Open-access Horizontes de decolonização em marketing: uma proposta com base na crítica à colonialidade da teoria da globalização de mercados

Horizontes de descolonización en el marketing: una propuesta desde la crítica de la colonialidad en la teoría de la globalización de los mercados

Resumo

As teorias mais reconhecidas em marketing foram, em sua maioria, escritas por autores do norte global, que foram reverenciados na área por seus ideais. Entre estes, um que merece destaque é Theodore Levitt, com a teoria da globalização de mercados, que é considerada relevante até os dias atuais. Todavia, ao analisar essa teoria e as interpretações feitas a seu respeito por meio de uma perspectiva decolonial da América Latina, percebe-se o quanto ela reproduz a colonialidade. Assim, este artigo buscou analisar, segundo a perspectiva decolonial, com particular atenção ao conceito de colonialidade do poder - e suas derivações, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser -, como a colonialidade se faz presente na teoria da globalização de mercados desenvolvida por Theodore Levitt. Tal teoria reitera uma assimetria racial entre povos, posiciona-se como uma perspectiva epistemológica superior e universal e promove uma convergência para formas de Ser associadas ao mundo eurocêntrico. Contudo, sabendo que esta é apenas uma entre outras teorias que compõem o marketing e que reverberam a mesma lógica colonial, propõe-se aqui uma descolonização do marketing no Brasil. Para tanto, sugere-se a incorporação dos pensamentos de autores como Lélia Gonzalez e Ailton Krenak, que debatem criticamente questões relacionadas com a globalização, o capitalismo e mercados. A utilização de conhecimentos subalternizados exteriores à área é uma ousadia teórica necessária para construir uma disciplina do marketing menos assimétrica e mais conscientemente orientada para lidar com as complexidades e os desafios desse contexto.

Palavras-chave: Decolonialismo; Globalização de mercados; Colonialidade do poder; Colonialidade do saber; Colonialidade do ser

Resumen

Las teorías más reconocidas en marketing fueron escritas en su mayoría por autores del norte global. Entre estos, uno que merece ser destacado es Theodore Levitt, con la teoría de la globalización de los mercados, considerada relevante hasta hoy. Sin embargo, al analizar dicha teoría y sus interpretaciones desde una perspectiva decolonial de América Latina, se puede ver cuánto reproduce la colonialidad. De esta forma, el presente artículo buscó analizar, desde la perspectiva decolonial ‒con especial atención al concepto de colonialidad del poder y sus derivaciones, de colonialidad del saber y de colonialidad del ser‒ cómo la colonialidad está presente en la teoría de la globalización de mercados desarrollada por Theodore Levitt. Dicha teoría reitera una asimetría racial entre los pueblos, se posiciona como una perspectiva epistemológica superior e universal y promueve una convergencia hacia modos de Ser asociados al mundo eurocéntrico. Sin embargo, sabiendo que esta es sólo una entre otras teorías que componen el marketing y que resuenan en la misma lógica colonial, aquí se propone una descolonización del marketing en Brasil. Para ello, se sugiere incorporar el pensamiento de autores como Lélia Gonzalez y Ailton Krenak, quienes debaten críticamente temas relacionados con la globalización, el capitalismo y los mercados. El uso de saberes subalternos fuera del área es una osadía teórica necesaria para construir una disciplina de marketing menos asimétrica y más conscientemente orientada a enfrentar las complejidades y desafíos de este contexto.

Palabras clave: Decolonialismo; Globalización de los mercados; Colonialidad del poder; Colonialidad del saber; Colonialidad del ser

Abstract

The most recognized theories in marketing were mostly written by authors from the Global North, who were revered within the field for their ideals. Among these, one that deserves to be highlighted is Theodore Levitt, with the theory of globalization of markets, which is considered relevant to this day. However, when analyzing the theory of globalization of markets and the interpretations made about it through a decolonial perspective from Latin America, one can see how much it reproduces coloniality. Therefore, this article analyzed, from the decolonial perspective, with particular attention to the concept of coloniality of power - and its derivations, the coloniality of knowledge, and the coloniality of being - how coloniality is present in the theory of globalization of markets developed by Theodore Levitt. This theory stands for a racial asymmetry between peoples, positions itself as a superior epistemological perspective, and promotes a convergence toward ways of Being associated with the Eurocentric world. However, knowing that this is just one of the theories that make up marketing and reverberate the same colonial logic, the decolonization of marketing in Brazil is proposed. We suggest incorporating the thoughts of authors such as Lélia Gonzalez and Ailton Krenak, who critically debate issues related to globalization, capitalism, and markets. The use of subaltern knowledge outside the area is a theoretical dare necessary to construct a marketing discipline that is less asymmetrical and more consciously oriented to deal with the complexities and challenges of this context.

Keywords: Decolonialism; Globalization of markets; Coloniality of power; Coloniality of knowledge; Coloniality of being

INTRODUÇÃO

A produção acadêmica no Brasil, principalmente em marketing, é marcada pela adoção de conhecimentos provenientes de países desenvolvidos, principalmente dos Estados Unidos da América (EUA). Afinal, é desses contextos hegemônicos que supostamente o marketing se originou e de onde advêm a maioria de seus influentes pensadores e as principais teorias e conceitos (Wilkie & Moore, 2003).

Um dos grandes teóricos de marketing, reconhecido pelo impacto de suas obras sobre a área, é o estadunidense Theodore Levitt. Entre os seus trabalhos, um que merece destaque é “A Globalização de Mercados”, no qual o autor teoriza sobre como práticas de mercado deveriam ser expandidas globalmente, facilitando para que grandes empresas se internacionalizassem, por meio de práticas operacionais e de marketing padronizadas em todos os países onde fossem comercializar seus produtos (Levitt, 1983). Desde sua publicação, o artigo já foi citado mais de 8 mil vezes (Google Acadêmico, 2022) e continua a ser usado como leitura recomendada em disciplinas de marketing tanto no norte global quanto no sul global (Open Syllabus, 2022).

Um dos motivos para o artigo ser influente em marketing é porque, com ele, diversos debates foram feitos em referência à sua teorização (p. ex., Boddewyn, Soehl, & Picard, 1986; Cunningham & Ferrell, 2015; Dixon & Sybrandy, 2015; Douglas & Wind, 1987; Kotler, 1986; Tedlow & Abdelal, 2004). Apesar de contribuírem para críticas e discussões a respeito da globalização de mercados, tais debates em marketing partem de um mesmo quadro epistêmico que Levitt, de origem eurocêntrica, de forma que deixam de lado um aspecto relevante a respeito dessa teoria desenvolvida inicialmente pelo autor: a sua colonialidade. Assim, no presente artigo, propomos analisar a colonialidade presente no discurso de Levitt com base em três dimensões constitutivas: poder, saber e ser (Lander, 2005; Maldonado-Torres, 2008; Quijano, 2000).

A colonialidade do poder foi o termo utilizado por Quijano (2000) para designar o padrão de poder do mundo moderno, que teve início com o processo de colonização ocorrido na América Latina, que deixou um legado de desigualdades e injustiças sociais. Uma das características fundamentais desse novo padrão de colonialidade é o fato de ter ganhado tração graças à articulação entre raça e capitalismo. Segundo Quijano (2000), foi com a divisão racialista do trabalho e da exploração de mão de obra na colonização desse continente que o capitalismo moderno e o padrão de poder mundial eurocêntrico surgiram e se sustentaram. Outrossim, foi com base em tal evento histórico que a ideia de raça passou a ser usada para hierarquizar a população mundial nessa nova estrutura de poder, que delimita papéis sociais, limita recursos, impõe o tipo de trabalho que os indivíduos deveriam desempenhar e assim por diante (Quijano, 2000).

Com a organização colonial do poder, ocorreu a cristalização de uma cosmovisão associada à ideia de modernidade, que, além de produzir metarrelatos em torno da noção de progresso (associado às sociedades industriais liberais), não considerou como válidos os conhecimentos que não fossem produzidos com base em uma lógica histórica universalizante assentada na experiência europeia (Lander, 2005). Tal processo é concebido como a colonialidade do saber (Lander, 2005; Quijano, 2000) e se torna evidente também com a elaboração de categorias e conceitos utilizados para analisar qualquer realidade sem considerar as complexidades inerentes aos contextos sócio-históricos específicos.

Já a colonialidade do ser refere-se a um processo de discriminação contra determinadas formas de existir no mundo, no entanto, não se trata de uma violência ontológica generalizada endereçada a um ser qualquer, mas pelo ser colonizado, cuja existência é produto da modernidade/colonialidade - isto é, da diferença colonial e da lógica da colonialidade -, e não das ideias de um autor ou filósofo (Maldonado-Torres, 2008). Um exemplo histórico de colonialidade do ser foram as missões civilizatórias cristãs, que, com a justificativa de levar a “civilidade” aos povos originários, foi utilizada para legitimar a exploração colonial e minar a subjetividade de tais grupos, por meio da imposição de crenças, culturas, costumes eurocêntricos (Mignolo, 2011), e que suscitou em um crescente apagamento de tradições autóctones.

Vale salientar que o processo de controle das subjetividades ocorre em um modelo paralelo e complementar ao meio de controle do conhecimento, pois a colonialidade do saber também é utilizada como um poderoso instrumento normativo para impor formas de ser para todos os povos, pois tais “conhecimentos convertem-se, assim, nos padrões a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e os impactos perversos que se dão como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades” (Lander, 2005, p. 13, grifo do autor). Dessa forma, transcorre “um controle da subjetividade mediante o controle do saber” (Mignolo & Casas, 2005, p. 27), a serviço da colonialidade do poder (Quijano, 2000).

Ao analisar, por meio de uma perspectiva decolonial da América Latina, a teorização levantada por Levitt em marketing, é possível perceber a presença de elementos relacionados com o conceito de colonialidade do poder (Quijano, 2000) e suas derivações, a colonialidade do saber (Lander, 2005) e a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2008). Desse modo, a teorização de globalização de mercados proposta por Levitt é um exemplo de como os saberes advindos das ciências sociais, ao utilizarem-se da naturalização e universalização de regiões ontológicas provenientes da cosmovisão liberal (Lander, 2005), podem corroborar com hierarquias dicotômicas - como norte/sul global, moderno/pré-moderno, desenvolvido/subdesenvolvido -, reforçando, assim, a colonialidade do poder (Quijano, 2000). O fato de Levitt promover tal conhecimento como superior, passível de ser universalizado e mais adequado para explicar fenômenos globais sobre mercados em realidades não somente do norte global, mas também do sul global, reitera a colonialidade do saber (Lander, 2005) e desconsidera que tais realidades possam ser mais bem analisadas por cosmovisões próprias não pretensamente universais. Ainda, pode-se enxergar como que tais narrativas valorizam determinadas formas de existência, particularmente aquelas originárias do mundo eurocêntrico, em detrimento daquelas vividas em mundos não eurocêntricos, fortalecendo a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2008).

Quando autores de marketing debatem a teoria de Levitt, o fazem indicando a sua falta de dados empíricos para embasar as suas pressuposições (Dixon & Sybrandy, 2015; Salles, 1993); a incoerência da proposta de padronização de operações e marketing em mercados internacionais, dado que iria contra os ideais da disciplina, de atender necessidades e desejos de consumidores (Tedlow & Abdelal, 2004); a possibilidade de grandes empresas obterem redução de custos por meio de avanços tecnológicos, ajudando-as a praticar preços competitivos globalmente, sem que isso precise ser feito à custa da padronização de seus produtos (Douglas & Wind, 1987) e a heterogeneidade de gostos dos consumidores mundialmente, dadas as suas significativas diferenças culturais (Cunningham & Ferrell, 2015; Kotler, 1986), entre outros pontos. Entretanto, a presença da colonialidade na teoria de Levitt, conforme apontada aqui, é ignorada em tais debates.

Desse modo, o presente artigo visa analisar, com base na perspectiva decolonial, com particular atenção ao conceito de colonialidade do poder (Quijano, 2000) - e suas derivações, a colonialidade do saber (Lander, 2005) e a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2008) -, como a colonialidade se faz presente na teoria de globalização de mercados desenvolvida por Theodore Levitt em marketing.

Depois dos comentários introdutórios, o restante do artigo é dividido em três tópicos. O Tópico 2 versa sobre a teoria da globalização de mercados de Levitt e como pensadores em marketing interpretam essa perspectiva. No Tópico 3, é promovida uma análise da teoria de Levitt fundamentada na perspectiva decolonial da América Latina, com foco no conceito de colonialidade do poder e suas derivações, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser. No Tópico 4, faz-se uma discussão em prol da decolonização em marketing. Por fim, no Tópico 5, são feitas as considerações finais.

GLOBALIZAÇÃO DE MERCADOS SEGUNDO LEVITT E SEUS INTÉRPRETES

A teoria da globalização de mercados foi introduzida por Theodore Levitt na década de 1980. Todavia, antes mesmo de publicar esse texto no prestigioso periódico Harvard Business Review, Levitt já era um teórico com obras relevantes em marketing (Salles, 1993), como o artigo “Miopia de Marketing” (Levitt, 1960), trabalho também publicado na referida revista acadêmica que revolucionou a forma de praticar marketing, com relevância até nos dias atuais (Ng, 2016).

Quando Levitt propôs o conceito de globalização de mercados, não tardou para que suas ideias fossem debatidas nos ambientes acadêmico e gerencial (Boddewyn et al., 1986; Salles, 1993). O autor defendia a inevitabilidade de mercados globais como nova realidade comercial, e que tecnologia e globalização seriam os vetores que construiriam o mundo (Levitt, 1983). Tais vetores, segundo o autor, seriam responsáveis pela “irrevogável homogeneização” (Levitt, 1983, p. 4) de necessidades e desejos de consumidores ao redor do mundo. Se as organizações forçassem a diminuição de custos e aumentassem a qualidade e a confiabilidade de produtos, os consumidores estariam dispostos a abrir mão de suas preferências locais. O desaparecimento de antigas diferenças de gostos e escolhas dos consumidores culminaria não somente na padronização de produtos, como também na padronização da produção e das instituições comerciais (Levitt, 1983).

Um alvo das críticas de Levitt foi a corporação multinacional, que, em sua interpretação, era um modelo obsoleto, uma vez que promovia ajustes de produtos e/ou práticas em cada um dos mercados atuantes. Segundo Levitt (1983), operar nos moldes da corporação multinacional seria impraticável no novo mundo de mercados globalizados, pois os custos relativos a produtos aumentariam demasiadamente, visto que tal operação não permitiria alcançar economia de escala, algo que corporações globais almejariam, pois atuariam em todos os mercados globais de forma semelhante.

Quando surgiu, o conceito de globalização de mercados foi considerado polêmico (Salles, 1993). Embora Levitt tenha reconhecido que havia elevadas doses de exagero em seu trabalho e que esperava que seus leitores tivessem bom senso ao implementar suas ideias (Levitt, 1983), isso não o eximiu de ser criticado por outros teóricos do campo, que questionaram a aplicabilidade do conceito de globalização de mercados (Douglas & Wind,1987; Kotler, 1986). Suas críticas destacavam o fato de que Levitt é opinativo no artigo, sem fontes ou dados adequados para sustentar seus argumentos (Dixon & Sybrandy, 2015). Assim, é difícil distinguir quando filosofia, política e realidade começam ou terminam (Boddewyn et al., 1986). Todavia, havia intérpretes do trabalho que reconheciam méritos no pensamento do autor - mesmo décadas após a publicação do famoso artigo -, considerando os avanços que os mercados globais proporcionaram aos interesses capitalistas (Quelch & Deshpande, 2004; Tedlow & Abdelal, 2004).

A despeito de a teoria da globalização de mercados ter sido refutada ou abraçada em marketing, essas interpretações permaneceram nos campos de gestão de marketing, marketing internacional e até negócios internacionais. Tais apreciações críticas, entretanto, pouco abrangeram, em suas análises, uma perspectiva geopolítica mais ampla a respeito da teoria que localizasse em seu discurso a estrutura colonialista de poder associada à modernidade (Quijano, 2000, 2007) que ela promete proporcionar em escala global.

COLONIALIDADES ASSOCIADAS À TEORIA DA GLOBALIZAÇÃO DE MERCADOS

O texto “A Globalização de Mercados”, de Levitt, foi publicado em um momento em que o mundo experienciava a terceira fase da modernidade, liderada pelos EUA (Mignolo, 2011), marcada por um tenso período político-econômico-ideológico global ligado à Guerra Fria. Tratava-se, então, de um mundo polarizado entre modelos opostos de desenvolvimento: o capitalismo estadunidense e o comunismo soviético, que representava uma ameaça aos planos de hegemonia capitalista dos EUA (Alcadipani & Bertero, 2012). Entre as diversas estratégias utilizadas para tal propósito estava a de criar um discurso associado a desenvolvimento, a fim de promovê-lo globalmente como o parâmetro a partir do qual todos os países deveriam ser avaliados (Escobar, 1999). Esse discurso normativo, amplamente difundido no pós-Segunda Guerra Mundial, estabeleceu como ideal o desenvolvimento ocidental e teve como bases e diretrizes a ciência e a tecnologia. A premissa que regia tal discurso era de que a busca pela modernização era uma condição evolutiva inevitável para os países que almejavam o status de desenvolvido. Além disso, a ideia de que alguns povos - que compunham o recém-criado Terceiro Mundo - eram subdesenvolvidos contribuiu para que o conhecimento produzido com base nessas realidades fosse considerado não somente dispensável como também um obstáculo ao desenvolvimento (Escobar, 1999).

O artigo de Levitt se encaixa nesse contexto, criando uma narrativa em marketing de que a globalização de mercados levaria empresas a ajudarem economias internacionais a se desenvolverem (Levitt, 1983). Todavia, mais do que isso, a teoria de Levitt fazia parte de um processo de colonialidade do norte global (Quijano, 2000) cujos ideais perduram até hoje.

O fato de Levitt utilizar como recurso argumentativo a perspectiva de que os povos citados em seus exemplos são estranhos ao seu olhar ocidental, que necessitam ser alcançados pela modernidade - pois apresentam algum tipo de atraso -, mostra como o discurso do autor está absorto pela lógica de hierarquização racial inerente à colonialidade do poder (Quijano, 2000). Tais argumentos, as críticas a esse respeito em marketing e a nossa crítica decolonial serão descritas adiante.

Mostraremos, a seguir, como a pretensa superioridade com que Levitt enxergava as próprias premissas em relação a proposições alternativas e/ou à tentativa do autor em universalizar seu conhecimento para outros contextos é característica distintiva da colonialidade do saber (Lander, 2005). Ilustramos também como tal teoria foi concebida pelo campo teórico e prático e como a interpretamos com base em uma perspectiva decolonial.

E, por fim, ao defender a homogeneização de mercados, diante de uma suposta convergência de gostos e desejos do consumidor, Levitt reforça a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2008), pois pressupõe que a tal homogeneização ofuscará gostos e preferências baseadas nas ancestralidades e tradições locais em detrimento dos anseios de consumo modernos. A colonialidade do ser no discurso de Levitt, bem como os comentários de teóricos do marketing a respeito da homogeneização de mercados e as críticas decoloniais são aprofundadas em seção própria.

Colonialidade do poder na teoria da globalização de mercados: assimetria racial entre povos

Segundo Quijano (2000), com a colonização das Américas, iniciou-se um dispositivo colonial de poder baseado em dois critérios fundamentais: por um lado, todas as formas de trabalho, produção e exploração de mão de obra, que já operavam em torno do eixo do capital, passaram a ocorrer de maneira simultânea e sob intenso controle nessas colônias, assegurando o suprimento das demandas do mercado mundial. Por outro lado, a ideia de raça passou a ser utilizada, pela primeira vez na história da humanidade, para diferenciar estrutural, biológica e hierarquicamente conquistadores de conquistados.

A articulação entre raça e capitalismo compôs esse novo padrão de colonialidade do poder, de forma que o capitalismo moderno e o padrão de poder mundial eurocêntrico se ergueram e se mantiveram graças a uma distribuição racialista do trabalho e da exploração de mão de obra humana na colonização do continente americano (Mignolo, 2021). A classificação social da população mundial emergiu com esse evento histórico e, com isso, a ideia de raça foi usada para hierarquizar a população mundial, por meio da delimitação de papéis sociais, da limitação de recursos e da imposição do tipo de trabalho que os indivíduos deveriam desempenhar (Quijano, 2007).

A teoria sobre a globalização de mercados promovida por Levitt reforça estruturas racialistas entre povos eurocêntricos e não eurocêntricos discutidos na teoria de colonialidade do poder (Quijano, 2000), alimentando uma hierarquização racial entre sociedades. Por exemplo, para defender as corporações globais e como estas deveriam padronizar suas operações e marketing em mercados internacionais - dado que estariam oferecendo melhores negócios a seus consumidores além-mar -, Levitt (1983) lançou mão de definições racistas a respeito de “outros” povos que os colocou em posição de inferiorização com relação ao ideal eurocêntrico dele. Se tais indivíduos estão em um estágio de “atraso” em comparação com os povos dos países desenvolvidos, oferecer-lhes algo que os aproximariam da raça de seus pares eurocêntricos seria, então, benéfico a eles.

Em plena Guerra Fria, Levitt descreve como moradores da cidade soviética de Krasnoyarsk, onde “não há ruas pavimentadas e notícias são censuradas”, aproximam-se “furtivamente” de “viajantes ocidentais” a fim de oferecer-lhes “cigarros, relógios digitais e até as roupas que estão vestindo” (Levitt, 1983, p. 3). Mesmo em sociedades que seguem princípios capitalistas, mas cuja origem não é eurocêntrica (portanto, não são de uma raça “superior”), como os japoneses, Levitt os inferioriza quando alega que são originários “de um pequeno aglomerado de ilhas pobres em recursos, com uma cultura totalmente estranha e uma linguagem quase impenetravelmente complexa” (Levitt, 1983, p. 14). Não de forma diferente, o autor também reforça a “inferioridade” racial de povos brasileiros, ao indicar que, no país, “milhares de pessoas vão diariamente da escuridão pré-industrial baiana para cidades litorâneas explosivas, para instalar televisores em barracos de papelão superlotados ao lado de Volkswagens amassados” (Levitt, 1983, p. 3).

Para o autor, a inferioridade das raças também se refletiria nas religiões adotadas por tais indivíduos, referidas por Levitt como sendo “exóticas” ou “místicas”, tidas como atrasadas em termos religiosos (logo, coerente com o estado de espírito de seus seguidores), como no caso daquelas nas quais são feitas “oferendas de frutas e galinhas recém-abatidas aos espíritos macumbanos à luz de velas” (Levitt, 1983, p. 3), ou por suscitarem ira entre seus devotos: “Quem pode esquecer as cenas televisionadas durante as revoltas iranianas de 1979 de jovens em calças elegantes de corte francês e camisas de seda, portando armas modernas, sedentos por sangue em nome do fundamentalismo islâmico?” (Levitt, 1983, p. 3).

Tais elementos colonialistas da teoria de Levitt tendem a ser ignorados por aqueles que debatem o seu artigo. Quelch e Deshpande (2004, pp. 5-6), por exemplo, analisam que a globalização de mercados permitiu que corporações globais, lideradas por indivíduos eurocêntricos, proporcionassem o crescimento econômico em determinados países, mas admitem que também aumentou as assimetrias econômicas mundiais. Tal fato, portanto, levou líderes políticos em economias emergentes a condenarem essa forma de globalização, pois não lhes proporcionou os ganhos esperados. Para os autores, tais reações nada mais eram do que a procura por “um bode expiatório” para encobrir “seus próprios fracassos em proporcionar progresso econômico a seus cidadãos”. Se tais países não conseguiram alcançar o mesmo nível de desenvolvimento dos desenvolvidos, isso se deu em função de má gestão pública ou de pretensa superioridade das corporações que se aproveitaram dos avanços dos mercados globalmente, enquanto o atraso de povos não eurocêntricos atrapalhou-as nesse sentido.

Tedlow e Abdelal (2004), por sua vez, reconheceram que os argumentos de Levitt apresentam lacunas, principalmente quanto ao fato de existirem resistência cultural a tal globalização e de que mercados dificilmente são transformados em sua totalidade. No entanto, exaltam a consciência do pensador seminal das realidades citadas e das diferenças destas em relação à sua, de natureza eurocêntrica, e não se opõem à narrativa colonialista utilizada por Levitt ao se referirem a outros povos:

Levitt é um homem do mundo, bastante consciente dos conflitos que o marcam. Ele faz referência ao levante iraniano de 1979 que resultou na queda do xá, à guerra civil nigeriano-biafrana, à vida na Bahia no Brasil e a Krasnoyarsk na Sibéria. Mas embora as crenças possam diferir acentuadamente de uma nação ou região para outra, os padrões de consumo estavam convergindo (Tedlow & Abdelal, 2004, p. 13).

Ainda, vale destacar como S. Ramaparu, Timmerman, e N. Ramaparu (1999, p. 98) defendem como Levitt foi mal interpretado, pois “nunca promoveu a globalização a todo custo ou em todos os casos”. Os autores seguem o pensamento de Levitt quando citam como a adoção de estratégias de padronização/adaptação em mercados globais seriam influenciadas pelo “grau de sofisticação do consumidor” ao redor do mundo (S. Ramaparu et al., 1999, p. 101). Desse modo, quanto mais distante do ideal de desenvolvimento econômico ocidental, menos sofisticada seria uma sociedade e, portanto, menos suscetível ao consumo de produtos padronizados.

O pensamento de Levitt e de colegas na área de marketing estabelece uma diferenciação entre povos que sempre inferioriza os “outros”, os não eurocêntricos, com base em seu critério de superioridade racial. Em sua visão, a assimetria entre sociedades resulta do “atraso” apresentado por aquelas cuja origem é distinta da sua. Logo, é natural que aceitem a ideia de que levar a modernidade para tais povos seja uma forma de ajudá-los a sair dessa situação retardatária, argumentando que globalizar mercados é o melhor caminho para o desenvolvimento global.

Todavia, imaginar que povos tidos como atrasados precisariam de ajuda vinda do mundo eurocêntrico resulta em uma violência, pois deslegitima quem são, além de suas culturas e seus pensamentos (Dussel, 2000). Propor mudanças na forma como esses povos historicamente se desenvolveram os força a um deslocamento de suas realidades, como se isso fosse o melhor para eles. Mas quando isso ocorre, perdem suas identidades, pois não conseguem ser como os eurocêntricos, tampouco são aceitos por povos de tal origem como sendo seus iguais. Sua desumanização é, então, o seu final, pois passam a ser seres sem razão ou função, com histórias e culturas sem importância no mundo moderno (Fanon, 1965).

Os ideais de Levitt - apoiados por seus colegas - representam, então, aqueles do homem branco, dominador, do norte global, que vê nos outros que fogem ao seu perfil racial alguém “bárbaro”, que precisa ser eliminado, porque representa uma ameaça à sua existência ou que deve ser doutrinado, visto que desconhece o que seria a forma “correta” de humanidade (Mignolo, 2021). No caso, a proposta de Levitt “elimina” povos que não aderem à lógica de mercado, pois sugere que estes naturalmente ficariam isolados no mundo, sem acesso aos benefícios que essa forma de desenvolvimento proporcionaria a eles, além de doutriná-los, pois enfatiza a inadequação de determinados comportamentos de povos não eurocêntricos e busca “corrigi-los”, apontando como suas vidas podem ser melhoradas (ou, até “salvas”) ao se associarem à globalização de mercados.

Colonialidade do saber associada à teoria da globalização de mercados: superioridade de conhecimento eurocêntrico

O processo de colonização e o consequente estabelecimento de um sistema mundo moderno ocorreram às custas da opressão do pensar de populações colonizadas (principalmente, na América Latina), em um movimento de apagamento do conhecimento produzido localmente, estabelecendo a colonialidade do saber (Lander, 2005). Esses povos foram impelidos a aprender o que, na cultura eurocêntrica, julgava-se necessário, fazendo com que o colonizador pudesse exercer controle e poder sobre a sua forma de interpretar o mundo. Como resultado disso, foram reprimidas formas de produção de conhecimento dos colonizados, padrões de produção de sentidos e maneiras de expressão e de objetivação da subjetividade (Quijano, 2007).

Uma nova e hegemônica perspectiva do conhecimento foi sistemática e formalmente produzida. Alicerçada na ideia evolucionista da espécie humana, europeus passaram a julgar o seu conhecimento como evoluído/moderno em relação àqueles criados pelos demais povos do mundo, considerados inferiores e ultrapassados (Quijano, 2000). Assim, diversas dicotomias passaram a ser elaboradas pela perspectiva epistemológica eurocêntrica como primitivo-civilizado, mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno para diferenciar as distintas formas de conhecimento globais (Castro-Goméz, 2021).

Ao defender a teoria da globalização de mercados, Levitt (1983) estabelece um tipo de conhecimento originário do norte global que se tornou dominante em marketing. Sua aproximação com marketing e mercados com desenvolvimento em escala global fez com que o autor fosse capaz de fixar uma forma de pensamento dentro da área, pautada em uma visão capitalista dos EUA, que se sobressaiu, dificultando a possibilidade de outros conhecimentos em marketing surgirem, especialmente em contextos não eurocêntricos e que contestassem determinados princípios neoliberais (Kravets & Sandıkçı, 2013). Mesmo quando críticas foram feitas à sua forma de pensar, estas também foram realizadas dentro do quadro epistêmico fomentado por Levitt, apenas variando a maneira como percebiam que atividades de marketing em mercados globais promoveriam desenvolvimento (Boddewyn et al., 1986; Douglas & Wind, 1987; Kotler, 1986; S. Ramaparu et al., 1999). Afinal, conforme Levitt argumenta, a globalização de mercados “tem feito locais isolados e empobrecidos desejarem os encantos da modernidade” (Levitt, 1983, p. 1), fato este que supostamente “comprovaria” o quanto a sua teoria “se sustenta” (Levitt, 1983, p. 6).

Levitt (1983) estabelece a superioridade do seu pensamento em marketing como sendo o mais adequado para responder aos desafios do mundo globalizado ao afirmar que grandes empresas do norte global têm padronizado, de maneira efetiva, as suas ofertas em mercados internacionais para a alegria e o benefício de seus consumidores ao redor do mundo. Segundo o autor:

Os japoneses têm repetidamente adotado essa teoria, assim como Henry Ford com o Modelo T. Mais importante, seus imitadores também o fazem, incluindo empresas da Coréia do Sul (de aparelhos de televisão e construção pesada), da Malásia (de calculadoras pessoais e microcomputadores), do Brasil (de autopeças e ferramentas), da Colômbia (de vestuário), de Cingapura (de equipamento óptico) e, sim, até mesmo dos Estados Unidos (de copiadoras de escritório, computadores, bicicletas, peças fundidas). Europa Ocidental (de máquinas de lavar automáticas), Romênia (de utensílios domésticos), Hungria (de vestuário), Iugoslávia (de móveis) e Israel (de equipamentos de paginação) (Levitt, 1983, p. 6).

A suposta superioridade epistemológica da proposta de Levitt seria tanta que sua universalização seria mais do que esperada, inclusive, com evidências bem-sucedidas em todo o mundo que “comprovariam” o quão “correto” estava o pensador. Empresas que não aderissem a essa forma de pensar estariam, então, correndo perigo de ser ultrapassadas por suas rivais mais engajadas com a padronização de operações e marketing (Levitt, 1983). Esse pensamento tanto dominou a literatura de marketing (Dixon & Sybrandy, 2015) quanto direcionou o comportamento das altas gerências de multinacionais em adotar a estratégia de padronização de mercados, uma vez que esta poderia restaurar o controle para as sedes nos países de origem (Quelsh & Deshpande, 2004).

Todavia, o fato de o artigo de Levitt ter sido escrito de maneira provocativa despertou reações polarizadas nos diversos meios em que circulou (Quelsh & Deshpande, 2004; Tedlow & Abdelal, 2004). De acordo com o próprio Levitt:

O artigo conseguiu estimular muitos comentários. Ele fez isso sozinho. Foi só lá fora. O público estava criando um grande barulho. O público estava divulgando o que eu havia dito mais do que eu estava. Havia artigos de jornal, seminários, reuniões. Tornou-se quase moda falar sobre isso. O New York Times, o Washington Post e o Wall Street Journal publicaram artigos sobre o assunto ao longo de uma semana. Eles criaram muito furor, porque enfatizaram a ideia de globalização em contraste com as corporações multinacionais, que tentaram projetar seus produtos, sistemas de distribuição e comunicações para as características especiais de certos países e mercados (Greyser, 2004, p. 34).

As ideias de Levitt foram impactantes tanto no meio acadêmico quanto no meio empresarial (Salles, 1993) e foram interpretadas como uma tentativa de reorientar o pensamento corporativo estadunidense em direção ao mercado global em um momento em que os negócios desse país não apresentavam pujança no mercado internacional (Cunningham & Ferrell, 2015). Segundo Quelsh e Deshpande (2004, p. 34), Levitt foi bem-sucedido em expandir tal teoria, já teria revolucionado as práticas de marketing ao avalizar qualquer pensamento pró-homogeneização de mercados:

Na sala de reuniões corporativas, seu artigo de 1983 mudou fundamentalmente a maneira como o marketing era discutido. Antes de Levitt, o ônus invariavelmente recaía sobre os gerentes que defendiam produtos padronizados ou programas de marketing para provar seu caso. Depois de Levitt, o ônus recaiu sobre aqueles que defendiam a adaptação do marketing para mostrar como a despesa extra de customização resultaria em lucratividade extra. Mudar a forma como uma pergunta é feita pode ter um efeito profundo na prática. Este foi, talvez, o maior impacto do artigo de Levitt de 1983.

Assim, a despeito de existirem polêmicas sobre o conteúdo do artigo de Levitt, seja pelo fato de este ser contraditório em relação a conceitos anteriores cunhados pelo próprio autor (Dixon & Sybrandy, 2015, p. 375), seja por seus argumentos serem baseados no senso comum (Salles, 1993), essas ideias continuam sendo amplamente difundidas em diversos cursos voltados a negócios quase 40 anos depois (Open Syllabus, 2022).

Tais debates sobre a teoria de Levitt não consideram, todavia, que a fundamentação de uma episteme particular em marketing, conforme concebida pelo autor, pautada em uma visão capitalista de globalização de mercados tida como superior a quaisquer outras, é entendida como uma forma de colonialidade do saber (Lander, 2005). Ao argumentar em favor de sua perspectiva epistemológica, desconsiderando o que outras (especialmente, de contextos não eurocêntricos) teriam a questionar a respeito da expansão de mercados em escala global, Levitt estabelece a sua como a única passível de explicar adequadamente tal fenômeno. Por isso, também seria a única que poderia ser adotada globalmente em marketing, o que a tornaria “universalizável”.

Em consequência, povos do sul global seriam expostos somente a essa episteme modernista/colonialista em marketing sem imaginar que outras discussões a respeito da globalização de mercados poderiam existir (inclusive, no sul global) e ser contrárias à sua lógica, até porque os debates em marketing sob a ótica de Levitt também reforçam a argumentação de que os mercados são, sim, o melhor caminho para o desenvolvimento (Cunningham & Ferrel, 2015; Kotler, 1986). Isso levaria tais povos a reproduzirem a argumentação liderada por Levitt, somente reforçando a sua “validade” e o seu valor histórico e atual.

Entretanto, universalizar uma forma de pensamento originária de um contexto específico - ainda mais sendo o eurocêntrico - para outro, de características distintas, é problemático, dado que conhecimento é formado pelo indivíduo com base em seu locus (ou seja, o ambiente em que ele se insere) (Castro-Goméz, 2021). Naturalmente, haverá vieses em sua percepção, em razão de ser assim que ocorrem em sua realidade, mas que não necessariamente se apresentam da mesma forma em todas as demais. Especialmente, quando os diferentes loci possuem relações de poder, como as existentes entre o norte global e o sul global, os olhares do dominador a respeito do dominado são distintos daqueles dos subalternizados em relação aos seus opressores (Fanon, 1965).

Reconhecer, portanto, a incapacidade de universalização de conhecimento vindo do mundo eurocêntrico para o mundo não eurocêntrico leva povos desse segundo contexto a buscar suas próprias epistemes, a fim de interpretar os fenômenos globais que os afetam. É justamente isso que a noção de universalização tenta evitar, ao criar uma impressão, dividida entre diversos povos, de que somente aquele olhar existe ou é o mais “correto” (Lander, 2005). Talvez, em marketing, somente exista uma episteme aceita sobre a globalização de mercados, mas essa não deve ser entendida como a única ou a que mais sirva para explicar tal fenômeno, especialmente entre os povos do sul global.

Colonialidade do ser na teoria da globalização de mercados: convergência para uma forma de vida

Uma das consequências da racialização entre povos, proveniente do projeto colonial, foi a homogeneização da identidade de diversos povos, em um esforço de “colonialidade do Ser” (Maldonado-Torres, 2008). Um exemplo disso é o fato de o colonizador denominar simplesmente “negros” ou “pretos” as pessoas de diversas etnias sequestradas, da diáspora africana, para serem escravizadas nas Américas (Quijano, 2000). Assim, o legado da colonização submeteu tais povos à privação de suas identidades históricas em um processo de homogeneização de identidade e categorização dos sujeitos, que é uma maneira de retirar deles sua subjetividade. Essa imposição da subjetividade “refere-se ao processo pelo qual o senso comum e a tradição são marcados por dinâmicas de poder de carácter preferencial: discriminam pessoas e tomam por alvo determinadas comunidades” (Maldonado-Torres, 2008, p. 96).

Um dos principais argumentos de Levitt para defender a padronização de atividades operacionais e de marketing de empresas que se aventuram em mercados internacionais é a sua percepção (é dado destaque aqui para lembrar que o autor pouco apresenta dados para comprovar a sua interpretação dos fatos que narra) de que o gosto dos consumidores está convergindo, independentemente de sua origem ou de sua localização no mundo: “As necessidades e os desejos do mundo foram irrevogavelmente homogeneizados” (Levitt, 1983, p. 4), e “diferentes preferências culturais, gostos e padrões locais […] são vestígios do passado” (Levitt, 1983, p. 8). Por isso, o teórico insiste que empresas globais não deveriam aceitar lenientemente as diferenças culturais dos mercados: “Não defendo o desrespeito sistemático das diferenças locais ou nacionais. Mas a sensibilidade de uma empresa a essas diferenças não exige que ela ignore as possibilidades de fazer as coisas de maneira diferente ou melhor” (Levitt, 1983, p. 9).

Para o autor, tal homogeneização ocorre porque diferentes sociedades, especialmente aquelas do mundo não eurocêntrico, marcadas por tradições milenares surgidas tempos antes da modernidade eurocêntrica, estariam se transformando e se abrindo a experiências de vida vindas do desenvolvido e moderno mundo eurocêntrico. Consequentemente, tais povos passariam a buscar pelos mesmos tipos de bens e serviços que seus pares do norte global, o que somente não ocorre mais rapidamente em razão de ainda haver estruturas tradicionais nesses locais que tentam assegurar a manutenção de suas sociedades no passado:

Os mesmos países que pedem ao mundo que reconheça e respeite a individualidade de suas culturas insistem na transferência por atacado de bens, serviços e tecnologias modernas. A modernidade não é apenas um desejo, mas também uma prática difundida entre aqueles que se apegam, com paixão inabalável ou fervor religioso, a atitudes e heranças antigas (Levitt, 1983, p. 3).

Todavia, por mais que ainda exista resistência a tais transformações e a convergência de povos a um gosto comum, eurocentricamente “universal”, não haverá como parar tamanha “evolução”, pois, afinal, “o mundo está pronto e ansioso para o benefício da modernidade” (Levitt, 1983, p. 7), e, à medida que esses mundos se aproximam, mais “diferenças ancestrais e gostos nacionais […] vão desaparecer” (Levitt, 1983, p. 5). Aparentemente, o que está acelerando tal ocorrência é o fato de que produtos e serviços vindos do mundo eurocêntrico são bem aceitos por sociedades não eurocêntricas, fazendo com que, mesmo quando são apresentados pela primeira vez a tais povos, sua adoção seja imediata, dado que apetecem seus gostos, assim como o fazem com povos eurocêntricos:

Em todos os lugares, tudo fica cada vez mais parecido com todo o resto, à medida que a estrutura de preferências do mundo é implacavelmente homogeneizada. Considere os casos da Coca-Cola e da Pepsi Cola, que são produtos padronizados globalmente, vendidos em todos os lugares, e bem-vindos por todos. Ambos cruzam com sucesso multidões de papilas gustativas nacionais, regionais e étnicas treinadas para uma variedade de preferências locais profundamente arraigadas de sabor, consistência, efervescência […]. Em todos os lugares, ambos vendem bem. Cigarros também, especialmente os feitos nos Estados Unidos, anualmente fazem incursões globais em territórios anteriormente dominados por outras misturas, principalmente locais (Levitt, 1983, p. 4).

Os debates em marketing sobre a questão levantada por Levitt, de que o gosto dos consumidores em mercados globais está convergindo, argumentam que isso é questionável diante da diversidade de cultura existente entre os povos (Cunningham & Ferrell, 2015) ou ainda pelo fato de que existem produtos culturalmente sensíveis que, portanto, seriam mais difíceis de ser padronizados (S. Ramaparu et al., 1999). Mesmo entre nações desenvolvidas, haveria uma vasta diversidade no consumo per capita que não sustenta o argumento de que gostos e preferências estariam convergindo nos mercados globais (Dixon & Sybrandy, 2015).

Tedlow e Abdelal (2004, pp. 5-6), por exemplo, vão ao encontro de Levitt ao afirmarem que “embora as crenças possam diferir nitidamente de uma nação ou região para outra, os padrões de consumo estavam convergindo”. Todavia, não utilizam argumentos diferentes daqueles apresentados pelo teórico, pois alegam que até mesmo os que se posicionam contrários à modernidade “empregam os meios mais modernos para lutar contra a modernidade (Tedlow & Abdelal, 2004, pp. 5-6), como por meio da utilização de aeronaves, internet e celulares. A despeito de realizar ressalvas ao modelo de padronização de mercados proposto por Levitt, Sheth (2020), em análise a respeito da influência das mídias sociais sobre o marketing internacional, sugere que, com o advento das plataformas digitais, os desejos dos consumidores estão convergindo na contemporaneidade, fazendo com que os mercados globais e domésticos fiquem menos delimitados. Assim, a premissa de Sheth (2020) renova a homogeneização das formas de Ser proposta por Levitt (1983), pois toma como dado que plataformas digitais são consumidas de forma padronizada.

Tais debates, entretanto, não discutem como que, ao expressar seus pensamentos dessa forma, a respeito da homogeneização de gostos globalmente, Levitt reforça a colonialidade do Ser (Maldonado-Torres, 2008). Assim, desconsideram que gostos refletem as diferentes formas de viver de povos, e a convergência deles significa apagar experiências passadas enraizadas em seus locais de origem que constituem esses indivíduos. Qualquer convergência que Levitt preconiza, e seus intérpretes apoiam, é, na verdade, uma substituição de experiências endógenas por outras exógenas à constituição de povos não eurocêntricos, em uma tentativa de diferenciar formas de ser que supostamente seriam melhores do que outras, e, portanto, hipoteticamente mais desejadas do que outras (Quijano, 2000).

O pensamento de que povos não eurocêntricos desejariam se igualar em gosto a seus pares eurocêntricos remete à ideia de que os primeiros estariam dispostos a seguir voluntariamente um padrão de referência dos segundos, por entenderem que este é melhor do que o seu atual, local. De certa forma, o que isso sugere é que tais indivíduos estariam impondo a si mesmos um processo de autocolonização (Quijano, 2000), pois enxergam que somente buscando ativamente se igualar aos seus pares eurocêntricos é que estariam se desenvolvendo e alcançando um patamar mais elevado de ser.

Essa visão colonialista de Levitt e seus colegas estimula, portanto, as assimetrias relacionadas com as diferentes formas de Ser entre os mundos eurocêntrico e não eurocêntrico ao julgar como única a ser considerada “desenvolvida” a primeira realidade e os seus modos de viver específicos. Não há, em marketing, uma tentativa de perceber outras ontologias existentes no mundo, especialmente em contextos não hegemônicos, até porque a lógica dominante remete à ideia de que é nesse locus que são promovidas as melhores experiências de vida e, por isso, estariam passíveis de ser almejadas por todos. Assim, aqueles que não buscam tal forma de mimetismo são “atrasados”, “subdesenvolvidos”, sem considerar que talvez o caminho de desenvolvimento pessoal que tais povos buscam seja outro que não o hegemônico.

POR UMA DECOLONIZAÇÃO DAS REFERÊNCIAS EM MARKETING NO BRASIL

O fato de a teoria da globalização de mercados proposta por Levitt possuir elementos que remetem à colonialidade do poder não é uma surpresa, dado que se encontra desenvolvida dentro do âmbito de marketing, área que, por conta de sua origem e natureza eurocêntrica, é composta por princípios associados ao capitalismo, o que, por consequência, a aproxima de ideais colonialistas (Varman, 2019). Esse contexto resulta em a disciplina ser controlada por estruturas de poder do norte global, que determinam o que é conhecimento dentro da área e quais seriam as diferentes formas de Ser aceitas como tal. Levitt, portanto, é apenas um elemento (embora importante) dessa estrutura maior e, nessa condição, um reprodutor de tais colonialidades em suas exposições. Mesmo com tais conotações colonialistas, foi esse marketing eurocêntrico que foi universalizado globalmente, tornando Levitt mundialmente conhecido como um de seus principais cânones.

No Brasil, quando a disciplina de marketing foi introduzida nas universidades de administração, sua adoção ocorreu de maneira acrítica, o que fez com que todos os seus principais autores, especialmente os dos EUA, se tornassem nossas referências no que diz respeito à matéria (Boschi, Barros, & Sauerbronn, 2016). Pensadores locais presumiam que os estadunidenses haviam inventado algo de grande valia para os avanços mercadológicos globais, e que somente acadêmicos e praticantes dos EUA teriam um “dom natural” para desenvolver essa disciplina tida como tão importante (Richers, 1994). Por consequência, pouco se pensou em formas de cultivar marketing fundamentado na realidade brasileira, ou seja, com base em ontologias e epistemologias daqui.

Portanto, para que seja possível desenvolver um marketing no Brasil que contemple tais onto-epistemologias locais, que reflitam as complexas realidades da nossa sociedade e de sua história colonial, é necessária uma mudança de referências da disciplina no país, em um esforço de “giro decolonial” (Grosfoguel, 2007). Na prática, isso significa se afastar da ideia de que somente os autores eurocêntricos canônicos de marketing (como Levitt) e suas teorias (entre elas, a da globalização de mercados) deveriam ser nossas fontes para entender marketing no Brasil. Em substituição, conhecimentos criados por aqueles cujas vozes são silenciadas pela colonialidade da área, mas cujos pensamentos podem nos trazer ensinamentos mais adequados para discutir marketing no contexto brasileiro, deveriam ser buscados.

Não se está argumentando aqui que nossos olhares deveriam se virar dos autores estadunidenses para os de marketing do Brasil; embora isso seja um passo importante para o crescimento da nossa área localmente, não é o suficiente para garantir que iremos deslocar nossos saberes das bases eurocêntricas. É necessário, portanto, buscar conhecimentos subalternizados exteriores à área, que poderiam nos ajudar a criar mais consciência sobre como o marketing poderia ser desenvolvido aqui com menos assimetrias. Defende-se, então, que pensadores brasileiros, como Lélia Gonzalez e Ailton Krenak, que também debatem criticamente questões relacionadas com a globalização, o capitalismo e mercados, enfatizando seus efeitos nocivos sobre a nossa sociedade, sirvam de inspiração para nós pesquisadores e praticantes de marketing no Brasil, para que possamos aprender com eles e refletir sobre os caminhos que a área poderia tomar a partir de agora.

Lélia Gonzalez foi uma intelectual e feminista negra, pioneira nos estudos sobre a cultura negra no país, por meio dos quais refletiu a respeito da exclusão das mulheres (principalmente, as de cor) na sociedade brasileira (Gonzalez, 2020a). Seu pensamento, baseado em múltiplas perspectivas teóricas, explora como as estruturas colonialistas do capitalismo formaram as Américas, tendo como fundamentos “uma matriz de dominação sustentada pelo racismo” (Cardoso, 2014, p. 968). Diferentemente de Levitt, que acredita que a globalização de mercados capitalistas poderia trazer benefícios para todos, Gonzalez reflete que, por causa de tais estruturas associadas ao capitalismo, as sociedades americanas foram marcadas pelo racismo. Porém, no Brasil, nosso racismo é, segundo a autora, de natureza “disfarçada” (diferentemente dos EUA, por exemplo, que seria “aberta”), pois a miscigenação e a assimilação de diferentes raças à sociedade brasileira supostamente resultariam em uma “democracia racial”, que nada mais é do que uma fachada, pois esconderia as verdadeiras barbáries historicamente cometidas contra os negros no país (Gonzalez, 2020b). Gonzalez (2020c) contra-argumenta que, no país, há, na verdade, uma hierarquia racialista e patriarcal, que emergiu desde o começo da sociedade brasileira e que persiste até hoje, determinando as posições sociais, raciais e sexuais de cada indivíduo.

Gonzalez alerta que, como consequência de tal assimetria social, originada nas estruturas capitalistas racistas que moldaram as Américas, conhecimentos também foram racializados, sendo os únicos considerados válidos aqueles de origem branca, por exemplo, epistemologicamente eurocêntricos - os mesmos que servem de base para as teorizações de Levitt e que o autor reconhece como superiores. Formas de saber vindas de matrizes africanas, que teriam grande poder de explanação de fenômenos locais, especialmente para a população negra, foram então relegadas ao esquecimento, fazendo com que negros tivessem que recorrer a conhecimentos que não dizem respeito a suas vidas para tentar compreender suas realidades. Como efeito, as interpretações feitas com base em tais parâmetros de conhecimento branco sobre a cultura negra e o povo negro no Brasil distorcem o que estes são, sempre os desqualificando (Gonzalez, 2020c).

Partindo de outra onto-epistemologia que a de Gonzalez (mas ainda significativamente distante daquela de Levitt), o líder indígena, ambientalista e intelectual Ailton Krenak observa como as estruturas capitalistas nas quais a sociedade global se insere ocuparam o planeta inteiro e se infiltraram na vida humana, como Levitt defendia. Todavia, diferentemente do autor estadunidense de marketing, para Krenak (2020), esse processo foi feito de maneira descontrolada, resultando em uma alienação do homem em relação à terra, o organismo do qual somos constituídos e fazemos parte. Segundo Krenak (2019, p. 49), “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é um atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial”. Tal distanciamento do homem com a natureza resultou em um pensamento equivocado de que são formas de vida separadas, o que dá aos primeiros o “direito” de fazer o que quiserem com a segunda, pois seriam os seus “donos” em vez de meros elementos da terra. Os maus-tratos que o mundo capitalista globalmente infligiu ao meio ambiente levou o homem, então, a imaginar que seria possível reverter tal quadro e gerar crescimento de mercado de maneira sustentável, o que, para Krenak, nada mais é do que um “mito da sustentabilidade”, pois seria “inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (Krenak, 2019, p. 16).

Qualquer tentativa de retomada do processo de integração do homem com a terra precisaria, então, passar pelo abandono da forma capitalista antropocena de ver o mundo para valorizar o pensamento cosmológico no qual “tudo é natureza” (Krenak, 2020, p. 83). Imaginar tal transformação humana, entretanto, é difícil para o autor, pois o homem é moldado por um sistema de educação que alimenta as estruturas do capitalismo:

O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo. Para mim, isso não é educação, mas uma fábrica de loucura que as pessoas insistem em manter (Krenak, 2020, p. 101-102).

Dessa forma, cria-se um mundo de “epistemologia única, que insiste em negar qualquer outra observação sobe a possibilidade de o governo dos homens se organizar de outras maneiras que não essa estabelecida” (Krenak, 2021, p. 67).

Em marketing, diferentes autores vêm se engajando com questões sobre o racismo e o patriarcado que persistem na área, resultantes das raízes colonialistas capitalistas da disciplina (Francis, 2022; Gurrieri, 2021), além de alertar para a insustentabilidade de modelos de desenvolvimento associados ao capitalismo como condicionadores da evolução humana e do meio ambiente (Kemper, Hall, & Ballantine, 2019). Em sua visão, a maneira como o marketing foi formado e se desenvolveu sempre priorizou os interesses particulares das elites masculinas brancas do norte global, com a invisibilização das necessidades de outras demografias não hegemônicas, levando a diferentes formas de discriminação e à falta de alternativas epistêmicas dentro da disciplina. O marketing, portanto, parte de pressupostos ideológicos modernos que reforçam o abuso de poder e a imposição de cosmovisões ocidentais, de modo que nossas sociedades se pautem em valores que apoiam o consumismo, o racismo, o machismo, o patriarcado, o domínio de classe e a natureza como fator de produção acumulável, entre outros.

Considerando que há sensibilidade da área em relação a tais temáticas e que elas foram alvo de reflexões de Lélia Gonzalez e de Ailton Krenak, parece coerente imaginar que discussões dessa natureza sejam desenvolvidas no Brasil, visem a uma decolonização de saberes da área e priorizem os dizeres desses importantes intelectuais brasileiros em vez de outros pensadores estrangeiros. Como mostrado aqui, suas visões são originárias de loci distintos daqueles do qual Levitt advém, por isso possuem conexões com realidades subalternizadas que o marketing eurocêntrico pouco conhece (ou aceita).

De certa forma, o que se está propondo é quase uma antítese do marketing eurocêntrico capitalista defendido por Levitt, pois o que se cultiva aqui é um marketing que se paute no respeito à condição ética do ser humano (Gonzalez, 2020b), em particular das “vítimas inocentes” da modernidade (Dussel, 2006) (e sua capacidade de autocomposição, sem a imposição de padrões exclusivos de ser e saber), que permita pensar a vida de uma sociedade fundamentada nela própria e em suas particularidades, considerando suas necessidades e linguagem; em formas mercadológicas que aceitem a primazia da natureza, transformando nossa cosmovisão em uma mais harmônica e plural, em relação integral e constitutiva entre humanidade e meio ambiente (Krenak, 2020; Mignolo, 2019); e na educação crítica, que permita ao indivíduo criar um senso comum sobre si que não tenha no consumo a sua principal fonte de valor, mas, sim, a sua coletividade (Freire, 1987). Ao pensar no marketing com base em tais fundamentos, imagina-se ser possível desenvolver uma disciplina no Brasil menos assimétrica, mais consciente de seus erros e que reconheça o quanto “outros” conhecimentos, que não somente aqueles de contextos hegemônicos, podem ser ricos para o seu desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até hoje, o texto de Levitt sobre a globalização de mercados é referência em marketing, tanto no norte global quanto no sul global, o que mostra a sua importância como base teórica fundamental dentro da área. Embora sua teoria tenha sido criticada/debatida por outros autores em marketing (p. ex., Dixon & Sybrandy, 2015; Douglas & Wind, 1987; Kotler, 1986; Tedlow & Abdelal, 2004), sua leitura é uma que ignora a colonialidade presente na perspectiva de Levitt.

O entendimento de que há colonialidade na teoria de Levitt sobre a globalização de mercados bem possivelmente não é percebido por seus intérpretes em marketing porque também compartilham da visão do autor de que há diferenças entre raças, conhecimentos e formas de Ser ao redor do mundo, sendo os povos eurocêntricos vistos como superiores aos não eurocêntricos. Talvez esses autores, assim como Levitt, sequer consigam reconhecer o quanto reproduzem a colonialidade - e, com isso, não entendam o quanto estabelecem uma narrativa dominante dentro da área que exclui realidades onto-epistêmicas fora dos seus eixos hegemônicos -, pois dificilmente sofrem os efeitos que tal fenômeno gera em seu dia a dia.

De maneira diferente, para os povos não eurocêntricos, esse tipo de colonialidade é mais perceptível, pois está presente em seu cotidiano e é lembrado constantemente quando é negada a eles a possibilidade de se expressarem e se verem levando em consideração sua realidade subalterna. Justamente por causa dessa presença clara da colonialidade em sua experiência de vida, cabe a tais sociedades “do sul” denunciarem como suas equivalentes eurocêntricas ainda as colonizam, o que, inclusive, passa pelo questionamento de como os cânones da área de marketing e as suas epistemologias se relacionam com as realidades não hegemônicas de tais povos. Pois é de interesse das disputas interimperiais do norte global, em curso na contemporaneidade, a manutenção de um futuro imperial próspero às custas da negação de “histórias outras” do sul global (Faria & Cunha, 2022). Nesse caso, teorias hegemônicas, racialistas, que seguem incontestáveis, são instrumentos que impedem a reapropriação da teorização nesses contextos.

Considerando que a área de marketing é associada ao mundo eurocêntrico (Varman, 2018) e que a sua epistemologia é enraizada em tal realidade, é natural que os seus cânones sejam majoritariamente de homens brancos do norte global e que as suas principais teorias sejam cunhadas nesse contexto, com interpretação do mundo com base em tais parâmetros. Por entender, portanto, que o marketing precisa seguir esses padrões, os acadêmicos do sul global reproduzem os mesmos parâmetros localmente, mesmo que estes não digam respeito à sua realidade (Jafari, 2022). Dessa forma, distanciam-se de sua sociedade, pois não levantam questões, realizam pesquisas ou apresentam soluções que verdadeiramente ajudariam a resolver seus problemas (Varman & Saha, 2009).

Não seria o momento, portanto, de os acadêmicos do sul global pensarem de maneira diferente a respeito de sua academia de marketing? Seria possível pensar em uma academia de marketing do sul global, cujos cânones não sejam do norte global? É viável imaginar discussões em marketing fora do mundo eurocêntrico que contemplem teorias, tais como a perspectiva decolonial, que sejam mais adequadas para retratar a realidade não eurocêntrica, indicando os problemas presentes em tais contextos e propondo possíveis soluções?

Embora tais questionamentos remetam a mudanças que ainda pareçam distantes de nossa realidade acadêmica, já há movimentos na área de marketing nesse sentido, que buscam se apoiar em discussões originárias de loci de enunciação distintos daqueles do norte global (Bádéjo & Gordon, 2022; Rodrigues & Hemais, 2020; Sandikci, 2022, Varman & Saha, 2009). Com isso, levantam a possibilidade de que é possível pensar em marketing sem se pautar em uma epistemologia eurocêntrica.

O presente trabalho buscou se alinhar a tais discussões críticas, a fim de reforçar a necessidade de ter maior autonomia de pensamento no marketing de acadêmicos do sul global, com a esperança de que, assim, seja possível contribuir para que a nossa academia se torne ainda mais relevante para a nossa realidade.

AGRADECIMENTOS

O presente estudo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) (Processo: 404683/2021-5).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    12 Ago 2022
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