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O ideário taylorista, a gestão da subjetividade e o poder pastoral

Taylorist ideology, subjectivity management, and pastoral power

Resumos

Este ensaio tem por objetivo analisar o ideário taylorista concernente à relação entre operários e gestores a partir da categoria do poder pastoral, proposta por Michel Foucault. Se o poder disciplinar incide sobre o corpo, o poder pastoral incide sobre a alma do indivíduo, implicando - por meio de técnicas confessionais - a direção de consciência. No âmbito do taylorismo, pode-se concluir, tal poder se manifesta, mas não com um sentido parhesiastico, revelando no taylorismo um processo de configuração de verdades a respeito do sujeito operário, ou trabalhador, que o coloca em condição de objeto da gestão nas relações estabelecidas entre a gestão e o operário.

Taylorismo; Poder; Michel Foucault; Gestão; Subjetividade


This essay aims to analyze the Taylorist ideology concerning the relation between laborers and managers through the pastoral power category, proposed by Michel Foucault. If the disciplinary power is focused on the body, the pastoral power is focused on the individual's soul, implying - through confessional techniques - the direction of consciousness. Under Taylorism, one may conclude, such power manifests itself, but not in a parrhesiastic sense, revealing in Taylorism a truth configuration process with regard to the working subject, or laborer, which puts him in a condition of management object in the relations established between management and laborer.

Taylorism; Power; Michel Foucault; Management; Subjectivity


ARTIGOS

O ideário taylorista, a gestão da subjetividade e o poder pastoral1 1 Os autores agradecem ao CNPq pelo apoio financeiro ao projeto de pesquisa do qual resulta este artigo.

Taylorist ideology, subjectivity management, and pastoral power

Bruno Eduardo Procopiuk WalterI; Carolina Andrea Gómez WinklerII; João Marcelo CrubellateIII

IMestrando em Administração na Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Psicólogo Organizacional da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Professor do curso de Psicologia da Faculdade União de Campo Mourão. Endereço: UTFPR - Câmpus Campo Mourão, BR 369, Km 0,5, CEP 87301-006, Campo Mourão - PR, Brasil. E-mail: brunowalter@utfpr.edu.br

IIMestranda em Administração na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Endereço: UEM - Av. Colombo, 5.970, CEP 87020-900, Maringá - PR, Brasil. E-mail: carolinagwinkler@gmail.com

IIIDoutor em Administração pela Fundação Getulio Vargas/EAESP; Professor no Programa de Pós-Graduação em Administração e no Departamento de Administração da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Endereço: UEM - Av. Colombo, 5.970, CEP 87020-900, Maringá - PR, Brasil. E-mail: jmcrubellate@terra.com.br

RESUMO

Este ensaio tem por objetivo analisar o ideário taylorista concernente à relação entre operários e gestores a partir da categoria do poder pastoral, proposta por Michel Foucault. Se o poder disciplinar incide sobre o corpo, o poder pastoral incide sobre a alma do indivíduo, implicando - por meio de técnicas confessionais - a direção de consciência. No âmbito do taylorismo, pode-se concluir, tal poder se manifesta, mas não com um sentido parhesiastico, revelando no taylorismo um processo de configuração de verdades a respeito do sujeito operário, ou trabalhador, que o coloca em condição de objeto da gestão nas relações estabelecidas entre a gestão e o operário.

Palavras-chave: Taylorismo. Poder. Michel Foucault. Gestão. Subjetividade

ABSTRACT

This essay aims to analyze the Taylorist ideology concerning the relation between laborers and managers through the pastoral power category, proposed by Michel Foucault. If the disciplinary power is focused on the body, the pastoral power is focused on the individual's soul, implying - through confessional techniques - the direction of consciousness. Under Taylorism, one may conclude, such power manifests itself, but not in a parrhesiastic sense, revealing in Taylorism a truth configuration process with regard to the working subject, or laborer, which puts him in a condition of management object in the relations established between management and laborer.

Keywords: Taylorism. Power. Michel Foucault. Management. Subjectivity.

Introdução

A apropriação das obras de Foucault na área dos estudos organizacionais é recente, tendo aproximadamente três décadas (ALCADIPANI, 2008). No geral, as discussões realizadas pelos teóricos da área restringem-se ao emprego da noção de poder disciplinar (ALCADIPANI, 2008; MOTTA e ALCADIPANI, 2004). No Brasil, o trabalho de Silva e Alcadipani (2004) é um dos poucos que fazem menção ao poder pastoral utilizando essa noção como grade de leitura, porém estando ainda bastante atrelada ao poder disciplinar.

Para Burrel (2010), os estudos organizacionais têm dado destaque para o poder-saber, a vigilância e a disciplina, sendo que, para ele, o corpo está presente em um campo político, sob relações de poder e dominação, e se estabelece como força de produção no âmbito econômico. Dessa forma, como também afirma Araújo (2008), na sociedade moderna, o corpo útil, produtivo e submisso é essencial para as organizações; mas não apenas o corpo, senão também a subjetividade, noção central ao entendimento do poder no pensamento foucaultiano, pelo menos em sua última fase (CASTRO, 2009).

É justamente esta noção pouco abordada - a do poder pastoral - que pretendemos resgatar para a análise da obra Princípios de Administração Científica, de 1911, em que Frederick Taylor expõe de forma sintética suas propostas para a administração dos trabalhadores. Isto não significa ignorar a presença do poder disciplinar, mas significa indicar que ao seu lado, acoplado a ele, ou talvez até mesclado a ele, pode-se antever o poder pastoral. Trata-se de uma leitura que privilegia determinada perspectiva sem, no entanto, ignorar a existência de outras. É importante salientar também que o poder pastoral e o disciplinar não são a mesma coisa, ainda que o poder disciplinar seja visto, por vezes, como desdobramento histórico do poder pastoral (e não o contrário). Enquanto o poder disciplinar tem como um de seus principais aspectos o confinamento (DELEUZE, 1992), o poder pastoral não está restrito a um espaço físico para o seu exercício. Afirmar que são diferentes não reduz a dificuldade de diferenciá-los, pois em alguns momentos ambos se sobrepõem, como na vigilância permanente, que é característica básica do poder disciplinar (MUCHAIL, 2004), e que também pode ser encontrada no poder pastoral, ainda que com outra amplitude e exercida através de outras técnicas como, por exemplo, a confissão.

Assim, o presente ensaio tem como objetivo compreender o ideário taylorista a partir do aspecto de gestão da subjetividade. Para isso, recorremos às reflexões foucaultianas a respeito do poder pastoral, que se caracteriza não por ser, diretamente, um poder sobre corpos, através da disciplina e do treino do corpo para obtenção de habilidades e comportamentos adequados, mas também, e de forma ainda mais importante, por ser o direcionamento e governo das almas, visando à obtenção de condutas adequadas. Nosso esforço aqui, como se perceberá, é menos o de propor uma interpretação direta (mais ou menos apurada) do taylorismo. Buscamos, isso sim, apropriar-nos, de certo modo, do escrito tayloriano para sugerir outra possibilidade, que nos é inspirada a partir do pensamento foucaultiano, especialmente aquele que se desdobra, na transição entre as assim chamadas fases genealógica e ética, por meio das categorias analíticas que circunscrevem a história do poder pastoral (FOUCAULT, 2005; 2006; 2010; 2012; CANDIOTTO, 2010; MUCHAIL, 2011).

Ao endereçarmos essa proposta, estabeleceremos uma revisão da análise convencionalmente admitida, no âmbito da administração e da teoria das organizações, quanto ao significado do taylorismo. Geralmente, mesmo as análises que tomam o pensamento foucaultiano como seu escopo teórico resvalam no equívoco de não reconhecer - mesmo citando explicitamente - que o poder, para o pensador francês, não se inscreve (de modo geral) na ordem da dominação ou da repressão, e sim na ordem da liberdade. Desde esse ponto de vista, analisar Taylor ou o taylorismo a partir do entendimento foucaultiano de poder pastoral implica, necessariamente, problematizar a possibilidade de liberdade do operário e, daí, analisar, ou pelo menos hipotetizar, alguma explicação plausível para a não resistência (ou, pelo menos, para o insucesso evidente da resistência aos esquemas da administração científica). Nossas análises nos levarão à afirmação da mudança de mentalidade como parte do ideário taylorista e, consequentemente, como uma hipótese aventada para o problema, no que acreditamos ser uma abordagem fiel ao pensamento foucaultiano.

Para atingir nosso objetivo, primeiramente apresentaremos o poder pastoral segundo propõe Foucault. Num segundo momento passaremos a analisar o ideário taylorista, ou tayloriano, apontando as práticas, estratégias e ações que visam à condução das almas e que, assim, mantêm certa relação com o poder pastoral.

O Poder Pastoral

Pode-se dizer que Foucault não faz filosofia de forma tradicional. Não há uma exposição sistemática de conceitos e nem mesmo suas obras formam um todo estável e coerente, uma espécie de sistema globalizante. Como bem afirmou Deleuze (1992, p. 130), "o pensamento de Foucault é um pensamento, não que evoluiu, mas que procedeu por crises". O próprio Foucault (2010) reconhece que o seu trabalho percorreu três eixos principais: o eixo da formação dos saberes, o eixo das matrizes normativas de comportamento - as técnicas e procedimentos pelos quais se empreende conduzir a conduta dos outros -, e o eixo de constituição do modo de ser do sujeito. São estes dois últimos que serão resgatados neste trabalho, ou seja, a questão do poder e a questão do sujeito.

Cabe, entretanto, destacar que no pequeno texto intitulado O Sujeito e o Poder, Foucault (1995, p. 230) esclarece que o objeto central de seu estudo não é o poder, mas sim o propósito de "criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos". Para ele, a questão do poder deve ser compreendida no âmbito desta problemática mais ampla: a da objetivação do sujeito. Assim, a questão do poder só faz sentido para Foucault em sua relação com a constituição da subjetividade.

Segundo Foucault (1995), o poder não é algo que se tem, mas algo que se exerce sobre outro, seja indivíduo ou coletividade. A expressão "relações de poder", tão utilizada pelo filósofo, faz referência ao fato de que o poder "só existe em ato" (FOUCAULT, 1995, p. 242) e na interação com outros. Isto significa que, para o autor, o poder não é objeto pronto, acabado (SÁ e SOARES, 2005). Para ele, o poder pode ser definido como:

[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 243).

Temos, portanto, no exercício do poder - e como concepção geral, isto é, para além das inúmeras especificidades que a análise do poder traria, e efetivamente trouxe, à tona quando Foucault tomou exemplos específicos (a fábrica, a escola, as ciências, o presídio) para descrevê-lo - a "condução de condutas", uma espécie de ordenamento e estruturação do campo de probabilidade das ações sobre as quais se age. Desta forma, o poder é compreendido tendo não somente um caráter proibitivo, mas também produtivo (CLEGG, 2003; FOUCAULT, 1995; CASTRO, 2009), conclusão à qual chega o pensador francês ao contrapor, às noções clássicas de poder como dominação e do poder como repressão (ambas - mas especialmente a primeira - muito comumente aplicadas à crítica do taylorismo), a noção nietzscheanamente inspirada de poder como luta e enfrentamento, cujo dispositivo principal é o governo (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2005) e que habita na ordem das ações, ou da condução de condutas. Com isso, Foucault dirige o problema do poder ao problema fundamental do seu funcionamento, retornando ao pensamento grego e à antiga hipótese do político como pastor de homens para, a partir disso, estabelecer a genealogia do poder visto sob a noção, ou hipótese, da luta e enfrentamento.

Mas o que é o poder pastoral? Como ele se constituiu? Quais as suas características?

O poder pastoral não é algo estável, inerte, como se fosse um modelo que pudesse ser aplicado em qualquer relação. Para abordá-lo, Foucault (2008) faz um resgate histórico dos movimentos, conflitos e transformações em torno da temática pastoral.

Foucault (2008) se pergunta qual seria a origem da ideia de um governo dos homens presente no Estado Moderno (e que, segundo CASTRO, 2009, é a fonte de outras formas contemporâneas de poder: o disciplinar e o biopoder). Segundo ele, encontra-se no Oriente pré-cristão sob a forma de um poder de tipo pastoral e, posteriormente, no cristianismo sob a forma de direção de consciência, de direção das almas.

Apesar de ser frequente em todo o Oriente mediterrâneo a temática do poder pastoral, esse se desenvolveu e se intensificou entre os hebreus, nos quais a relação entre Deus e seu povo era concebida como sendo entre um pastor e seu rebanho (FOUCAULT, 2008). O poder da divindade se caracterizava por se exercer sobre "um rebanho [...] sobre uma multiplicidade em movimento" (FOUCAULT, 2008, p. 168) e não especificamente sobre um território, como no caso dos deuses gregos, que estavam atrelados a uma localidade específica. Também era um poder benfazejo, cujo objetivo essencial é a salvação do rebanho através da providência dos meios de subsistência, cuidado este que tem a peculiaridade de ser individualizante: "é verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar" (FOUCAULT, 2008, p. 172). Há um olhar, um zelo por todos e com cada um ao mesmo tempo. Assim, destacamos uma diferenciação entre o bom e o mau pastor:

Toda a preocupação do pastor é uma preocupação voltada para os outros, nunca para ele mesmo. Está aí, precisamente, a diferença entre o mau e o bom pastor. O mau pastor é aquele que só pensa no pasto para engordar o rebanho que poderá vender e dispersar, enquanto o bom pastor só pensa no seu rebanho e nada além dele. Não busca nem seu proveito próprio no bem-estar do rebanho (FOUCAULT, 2008, p. 171).

Intercalando a discussão do tema do pastorado entre os hebreus e no cristianismo, Foucault (2008; 2012) discorre sobre o mundo grego, apresentando-nos uma série de textos e dados, no intuito de nos mostrar que o modelo do poder pastoral não é aceito como o modelo de governo político para os gregos, que optam pelo modelo do tecelão. Se, antes, houve, entre os egípcios, assírios e hebreus, a presença da metáfora do pastor para falar da relação entres deuses e homens ou reis e súditos, na Grécia ela é questionada e não é de forma alguma absoluta.

Há um segundo momento de fundamental importância para a compreensão do modelo pastoral que, na verdade, não é uma simples continuação, transposição ou repetição daquilo que já foi exposto sobre os hebreus. Este novo desenrolar se encontra no cristianismo:

[...] a verdadeira história do pastorado, como foco de um tipo específico de poder sobre os homens, a história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo (FOUCAULT, 2008, p. 196).

Apesar de Foucault (2008) situar o desenvolvimento do poder pastoral entre os séculos II e III depois de Cristo até o século XVIII, ele mesmo afirma que não é possível assegurar que este desapareceu. Inclusive, ao longo deste período o poder pastoral se transformou consideravelmente: "Ele por certo foi deslocado, desmembrado, transformado, integrado a formas diversas, mas no fundo nunca foi verdadeiramente abolido" (FOUCAULT, 2008, p. 197).

Gregório de Nazianzo foi, segundo Foucault (2008), o primeiro a definir a arte de governar os homens pelo pastorado como tékne tekhnôn, epistéme epistemôn, "arte das artes", "ciência das ciências". O pastorado veio, assim, substituir a filosofia na arte pela qual as pessoas eram governadas e governavam outras.

Na Igreja cristã o tema do pastorado ganhará centralidade. Cristo, primeiramente; depois, seus prepostos, apóstolos, bispos e padres, todos são tidos como pastores. E como se caracterizou este poder pastoral ao longo da era cristã? Foucault responde:

O poder pastoral [...] só se encarrega da alma dos indivíduos na medida em que essa condução das almas também implica uma intervenção, e uma intervenção permanente na condução cotidiana, na gestão das vidas, mas também nos bens, nas riquezas, nas coisas (FOUCAULT, 2008, p. 204).

Note-se que o poder pastoral no cristianismo é bem diferente da temática pastoral entre os hebreus. Neste, o tema do pastorado era apenas um dentre vários: Deus-pastor, Deus-guerreiro, Deus-juiz agora, naquele, além de tornar-se absoluto, também se institucionaliza. Há, porém, uma diferença crucial que se refere a uma arte específica de condução dos homens pelos homens:

[...] o pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletivamente e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência (FOUCAULT, 2008, p. 218-219).

Esta responsabilidade analítica implica que o pastor deve conhecer cada uma de suas ovelhas minuciosamente, pois terá que prestar contas de tudo o que a mesma tenha feito de bom ou de mau. O mesmo ainda será responsabilizado pelas ações de suas ovelhas: quanto piores forem, maior será o seu mérito em sacrificar-se para salvá-las. Por outro lado, as fraquezas do pastor contribuem para a edificação das ovelhas, conduzindo-as à salvação.

Destaca-se aqui o que Foucault (2008) denomina de "economia dos deméritos e dos méritos" (FOUCAULT, 2008, p. 229). Há toda uma trama em que as ações de um repercutem sobre o outro, ações que são imbuídas de valores e que produzem um julgamento sobre o sujeito, que afirmam uma verdade sobre ele.

Outro ponto a ser considerado do pastorado cristão é a obediência. Diferentemente dos gregos, em que a obediência era passageira e tinha finalidade definida, a obediência no pastorado tem um fim em si mesma.

No pastorado cristão, segundo Foucault, a relação de submissão de um indivíduo a outro indivíduo está acima da obediência do mesmo a uma lei, princípio ou ordem. Nem mesmo a razão é mais relevante que a própria obediência em si. O mérito consiste na própria obediência, e não em alcançar alguma outra finalidade qualquer, como o se tornar senhor de si mesmo, por exemplo.

Há evidentes problemas no entendimento foucaultiano da noção de obediência no cristianismo. Basicamente, esses problemas se referem à questão do "outro" - que no cristianismo não é um conceito unívoco, porquanto se refere tanto ao outro-igual (outro indivíduo humano, um próximo a quem se deve "amar como a si mesmo"- conforme KIERKEGAARD, 2009) quanto a um outro-superior (que é o divino, a quem se resigna e se submete, aí sim incondicionalmente ou, como afirma KIERKEGAARD, 1985, de modo absoluto). Há também problemas quanto ao télos da obediência, que não é um em si - como supõe Foucault - mas um princípio de desvelamento do Eu sob uma nova perspectiva (KIERKEGAARD, 1974; 1985).

Deixando de lado esses problemas, encontramos o pensador francês relacionando o poder pastoral e a subjetividade, nos seguintes termos:

[...] o pastorado faz surgir toda uma prática da submissão do indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é claro, mas fora do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhuma generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que não leva a nenhum domínio, nem de si nem dos outros (FOUCAULT, 2008, p. 237).

Trata-se de uma obediência que, segundo Foucault (2008, p. 237), implica a destruição do eu. A renúncia do eu passa a ser valorizada em prol da obediência irrestrita ao outro (para uma perspectiva diferente da de Foucault quanto à destruição do eu no âmbito da religiosidade cristã, consulte-se KIERKEGAARD, 1985, ou KIERKEGAARD, 1974).

O pastor, aquele que porta a verdade, através do ensino passa assim a constituir a subjetividade do sujeito segundo seus desígnios:

[...] esse ensino deve ser uma direção da conduta cotidiana. Trata-se não apenas de ensinar o que se deve saber e o que se deve fazer. Trata-se de ensiná-lo não apenas por princípios gerais, mas por uma modulação cotidiana, esse ensino também tem de passar por uma observação, uma vigilância, uma direção exercida a cada instante e da maneira menos descontínua possível, sobre a conduta integral (FOUCAULT, 2008, p. 239).

Essa "modulação cotidiana" está diretamente relacionada à direção de consciência. Temos aqui a prática da confissão, em que o sujeito examina sua consciência para expô-la ao seu diretor, que passa a guiá-la:

[...] o pastorado cristão inova absolutamente ao implantar uma estrutura, uma técnica, ao mesmo tempo de poder, de investigação, de exame de si e dos outros, pela qual certa verdade, verdade secreta, verdade da interioridade, verdade da alma oculta, vai ser o elemento pelo qual se exercerá o poder do pastor, pelo qual se exercerá a obediência, será assegurada a relação de obediência integral, e através do que passará justamente a economia dos méritos e deméritos, da obediência absoluta, da produção das verdades ocultas, é isso que, a meu ver, constitui o essencial, a originalidade e a especificidade do cristianismo, não a salvação, não a lei, não a verdade (FOUCAULT, 2008, p. 242).

É através da extração da verdade sobre o sujeito, através da confissão, que o mesmo passa a ser objetivado. É ao falar de si para outrem, que uma verdade sobre si é produzida. O pastor direciona os conteúdos aos quais sua ovelha deve prestar atenção, ele a guia pelos caminhos da confissão apontando o que é e o que não é pecado, os pecados mais perigosos e os menos perigosos, enfim, passa a exercer um poder de direção de consciência.

Posteriormente, entretanto, no âmbito da discussão da parrhesia, ou do dizer verdadeiro, a noção de confissão - e, em consequência, a noção de poder pastoral - é revista pelo pensador francês para adquirir um sentido útil à constituição do sujeito. Parrhesia "é etimologicamente o 'tudo dizer'. [...] a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer" (FOUCAULT, 2006, p. 450; FOUCAULT, 2012). É "[...] 'retórica não-retórica' [...]. Retórica porque não deixa de ser a técnica discursiva que utiliza positivamente da persuasão; não retórica, porque o bem falar não constitui a finalidade do discurso, sendo ao lado do questionamento, do exame e da admoestação, nada mais que meio para alcançar fim diverso, que em definitivo é o senhorio de si (...) daquele para o qual o discurso está dirigido, bem como a credibilidade de mestre, para aquele que discursa" (CANDIOTTO, 2011, p. 33).

De acordo com a análise de Muchail (2011, p. 160), "como ninguém é bom juiz de si mesmo, cada qual deve escolher alguém, um outro, que lhe fale francamente. Mestre, guia, diretor, é ele quem fala". A condição necessária a tal mestre é, portanto, o franco-falar, o dizer-verdadeiro, a liberdade de palavra (FOUCAULT, 2006, p. 449-451), para que ele seja filosoficamente útil ao indivíduo que, no exercício ascético de sua autoconstituição, tomou-o como confessor (CANDIOTTO, 2011). É, portanto, no mesmo contexto da direção de consciência que Foucault irá localizar, igualmente, o poder pastoral (talvez como categoria mais ampla), a parrhesia, e a retórica; a distinção entre essas duas últimas categorias é importante para o entendimento da noção de verdade na parrhesia. A retórica "prescinde da convicção daquele que enuncia em relação ao conteúdo da enunciação" (CANDIOTTO, 2011, p. 33). É o falar descompromissado com a verdade, e mesmo com a verdade para quem fala. Ainda que a parrhesia não seja o saber certo, e sim o conhecimento plausível (MUCHAIL, 2011), ela é, enquanto prática de si, o exato oposto da retórica (CANDIOTTO, 2011).

Finalmente, como se pode facilmente observar, todas essas categorias se inscrevem no âmbito da discussão da subjetivação dos discursos de verdade "que funcionam [no caso da parrhesia] como matrizes de ação, ajudando o indivíduo a enfrentar os acontecimentos decorrentes das vicissitudes da existência" (CANDIOTTO, 2011, p. 33). Todas elas interligam o problema da constituição de si com a questão da verdade, porquanto mediante o pastoreio, seja retórico, seja parrheriástico, o indivíduo vem a se inscrever - ou a ser inscrito - em um âmbito de produção de verdades sobre si mesmo.

Tais noções, que circunscrevem a noção mais ampla do poder pastoral (e do poder, em seu sentido geral, conforme proposto por Foucault), constituem o ferramental analítico para abordar o poder em suas manifestações históricas e em contraposição a abordagens centradas na dominação, ou soberania, e na repressão (FOUCAULT, 2005). Elas configuram uma análise sob outra perspectiva, centrada na possibilidade de liberdade entre os agentes implicados na relação de poder, entendidas como relações de governo, e que é elaborada pelo pensador francês para pensar as atuais manifestações do poder, principalmente no Estado moderno, mas também em outras instituições, dentre as quais as empresas privadas (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2005). Se é assim, elas podem - e são - igualmente, ferramental para investigação das origens da administração científica, centrada no pensamento tayloriano, conforme endereçamos a seguir.

O Taylorismo e a Gestão da Subjetividade

O poder incidindo sobre os corpos, através da disciplina, criando corpos dóceis, não é invenção do taylorismo. Foucault (1986), em Vigiar e Punir, aponta que no século XVIII, nas escolas, exércitos e mesmo nas fábricas, já estava presente um controle analítico dos corpos, que tinha por finalidade o direcionamento das ações, no intuito de cumprir as técnicas com eficácia. Nosso objetivo, ao estudar o taylorismo, não é de nos atermos a esta perspectiva, por mais atraente e frutífera que possa ser. Queremos apreciar outro aspecto, outra hipótese, não menos importante: o "direcionamento das almas" exercido pelo taylorismo.

Gerencer (1990) comenta que Taylor começou a trabalhar em meados de 1870, ao final de um longo período depressivo da economia e, segundo Heloani (2002), justamente quando o capitalismo entrava em sua época monopolista, marcada tanto pelo desemprego quanto pela diminuição dos salários. Neste período, os trabalhadores consideravam "um dever de solidariedade produzir o menos possível, para que não faltasse trabalho" (GERENCER, 1990, p. 11).

Havia uma espécie de cumplicidade entre os trabalhadores. Esses se preocupavam mais em garantir trabalho para um maior número de colegas e com as condições de trabalho do que com a produtividade ou a lucratividade da fábrica. Tendo interesses divergentes, a relação entre a gerência e os operários era conflituosa. Havia sabotagens, boicotes e até violência física. Em 1º de maio de 1886, por exemplo, ocorreu a famosa greve geral nos EUA, quando 190 mil trabalhadores paralisaram suas atividades reivindicando a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias (GUÉRIN, 1976 apud HELOANI, 2002).

Esse quadro evidencia, além da questão mais à superfície e evidente e diretamente relacionada ao taylorismo, qual seja, a questão da produtividade, um outro problema contextual presente e atuante no período de elaboração e ascensão do taylorismo. A questão da mentalidade do trabalhador, que na modernidade é marcada, como sugere Weber (1983), pela transformação em direção a uma ética do trabalho (em oposição à ética da contemplação), parece - a se dar crédito às descrições acima mencionadas - sofrer um momentâneo retrocesso, no final do século XIX e início do século XX.

É, então, plausível supor que Taylor quisesse modificar a maneira de agir dos operários para torná-los mais produtivos, transformando os interesses desses e tornando-os um com os da direção das empresas? Resposta positiva a essa questão é oferecida, por exemplo, por Peci (2009), para quem, além das mudanças nos métodos de trabalho, Taylor almejava também uma transformação na atitude mental dos trabalhadores.

Ora, a análise do discurso tayloriano em relação a essa modificação nos levará próximos, por assim dizer, de uma das características do poder pastoral: o governo das almas. Leia-se o próprio engenheiro americano, quando instrui a esse respeito:

Deixando de lidar com homens, em grandes equipes ou grupos, e passando a considerar cada trabalhador individualmente, entregamos o trabalhador que falha em sua tarefa a instrutor competente

para lhe indicar o melhor modo de executar o serviço e para guiá-lo, ajudá-lo e encorajá-lo

, bem como estudar suas possibilidades como trabalhador (TAYLOR, 1990, p. 58, grifo nosso).

E quem seria o responsável por guiar o trabalhador, instruindo-o como agir, desejar, pensar e sentir? Segundo Taylor (1990), como se vê acima, essa tarefa caberia à gerência, que teria pessoas designadas especificamente para isto, e que, a nosso ver, aproxima-se daquela figura do pastor, por mais de uma característica. Primeiramente, trata-se de uma supervisão analítica, em que cada trabalhador é individualmente observado, mensurado, comparado com padrões, classificado, avaliado e, quando destoante do esperado, recebe uma atenção ainda maior, sendo treinado para se adequar ao desejado.

Depois, a ação pastoral se revela também quando, apesar dos interesses prévios do trabalhador, alguém designado pela gerência passa a "ajudá-lo e encorajá-lo" a modificar-se para atingir... Atingir o quê? Uma maior eficiência e produtividade. Mas estes não eram interesses originais do trabalhador, foram como que implantados através da modulação da alma. Há, aqui, sutil expectativa de produção - pela extração - de uma verdade sobre os trabalhadores, a ser por eles aceita como critério de distinção, de separação e, simultaneamente, de pertencimento a um grupo, qual seja, o dos trabalhadores aprovados.

Que não se entenda errado. Não estamos dizendo que os trabalhadores não se interessavam em obter riquezas. O "impulso para o ganho" ou a "ânsia pelo lucro" existiu, inclusive, em vários países e épocas anteriores ao capitalismo monopolista. Mais do que isso: a ambição e a avareza, enquanto expressões da virtude, pouco a pouco se tornam cada vez mais presentes a partir da Reforma Protestante (WEBER, 1983).

O "espírito do capitalismo", como denominava Weber (1983), teve como seu principal oponente o tradicionalismo, cuja mentalidade pode ser percebida na seguinte passagem:

A oportunidade de ganhar mais era menos atrativa do que a de trabalhar menos. Ele [trabalhador contratado] não perguntava: quanto posso ganhar por dia se trabalhar tanto quanto possível, mas, quanto devo trabalhar a fim de ganhar o salário, dois marcos e meio, que ganhara anteriormente e que seria suficiente para minhas necessidades tradicionais [...]. O homem não desejava 'por natureza' ganhar cada vez mais dinheiro, mas simplesmente viver como estava acostumado a viver, e ganhar o necessário para este fim (WEBER, 1983, p. 38).

Segundo Motta e Bresser-Pereira (2004), o tradicionalismo passou a ser sistematicamente atacado pelo racionalismo, tendo, a partir do século XVII, confrontos nos campos da Filosofia, da Ciência, da Política, do Direito etc. No século XVIII - o século das luzes ou da razão - o racionalismo teve seu momento de glória e coroamento na Revolução Francesa, quando a "Deusa Razão" foi entronizada. No século XIX, o avanço continuou nas ciências físico-matemáticas e sociais. Porém, um setor até então não havia sofrido de forma decidida o grande impacto do racionalismo: o trabalho. O emprego dos métodos racionais na execução e organização do trabalho coube aos representantes da Escola da Administração Científica, da qual Taylor é um dos fundadores.

É justamente com uma mentalidade semelhante a esta, da passagem acima, na qual o trabalhador não inclui a racionalidade e, ao mesmo tempo, uma ética que concebe o trabalho como um dever, que Taylor parece ter se defrontado. Taylor (1990), então, procura estimular a ambição dos trabalhadores, tornando-a algo valioso - uma virtude. Assim, através de estímulos financeiros e congêneres, a percepção passa a ser redirecionada para eficiência e a racionalidade do trabalho.

Taylor (1990) destaca a importância de se conhecer a alma e a personalidade dos homens, agindo sobre estas para modificar sua atitude mental:

A mudança da administração empírica para a administração científica envolve, entretanto, não somente estudo da velocidade adequada para realizar o trabalho e a remodelação de instrumentos e métodos na fábrica,

mas também completa transformação na atitude mental de todos os homens, com relação ao seu trabalho e aos seus patrões

(TAYLOR, 1990, p. 76, grifo nosso).

Aqueles homens que ignoravam os métodos científicos, que tinham por interesse manter o maior número de trabalhadores em ação mesmo que isso implicasse certa "vagabundagem" no trabalho, agora, após a ação da gerência (que, nos nossos termos, era tanto técnica quanto pastoral), passariam a desejar um aumento salarial, a desejar aumentar sua produtividade adequando-se aos novos métodos. Se antes tinham certa liberdade de escolher como fazer o trabalho e o tempo que gastariam para a execução da tarefa, agora quem determinaria isso seria a gerência.

A ideia de agir sobre a subjetividade parece tão importante para Taylor (1990) que no capítulo intitulado Psicologia dos trabalhadores ele chega a afirmar: "Há outro tipo de investigação científica, a que aludimos várias vezes neste livro e que deve ser objeto de especial atenção; trata-se do estudo cuidadoso dos motivos que determinam a conduta dos homens" (TAYLOR, 1990, p. 87, grifo nosso).

Segundo Taylor (1990), um poderoso fator de modificação das motivações e atitudes mentais dos homens é a remuneração. Mas as promessas e o próprio aumento do salário - que lhes aguçava a ambição - não eram as únicas estratégias utilizadas para modelar a subjetividade. Através do estudo dos tempos e movimentos, estabelecia-se a "melhor" forma de se realizar uma tarefa - os movimentos elementares, o tempo-padrão e a ordem de cada um deles. Esta direção da ação não se reduz ao corpo, porquanto as próprias representações com as quais o sujeito organiza a sua ação sobre o mundo também são ditadas pelo guia. Quando este diz "Levante a barra e ande", o trabalhador submete suas ações mentais ao que foi designado. Desta forma, o guia conduz seus pensamentos.

A tarefa, enquanto roteiro mental e corporal das ações, não age sozinha. Ela tem sua eficácia potencializada pela vigilância constante dos supervisores, cronometristas e apontadores. O cronômetro, por exemplo, era um instrumento que, ao ser visto pelos trabalhadores, lembrava-lhes a cadência que deveriam seguir. Desrespeitar o "cronômetro" era correr o risco de ser punido, inclusive com a demissão.

A salvação prometida pela gerência não é mais a salvação futura e eterna que os pastores pregavam, mas sim a salvação presente e imediata caracterizada pela segurança no emprego e por uma maior remuneração que garante melhores condições de vida, características essas da salvação no Estado Moderno (FOUCAULT, 2008).

Taylor (1990) afirmava que com o aumento salarial um bem-estar social poderia ser alcançado pelos trabalhadores. E o que o trabalhador deveria fazer para obter esta "salvação"? Obedecer cegamente às ordenanças de seu guia. Um diálogo relatado por Taylor (1990) é bastante elucidativo sobre a maneira como ele concebe o trabalhador ideal:

- Bem, se você é um operário classificado deve fazer exatamente o que este homem lhe mandar, de manhã à noite. Quando ele disser para levantar a barra e andar, você se levanta e anda, e quando ele mandar sentar, você senta e descansa. Você procederá assim durante o dia todo. E, mais ainda, sem reclamações.

Um operário classificado faz justamente o que se lhe manda e não reclama.

Entendeu? Quando este homem mandar você andar, você anda; quando ele disser que sente, você deverá sentar-se

e não fazer qualquer observação

. Finalmente,

você vem trabalhar aqui amanhã e saberá, antes do anoitecer, se é verdadeiramente um operário classificado ou não

(TAYLOR, 1990, p. 46, grifo nosso).

Para Taylor (1990), o operário não precisaria ter o conhecimento teórico-científico, mas sua melhor qualidade deveria ser a obediência, ou, nas suas palavras, bastaria ser "estúpido e fleumático que mais se assemelhe em sua constituição mental a um boi" (p. 53). Alguém de reações vivas e inteligente seria impróprio para atividades monótonas, que exigem uma completa submissão da subjetividade e do corpo. Dessa forma, tem-se então, com o taylorismo, não apenas produção de corpos dóceis, senão igualmente a pressuposição de subjetividades dóceis e, mais que isso, a aceitação de que tais formas do trabalhador - tal sujeito trabalhador - é necessária porque útil, para si mesmo, em primeiro plano, para a empresa e também para a sociedade. Estabelece-se, consequentemente, uma verdade a respeito do trabalho em fábrica, e de seu operário.

Taylorismo como Produção de Verdade

Retomando o pequeno trecho do diálogo acima referido (TAYLOR, 1990, p. 46), destaque-se, agora, a questão da verdade a respeito do sujeito-operário. Nesse sentido, convém que se atente para o fato de que Foucault, na tradição nominalista, nega a verdade como universal e só pode aceitá-la enquanto particular e, mais, enquanto inscrita neste mundo, apenas neste mundo (CASTRO, 2009, p. 423) e, neste mundo, expressa em relações de poder. Daí que, para ele, "a verdade é em si mesma poder" (CASTRO, 2009, p. 423). No sentido expresso pela categoria do poder pastoral, ela é poder que diz a verdade sobre o sujeito.

Não há apenas uma verdade sobre o sujeito, uma única verdade sobre o sujeito; entretanto nos preocupa aqui questionar quem enuncia, a partir do taylorismo, a verdade a respeito do sujeito que trabalha, enquanto trabalha. No que concerne ao taylorismo, quem diz (produz) a verdade sobre o operário? É o seu guia. É ele quem diz se o sujeito é ou não "classificado", se merece ou não o "incentivo" monetário. Haverá sempre alguém vigiando este trabalhador e dizendo ao mesmo se ele é bom e capacitado ou não para o trabalho, se ele merece ou não a "salvação". Através da comparação da produção realizada com os resultados esperados, o sujeito passa a ser classificado e objetivado, o que poderiamos traduzir, em termos institucionais, como um exercício de produção de saber a respeito dos indivíduos que trabalham (MUCHAIL, 2004). Parece evidenciar-se, portanto, que no âmbito do taylorismo, a gerência - não contra, senão a partir da própria mentalidade renovada dos operários, que querem ganhar melhores salários ou, antes, que devem querer melhores salários - é quem assumirá esse papel. O gerente tayloriano é, consequentemente, não apenas engenheiro de novos corpos, mas pastor de novas almas, o novo e legítimo condutor dos operários.

Ora, esse duplo papel gerencial (produzir-extrair verdades) só pode ser adequadamente observado a partir das categorias foucaultianas aqui utilizadas. Como observa Muchail (2004), ao resgatar o pensamento foucaultiano a respeito das instituições na sociedade disciplinar, considera-se que nelas há uma produção dupla de saberes: "quer extraindo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indivíduos" (MUCHAIL, 2004, p. 69). Podemos pensar, assim como propõe a autora, sobre as fábricas como espaços nos quais as relações de poder pastoral se manifestam:

Um exemplo de saber extraído

dos

indivíduos ocorre em instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito de seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constantemente submetido à vigilância e ao registro, fornece elementos para gerar saber acerca da produção. Por sua vez, saberes

sobre

o indivíduo nascem das observações, das classificações, das anotações a respeito do doente, do criminoso, da criança etc (MUCHAIL, 2004, p. 69).

Assim, a extração da verdade que antes era obtida através da confissão, no poder pastoral, agora é obtida através da observação, da vigilância de uma apropriação externa. A extração não é apenas de uma verdade sobre o trabalho e o trabalhador, mas o novo discurso da gerência, a partir do taylorismo, estende-se e insinua-se sobre a própria autonomia e iniciativa do operário. Em consequência, o saber produzido sobre o trabalhador individual ou coletivamente passa a fortalecer ainda mais as ações da gerência na condução do trabalhador. Esse saber fixa o trabalhador ao classificá-lo e, assim, o mesmo passa a estar submisso a uma verdade.

Cabe destacar que Taylor (1990), ao definir as ações que seriam da responsabilidade da gerência e dos operários, acaba também suprimindo desses operários sua liberdade, inclusive a de pensar. Ele mesmo ouviu dos trabalhadores que eles se sentiam privados da capacidade de pensar e agir:

Graças a esta instrução minuciosa, o trabalho torna-se tão cômodo e fácil para o operário, que à primeira vista parece que o sistema tende a convertê-lo em mero autômato, em verdadeiro boneco de madeira. Os operários observam habitualmente, ao trabalharem pela primeira vez sob o novo sistema: Por que não me permitem pensar ou agir? Há sempre alguém intervindo ou fazendo por mim (TAYLOR, 1990, p. 91).

Mas quais seriam estas atividades próprias à direção e aos operários? Para Taylor (1990) as responsabilidades do trabalho deveriam ser divididas "equitativamente" entre ambos. A direção é responsável por orientar, instruir e auxiliar o operário, planejando as atividades deste de forma minuciosa e de acordo com as leis científicas. Como vimos, ao operário resta obedecer, sem pensar nem questionar.

Evidencia-se, então, que o taylorismo, além de técnica de gestão do trabalho (e nesse sentido, já uma forma de poder), é também exercício de poder pastoral. Ele contém, enquanto poder, uma face até agora pouco estudada e que se expressa nas relações de natureza pastoral entre o gestor e o operário, relações centradas na produção de verdades a respeito do operário que, deste modo, constitui-se como objeto de um conhecimento específico que esquadrinha suas aptidões, fragmenta seu tempo de trabalho, toma seu corpo como se fosse um aparato mecânico e, como se viu até aqui, instala um âmbito de direção da alma - ou psique - do operário para as verdades que devem ser aceitas para que o indivíduo seja legitimamente aceito como operário.

Mas a utilidade desse conhecimento - e desse discurso - que objetiva o operário não se volta, em primeiro plano, ao próprio operário ou a ele, enquanto sujeito de si, em processo de tornar-se sujeito. Como Rose (1999) reconhece, esse modelo tradicional de relacionar o indivíduo ao trabalho implica uma "essencial subordinação da subjetividade" (ROSE, 1999, p. 56) que é altamente adversa ao indivíduo que trabalha e, quiçá, à própria organização, porquanto sob tal ordem de sujeição o indivíduo dificilmente poderá se autorrealizar no trabalho, condição crescentemente considerada fundamental para o bem-estar dos indivíduos e da própria sociedade (ROSE, 1999, p. 56), se é mediante o trabalho que o indivíduo moderno se faz, de modo predominante, sujeito de direitos e de obrigações, enfim, sujeito de sua própria humanização (VAZ, 1998, p. 122).

Entretanto o taylorismo faz do indivíduo-operário - corpo e alma - objeto do poder, disciplinar e pastoral. Além disso, o princípio de divisão entre trabalho intelectual e trabalho braçal, fundamental ao taylorismo, coloca-o fora do âmbito de possibilidade da parrhesia, porque essa exige, do diretor ou mestre de consciência, a coincidência entre o que se fala e o que se faz, o pacto - na figura do mestre - entre "o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta" (FOUCAULT, 2006, p. 491; MUCHAIL, 2011, p. 161), o que evidentemente não se pode evidenciar na fábrica, por parte do gerente, porquanto a ele cabe conduzir o operário a condutas que ele mesmo, gerente, não irá desempenhar, em com objetivos que são antes compromissados com a eficiência do que com a autoconstituição do sujeito-operário.

Considerações Finais

Neste ensaio buscamos tornar evidente o ideário taylorista a partir do aspecto da gestão da subjetividade, na medida em que Taylor (1990) sistematiza não apenas uma modificação dos movimentos corporais dentro da fábrica, mas também a modificação da atitude mental dos homens em relação ao seu trabalho e a seus patrões. Demonstramos, assim, que a proposta taylorista visava agir sobre a atitude mental, as percepções, motivações e desejos dos operários, enfim - na terminologia foucaultiana - agir sobre suas ações, governá-las, dirigir suas consciências.

Analisamos o taylorismo a partir da categoria foucaultiana do poder pastoral, a partir da percepção de que o gerente de fábrica passou, com o taylorismo, a ter o dever de guiar os operários, instruí-los a respeito de como agir, o que pensar e desejar, o que sentir em relação a seu trabalho; passou também a observá-los individualmente, comparando-os com padrões e treinando-os quando necessário. Estabelecemos então uma aproximação entre a figura do gerente, apresentada por Taylor, e a figura do pastor, apresentada por Foucault.

Com este ensaio, procuramos, portanto, desafiar a noção convencional que atribui a Taylor uma concepção de gestão de fábrica exclusivamente centrada na dominação e na repressão. Evidencia-se, aqui, que nele já se expressa, mesmo que precariamente, preocupação quanto à possibilidade de enfrentamento e resistência por parte do trabalhador, submetido aos esquemas e dispositivos típicos da chamada administração científica. Daí a preocupação com a classificação do trabalhador, não apenas - como evidenciamos - a partir da docilização de seus corpos, mas também a partir da mudança de sua mentalidade quanto ao sentido do trabalho. Tratou-se, portanto, de reconstituir - a partir do taylorismo - a própria subjetividade do trabalhador, para além da reconstituição de seus corpos, via a sua mecanização (a face visível, a superfície do modelo da administração científica). Com tais argumentos, o que se tem aqui é uma hipótese para a predominância do taylorismo na sociedade contemporânea das organizações, para além da noção convencionalmente estabelecida na administração e na teoria das organizações, de sua simples imposição aos trabalhadores.

Enquanto os pastores - em seu contexto original de atuação e de significação - buscavam garantir a salvação futura e eterna de seu rebanho, os gerentes tayloristas prometiam a salvação presente e imediata na forma da remuneração que garantiria melhores condições de vida. Para os operários conquistarem a sua salvação, seria necessária a obediência irrestrita e inegociável às ordenanças do gerente - nova forma de confessor, portanto - através da disciplina que, para Foucault (1986), implicava a docilização dos corpos e a submissão a regras para garantir a eficiência do trabalho, e não para garantir a constituição do sujeito como sujeito de si mesmo, portanto, como indivíduo livre. Deste modo arranjado, o trabalho produtivo finalmente conseguia apreender o operário como objeto de um campo de conhecimento - e uma órbita de poder - suficientemente sistematizada para ser replicada e defendida.

A contraposição a esse processo comumente resvalou na ingenuidade de supor a possibilidade de constituição dos sujeitos em contraposição, ou mesmo à parte, de relações de poder. Contra tal ingenuidade Foucault (2007), Castro (2009) já havia alertado, porquanto nem sujeitos nem verdades - segundo o pensador francês - podem emergir sem as tramas do poder e do saber: "nunca analisar as estruturas de poder sem mostrar em que saberes e em que formas de subjetividade elas se apóiam" (GROSS, 2011, p. 306, grifos nossos). Não se trata, deste modo, de supor que a humanização do trabalho implique superação das formas de poder que incidem sobre o trabalho humano - o poder disciplinar, o poder pastoral, e mesmo o poder de classificação e diferenciação dos agrupamentos, o bio-poder. O indivíduo se faz sujeito, constitui-se como sujeito, apenas nas relações de poder, portanto sua condição de possibilidade e sua limitação, quando ele se torna sujeito de si nas relações que lhe afetam, que lhe são pertinentes e que são importantes para sua constituição, para a produção das verdades a respeito de si mesmo.

Não se trata igualmente, para Foucault, de o indivíduo simplesmente tomar posse do resultado concreto de seu trabalho. O contexto organizacional e produtivo do séc. XX acabou demonstrando que há uma face obscura subjacente aos programas de vinculação entre pagamento e dedicação ao trabalho. Aparentemente o ideário que Max Weber vinculou, em sua origem, ao protestantismo, tornou-se predominante e reverteu o antigo risco - ainda evidente nos dias de Taylor - de fácil alcance da satisfação das necessidades básicas e consequente baixo engajamento com o trabalho. Além do exemplo da aplicação do taylorismo no mundo socialista (PECI, 2009), também a crescentemente universalização de padrões de intensificação do trabalho - mesmo quando ocorre com a contrapartida de ganhos aos trabalhadores por meio de divisões de lucro, aumentos gerais de salários, etc - parecem ainda implicar a objetivação do indivíduo por meio de discursos como o do comprometimento, da competitividade, da requalificação, da empregabilidade, dentre outros exemplos possíveis.

Todos esses exemplos podem, provavelmente, ser analisados a partir de uma perspectiva da perda da subjetividade, nos meandros do poder pastoral (ou algum correlato a ele) no âmbito da empresa moderna, da organização pública, e das mais diversas modalidades de organizações. A necessidade de (ou desejo por) aumento da capacidade individual de consumo, o enfraquecimento dos programas de assistência social ou de bem-estar social, os novos padrões de exigência competitiva que incidem sobre as empresas e, a partir dessas, sobre os empregados parecem evidenciar que se o taylorismo, como programa de gestão de produção, já faz parte da história da administração, seu ideário pastoral - o modelo de consciência ao qual ele se vinculou e que ele potencializou - continua vivo, talvez mais do que nunca, ainda que sua presença seja sutil o suficiente para ser adornada e disfarçada pelos mais recentes modismos da gestão de pessoas e de organizações.

Artigo submetido em 07 de agosto de 2012 e aceito para publicação em 27 de janeiro de 2013.

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  • 1
    Os autores agradecem ao CNPq pelo apoio financeiro ao projeto de pesquisa do qual resulta este artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      07 Ago 2012
    • Aceito
      27 Jan 2013
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