Open-access Frames de uma violência: uma leitura sobre as pressões para a inclusão da pauta da violência contra as mulheres nas políticas públicas brasileiras

Frames de violencia: una lectura sobre las presiones para inclusión de la agenda de violencia contra la mujer en las políticas públicas brasileñas

Resumo

O objetivo deste artigo é identificar e analisar as frames mobilizadas pelos movimentos feministas para tratar da violência contra as mulheres, bem como discutir suas influências nas políticas públicas. O referencial teórico e metodológico é o das frames (Snow & Benford, 1992). O corpus de pesquisa constitui-se de matérias publicadas nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, em períodos de tempo relacionados a três ações estatais de combate à violência contra a mulher: i) criação das delegacias da mulher, em 1985; ii) estabelecimento dos juizados especiais criminais, em 1995; e iii) aprovação da Lei 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha). Os resultados indicam que, ao longo dos períodos analisados, uma master frame, “violência contra a mulher”, ressoou na opinião pública e fez esta questão ser reconhecida como um problema pelo Estado, que estabeleceu medidas para seu enfrentamento.

Palavras-chave: Violência contra mulher; Movimentos sociais; Políticas públicas

Resumen

El objetivo de este artículo es identificar y analizar los frames movilizados por los movimientos feministas para hacer frente a la violencia contra las mujeres y discutir su influencia en las políticas públicas. El marco teórico y metodológico es el de los frames (Snow & Benford, 1992). El corpus de la investigación se compone de artículos publicados en los periódicos Folha de S. Paulo y O Globo durante los períodos relacionados con tres acciones estatales para combatir la violencia contra las mujeres: i) la creación de las comisarías de la mujer en 1985, ii) el establecimiento de tribunales penales especiales en 1995, y iii) la aprobación de la Ley 11.340 de 2006 (Ley Maria da Penha). Los resultados indican que a lo largo de los periodos analizados resonó en la opinión pública un master frame "violencia contra las mujeres", y este tema fue reconocido como un problema por el Estado, que estableció medidas para enfrentarlo.

Palabras clave: Violencia contra las mujeres; Movimientos sociales; Políticas públicas

Abstract

This article aims to identify and analyze the frames mobilized by feminist movements to address violence against women and discuss their influences on public policies. The theoretical and methodological framework comprises frames (Snow & Benford, 1992). The research material consists of articles published in the newspapers Folha de S. Paulo and O Globo during periods related to three state actions that sought to combat violence against women: i) the creation of the women’s police stations in 1985, ii) the Special Criminal Courts in 1995, and iii) the approval of Law 11.340, of 2006 (Maria da Penha Law). The results indicate that throughout the analyzed periods, a master frame, "violence against women," resonated in public opinion, and this issue was recognized as a problem by the state that established measures to confront the problem.

Keywords: Violence against women; Social movements; Public policy

INTRODUÇÃO

A inclusão do problema da violência contra as mulheres na agenda global dos direitos humanos foi uma das realizações de maior sucesso do movimento internacional feminista nas últimas três décadas. Em 1979, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, esse tema, apesar de aparecer nas discussões, não era parte integral do documento. Ao longo dos anos, porém, tornou-se pedra angular na luta pela igualdade de gênero, obrigando diversos países a adotar algum tipo de mecanismo ou política para endereçar essa questão.

Ratificada pela ONU em 1993, essa declaração define violência contra a mulher como:

[...] qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada (ONU Mulheres, 1993).

Na literatura, há várias nomeações para o fenômeno: violência doméstica, violência contra a mulher, mulheres em situação de violência, violência de gênero. Suely Souza de Almeida (2007) observa que os termos variam porque se referem a práticas diferentes, ancoradas em perspectivas teóricas diversas. Para ela, violência doméstica é uma noção espacializada que designa o locus da violência, o âmbito privado. Violência intrafamiliar é similar à primeira, mas, em vez de ressaltar o lugar em que ela ocorre, destaca sua produção e reprodução endógena, modalidade que acontece caracteristicamente no seio da instituição familiar. Já a categoria violência de gênero, a mais utilizada hoje, ressalta a emergência da violência em um contexto de relações socialmente construídas, cujo espaço de produção é societal e seu caráter, relacional. Por sua vez, violência contra a mulher destaca o objeto e não o contexto relacional de desigualdade de poder; como violência que só tem objeto e não sujeito, enfatiza a direção, o alvo, sendo o único termo a ressaltar de maneira inequívoca a mulher como o alvo de determinada agressão (Almeida, 2007). Por vezes, na literatura, encontramos violência de gênero e violência contra a mulher como termos sinônimos. Mas não são. Enquanto a primeira categoria refere-se a qualquer ato perpetrado contra a vontade de uma pessoa com base em normas de gênero e relações desiguais de poder, infligida contra mulheres, garotas, homens e garotos, travestis, pessoas trans etc. (The UN Refugee Agency [UNHCR], 2017); a segunda especifica que os sujeitos violentados são do sexo feminino. Neste texto, optamos pelo uso do termo violência contra a mulher, por acreditar que, ao ser designado, o objeto direciona a ação e, assim, possibilita pensar a questão da ação do Estado direcionada às mulheres. Nesta pesquisa, buscamos identificar e analisar as frames utilizadas pelos movimentos feministas para tratar da violência contra as mulheres e discutir suas influências nas políticas públicas brasileiras. Para tanto, analisamos textos publicados em dois jornais de grande circulação: Folha de S. Paulo e O Globo. “A escolha da abordagem teórica das frames justifica-se porque permite entender as dinâmicas dos movimentos sociais, os modos como estes influenciam os processos de policy making. Esse referencial permite focar nas diferentes descrições que os atores sociopolíticos oferecem sobre o problema e suas soluções” (Varloo & Lombardo, 2007, p. 32).

No Brasil, tem crescido os estudos que utilizam essa abordagem para a compreensão das dinâmicas internas e externas dos movimentos sociais (Alonso, 2009; Dowbor, 2012; Gohn, 1997; Nunes, 2013). No campo da administração e políticas públicas, já foi empregada por Fiabane, Alves, e Breláz (2014) sobre redes e movimentos empenhados no controle social dos representantes políticos; por Oliveira e Goés (2019) e por M. C. L. Santos, Gonçalves-Dias, Mendonça, e Teodósio (2010) para compreender como os catadores de materiais recicláveis mobilizaram diferentes repertórios para se posicionarem frente à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS); e mesmo a mobilização de movimentos de mulheres no cenário recente da expansão da internet (Prudencio, 2015).

Nessa perspectiva, todos os atores são importantes e colaboram em ações públicas e o Estado não é sinônimo de assunto público. Peter Spink (2016) defende uma abordagem policêntrica que entende como públicas não somente as ações governamentais, mas também as da sociedade, seja quando coloca pressão independente no governo, seja quando cria respostas coletivas alternativas a fim de atender suas próprias necessidades. Nesse sentido, o artigo contribui para uma discussão sobre as políticas públicas dirigidas ao enfrentamento da violência contra a mulher e de como ocorreu a institucionalização de um espaço de discussão de um problema como problema (Capella & Brasil, 2015), olhando sua construção na perspectiva discursiva, em vez de adotar uma visão instrumental que as enxerga como solução final para todos os problemas (Spink, 2016).

Farah (2004) já apontou a importância da aproximação dos movimentos feministas com o plano normativo e jurídico no país. O resgate documental e análises realizadas nos materiais dos dois jornais selecionados são capazes de demonstrar parte desta trajetória de aproximação, que, através das lentes de frames de ação coletiva, documental em mídias, destacam os aspectos estratégicos da mobilização e suas estruturas de oportunidades, ligando aspectos práticos a subjetivos do movimento com as ações estatais dos períodos analisados, no que concerne à violência contra mulher.

A linguagem, os conceitos e as categorias mobilizadas numa frame afetam a maneira como um assunto é descrito, dependendo das questões formuladas nos ciclos das políticas desses entendimentos. Frames são o ponto de partida para se compreender como uma situação é abordada antes de se tornar um problema e, depois, quando ele toma uma forma específica. Nesse sentido, a contribuição do trabalho, para além de trazer um novo olhar sobre a mobilização de mulheres contra a violência, também poder iluminar futuros estudos nas áreas de Administração Pública e Gestão Social. Como observaram Rosa e Mendonça (2010), para além de descrever processos de emergência de políticas públicas via discussão de oportunidades políticas, especialmente apontando variáveis político-institucionais, é preciso compreender, de forma mais ativa, o engajamento dos atores da sociedade civil e seus processos de framing. Além disso, é possível compreender a própria gestão social que ocorre nestes espaços, que “[...] implica em negociações e construção de significados sobre ‘coisas que devem ser feitas’ quando organizações de diferentes setores interagem (empresas, governos, sociedade civil), em um processo que não produz apenas bens ou serviços, mas também subjetividades e identidades” (Rosa & Mendonça, 2010, p. 656).

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

O conceito de frames é dinâmico e permite capturar duas qualidades relacionais do trabalho interpretativo realizado por agentes dos movimentos sociais: i) a concepção de ideologias e sistemas de crença como realizações interacionais que são salientadas por esse processo até se tornarem frames e ii) estruturas cognitivas que produzem ação coletiva e influenciam processos de framing subsequentes. Este último sugere uma relação recursiva entre os dois processos, ou seja, o framing salienta ou produz frames, possibilitando, por sua vez, o processo de framings subsequentes (Hunt, Benford, & Snow, 1994). Assim, é importante ressaltar que frames interacionais se diferenciam de frames de ação coletiva, os quais possuem três funções fundamentais: a mobilização de ação - fazer seus membros irem às ruas -; mobilização de consenso - converter observadores em membros -; e contramobilização - neutralizar seus adversários. Para que tais funções sejam de fato efetivas, uma frame de ação coletiva precisa de três componentes fundamentais, que Snow e Benford (1988) chamam de core framing tasks: um diagnóstico, um prognóstico e uma razão para se engajar, ou framing motivacional.

Um framing de diagnóstico envolve identificar um problema e atribuir culpa ou causalidade a um indivíduo, a um coletivo ou às suas estruturas. Um framing de prognóstico não somente sugere uma possível solução, mas também identifica estratégias, táticas e alvos, especificando o que precisa ser feito para transformar o problema identificado pelo framing em diagnóstico. Essas duas primeiras tarefas encontram-se no campo ideacional. Fundamental, o último framing é o motivacional e mobiliza também o campo emocional dos participantes do processo e possíveis membros. Ele tem a função de instigar a participação pela construção de vocabulários específicos, músicas, slogans, bandeiras e artefatos que representem o movimento e animem seus membros a continuar se mobilizando.

Esse processo recursivo entre frame e framing é especialmente importante se pensarmos no que Tarrow (1983) denomina de ciclos de protesto. Isso porque eles geram frames interpretativas que passam a ser mobilizadas por outros movimentos em outros ciclos, criando um “repertório interpretativo” (Benford, 2013). Por sua capacidade agregadora e universalidade, algumas frames são compartilhadas por grande número de movimentos, sendo, por isso, denominadas master frames (Snow, Rochford, Worden, & Benford, 1986).

Esse tipo de análise parte do princípio de que os problemas são construídos, existindo interpretações concorrentes sobre o que que eles são. Assim, suas soluções políticas estão inseridas na própria construção do problema (Bacchi, 1999). As frames são textos escritos e verbais, entendidos como comportamentos simbólicos e suas estruturas, que expressam comportamentos (conversas, discursos - como falas -, slogans e músicas) e representações visuais (fotos, desenhos e caricaturas), manifestados, em geral, de forma combinada. Desse modo, a análise crítica de frames, por vezes, acaba sendo mais descritiva, uma vez que detalha as frames de ação coletiva empregadas, seu papel e repercussão na sociedade. Snow (2012) afirma que elas contribuem para o trabalho de produção e interpretação de significados ao focar o que é relevante ou irrelevante quanto ao objeto, funcionando como mecanismos de articulação porque encadeiam vários elementos destacados que formam um conjunto específico de significados e reconfiguram a maneira como determinados objetos são vistos ou compreendidos em relação a outros objetos ou atores e atrizes.

Nessa perspectiva, este trabalho busca identificar as frames mobilizadas pelos movimentos feministas para tratar da violência contra as mulheres, a fim de entender de que forma (e se) a maneira como foram formuladas refletiu nas políticas públicas do Estado. Para tanto, formamos o corpus de pesquisa com base no conteúdo específico de dois grandes jornais do país, em intervalos de tempo distintos. O uso desse material como fonte de pesquisa sobre movimentos sociais deve-se às oportunidades de estudo que possibilita, uma vez que os dados dele extraídos permitem uma análise comparativa e histórica. Além disso, para alguns movimentos sociais em particular, são raras outras fontes (Earl, Martin, McCarthy, & Soule, 2004).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Escolhemos a Folha de S. Paulo e O Globo porque são jornais de circulação nacional e produzem notícias locais, cobrindo eventos em várias regiões do país. Para a montagem do banco de dados, partimos de três momentos institucionais que marcaram as ações de combate à violência contra as mulheres: a criação da primeira delegacia da mulher (em 1985), o estabelecimento dos juizados especiais criminais (1995) e a promulgação da Lei Maria da Penha (em 2006). Historicamente, esses eventos têm sido apontados como resultado das interações entre estatais e movimentos feministas para o combate à violência contra a mulher (C. M. Santos, 2010).

Considerando esse recorte, estabelecemos três intervalos temporais: imediatamente anterior e posterior aos dois primeiros eventos, de 1983 a 1987 e de 1993 a 1997, cada um deles cobrindo um período de cinco anos. O último intervalo, de 2004 a 2006, tem uma abrangência menor em virtude do foco na Lei Maria da Penha, tida como a maior conquista do movimento feminista no que diz respeito à violência contra as mulheres (Pinto, 2003). Esse recorte temporal foi estabelecido porque o processo de disseminação e ressonância de uma frame não acontece de maneira rápida, de modo que esses intervalos ajudaram a identificar as mudanças de registro que poderiam ter acontecido entre um momento e outro. Além disso, permitiram identificar as frames presentes em cada período.

Na seleção das matérias que compuseram o banco de dados, utilizamos os próprios mecanismos de busca dos acervos digitais de ambos os jornais. Os textos foram filtrados com os seguintes descritores: “violência contra a mulher”, “violência doméstica”, “mulheres em situação de violência”, “violência de gênero”, “delegacia da mulher”, “juizados especiais criminais”, “Lei Maria da Penha”. Os descritores foram escolhidos porque eram os principais termos utilizados na literatura que discute a violência contra a mulher no período estudado.

Os passos de seleção dos artigos incluíram a busca nos dois jornais e a montagem de um banco de dados. O primeiro filtro resultou em 344, 607 e 275 matérias, respectivamente, dos períodos 1983-1987, 1993-1997 e 2004-2006. Foram excluídos os textos não relacionados ao tema, como sinopses de filmes e livros, chamadas de programas de televisão e peças teatrais, anúncio de eventos não relacionados ao tema, que somente mencionavam os descritores, mas não discutiam a temática ou restringiam-se à divulgação de horário de funcionamento dos serviços. Nos casos em que um mesmo texto apareceu várias vezes sob diferentes descritores, foi contabilizado somente uma vez.

Após essa seleção, montamos um banco com 421 artigos, contabilizados os três períodos. No primeiro, localizamos 186 textos; no segundo, 165; e no terceiro, 61. Em seguida, realizamos a análise e em todos os anos buscamos identificar a frequência de “quem” era nomeado como perpetrador da violência e os “tipos de violência” nos jornais. Além disso, procedemos a uma análise qualitativa das matérias na qual todos os textos foram lidos e os principais temas abordados foram identificados. Essa análise permitiu identificar as frames que ressoaram nos textos: no recorte 1983-1987, foi a de reconhecimento; no de 1993-1997, a da penalidade; e de 2003-2006, a dos direitos humanos.

Quem ama não mata: frame de reconhecimento (1983-1987)

Nesse primeiro período, foram encontrados 186 artigos nos quais identificamos a presença de frame de reconhecimento, ou seja, um conjunto de ideias que possibilitaram a diversas organizações e grupos feministas apresentar o problema à opinião pública e pressionar o Estado a agir. O Quadro 1 a seguir mostra o número de artigos analisados em cada ano.

Quadro 1
Total de artigos analisados no período de 1983-1987

Nesse conjunto de textos, o diagnóstico do movimento foi o da opressão, uma vez que as mulheres eram vistas como “vítimas”. O prognóstico para superar a situação de violência apontava para a conscientização da “dominação masculina” como elemento fundamental para que atitudes pudessem ser tomadas. As feministas viam essa tomada de consciência como solução e estratégia de busca por justiça. Lutavam pelo reconhecimento de uma situação corriqueira na vida de milhões de mulheres, escolhendo a violência cometida por parceiro íntimo para representar essa necessidade de justiça, ao mesmo tempo que expunham o tratamento desigual dado à mulher pelo sistema legal.

O Gráfico 1 mostra “quem”, nas matérias, era frequentemente responsável pela violência contra a mulher. Embora em muitos textos a autoria da agressão não tenha sido especificada, o parceiro íntimo foi o mais citado, seguido de familiares, violência estrutural, desconhecido e Estado.

Gráfico 1
Quem comete a violência - 1983-1987

O Gráfico 2 mostra as principais formas de violência reportadas no período. Em primeiro lugar, a violência física (espancamento); em seguida, outras formas, como cárcere privado, acorrentamento, queimaduras e facadas, estupro e abuso sexual e homicídio.

Gráfico 2
Tipos de violência cometida - 1983-1987

Os artigos enfatizavam a violência física sofrida pela mulher apresentando dois elementos comuns: a evidenciação de um crime cometido e a luta contra a impunidade. Apesar de mencionada, a discriminação não era entendida como uma questão estrutural e institucional, mas perpetrada por homens. Havia um esforço para retirar o tema da esfera do privado e inserí-lo no espaço público, com tendência a valorizar a punição desses agressores pelo sistema judicial. Não podemos esquecer, porém, o contexto social e político do Brasil naquele momento. Em 1985, inicia-se o processo de redemocratização, após 21 anos de ditadura militar, cujos esforços se centravam na denúncia à violação dos direitos civis e formação de novos arranjos políticos. Os textos jornalísticos buscavam introduzir o tema da violência contra a mulher como um crime, reportando os dados e números coletados pelas organizações feministas de assistência às mulheres em situação de violência. Nesse cenário, a institucionalização do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF) em São Paulo, por Franco Montoro, por meio do Decreto nº 20.892, de 4 de abril de 1983, também foi amplamente noticiada, visto que representava o reconhecimento do Estado de que havia um problema no modo como as mulheres eram tratadas pela sociedade brasileira.

Panfletos e cartazes descreviam a mulher como oprimida e o homem como impune. Os elementos motivacionais criados pelas ativistas foram amplamente divulgados pela mídia de massa, reforçando, ante a opinião pública, a ideia de que as mulheres sofriam (e sofrem) um tipo específico de violência. No período, o slogan “Quem ama não mata”1 tornou-se palavra de ordem de todos os protestos e manifestações, assim como “Abaixo a violência contra a mulher” e “Os assassinos de mulheres serão condenados”. Nesse lastro, a organização não governamental SOS Corpo lançou a campanha “O silêncio é cúmplice da violência”, que também se tornou slogan das campanhas de conscientização das feministas.

A partir de 1985, os jornais passaram a publicar dados estatísticos coletados pelas organizações de atendimento às mulheres. Nas matérias, enfatizavam-se a seriedade do tema e a necessidade de reconhecimento do problema pelo Estado. Em 1985, por meio da Lei nº 7.353, de 29 de agosto de 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao Ministério da Justiça. Os conselhos municipais, estaduais e o nacional passaram a debater e construir políticas públicas para as mulheres. Além disso, juntamente com entidades como o SOS Mulher2, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os sindicatos buscaram sensibilizar a população sobre o tema. Em pronunciamento oficial, Ruth Escobar, então presidenta do CNDM afirmou que os trabalhos imediatos do órgão estavam empenhados em criar creches e coibir a violência contra a mulher (O Globo, 1985, p. 5). No mesmo ano, o conselho lançou a campanha “Combate Nacional à Violência Contra a Mulher”, abordando principalmente espancamento e estupro no seio familiar (Figura 1).

Figura 1
Propaganda oficial

Em agosto de 1985, foi criada em São Paulo a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), especializada no atendimento de crimes cometidos contra a mulher (Pasinato & C. M. Santos, 2008). Muitas matérias passaram a focar o atendimento prestado pela DDM - que surgiu com rapidez em outras capitais - e a produzir dados próprios sobre as ocorrências registradas. Em pouco mais de um ano após a inauguração da primeira unidade, 26 similares já funcionavam em 16 estados e no DF. Juntas, essas DDMs registravam 14 mil queixas (Folha de São Paulo, 1986).

Após esse período inicial, as matérias passaram a focar o desconhecimento da mulher sobre seus direitos, indicando que as delegacias atuavam mais como centros de orientação e aconselhamento do que como aparelho repressor. A novidade que essas unidades traziam estava na ampliação do conhecimento institucional sobre os crimes cometidos, produzindo dados e instaurando uma consciência de gravidade da questão, o que permitia à sociedade lidar com ela mais diretamente. Com espaço para reportar e obter acompanhamento específico, as denúncias jornalísticas contra a violência aumentaram.

A DDM foi endossada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher CEDM como a principal política pública do setor, enfatizando a necessidade de abertura de mais unidades em todo o país (O Globo, 1985, p. 5). O CNCF lançou peças de propaganda sobre os perigos do silêncio, veiculando em diversos canais da mídia nacional os slogans: “O aprendizado da submissão começa cedo e gera a desigualdade e a violência contra as mulheres” e “É mais fácil ignorar. Mas é muito mais violento. A violência contra a mulher só gera mais violência” (Figura 1).

Do total de matérias publicadas no período, 26 traziam declarações ou pontos de vista de feministas, discutindo o aumento de queixas e o reconhecimento da situação como um crime contra a pessoa e não contra os costumes, como até então era entendido. Pode-se dizer que o objetivo das ativistas, naquele momento, era dar o reconhecimento necessário à questão da violência contra a mulher mobilizando as pessoas a agir: o inimigo que precisava ser combatido era a invisibilidade e o silêncio. Nesse contexto, o uso da linguagem em termos de crime foi importante na medida em que a solução do problema estava inscrita em sua formulação (Bacchi, 1999). Maria Amélia Azevedo Goldberg (1985, p. 4), então coordenadora da Comissão de Combate à Violência Contra a Mulher do CNCF definiu a visão do órgão “[...] violência expressa através de abuso sexual, psicológico ou físico, praticado por um homem, com o explícito propósito de subjugar a mulher a sua vontade”.

A criação da DDM foi um movimento importante para estabelecer como crime a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, a admissão pelo Estado de que as delegacias convencionais eram machistas. Mais que isso, de que o machismo era institucional.

Em termos de ressonância, pode-se dizer que a frame de reconhecimento conseguiu atingir a população e impactou a vida de milhares de brasileiras e brasileiros. Ela serviu para dar forma a uma situação e transformá-la em um “grave problema”. No entanto, redundou em uma frame essencialista e universalista, que partia de uma construção binária de gênero. O custo político de se escolher esse conjunto de ideias foi o silenciamento de vozes e pautas dentro do próprio movimento feminista. De acordo com Ferree (2003), ao renunciar às questões transversais, essa frame ressoou na sociedade brasileira da época produzindo ações especificas e deixando de fora outros esquemas interpretativos, como a violência contra lésbicas e negras. A violência contra a mulher passou a ser sinônimo de violência conjugal e sexual, de modo que a mera conscientização da sua existência era a solução para seu enfrentamento.

O alargamento da questão: o frame da penalidade (1993-1997)

Neste segundo período foram identificados 165 artigos, sistematizados por ano (Quadro 2).

Quadro 2
Quantidade total de artigos analisados no período 1993-1997

É importante destacar que a Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas, em Pequim, ocorreu em 1995, ano de registro do maior número de textos nos jornais analisados. Nesse momento, a questão central nas matérias não era mais o reconhecimento de que as mulheres sofriam violência. A luta visava à reforma no Código Penal Brasileiro, para que se alterasse o modo como a legislação entendia os crimes envolvendo o sexo feminino. A utilização nas matérias de termos como “desigualdade” reforçava a ideia de estrutura e de privilégios que colocava as mulheres abaixo dos homens na escala hierárquica. Assim, identificamos nos textos a frame da penalidade, na qual o diagnóstico estava no caráter estrutural e relacional do problema e o prognóstico, na “justiça” para as mulheres. Seu foco era a necessidade de legislação específica, o aumento da participação feminina na política e na educação, maior conscientização acerca da violência e ampliação de direitos. A influência dos organismos internacionais também estava muito presente, sobretudo o discurso de que esse era um problema global que merecia ser levado a sério como um tema público.

No Gráfico 3, é possível perceber que o parceiro íntimo, a despeito de ainda ser o mais frequentemente responsável pela violência, havia se equiparado com outros agressores, em comparação com o período anterior. Outro dado importante diz respeito ao aparecimento de um novo responsável, o homem conhecido, geralmente companheiros de trabalho ou empregadores, amigos da família, que circula na esfera social da mulher que sofre violência.

Gráfico 3
Quem comete a violência - 1994-1997

No que tange ao tipo de violência, foi possível perceber uma ampliação da discussão nos dois jornais. A violência física e sexual seguia como a mais citada, mas outras formas de violência, como as ocorridas no trabalho e o assédio sexual, tornaram-se pautas.

Gráfico 4
Tipos de violências cometidas - 1993-1997

Em 1993 o grupo Globo lançou uma campanha nacional em seus jornais impressos e emissoras de TV, encorajando as denúncias de crimes cometidos contra a mulher. Sob o slogan “A impunidade aumenta a violência. Não se deixe agredir. Denuncie” (O Globo, 1993, p. 15), havia duas linhas argumentativas: uma criticava o sistema judicial por não punir os agressores e ressaltava a necessidade de combater a impunidade; a outra buscava reforçar (de maneira infeliz) o papel proativo da mulher na relação. Era uma mudança no tom das reportagens e na maneira de tratar a mulher que sofria violência - ainda como “vítima”, mas também como responsável pela própria agressão.

Nos textos que apresentavam dados institucionais sobre o fenômeno, duas novas informações passaram a ser recorrentes: a do alcoolismo e do desemprego como agravantes da violência e a do número de casos em que as mulheres não davam prosseguimento às queixas. As matérias enfatizavam, também, que eram poucos os casos em que o inquérito resultava em prisão, muitos dos quais geravam somente multas. Havia uma reclamação explícita em relação à defasagem do código penal, que, como já dito, era ultrapassado porque entendia a situação como crime contra os costumes, à exceção daqueles cometidos por tutores.

Então, um novo tema entrou na pauta: a discussão sobre assédio sexual e estupro no ambiente de trabalho - apresentado em seis matérias. Dentre os maiores desafios, os textos apontavam a coleta de provas e o prosseguimento processual das queixas, tendo em vista a posição hierárquica do agressor, social ou no trabalho, e os riscos de perda do emprego pela mulher.

Outra questão que começou a aparecer naquele período envolvia a saúde sexual feminina. Sobre isso identificamos três textos, um sobre aborto, outro sobre planejamento familiar e um terceiro sobre turismo sexual.

Em maio de 1996, a Folha de S. Paulo publicou as principais propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que preconizava:

Proteger os direitos das mulheres

Curto Prazo

Programa Nacional de Combate à Violência contra a Mulher; centros integrados de assistência para mulher sob risco de violência; políticas de combate à violência doméstica sexual.

Médio Prazo

Regulamentação do inciso XX do artigo 7ª da Constituição, que trata das proteções da mulher no mercado de trabalho; revogação de normas discriminatórias na legislação infraconstitucional; legislação de combate à discriminação com base em gênero; perspectiva de gênero na educação e treinamento de funcionários públicos e currículos escolares.

Longo Prazo

Implementação de leis que asseguram a igualdade de direitos das mulheres e dos homens (Folha de São Paulo, 1996, p. 48).

Essa foi a primeira menção ao termo “gênero” identificada nas matérias pesquisadas que não se referia à violência, mas, sim, ao combate à discriminação e inclusão dessa perspectiva nos currículos escolares. É importante destacar que o termo “violência doméstica” como indicador de atos de violência cometidos contra mulheres no ambiente doméstico seguiu sendo usado com grande frequência.

Foram identificados seis textos jornalísticos que apoiavam explicitamente os movimentos ou ideário feministas. Existia, na época, um grande número de ONGs especializadas que se dedicavam ao tema, sendo uma pauta frequente a sua parceria com os diversos órgãos públicos criados - e reativados, no caso do CNCF - pelo governo da época.

Em 1997 uma matéria do Globo citava o documento “Estratégias da igualdade”, do CNDM, que apresentava planos de ação do governo federal, com medidas práticas, de políticas públicas e legislação, para implementar os compromissos assumidos na Conferência de Pequim, em 1995. Nesse momento já começavam a aparecer a insatisfação das feministas com os Juizados Especiais Criminais e as exigências de mudança no referencial dos programas. Os movimentos reivindicavam recortes mais inclusivos nas políticas públicas:

As mulheres reivindicam a reformulação das delegacias, em virtude da criação dos juizados especiais cíveis e criminais, bem como a integração da perspectiva de raça nos programas relacionados com a violência doméstica e sexual. A maioria das mulheres espancadas e violentadas é negra e mestiça (Alves, 1997, p. 4).

É interessante observar que já havia uma demanda feminista pelo reconhecimento da interseccionalidade entre raça e gênero nos casos de violência contra a mulher. Como síntese desse período, podemos dizer que as ativistas pressionavam para que o fenômeno fosse entendido como um problema público, de responsabilidade do Estado. Essa luta se desenrolava em dois sentidos. O primeiro, focado no aspecto legal, reivindicava uma mudança no ordenamento jurídico que tirasse o problema da esfera privada e o tratasse como um evento que tinha consequências graves para a vida pública. O segundo sentido visava mudar a visão das mulheres quanto à violência, de modo a garantir apoio e suporte para que elas pudessem sair dessa situação.

O diagnóstico ainda era o mesmo: os homens cometiam violência contra as mulheres, mas, agora, sob o refinamento da lente de gênero, perspectiva que explicitava que o fenômeno estava intimamente associado a um sistema cuja estruturação garantia a impunidade dos agressores. Embora os diversos tipos de violência aparecessem nos dois jornais, os mais frequentemente reportados eram aqueles que aconteciam no ambiente doméstico. Neles o responsável era o parceiro íntimo e as violências mais comuns ainda eram o espancamento e o estupro. O prognóstico era mobilizar essas mulheres a lutarem por seus direitos, pela tomada de consciência de que aquela situação era errada, pois, de forma contrária, ao se calarem, tornavam-se cúmplices da violência.

Houve um esforço das feministas e de integrantes do governo para tratar a questão como uma violação aos direitos humanos. E, apesar das inúmeras reportagens que tratavam do aumento da violência contra as mulheres, o tom era positivo, com relatos de conquistas e providências que estavam sendo tomadas. Ainda que não houvesse muitas notícias sobre as manifestações reivindicatórias feministas, como no período anterior, as ativistas estavam presentes na cena pública atuando nas ONGs e mesmo nas instituições governamentais. Então, houve uma ampliação das ações do governo federal em colaboração com o movimento.

Nessa frame, embora a perspectiva de gênero trouxesse novas questões, como a discriminação e a luta por igualdade, que viabilizaram o elemento estrutural das relações, a discussão sobre racismo era incipiente e a homofobia e outras formas de violência sofrida pelas mulheres não eram objeto de discussão.

A internacionalização do problema: o frame dos Direitos Humanos (2004-2006)

Neste último período, foram identificados 61 artigos. No Quadro 3, os artigos estão organizados segundo o ano em que foram publicados.

Quadro 3
Quantidade total de artigos analisados no período 2004-2006

Seguindo a tendência iniciada no momento anterior, a violência contra a mulher passou a ser entendida como um problema internacional, complexo, a atingir diferentes esferas da vida e os direitos humanos, devendo ser erradicada pela via das ações integradas. A lente de gênero acentuou a ênfase na estrutura social, e a luta passou a ser pelo reconhecimento do enfrentamento do fenômeno como responsabilidade estatal. Foi o período de institucionalização de políticas e órgãos dirigidos às mulheres, como a implementação do Plano Nacional de Políticas para Mulheres e a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, pelo governo federal.

No Gráfico 5, é possível identificar os perpetradores de violência que apareciam com maior frequência nas matérias.

Gráfico 5
Quem comete a violência - 2004-2006

Como nos períodos anteriores, o parceiro íntimo ainda era o principal perpetrador da violência. A diferença estava no fato de que as matérias passaram a incluir a questão da reincidência das agressões e, desse modo, as mortes anunciadas. O descontentamento com a abordagem do problema pelos juizados especiais aumentou, evidenciando um clamor por legislações mais rigorosas.

Assim alguns dos principais pontos da violência contra mulher abordados pela mídia no período eram : a) a criação e atuação de órgãos governamentais que tratavam da questão da mulher; b) a participação dos organismos internacionais e o trabalho desenvolvido em torno do tema - especialmente Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Internacional do Trabalho (OIT), ONU e a Organização dos Estados Americanos (OEA); c) a feminização do HIV/aids; e d) o aparecimento de grupos reflexivos para homens agressores.

O Gráfico 6 mostra que a violência física seguida do estupro ainda aparecia mais frequentemente. Nesse período, porém, o foco das discussões sobre saúde da mulher deixou de ser o aborto e passou a ser as doenças sexualmente transmissíveis e o planejamento familiar.

Gráfico 6
Tipo de violência cometida - 2004-2006

As matérias sobre violência sexual destacavam o aumento no número de casos e a tendência de crescimento de denúncias feitas pelas mulheres. Assim como ocorrera anteriormente com o tema da violência física, essas matérias também destacavam a ineficácia da lei em lidar com essas mulheres e punir seus agressores. Em um extenso editorial, que resgatava a história de Maria da Penha Maia Fernandes, que inspirou e nomeou a Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, o jornal O Globo mostrou que 91% dos brasileiros enxergavam como “muito grave” a agressão de mulheres por seus companheiros e maridos (Helena, 2005, p. 17). Apesar de não associada à saúde feminina, a violência contra a mulher passou a ser amplamente discutida na área. Naquele ano a OMS lançou relatório que indicava que a população feminina brasileira estava “[...] mais suscetível a sofrer violência de conhecidos, em casa, do que de estranhos” (O Globo, 2005, p. 34).

Duas reportagens extensas anunciaram a promulgação da Lei Maria da Penha, no dia 7 de agosto de 2006. Reconhecida como fruto da luta do movimento de mulheres e de diversas organizações da sociedade civil, um dos textos ponderava:

[...] é preciso criar mecanismos de enfrentamento, como varas criminais e locais de acolhimento às vítimas da violência. Ver a lei sancionada depois de tanta luta não deixa de ser uma vitória contra a violência doméstica, familiar e até psicológica’ coloca uma das coordenadoras do Fórum de Mulheres de Pernambuco (Fontenelle, 2006, p. 7).

Os esforços para que essa violência fosse punida, muito evidentes nesse período, estavam centrados na tese de continuidade das discussões iniciadas no período anterior. Houve, porém, uma mudança importante na concepção do fenômeno e das ferramentas para combatê-lo. O diagnóstico reconhecia que a violência era culturalmente produzida e reificada, indicando a existência de um elemento estrutural que deveria ser considerado. A luta anterior contra a impunidade colocara na pauta pública a necessidade de instrumentos jurídicos para enfrentar o problema, bem como de políticas públicas que garantissem os direitos das mulheres (Farah, 2004; B. R. M. Santos & Rezende, 2020). Já o prognóstico postulava que esse papel não cabia somente à mulher, uma vez que essa violência era uma questão de direitos humanos. Assim, a solução do problema estaria nas mãos da sociedade como um todo, e a ferramenta para seu enfrentamento era a (re)educação de ambas as partes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde as décadas de 1970 e 1980, o tema da violência é abordado como um dos maiores problemas enfrentados pela população feminina. Nesse sentido, pode-se dizer que, devido às pressões realizadas pelo movimento feminista, houve uma transnacionalização do debate sobre as desigualdades de gênero. O ano de 1975, intitulado pela ONU como ano internacional da Mulher, foi uma das estratégias utilizadas para fomentar esse debate no Brasil e no mundo. Além disso, as conferências e fóruns internacionais, dos quais participaram muitas mulheres brasileiras, possibilitaram traçar estratégias locais e regionais de luta contra as desigualdades. O movimento feminista trouxe pluralidade ao discurso, permitindo que o tema fosse abordado por diversas perspectivas. As primeiras mobilizações contra o fenômeno giravam em torno do assassinato de mulheres e da impunidade de seus parceiros íntimos. Nos anos 1990, com a consolidação do processo de redemocratização do Brasil e a expansão do feminismo, os debates passaram a girar em torno da conceitualização da violência e de como (e se) outras categorias deveriam ser incluídas nessa definição.

Considerando as definições de Snow e Benford (1992), entendemos esse fenômeno como uma master frame, já que articula um conjunto de ideias genéricas sobre “violência” e “mulher”. Porém identificamos também que ela é do tipo restrita, uma vez que disponibiliza um repertório pequeno de definições que tomam a violência contra a mulher como violência conjugal e familiar, olhada somente de uma lente de gênero. De baixa discricionariedade interpretativa para movimentos e organizações da sociedade civil, essa visão não permite tratar o tema de maneira interseccional ou levar em conta outras formas de violência (como a simbólica). De maneira alguma isso quer dizer que questões não tenham sido tratadas pelos movimentos, mas é preciso admitir que seu alcance foi muito mais restrito, não atingindo da mesma maneira a opinião pública.

A grande maioria dos textos jornalísticos analisados neste estudo relatava violências (assassinato, estupro e/ou espancamento), políticas públicas de combate ao problema e estatísticas sobre ele. A análise nos permitiu perceber que, embora as categorias “violência” e “mulher(es)” tenham sido alargadas para acomodar outras concepções, o tema foi entendido de maneira restrita, como parte de uma relação binária e que tinha na violência conjugal e familiar sua maior expressão. Essa construção, certamente, sofreu alterações ao longo do tempo, mas, ainda assim, seu processo de construção impacta sobremaneira o modo como a violência contra a mulher é retratada contemporaneamente e, por conseguinte, a sua solução.

Em um primeiro momento, o ponto principal parecia dar o devido reconhecimento à violência especificamente cometida contra pessoas do sexo feminino, ao tirá-la da esfera do privado e torná-la pública. O fenômeno certamente tornou-se visível porque as queixas e demandas foram ouvidas pelo Estado. Depois, quando a visibilidade havia sido conquistada, a luta foi pelo reconhecimento da gravidade desses eventos. Nesse lastro, foram debatidos mecanismos legais para punir aqueles que cometiam a violência e, ao se admitir a importância de transformar um problema individual em problema público, foi oferecido às mulheres em situação de violência um sistema jurídico capaz de lidar com suas queixas.

Posteriormente, no momento em que o vocabulário dessa luta passou a ser outro, com a entrada em cena da frame dos direitos humanos, dois aspectos ficaram evidentes: a violência contra as mulheres era uma questão social e mundial, portanto, a responsabilidade deveria ser de todas e todos; segundo, aqueles mecanismos jurídicos utilizados para lidar com a questão não eram mais (ou nunca foram) suficientes; punir somente não bastava, era preciso coibir o problema.

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  • 1
    Utilizada pela primeira vez em 1980, em ato público em Belo Horizonte, para protestar contra a morte de Maria Regina de Souza Rocha e Eloísa Ballesteros (Fleury-Teixeira & Chrystus, 2019).
  • 2
    O SOS Mulher lançou o “dossiê da impunidade”, que relatava 14 assassinatos e agressões a mulheres menores de idade cujos agressores ficaram impunes (O Globo, 1985, p. 1).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2022
  • Aceito
    27 Ago 2022
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