo, falta de cruzamentos acessíveis e ruas muito largas, o que sugere associação delas com a variável volume do tráfego. Não se pode descartar ainda uma possível associação entre volume e poluição sonora e do ar, neste caso para um nível de significância de 0,10 (Tabela 4).
Com os dados coletados, observa-se que algumas das dificuldades abordadas no questionário são associadas concomitantemente à velocidade e ao volume do tráfego. Nota-se que, para um nível de significância de 0,05, não é possível descartar associação entre o tráfego de veículos motorizados e trechos que exigem esforço físico excessivo e largura das vias. Além disso, a variável poluição sonora e do ar também aparece como uma dificuldade associada tanto à velocidade quanto ao volume de tráfego, desta vez para nível de significância de 0,05 e 0,10 respectivamente.
Os dados coletados foram analisados por meio de estatística descritiva e teste Qui-quadradode independência. Foi possível avaliar quais dificuldades presentes no deslocamento a pé possuem indícios de associação com a velocidade e/ou com o volume do tráfego. É possível identificar traços de que o tráfego de veículos motorizados na região de estudo interfere nos deslocamentos a pé e nas percepções sobre as dificuldades dos indivíduos como pedestres, principalmente por meio da associação entre as variáveis estudadas. A quantidade de respostas coletadas (N=103) é um fator que pode ter influenciado diretamente nos resultados, principalmente na associação entre as variáveis estudadas. Contudo, a coleta da amostra foi interrompida devido às recomendações de afastamento social em consequência da pandemia de covid-19, o que pode ser visto como uma limitação para a presente pesquisa (se fosse possível ampliar a amostra, o erro associado seria menor do que 10%). Em alguns casos, com a quantidade de questionários respondidos, foi necessário realizar o agrupamento das alternativas dispostas aos entrevistados de forma que possibilitasse a aplicação do teste Qui-quadrado de independência. Em outros casos, não descritos neste estudo, não foi possível aplicar o teste devido à quantidade insuficiente de observações nas células da tabela de contingência. Devido a isso, posteriormente, após a flexibilização das recomendações de afastamento social, espera-se retomar a pesquisa e aplicar questionários a um maior número de moradores e frequentadores da região de estudo, além de associar o método de análise empregado com outras abordagens.
Conclusão
Nos últimos anos algumas pesquisas vêm buscando medir o efeito das infraestruturas de transporte como barreiras ao deslocamento, na vida social da população e na capacidade dos indivíduos de usufruir bens e serviços. Neste estudo foram coletados dados por meio de um questionário, aplicados a moradores e frequentadores da Rua Miguel Petroni (São Carlos, SP), com o propósito de avaliar se a via urbana atua como uma barreira aos deslocamentos dos pedestres. Para isso foi realizado o teste Qui-quadrado de independência em tabelas de contingência que relacionam as características individuais, a percepção do volume e da velocidade do tráfego a algumas condições que podem dificultar a locomoção a pé.
Dessa forma, foi possível identificar que a via urbana selecionada, a Rua Miguel Petroni, representa para a população uma barreira que interfere no deslocamento a pé dos indivíduos. Os impactos do efeito barreira nas caminhadas foram caracterizados, principalmente, pelas dificuldades enfrentadas pelos pedestres que apresentaram associação com as características individuais e percepções do efeito barreira com base na velocidade e/ou no volume do tráfego.
Adicionalmente, o estudo indica evidências de associação entre a dificuldade apontada como caminhos ruins, com iluminação e/ou pavimentação deficientes e a idade e a formação do indivíduo, o que mostra que a percepção sobre essa dificuldade tem relação com a faixa etária e o nível de estudo dos entrevistados. Os dados sugerem associação também entre as variáveis semáforo com tempo insuficiente para realizar a travessia e o estado de saúde do entrevistado, ou seja, a percepção sobre o tempo de travessia disponível para pedestres é influenciada pela condição de saúde do indivíduo. Além disso, existe associação entre a velocidade e o volume do tráfego como uma barreira ao movimento de pedestres com as dificuldades rua congestionada ou perigosa devido ao tráfego, poluição sonora ou do ar, trechos que exigem esforço físico excessivo, falta de cruzamentos acessíveis, a dificuldade de ver os carros ao atravessar devido àpresença de obstáculos e ruas muito largas. Sendo assim, a percepção da população local com relação ao efeito barreira para os pedestres está associada à vivência em locais perigosos devido ao tráfego de veículos motorizados, ao nível de poluição, ao relevo e à largura das vias presentes na região de estudo, além da falta de locais com passagens acessíveis.
Uma considerável limitação para o estudo foi a quantidade de respostas obtidas, dado que a coleta foi interrompida antes do previsto devido à quarentena imposta pela pandemia associada ao vírus covid-19. Para trabalhos futuros sugerem-se a ampliação da coleta de dados, a análise de outras questões componentes do questionário e a realização de análises com o emprego de outros métodos, como árvores de decisão e florestas aleatórias, de forma a comparar e aprimorar os resultados.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Maio 2021 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2021
Histórico
-
Recebido
28 Jul 2020 -
Aceito
18 Jan 2021