Resumo
Este artigo tem como objetivo compreender como os terreiros de candomblé se organizam como resistência perante o racismo religioso. Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa etnográfica em um centro de candomblé da nação Ketu Axé Oxumaré, localizado em Belo Horizonte (MG). Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de narrativas. Os resultados sugerem que o candomblé é percebido pelos integrantes da casa de santo como uma estratégia, uma organização de sobrevivência não só física, mas também de estilos de vida subalternos. Trata-se da resistência da cultura afro-brasileira, uma resistência anticolonial que promove, por meio da religião, a pertença política de afirmação da negritude; de uma organização decolonial de sobrevivência, de manutenção e, sobretudo, de perpetuação de tradições e modos de vida nos terreiros negligenciados, aviltados, negados e subalternizados pela colonialidade.
Palavras-chave:
Decolonialidade; Resistência; Candomblé; Etnografia; Racismo religioso
Resumen
Este artículo tiene como objetivo comprender cómo los terreros de candomblé se organizan como resistencia al racismo religioso. Para ello, desarrollamos una investigación etnográfica en un centro de candomblé de la nación Ketu Axé Oxumaré, ubicado en Belo Horizonte (MG). Los datos de las entrevistas se sometieron al análisis narrativo. Los resultados sugieren que el candomblé es percibido por los miembros de la casa de santo como una estrategia, una organización no solo para la supervivencia física, sino también para los estilos de vida subalternos. Se trata de la resistencia de la cultura afrobrasileña, una resistencia anticolonial que promueve, a través de la religión, la pertenencia política de afirmación de la negritud. Es una organización decolonial de sobrevivencia, mantenimiento y, sobre todo, perpetuación de tradiciones y modos de vida en terreros desatendidos, envilecidos, negados y subalternizados por la colonialidad.
Palabras clave:
Decolonialidad; Resistencia; Candomblé; Etnografía; Racismo religioso
Abstract
This article aims to understand how candomblé terreiros organize themselves as resistance to religious racism. Therefore, we developed an ethnographic research in a Candomblé Center of the Ketu Axé Oxumaré nation, located in Belo Horizonte (MG). Data from the interviews were submitted to narrative analysis. The results suggest that candomblé is perceived by the members of the casa de santo as a strategy, an organization for not only physical survival but also for subaltern lifestyles. It is about the resistance of Afro-Brazilian culture, an anti-colonial resistance that promotes, through religion, the political belonging of affirmation of blackness. It is a decolonial organization of survival, maintenance, and, above all, the perpetuation of traditions and ways of life in neglected, debased, denied, and subalternized terreiros by coloniality.
Keywords:
Decoloniality; Resistance; Candomblé; Ethnography; Religious racism
INTRODUÇÃO
O processo de marginalização das religiões de matriz afro-brasileira ainda é muito evidente no Brasil, onde há um alto grau de violência contra seus membros, símbolos e instituições perpetrada tanto por parte da população em geral quanto pelo próprio Estado. As agressões, os ataques e a destruição de locais de culto dessas religiões e de todos os seus símbolos ocorrem cotidianamente. Ainda que a intolerância religiosa seja considerada crime no Brasil desde a segunda metade do século XX (Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. (1997). Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm
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), o número de denúncias e notificações nas delegacias têm aumentado bastante nos últimos anos, mesmo considerando as subnotificações e as dificuldades de registro dessas ocorrências, muitas vezes caracterizadas como “vandalismo” (Fonseca & Adad, 2016Fonseca, A. B; & Adad, C. J. (2016). Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares. Brasília, DF: Secretaria Especial de Direitos Humanos.). No estado de São Paulo, por exemplo, as denúncias de intolerância religiosa triplicaram nos últimos cinco anos, e cerca de 62% das vítimas declararam professar uma fé de matriz afro-brasileira como umbanda ou candomblé (Preite, 2022Preite, W Sobrinho. (2022, abril 18). Denúncias de intolerância religiosa triplicam em 5 anos no estado de SP. UOL. Recuperado de https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/04/18/intolerancia-regiliosa-estado-de-sao-paulo-umbanda-candomble-evangelicos.htm
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).
Os terreiros das religiões de matriz afro-brasileira são vistos como um espaço marginal que integra corpos marginalizados, por isso é possível perceber como eles, normalmente, são construídos e geridos longe dos centros urbanos, já que ainda são considerados algo incômodo à sociedade. Assim, é possível perceber que os processos históricos de chegada, existência e permanência de algumas religiões em território brasileiro influenciam, até os dias atuais, os espaços pertencentes a diferentes grupos religiosos na sociedade, em que as religiões cristãs possuem grande visibilidade na área urbana, o que é expresso pela monumentalidade de seus templos e edificações, enquanto as religiões de matriz afro-brasileira estão ocultas ou caracterizadas de forma discreta nas cidades (T. F. Nascimento & Costa, 2019Nascimento, T. F. & Costa, B. P. (2019). O terreiro de religiões de matriz africana como espaço marginal e possível à vivência de pessoas travestis. Caderno Prudentino de Geografia, 3(41), 25-36.). Ou seja, ao contrário das igrejas cristãs, por exemplo, que ocupam pontos de destaque na geografia urbana, os terreiros de candomblé são marginalizados, o que é compatível com o lugar social da religião na sociedade.
Ademais, constituído numa matriz de conhecimento e paradigma civilizatório, as religiões de matriz afro-brasileira inserem-se numa tradição de saberes locais, subalternos, que coexistiram e têm resistido à imposição de uma cultura cristã eurocêntrica. Como aponta a perspectiva decolonial, tais religiões questionam profundamente todo o terreno epistemológico ocidental branco, no qual foram formulados as teorias e os conceitos de gênero, raça, sexualidade, economia e humanidade (Torres, 2021Torres, I. L. S. (2021) Candomblé: expressões decoloniais e contribuições político-epistêmicas. In Anais do 10º Congresso Internacional de Diversidade Sexual, Étnico-racial e de Gênero, Campina Grande, PB. Recuperado de https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/74992
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), como será exposto mais adiante. Esse mesmo entendimento é visto por Quijano (2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO., p. 118), já que, de acordo com o autor, “na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista”. Fato é que o padrão da modernidade capitalista eurocêntrica, fundado na imposição de uma hierarquização racial/étnica/de gênero/econômica/política/cultural da população em nível global, continua inferiorizando os povos que supostamente estão fora desse centro (Grosfoguel, 2008Grosfoguel, R; & Mignolo, W. (2008). Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa, 9, 29-37. Recuperado de https://doi.org/10.25058/20112742.337
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). O candomblé, por exemplo, dadas suas raízes africanas, se constitui como conhecimento alternativo à matriz do pensamento colonial. A transmissão do conhecimento dentro de seus terreiros produz outra sociabilidade, sendo essa religião uma alternativa à matriz colonial do poder (Nunes, 2018Nunes, V. H. B. (2018). Ilê Oju Odé: o candomblé na perspectiva decolonial. In Anais Eletrônicos do 2º Congresso Internacional Epistemologias do Sul, Paraná, PR.).
Ademais, o candomblé vai de encontro às estruturas patriarcais, de classe e de raça de longa duração que constituem a modernidade capitalista, além de resistir e enfrentar agentes privilegiados, tentando mostrar uma realidade cada vez mais estratificada. Tenta-se criar, assim, dinâmicas contrarrevolucionárias, contrárias a um campo engajado pela maioria (Faria, Abdalla, & Guedes, 2021Faria, A; Abdalla, M. M. & Guedes, A. L. (2021). Podemos coconstruir um campo de gestão/administração engajado com a maioria. Revista Organizações & Sociedade, 28(98), 549-581. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-92302021v289804PT
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).
Desse modo, a história dos povos de terreiro no Brasil revela a necessidade de eles estarem em constante condições de resistência e sobrevivência, seja diante das investidas do Estado, seja dos ataques decorrentes do conservadorismo, preconceito e racismo religioso de parte da sociedade brasileira. Integrar uma religião de matriz afro-brasileira no Brasil é ato de resistência. É nos terreiros que as comunidades, predominantemente negras, conseguem se organizar, propor atuações e melhorias locais e construir uma sólida rede de cooperação. A possibilidade da continuação desses espaços se segura na resistência de seus grupos, para que, assim, seja possível buscar alternativas que contribuam para barrar o racismo e convencionalismos que revoam essas religiões, principalmente no espaço do terreiro (T. F. Nascimento & Costa, 2019Nascimento, T. F. & Costa, B. P. (2019). O terreiro de religiões de matriz africana como espaço marginal e possível à vivência de pessoas travestis. Caderno Prudentino de Geografia, 3(41), 25-36.).
Considerando esses processos e a necessidade cada vez mais proeminente de problematizarmos o contexto organizacional de religiões nos estudos em gestão e organizações, já que esse tema ainda é pouco discutido na área (Enoque, A. F. Borges, & J. F. Borges, 2016Enoque, A. G; Borges, A. F; & Borges, J. F. (2016). O sagrado e o profano nas organizações contemporâneas. Revista Pretexto, 17(2), 28-41. Recuperado de https://doi.org/10.21714/pretexto.v17i2.2610
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; Flausino, Medeiros, & Valadão, 2018Flausino, V. S; Medeiros, C. R. O; & Valadão, V. M Jr. (2018). Poder e religião: a doutrina espírita no modo de pensar dos gestores de Uberaba/MG. Revista ADM.MADE, 22(1), 58-76. Recuperado de http://dx.doi.org/10.21714/2237-51392018v22n1p058076
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; Tracey, Phillips, & Lounsbury, 2014Tracey, P; Phillips, N; & Lounsbury, M. (2014). Taking religion seriously in the study of organizations. In P. Tracey, N. Phillips; & M. Lounsbury (Eds.), Religion and organization theory (pp. 3-21). Bingley, UK: Emerald Group Publishing Limited.), este estudo foi desenvolvido com o objetivo de compreender como os terreiros de candomblé se organizam como centros de resistência perante o racismo religioso. Para tanto, desenvolvemos um trabalho etnográfico em um centro de candomblé da nação Ketu Axé Oxumaré, localizado em Belo Horizonte (MG), com o uso de diferentes técnicas de pesquisa de campo, como observação participante, fotos, vídeos, participação em grupo de WhatsApp, entrevistas e práticas incorporadas. Foram criados um diário etnográfico e um caderno de impressões, escritos após cada final do dia em que um dos autores esteve no local pesquisado. Além disso, foram gravados reuniões e eventos do centro de candomblé e realizadas 30 entrevistas presenciais com outros membros do terreiro. Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de narrativas (Bastos & Biar, 2015Bastos, L. C; & Biar, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, 31(4), 97-126. Recuperado de https://doi.org/10.1590/0102-445083363903760077
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).
COLONIALIDADE E SUA ARTICULAÇÃO COM AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS COMO R-EXISTÊNCIAS
Nos últimos anos, apesar do crescente interesse na academia em torno de teorias decoloniais, sua relação concreta com organizações religiosas e o papel formativo destas na constituição do sistema modernidade/colonialidade ainda não foram sistematicamente teorizados (Yountae, 2020Yountae, A. (2020). A decolonial theory of religion: race, coloniality, and secularity in the Americas. Journal of the American Academy of Religion, 88(4), 947-980. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfaa057
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). Inicialmente, vale ressaltar que existem diferenças de significado entre os termos “colonização”, “colonialismo” e “colonialidade”. Apesar da intrínseca relação entre esses processos, a colonização e o colonialismo são fenômenos históricos datados e que se expressaram em diversos territórios durante as expansões imperiais. Já o conceito de colonialidade pode ser compreendido, neste artigo, como a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental que ultrapassa as particularidades do colonialismo histórico, buscando explicar a continuidade de formas coloniais de dominação e exploração, já que elas não desaparecem com a independência ou com o fim do colonialismo (Mignolo, 2017Mignolo, W. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18. Recuperado de https://doi.org/10.17666/329402/2017
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; Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO.). É aquilo que foi instaurado pela violência colonial e que perdura até os dias de hoje, como buscaremos caracterizar o racismo religioso ao longo desta seção.
A noção de colonialidade retoma as ideias do sociólogo peruano Anibal Quijano (2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO.), que desenvolveu o conceito de colonialidade para compreender o contexto histórico da desigualdade na América Latina com base em três eixos: do poder, do saber e do ser. A colonialidade do poder pode ser compreendida como um processo estruturante do sistema-mundo moderno/colonial que traduz a dinâmica de poder empregada na organização, divisão e hierarquização das sociedades, auxiliando o entendimento de diferentes formas coloniais de dominação e exploração para além da colonização (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO., 2013Quijano, A. (2013). El trabajo. Argumentos, 26(72), 145-163.). Nesse contexto, crucial na análise de Quijano (2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO., 2013Quijano, A. (2013). El trabajo. Argumentos, 26(72), 145-163.) é o uso colonial ou a invenção da raça como uma categoria de classificação social e hierarquização racial dos povos em inferiores e superiores, com a finalidade de manter a dominação, por meio do controle do trabalho dos povos subalternizados. A raça funciona, então, como a principal ferramenta para demarcar a diferença colonial.
Nesse contexto de colonialidade do poder, as populações dominadas e subalternizadas têm sua identidade submetida à hegemonia eurocêntrica, que define o que é conhecimento. Assim, articulada no eixo da colonialidade do poder, temos a colonialidade do saber (Lander, 2005Lander, E. (2005). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO.), que se refere à dominação hegemônica do pensamento eurocêntrico, que implica a mutilação epistemológica ao negar e invalidar conhecimentos não eurocêntricos.
Já a colonialidade do ser pode ser compreendida como “a experiência vivida da colonização e seu impacto na linguagem” (Maldonado-Torres, 2007Maldonado-Torres, N. (2007). Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In S. Castro-Gómez; & R. Grosfoguel(Coords.), El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global (pp. 127-167). Bogotá, Colombia: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar., p. 130, tradução nossa). Ou seja, denota a internalização da subalternidade e inferioridade do sujeito não europeu. Assim, com a colonização da América e do Caribe, foram impostas classificações sociais cuja identidade racial foi associada a hierarquias, lugares e papéis sociais que respondiam a um padrão de dominação dos colonizados a serviço do homem ocidental, em que a identidade europeia - especificamente o homem heterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu - é considerada superior à dos povos e das culturas não europeias (vistos como os “outros”), consolidando a cultura hegemônica europeia (Grosfoguel, 2008Grosfoguel, R. (2008). Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 115-147. Recuperado de https://doi.org/10.4000/rccs.697
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). A construção dessa visão de hierarquização e superioridade da Europa e dos europeus garante e legitima vários tipos de violência, como racismo, imperialismo e visões dogmáticas do outro (Said, 2007Said, E. W. (2007). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, SP: Editora Companhia das Letras.), especialmente daqueles situados no extremo oposto dessa representação do ser, na exterioridade colonial, que passam a ser silenciados e subalternizados.
Para Dussel (2000Dussel, E. (2000). Europe, modernity, eurocentrism. Nepantla: Views from South, 1(3), 465-478.), Mignolo (2000Mignolo, W. (2000). Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledge, and border thinking. Princeton, NJ: Princeton University Press.) e Maldonado-Torres (2014aMaldonado-Torres, N. (2014a). AAR Centennial roundtable: religion, conquest, and race in the foundations of the modern/colonial world. Journal of the American Academy of Religion, 82(3), 636-665. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfu054
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, 2014bMaldonado-Torres, N. (2014b). Race, religion, and ethics in the modern/colonial world. Journal of Religious Ethics, 42(4), 691-711. Recuperado de https://doi.org/10.1111/jore.12078
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), além da raça como um elemento constitutivo fundamental da colonialidade que molda as relações sociais, o surgimento do imaginário moderno/colonial da Europa deve ser articulado ao lado da noção de religião, sobretudo porque ambas foram formadores na invenção das Américas como o “outro” da Europa. Nesse sentido, o impacto da religião nas Américas coloniais se estende para muito além da conhecida história das atividades missionárias do Cristianismo. Como pontuado por Yountae (2020Yountae, A. (2020). A decolonial theory of religion: race, coloniality, and secularity in the Americas. Journal of the American Academy of Religion, 88(4), 947-980. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfaa057
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, p. 3, tradução nossa), “desde o primeiro encontro colonial, a religião tem servido como a espinha dorsal metafísica da governança colonial, que não foi uma mera imposição de estruturas políticas e normas culturais, mas uma ruptura cosmológica”.
Portanto, a colonialidade implica não apenas sacrificar e negar o outro em termos de raça, gênero e sexo, por exemplo, mas também como o não cristão, considerado o outro. De acordo com Lundell (2020Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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), para compreender o racismo religioso no Brasil hoje e a noção do país como nação católica, é importante entender a herança colonial e os preconceitos históricos de longa data no país, legitimados pela eugenia, que posicionou o Cristianismo católico como a coroa da evolução religiosa. A autora ainda destaca que a intolerância e violência contra religiões de matrizes afro-brasileiras ocorrem no Brasil desde os tempos coloniais, quando os africanos escravizados não tinham o direito de cultuar as próprias tradições, ao mesmo tempo em que foram obrigados a aprender a língua portuguesa, os costumes europeus e o catolicismo, a única religião oficialmente aceita à época. Naquele período, todas as expressões religiosas de diferentes origens africanas foram reprimidas e proibidas, embora fossem cultivadas escondidas sob a alcunha católica. Mesmo após a abolição da escravatura e a nova constituição brasileira já na década de 1890 declarar o Brasil um estado laico, as expressões religiosas afro-brasileiras ainda foram criminalizadas e perseguidas pela própria polícia até meados da década de 1960 (Lundell, 2020Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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; Silva, 2014Silva, V. G. (2014). Religion and black cultural identity. Roman Catholics, Afro-Brazilians and Neopentecostalism. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 11(2), 210-246. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1809-43412014000200008
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).
Assim, a colonialidade, em seus diversos eixos, se materializa no imaginário social, estabelecendo uma hierarquização também das expressões religiosas, em que aquelas cristãs - como o Cristianismo católico, oficialmente reconhecido e legitimado no Brasil - são vistas como superiores, ao passo que inferioriza e subalterniza outras religiões, principalmente as de matrizes afro-brasileiras (Lundell, 2020Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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; W. F. Nascimento, 2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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), como é o caso do candomblé. Nesse sentido, Franco e Dias (2021Franco, C; & Dias, T. B. (2021). Religião, direitos humanos e interseccionalidades: reposicionando a categoria “religião” no debate interseccional. Estudos de Religião, 35(2), 309-330. Recuperado de https://doi.org/10.15603/2176-1078/er.v35n2p309-330
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) afirmam que podemos considerar a religião como marcador interseccional que, ao mesmo tempo em que legitima e reproduz formas de opressão, se firma, no contexto das interseccionalidades, como lócus no qual se manifestam marcas da subalternidade inter-relacionadas com elementos como raça, gênero, classe, nacionalidade, entre outros, sendo terreno fértil para a proliferação de insurgências contra-hegemônicas.
Para W. F. Nascimento (2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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), a subalternização e inferiorização das religiões de matriz afro-brasileira ocorrem em virtude de elas não corresponderem ao estatuto euroetnocêntrico da cristandade, na tentativa violenta de extirpar o diferente (o outro) do convívio social e até mesmo como uma punição para tentar submeter o outro aos valores e às crenças impostos pelos contextos sociais hegemônicos. Desse modo, além de inferiorizadas, as religiões afro-brasileiras foram também exotizadas e demonizadas por serem crenças não cristãs ou não associadas à cultura europeia, o que, de certo modo, serviu e ainda serve como justificativa “divina” para perseguir, violentar e tentar aniquilar tais expressões religiosas no país.
O autor ainda acrescenta que a inferiorização e a violência contra expressões e pessoas ligadas a religiões afro-brasileiras também advêm do racismo, já que esses cultos são constituídos predominantemente por pessoas negras e formados por elementos africanos e indígenas. Por isso que, segundo W. F. Nascimento (2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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) e Nogueira (2020Nogueira, S. (2020). Intolerância religiosa. São Paulo, SP: Pólen.), muito da violência física e simbólica exercida contra pessoas de religião de matrizes afro-brasileiras não deve ser considerado apenas intolerância religiosa, mas manifestações do racismo religioso, pois está fundamentado na colonialidade, que racializou e hierarquizou pessoas, conhecimentos, crenças, regiões e modos de vida. A própria exotização e demonização das religiões afro-brasileiras seriam, muitas vezes, também uma consequência do racismo, em virtude da colonialidade. Ou seja, o racismo religioso tem base na criação colonial da categoria raça no continente americano como estratégia de dominação de povos escravizados, como visto muito no Brasil escravista. O eurocentrismo, ao criar uma dualidade de mundo, civilização (europeu) versus barbárie (povos colonizados), promoveu fortes heranças no imaginário social brasileiro que marcaram até hoje a religiosidade de origem afro com a estampa da “raça” inferior e bárbara (N. V. E. Fernandes, 2017Fernandes, N. V. E. (2017). A raiz do pensamento colonial na intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Revista Calundu, 1(1), 117-136. Recuperado de https://doi.org/10.26512/revistacalundu.v1i1.7627
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).
Assim, o racismo religioso caracteriza as ações de discriminação/intolerância contra as religiões afro-brasileiras, uma vez que a africanidade das práticas vinculada ao contexto histórico colonial racista é uma das principais motivações das ações praticadas (Sanz, 2012Sanz, W. D. C. (2012). Discriminação, preconceitos e intolerância. In C. C. P. Moraes, A. S. Lisboa; & L. F. Oliveira (Orgs.), Educação para as relações étnico-raciais (2a ed., Cap. 6, pp. 245-285). Goiânia, GO: FUNAPE.).
Grosfoguel (2016Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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) aponta que o racismo religioso foi o primeiro elemento racista do sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista, constituído no decorrer do século XVI e antes mesmo do “racismo de cor”. De acordo com o autor, na época da conquista das Américas, os colonizados já eram classificados e hierarquizados pelos colonizadores europeus como “povos com religião ou sem religião” ou “povos com alma ou sem alma”, sendo aquelas pessoas que não tinham religião classificadas como sem alma e, portanto, não seriam humanos, mas animais. Como resultado, a Igreja e o Estado imperialista espanhol escravizaram vários povos indígenas, uma vez que assumiram a ideia de que eles não tinham alma, assim, a Igreja deveria cristianizá-los. Posteriormente, com a escravização dos povos africanos, o racismo de cor complementou - ou vagarosamente substituiu - o racismo religioso (Grosfoguel, 2016Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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).
Neste trabalho, entendemos racismo religioso como a projeção da dinâmica do “racismo de cor” às expressões africanas e indígenas presentes em religiões de matrizes afro-brasileiras, por meio do qual se discriminam determinadas religiões (W. F. Nascimento, 2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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). Para Nogueira (2020Nogueira, S. (2020). Intolerância religiosa. São Paulo, SP: Pólen., p. 123), “o racismo religioso quer matar existência, eliminar crenças, apagar memórias, silenciar origens”.
Diversos estudos evidenciam o racismo religioso e as diferentes formas de violência contra as religiões afro-brasileiras atualmente em nosso país (ver, por exemplo, Cerqueira & Boaz, 2021Cerqueira, G. M; & Boaz, D. N. (2021). Religious racism in Brazil: introduction. Journal of Africana Religions, 9(2), 250-258. Recuperado de https://doi.org/10.5325/jafrireli.9.2.0250
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; F. B. M. Fernandes, 2013Fernandes, F. B. M. (2013). Assassinatos de travestis e “pais de santo” no Brasil: homofobia, transfobia e intolerância religiosa. Saúde em Debate, 37(98), 485-492.; W. F. Nascimento, 2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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; Lui, 2008Lui, J. D. A. (2008). Os rumos da intolerância religiosa no Brasil. Religião & Sociedade, 28(1), 211-214. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0100-85872008000100011
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; Lundell, 2020Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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; Miranda, 2020Miranda, A. P. M. (2020). “Terreiro politics” against religious racism and “christofascist” politics. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 17, e17456. Recuperado de http://doi.org/10.1590/1809-43412020v17d456
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; Santos, 2009Santos, E. F. (2009). O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador, BA: EDUFBA.; Sousa, 2021Sousa, V. C. (2021). The religious persecution of casa do rei e senhor das alturas. Journal of Africana Religions, 9(2), 262-267. Recuperado de https://doi.org/10.5325/jafrireli.9.2.0262
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). F. B. M. Fernandes (2013Fernandes, F. B. M. (2013). Assassinatos de travestis e “pais de santo” no Brasil: homofobia, transfobia e intolerância religiosa. Saúde em Debate, 37(98), 485-492.), por exemplo, aponta a violência letal contra travestis e homens homossexuais ligados às religiões afro-brasileiras no Brasil. Lui (2008Lui, J. D. A. (2008). Os rumos da intolerância religiosa no Brasil. Religião & Sociedade, 28(1), 211-214. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0100-85872008000100011
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), Lundell (2020)Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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e Miranda (2020)Miranda, A. P. M. (2020). “Terreiro politics” against religious racism and “christofascist” politics. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 17, e17456. Recuperado de http://doi.org/10.1590/1809-43412020v17d456
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descrevem o aumento acentuado da discriminação contra pessoas de religiões afro-brasileiras promovido por igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Sousa (2021)Sousa, V. C. (2021). The religious persecution of casa do rei e senhor das alturas. Journal of Africana Religions, 9(2), 262-267. Recuperado de https://doi.org/10.5325/jafrireli.9.2.0262
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pontua como um terreiro de candomblé em Salvador (BA) foi assediado por um morador vizinho, que apresentou queixas fictícias ou exageradas às autoridades, usando o poder do Estado para apoiar seu racismo religioso. W. F. Nascimento (2017)Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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também evidencia atitudes preconceituosas, assassinatos, terreiros invadidos, depredados e incendiados, pessoas agredidas física e moralmente e a destruição de símbolos divinizados e afirma que o racismo religioso é a principal causa do aumento da violência no país contra religiões afro-brasileiras.
É por isso que as religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, podem ser consideradas resistência anticolonial de comunidades religiosas na América Latina (Nunes, 2018Nunes, V. H. B. (2018). Ilê Oju Odé: o candomblé na perspectiva decolonial. In Anais Eletrônicos do 2º Congresso Internacional Epistemologias do Sul, Paraná, PR.; Sansi & Parés, 2012Sansi, R; & Parés L. N. (2012). The multiple agencies of Afro-Brazilian religions. Religion and Society: Advances in Research, 3(1), 76-94. Recuperado de https://doi.org/10.3167/arrs.2012.030105
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; Santos, 2009Santos, E. F. (2009). O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador, BA: EDUFBA.; Yountae, 2020Yountae, A. (2020). A decolonial theory of religion: race, coloniality, and secularity in the Americas. Journal of the American Academy of Religion, 88(4), 947-980. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfaa057
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), pois, cotidianamente, resistem cultural e politicamente à colonialidade, que continua operando para silenciá-las, estigmatizá-las e subalternizá-las. W. F. Nascimento (2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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) afirma que não somente a problemática do racismo, como também o caráter da resistência - ao racismo, à colonialidade e ao sexismo - são essenciais para entender a violência contra territórios e pessoas que se vinculam às religiões de matrizes afro-brasileiras.
Em outro estudo, W. F. Nascimento (2016Nascimento, W. F. (2016). Olojá: entre encontros - Exu, o senhor do mercado. Das Questões, 4(1), 28-39. Recuperado de https://doi.org/10.26512/dasquestoes.v4i1.16208
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) aponta como as tradições e o modo de vida nos terreiros vinculados às religiões afro-brasileiras resistem para manter e reconstruir um conjunto de espiritualidades herdadas dos povos africanos aliadas a alguns elementos indígenas. O autor aponta também como a compreensão de “mercado” em terreiros de candomblé - constituído por experiências de relações comunitárias cuidadosas e solidárias, não como um lugar de acumulação que, muitas vezes, passa pela expropriação e exploração - se distingue ao mesmo tempo que tem resistido às ideias competitivas dos mercados capitalistas. Na mesma direção, Nunes (2018Nunes, V. H. B. (2018). Ilê Oju Odé: o candomblé na perspectiva decolonial. In Anais Eletrônicos do 2º Congresso Internacional Epistemologias do Sul, Paraná, PR.) descreve o candomblé como resistência anticolonial:
Compreendemos que em um terreiro de candomblé encontramos, além de religião, uma visão de mundo, valores, práticas, formas de se relacionar com o sagrado, com a natureza, diferentes do cristianismo e da matriz ocidental, pois pensa o ser humano relacionado com um grande organismo vivo, uma rede de correspondência entre os orixás, a natureza e os humanos, se construindo fora dos binarismos mente/corpo, razão/emoção, indivíduo/natureza, sagrado/cotidiano. Dessa forma, apresenta possibilidades de se pensar a construção e transmissão do conhecimento como outra epistemologia, que resiste ao modo de pensar ocidental, uma postura perante a vida, um modo imanente que não situa o ser fora da natureza e que considera uma rede de relações entre os seres e a natureza (Nunes, 2018Nunes, V. H. B. (2018). Ilê Oju Odé: o candomblé na perspectiva decolonial. In Anais Eletrônicos do 2º Congresso Internacional Epistemologias do Sul, Paraná, PR., p. 217).
Portanto, o conceito de resistência aqui está intimamente relacionado com o “giro decolonial”, porque esse último termo se refere ao movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico contra a lógica da modernidade/colonialidade (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
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). Resistir a formas neocoloniais de dominação e violência é, então, criar ou possibilitar que algo que não é próprio do sistema de mundo moderno/colonial seja criado ou possa vir a r-existir. Assim, “mais do que resistência, o que se tem é R-Existência, posto que não se reage simplesmente à ação alheia, mas, sim, que algo preexiste e é, a partir dessa existência, que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo” (Porto-Gonçalves, 2010Porto-Gonçalves, C. W. (2010). De saberes e de territórios: diversidade e emancipação a partir da experiência latino-americana. GEOgraphia, 8(16), 41-55. Recuperado de https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2006.v8i16.a13521
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, p. 51). Mignolo (2007Mignolo, W. (2007). Delinking: the rhetoric of modernity, the logic of coloniality and the grammar of de-coloniality. Cultural Studies, 21(2-3), 449-514. Recuperado de https://doi.org/10.1080/09502380601162647
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) e Grosfoguel e Mignolo (2008Grosfoguel, R; & Mignolo, W. (2008). Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa, 9, 29-37. Recuperado de https://doi.org/10.25058/20112742.337
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) corroboram essa ideia de uma resistência decolonial para além de resistência, mas como reexistência, ou seja, agir criticamente e criativamente em conjunto com processos globais em curso de decolonialidade.
OS CAMINHOS PERCORRIDOS
Para responder o objetivo deste trabalho, desenvolvemos uma pesquisa empírica qualitativa, por entendermos que ela nos permite compreender as subjetividades no espaço pesquisado, que envolve crenças, símbolos, valores e significados por trás das ações dos sujeitos. O método de investigação escolhido para apoiar a pesquisa qualitativa foi a etnografia (Burawoy, 1979Burawoy, M. (1979). The manufacture of consent. Chicago, IL: The Chicago University Press.), em que a ênfase está na compreensão de comportamentos, crenças, costumes e outras características de grupos sociais específicos, uma vez que ela é uma forma de ver (Wolcott, 1999Wolcott, H. F. (1999) Ethnography: a way of seeing. Walnut Creek, CA: AltaMira Press.) que requer imersão sustentada em uma comunidade particular. Isso implica uma pesquisa em profundidade e bem próxima da realidade dos pesquisados.
O trabalho etnográfico ocorreu em um centro de candomblé da nação Ketu Axé Oxumaré, localizado na cidade de Belo Horizonte (MG), em que um dos autores deste artigo assumiu o papel de observador/participante, já que ele é frequentador e praticante iniciante dessa religião. Vale destacar que optamos por omitir, neste artigo, o nome do terreiro e sua localização específica na cidade, não apenas para preservar a confidencialidade dos dados e a identidade dos sujeitos de pesquisa, mas também por entendermos que a identificação e divulgação do seu nome e localização mais precisa pode dar margem para que atos de violência sejam perpetrados contra o centro e seus frequentadores.
A escolha pela pesquisa nesse terreiro foi apoiada pela acessibilidade ao local, pelo ambiente no qual o pesquisador teria liberdade para transitar e realizar as observações necessárias. Ao iniciar o processo etnográfico, todos os integrantes da casa de santo estavam cientes da condução da pesquisa, fato, inclusive, que foi bem aceito e elogiado por eles, dada a necessidade de expor a realidade dentro de um terreiro de candomblé para trazer luz a algumas práticas que ainda seguem marginalizadas e subalternizadas tanto na academia quanto na própria sociedade, assim como ressaltado por alguns entrevistados. A pesquisa de campo envolveu múltiplos e diferentes materiais, como fotos, vídeos, participação em grupo de WhatsApp, entrevistas com membros do terreiro, observação participante e práticas incorporadas.
Assim, no início de janeiro de 2020, um dos autores deste artigo entrou em campo e passou a utilizar a observação participante, que durou até meados de janeiro de 2022. Optou-se por essa estratégia de coleta de dados por ser uma estratégia de campo que combina, simultaneamente, análise de documentos, entrevista com informantes, participação, observação direta e introspecção (Denzin, 1989Denzin, N. K. (1989) The research act (3a ed.). Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall.).
Clifford e Gonçalves (2011Clifford, J; & Gonçalves, S. (2011). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ.) afirmam que a participação do etnógrafo nas atividades da comunidade pesquisada serve para que, além de maior aceitação do grupo, o pesquisador possa ter maior entendimento sobre ele. Ademais, tal participação dá ao pesquisador a chance de compreender a linguagem da comunidade pesquisada, assimilar-se a ela e, depois, traduzi-la em termos científicos. No decorrer da coleta de dados, a interação com os membros do terreiro ocorreu de maneira gradual, conforme a participação e o acompanhamento dos responsáveis pelas atividades principais do grupo. O pesquisador também foi adicionado ao grupo de WhatsApp do centro de candomblé, além de dormir no local e participar de todos os processos durante reuniões e ritos do terreiro, também conhecidos como “funções”. Dessa forma, além de compreender os modos de organização do terreiro e suas dinâmicas socioafetivas e espirituais, foi possível conhecer todos os membros envolvidos ativamente nelas.
Durante o trabalho de campo, o pesquisador manteve um diário etnográfico e um caderno de impressões, escritos após cada dia em que ele esteve no local pesquisado. Com base nas recomendações de Van Maanen (1988Van Maanen, J. (1988) Tales of the field. Chicago, IL: The University of Chicago Press.), as anotações refletiram a tentativa de registrar observações e reflexões imediatas sobre eventos significativos e conversas cotidianas, questões, experiências, emoções ou trocas passageiras, tanto sobre o cotidiano e os modos de organizar do centro quanto das suas formas de resistência.
Além disso, foram gravados reuniões e eventos do centro de candomblé e realizadas 30 entrevistas presencias, sendo 20 delas com yaôs (pessoas que passaram pelos ritos de iniciação - feitura - no candomblé) e 10 com abiãs (pessoas que não passaram pela iniciação até o momento da pesquisa). Dos 20 iniciados, 13 eram babalorixás (pais de santo) e ialorixás (mães de santo). As entrevistas ocorreram de maneira gradual, após cinco meses em que a observação se iniciou, sem uso de um roteiro predefinido, optando-se por conversar com as pessoas de acordo com a emersão dos dados durante a etnografia. Importante destacarmos ainda que, no decorrer do processo etnográfico, as entrevistas foram conduzidas em momentos distintos, considerando as observações realizadas, bem como os rituais, os eventos e as festividades que, ao longo do período de observação, ocorreram. Para preservar a identidade dos sujeitos de pesquisa e a confidencialidade dos dados, neste artigo, os entrevistados foram identificados de acordo com os orixás nos quais são iniciados. Todos os participantes autorizaram a gravação das entrevistas verbalmente, mediante a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os dados obtidos nas entrevistas foram transcritos na íntegra e analisados por meio da Análise de Narrativas (Bastos & Biar, 2015Bastos, L. C; & Biar, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, 31(4), 97-126. Recuperado de https://doi.org/10.1590/0102-445083363903760077
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), cujos sujeitos pesquisados puderam transmitir experiências de vida com base na construção de significados sobre si mesmos, sobre a religião e suas formas de resistência. As histórias narradas pelos sujeitos permitem compreender acontecimentos da vida pessoal e social deles. Desse modo, tanto a etnografia quanto as entrevistas foram empregadas como meios para contextualizar os modos de organizar do candomblé como organização de resistência, e as narrativas são o caminho para acessar as histórias dos frequentadores do terreiro.
Todos os dados foram lidos inicialmente de forma separada e, após essa leitura, foi feita outra integrada, que buscou identificar aspectos marcantes e acontecimentos que vão ao encontro do objetivo estabelecido neste artigo. Esses aspectos e acontecimentos foram sinalizados e denominados, respeitando as palavras e expressões utilizadas pelos próprios entrevistados.
Cabe destacar ainda que, durante o processo de análise dos dados, selecionamos algumas fotografias feitas na pesquisa de campo que identificamos como alusivas ao objetivo proposto neste artigo e que vieram a compor e a enriquecer a seção de apresentação e discussão dos resultados, assim, realizamos a interpretação dessas fotos levando em consideração o contexto e/ou os trechos narrativos aos quais elas estavam vinculadas.
Os dados fruto de observação, os diários de campo, o acaderno de impressões, as fotos, os vídeos e as entrevistas foram interpretados, em primeira instância, pelo pesquisador que realizou a etnografia, o primeiro autor deste artigo. Os demais autores interagiram com os dados de campo, leram as análises elaboradas por esse pesquisador e ofereceram análises secundárias, guiadas pelo referencial teórico da pesquisa. Optamos por essa forma de análise de dados por entendermos que, apesar de o trabalho etnográfico ser resultado de um esforço individual, a produção de reflexões teóricas sobre os dados de campo pode ser enriquecida pelo trabalho coletivo. Assim, na próxima seção, o relato da experiência de campo segue a lógica de autoria compartilhada assumida neste artigo, complementada pela adoção da primeira pessoa do plural como pronome de escolha na apresentação e discussão dos dados.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS
Ao adentrarmos em um terreiro de candomblé para iniciarmos este estudo em janeiro do ano de 2020, buscamos compreender a realidade ali vivida com base em uma ótica decolonial. Para tanto, assim como ressaltado por Yountae (2020Yountae, A. (2020). A decolonial theory of religion: race, coloniality, and secularity in the Americas. Journal of the American Academy of Religion, 88(4), 947-980. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfaa057
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), consideramos que a religião e a religiosidade vêm sendo utilizadas há anos como parte constituinte de uma estrutura colonial de ser, pensar, saber e agir. Desse modo, por mais complexo que seja, buscamos nos desnudar de preconcepções formadas acerca da “realidade”, uma vez que isso possivelmente seria reflexo de uma herança colonial. Por isso, optamos iniciar a construção deste estudo após 24 meses de inserção etnográfica no campo, porque, segundo os etnógrafos, o envolvimento longo e contínuo com a organização objeto de análise permite a separação entre ficção e fato, entre o específico e o geral e entre o comum e o extraordinário (Van Maanen, 1979Van Maanen, J. (1979). The fact of fiction in organizational ethnography. Administrative Science Quarterly, 24(4), 539-550. Recuperado de https://doi.org/10.2307/2392360
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).
Para fins de organização deste estudo, separamos a apresentação e discussão dos dados em duas partes: a primeira parte apresenta as impressões de quem estava adentrando no campo, bem como sua filosofia de vida, valorização e reprodução de valores; já a segunda parte relata a discriminação e o racismo religioso que o candomblé sofre no contexto brasileiro.
Adentrando ao Ilê Axé: notas iniciais
Nossas notas de campo iniciais ressaltaram importantes impressões de quem estava adentrando em um mundo no qual tudo recebia novas conotações. Nesse momento, a ideia de magia e sacralidade se entrelaçava, criando uma nova realidade em que o búzio fala, a canjica é proteção e a pipoca, um remédio. Trata-se de um mundo no qual exatamente tudo tem uma explicação sacra, no qual um banho frio, por exemplo, é uma bênção, comer com as mãos, um privilégio e o ato de dormir em uma esteira representa um encontro com o que há de mais puro, essencial e sagrado, seu orixá.
Passei três meses dormindo em uma esteira, no barracão, durante minha iniciação e, em casa, durante meu preceito. E falando assim, a gente pensa […] nó, que coisa desconfortável, uma esteira dura e sem conforto nenhum. Mas aquilo, para mim, foi tão lindo […] era como se eu tivesse deitada em um local sagrado, sabe, era como, não, é um local sagrado. Em que, quando eu dormia, eu meio que acordava nos braços de mamãe [referindo-se ao seu orixá Oxum].
Ao olhar para os muros que cercavam o terreiro de candomblé, é possível identificar uma série de ritos e símbolos que estavam, em sua maioria, relacionados com a prosperidade e proteção para aqueles que ali estavam.
O mariuô (demarcado na Figura 1 pelo círculo vermelho), também chamado de igi opê pelo povo do santo1 1 Gíria comumente utilizada para referir-se às pessoas que fazem parte do candomblé. , é feito ao desfiar uma folha de dendezeiro e consagrado a Ogum e é comumente colocado nas janelas e portas dos centros de candomblé como forma de trazer proteção e espantar energias negativas e espíritos perturbadores. Acima do mariuô, encontram-se algumas oferendas aos orixás Oxaguian e Iemanjá, como forma de trazer equilíbrio e harmonia para a casa de santo. Além desses, vários outros símbolos e oferendas estão dispostos pelo candomblé, demarcando que ali é um terreno sagrado, no qual a lógica é pensada fundamentada em uma perspectiva negra, em que, por vezes, vai de encontro à lógica capitalista neoliberal das sociedades ocidentais.
O candomblé, além de ser uma religião de matriz africana, tem também a importância de resistência da cultura afro-brasileira. Além desse sentido político de resistência, também há, ao meu ver, essa importância de remontar esse contato com a natureza, com os orixás, porque as forças que nós cultuamos são forças ancestrais ligadas à natureza; e num tempo em que a gente percebe, cada vez mais, valores humanos e econômicos, os valores relacionados com a natureza têm se perdido, né? Então, duas coisas que acho importante no candomblé: o culto à ancestralidade e a ancestralidade ligada à natureza como forças vitais e outra de pertença política de afirmação da negritude (Ogum).
A vivência no candomblé nos permitiu identificar que, com as práticas cotidianas ligadas a uma matriz negra, seus adeptos, para além de um ato de resistência política, caracterizam essa religião como uma ação de resistência decolonial, ou seja, diretamente relacionado com a re-existência diante das matrizes de poder neoliberais (Grosfoguel & Mignolo, 2008Grosfoguel, R; & Mignolo, W. (2008). Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa, 9, 29-37. Recuperado de https://doi.org/10.25058/20112742.337
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; Mignolo, 2007). Assim, em um contexto em que a matriz de poder é a colonialidade (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO.), r-existir é, então, decolonizar, com base na perspectiva do outro, do subalterno, como as religiões afro-brasileiras, que apontam para a construção de horizontes de sentidos alternativos e decoloniais (Quijano, 2013Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 227-228). Buenos Aires, Argentina: CLACSO.); é evidenciar pensamentos, práticas e experiências passadas e presentes que desafiam a matriz colonial de poder e dominação, existindo apesar dela, dentro e fora de seus contornos (Walsh, 2010Walsh, C. (2010). Interculturalidad crítica y educación intercultural. In J. Viaña, L. Tapia; & C. Walsh (Eds.), Construyendo interculturalidad crítica (pp. 75-96). La Paz, Bolivia: Instituto Internacional de Integración.). Esta pesquisa se insere nesse caminho, de contribuir para o debate teórico-crítico acerca da resistência e da subalternidade segundo a opção decolonial, questionando a colonialidade e suas formas de violência que ainda imperam nos grandes centros, e buscar reposicionar vozes e lugares daqueles que são silenciados e aviltados pelo poder hegemônico, tendo como pano de fundo o candomblé e sua política de afirmação da negritude.
Nesse preâmbulo, tais reflexões nos conduziram ao fato de que, para adentrar no mundo do candomblé, é preciso se despir de valores neoliberais e ser ressocializado em uma comunidade cujos valores se cristalizam sob uma ótica por vezes antagônica da sociedade que se estrutura além dos muros dessa religião. Trata-se de uma comunidade com normas e regras próprias.
Lá fora, você pode ser um médico, um juiz, um político, um doutor, o que você quiser. Mas, quando entra daquele portão para dentro, você é um abiã ou um yaô, e, assim como todos os outros, tem que baixar a cabeça, usar sua roupa de ração, tem que pedir a bênção, tem que abençoar os irmãos, tem que andar de pé no chão, assim como todo mundo. Se não quiser seguir essas regras, aqui não é seu lugar; lá fora você pode ser o que quiser, mas aqui dentro a cartilha é outra (Oxóssi).
Interessante ressaltarmos aqui que os valores do candomblé possuem matriz de poder própria que, em alguns níveis, resgata valores da cultura africana, principalmente aqueles relacionados com a ideia de comunidade e pertencimento. Nesse sentido, podemos identificar, no candomblé, a materialização do “giro decolonial” como um movimento de resistência prático, político, contra a lógica de colonialidade moderna (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
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).
Refletindo sobre a pesquisa de campo no terreiro de candomblé em questão, podemos observar a valorização e a reprodução de princípios que, muitas vezes, ouvimos nossos pais e avós nos passarem, mas que, aos poucos, foram se perdendo sob a égide de uma sociedade capitalista. Assim, o candomblé busca desconstruir valores ocidentais coloniais ligados ao capital, resiste e reexiste em uma lógica pautada na família, na ideia de comunidade, cooperação e simplicidade, como pode ser observado no trecho abaixo.
A simplicidade vale muito mais do que qualquer luxo de um templo ou a ideia do que qualquer pessoa tem sobre o candomblé ou sobre religião. Eu aprendi isso com meu pai, ele já é pai de santo, a maior autoridade aqui dentro, e ele nunca perdeu a humildade e a simplicidade de ter o pé no chão, de não se preocupar muito com o que está vestindo, porque ele sabe o que tem dentro dele. Não é que a roupa não seja importante, importa muito, sim, mas a veste que mais importa é o brilho do orixá, e esse só vem de dentro pra fora. Você pode estar com a pior roupa, descalço, mas lindo porque tem algo que transcende isso tudo e encanta quem vê. Então, assim, eu aprendi isso com meu pai e tento passar isso todos os dias para meus filhos de santo, simplicidade e verdade (Oyá).
A ideia de simplicidade e igualdade é um dos principais valores que vimos sendo passados ao longo desses meses que frequentamos e participamos do cotidiano da casa de santo. É interessante ainda ressaltar que tais valores são cotidianamente vivenciados pelos integrantes do centro, como retrata a Figura 2 a seguir:
A Figura 2 foi tirada durante uma cerimônia de saída de yaô e obrigação de três anos de feitura (cerimônia que celebrava a iniciação na vida para o orixá, como são chamados aqueles que passaram pelo recolhimento e processo de feitura). Trata-se de uma festa pomposa que simboliza a apresentação de um novo iniciado à sociedade. Nessa cerimônia, os chamados yaôs e abiãs utilizam as chamadas roupas de ração, que são roupas de tecido branco sem nenhum tipo de adorno, e os pés no chão, para buscar retratar na casa de santo valores relacionados com humildade e igualdade entre todos os integrantes da casa. Tais práticas remontam às colocações de Nunes (2018Nunes, V. H. B. (2018). Ilê Oju Odé: o candomblé na perspectiva decolonial. In Anais Eletrônicos do 2º Congresso Internacional Epistemologias do Sul, Paraná, PR.), segundo o qual o candomblé apresenta possibilidades de conhecimento com epistemologia diferente do modo de pensar ocidental, sendo, por natureza, uma forma de decolonizar (verbo), isto é, uma maneira de agir confrontando uma lógica colonial cujo discurso se estrutura com base na competitividade de diferenciação entre os sujeitos (W. F. Nascimento, 2016Nascimento, W. F. (2016). Olojá: entre encontros - Exu, o senhor do mercado. Das Questões, 4(1), 28-39. Recuperado de https://doi.org/10.26512/dasquestoes.v4i1.16208
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).
O candomblé me modificou fatalmente. Antes do candomblé eu tinha me corrompido por esses valores neoliberais, né? Assim […] de distanciamento, de perda de sentido do coletivo, de uma visão de mundo marcada por essa vontade do êxito, da hipervalorização de si, desses valores que são contemporâneos demais. E dentro da casa de santo, a gente se percebe em um núcleo, né, dentro de uma comunidade, de uma casa onde se respira o tempo todo coletividade. Então, claro que há singularidade em cada um, mas a singularidade atravessa o comum, que é a dinâmica da casa de santo, que é a dinâmica da família (Xangô).
Como pode ser observado no trecho acima, estamos tratando, nesse sentido, de uma religião que está diretamente relacionada com uma filosofia de vida na qual valores que são suprimidos pela lógica colonial são resgatados e colocados em prática. Durante toda a vivência na pesquisa de campo, foi possível perceber, de fato, uma tentativa de reavivamento desses valores, sendo a palavra e a concepção de família talvez a pedra angular desse tipo de organização. Em todas as entrevistas coletadas para este estudo, nota-se uma centralidade da ideia de família nas narrativas.
Entretanto, um ponto importante que vale salientar é que se trata de uma “família grande”, que, por vezes, não é composta por integrantes do núcleo familiar biológico dos entrevistados, e sim por um grupo de pessoas, no qual grande parte já sofreu discriminação e marginalização na sociedade em função, principalmente, de sua sexualidade, como podemos observar nas narrativas abaixo:
Dizem que o candomblé é religião de puta, travesti e veado. Pra falar a verdade, talvez ele seja mesmo a religião de puta, travesti e veado, mas, sabe por quê? Porque aqui a puta, o travesti e o veado podem ser o que quiserem ser, que ninguém tem nada a ver com isso, ninguém vai discriminá-los por isso, não vão sofrer nenhum tipo de violência pelo que fazem da vida pessoal. Fora daqui, não é da conta de ninguém. Olha só, o pai de santo daqui é gay; tem várias casas em que o pai de santo é travesti ou a mãe de santo é lésbica, e isso não interfere em absolutamente nada no dia a dia da roça de candomblé. Lá fora, as pessoas, a sociedade, meio que forçam as pessoas a serem o que elas querem, a se encaixarem no que elas determinam como bom, certo, de Deus. Aqui você pode ser o que quiser ser que vai ser respeitado e até amado da mesma forma (Logun Edé).
Travesti não tem muita escolha, né? Quando iniciei meu processo de transição, fui expulsa de casa, caí na prostituição e meio que a casa de santo, o candomblé, foi o único lugar que abriu as portas pra mim e me ajudou a ver que o erro não era meu, que eu não estava fazendo nada de errado. Aí aqui criei uma nova família, tenho vários pais, várias mães e vários irmãos […] E, assim, pra quem nunca teve ninguém, quem sempre foi sozinha, é algo lindo (Airá).
Outros ainda iniciaram no candomblé como refúgio para tragédias familiares e perda de entes queridos.
Meus pais morreram quando eu ainda era muito jovem e meio que entrei aqui para tentar suprir a falta que eles me faziam e, de certa forma, consegui ter uma família de novo (Obaluaê).
Eu moro no candomblé há mais de 30 anos e vim parar aqui pela falta de pessoas que eu pudesse chamar de família. Aqui eu sou mãe, posso ajudar meus filhos, meus irmãos. Sabe, olho e posso dizer que tenho uma família, que tenho alguém por quem lutar. E tudo que tenho de mais valioso, tudo que sei eu aprendi aqui, dentro dessa casa tão simples (Oxum Opará).
Tais narrativas vão ao encontro da etimologia da palavra “candomblé”, cujo significado é “dança de roda”. Isto é, trata-se se de uma religião que busca religar de fato as pessoas, permeada de traços espirituais e afetivos, que agrega e acolhe independentemente da conduta na vida fora dos muros da casa de santo. Entretanto, é importante ressaltarmos que, com a trajetória na religião, vem também, naturalmente, a necessidade de corrigir alguns erros e atitudes na vida pessoal. Em termos agregados, o que podemos perceber ao longo desses dois anos de convívio com a casa de santo é que, o candomblé, metaforicamente, estaria relacionado com uma família estendida, composta, em grande parte, por pessoas marginalizadas e aviltadas socialmente, consideradas subalternas. É por isso que as religiões brasileiras de matriz africana podem ser consideradas comunidades de resistência anticolonial (Sansi & Parés, 2012Sansi, R; & Parés L. N. (2012). The multiple agencies of Afro-Brazilian religions. Religion and Society: Advances in Research, 3(1), 76-94. Recuperado de https://doi.org/10.3167/arrs.2012.030105
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; Santos, 2009Santos, E. F. (2009). O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador, BA: EDUFBA.; Yountae, 2020Yountae, A. (2020). A decolonial theory of religion: race, coloniality, and secularity in the Americas. Journal of the American Academy of Religion, 88(4), 947-980. Recuperado de https://doi.org/10.1093/jaarel/lfaa057
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), dado que o dia a dia dessas casas refletem estruturas de reexistência política e cultural de uma matriz hegemônica colonial que insiste em estigmatizá-las e silenciá-las.
Estamos aqui falando da organização de resistência/reexistência de um mundo em que a folha tem sangue, o bicho é sagrado, com uma navalha é possível dar a vida, renascer e constituir uma família; baixar a cabeça é uma grande honra e demonstração de humildade; o elo entre o sujeito e a natureza é refeito por meio de divindades, os orixás (ori - mente cabeça; xá - expansão, ou seja, expansão da mente).
Resistir e r-existir: discriminação, racismo religioso e colonialidade
Desde a pesquisa de campo até a análise conjunta dos dados, ficamos refletindo sobre a evidente negligência e marginalização dos saberes candomblecistas na sociedade brasileira, dada sua herança histórica colonial. Há de considerar aqui que o modelo do candomblé como religião possui raízes africanas, contudo, há algumas diferenças, pois estamos falando de um candomblé brasileiro, cujo modo de organizar e cultuar a natureza é brasileiro.
Para compreendermos a discriminação e o racismo religioso que o candomblé sofre no contexto brasileiro, inicialmente, cabe destacar que o modelo de candomblé brasileiro começou a ser estruturado e organizado na diáspora dos povos africanos, ou seja, a religião que aqui estamos expondo se constituiu do tráfico de negros para o Brasil durante o período histórico colonial. Ao desembarcarem em terras brasileiras, os negros africanos, cujas origens eram, principalmente, dos portos de Angola, em Angola, e Ketu, na Nigéria (daí o nome das nações de candomblé de Angola e Ketu), vinham com suas famílias dilaceradas pelo tráfico negreiro, e no interior das senzalas cultuavam suas divindades para tentar manter viva sua cultura.
Nesse complexo cenário, surge o candomblé brasileiro como uma forma de unificar, em uma só nação, os negros escravos. Cabe aqui ressaltarmos, assim como já apontamos em linhas anteriores, que a lógica de família estendida do candomblé atual nada mais é do que uma forma de r-existência decolonial, um verbo que transcende a ideia de resistência (Porto-Gonçalves, 2010Porto-Gonçalves, C. W. (2010). De saberes e de territórios: diversidade e emancipação a partir da experiência latino-americana. GEOgraphia, 8(16), 41-55. Recuperado de https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2006.v8i16.a13521
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), com base no sentimento de pertencimento.
Aqui dentro, dentro da roça de candomblé, eu meio que consigo suprir um pouco da minha carência familiar. Aqui dentro eu meio que consigo me sentir de novo inserido em uma […] um núcleo de pessoas que posso contar, assim como é a família (Oxalufã).
Se durante o Brasil Colônia o dançar candomblé era tido, pelos brancos europeus, como um processo nocivo à senzala, uma vez que estava religando os negros aos seus sonhos e à sua terra natal, atualmente, o que percebemos é que o candomblé atual ainda pode ser visto como algo nocivo à estrutura colonial historicamente herdada. E, por isso, sofre, cotidianamente, com a marginalização e violência.
Eu respeito seu amém, você respeita meu axé. Sabe o que acontece? O batuque da macumba incomoda, ela é resistir e traz sentido pra gente. Esse atabaque come, ele é vivo e sagrado pra gente, o som dele representa tanto para mim, ele me leva pro transe, ele me emociona (Oyá).
É engraçado, né, todo mundo fala mal do candomblé, demoniza a gente. Nas igrejas evangélicas, a gente é a própria encarnação do mal. Mas nada disso me incomoda muito, não; a sociedade ainda tá com os olhos fechados, ela ainda não percebeu que isso não tá ligado à espiritualidade, não, e, sim, ao negro, ao escravo, à senzala, a todo sangue que já foi derramado nessa terra por causa de gente branca (Nanã).
Para mim isso é um projeto de Estado, um holocausto silencioso, longe das grandes mídias. A ideia é extirpar o negro e tudo o que com ele está relacionado. Por isso que, talvez, o toque do atabaque incomode tanto, é uma forma de dizer a gente tá aqui, a gente vai continuar aqui (Xangô).
Notavelmente, tais narrativas corroboram o fato de que o racismo religioso nada mais é do que a projeção da dinâmica do “racismo de cor”, que remonta à marginalização dos índios e negros, povos ditos subalternos durante o Brasil Colônia (W. F. Nascimento, 2017Nascimento, W. F. (2017). O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, 6(2), 51-56. Recuperado de https://doi.org/10.19123/eixo.v6i2.515
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). Nessa direção, racismo religioso é um conceito que abre caminhos importantes na luta antirracista no país. Fica evidente, então, que a colonialidade não opera somente na limitação do posicionamento igualitário de identidades e instituições religiosas no Brasil, reproduzindo e legitimando a inferioridade de religiões afro-brasileiras, mas também reproduz violência física e simbólica contra outros, desumanizando, subjugando e aniquilando, inclusive, pessoas de religiões afro-brasileiras (Lundell, 2020Lundell, E. (2020). The pentecostal war against Afro-Brazilian “demons” - politics, selfhood and shared experience of spiritual work in southeast Brazil. Revista del CESLA, 26, 195-220. Recuperado de https://doi.org/10.36551/2081-1160.2020.26.195-220
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).
Como apontado por Franco e Dias (2021Franco, C; & Dias, T. B. (2021). Religião, direitos humanos e interseccionalidades: reposicionando a categoria “religião” no debate interseccional. Estudos de Religião, 35(2), 309-330. Recuperado de https://doi.org/10.15603/2176-1078/er.v35n2p309-330
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), com base nessas narrativas, fica evidente como a religião pode ser compreendida com um marcador interseccional que, ainda que legitime e reproduza formas de exclusão e violência contra sujeitos de outras religiões, especialmente as de matriz afro-brasileira, também se firma, no caso do candomblé, no contexto das interseccionalidades, como lócus no qual se manifestam marcas da subalternidade inter-relacionadas com elementos como raça, classe, gênero e sexualidade. Por “subalterno” ou “subalternizado” entendem-se grupos marginalizados, que não são ouvidos nem possuem representatividade legal e politicamente, em decorrência justamente de atributos em termos de raça, classe, gênero e sexualidade, entre outros (Spivak, 2010Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG.).
De acordo com as narrativas anteriores, é notável como a violência imposta aos praticantes do candomblé estão associadas a questões históricas opressoras de raça e de geografia, uma vez que os terreiros de candomblé são constituídos não somente de uma política de afirmação da negritude, mas também de outros grupos sociais marginalizados, como “puta, travesti e veado”, os quais são acolhidos nos terreiros sem discriminação, de modo que podem agir ali da maneira como são, segundo a narrativa de Logun Edé. Ou seja, o lugar sagrado na sociedade que é reservado para esses grupos subalternizados e marginalizados são os terreiros de candomblé, que também não são lugares centrais, mas periféricos, marginalizados no cenário da produção colonial dominado pelas religiões cristãs, lugares que não estão livres de sofrer diferentes tipos de violência por parte da sociedade.
É importante sublinharmos que o terreiro no qual este estudo foi conduzido não sofreu nenhum tipo de depredação ou violência explícita. Porém, o racismo religioso é uma questão que se faz presente no cotidiano dos candomblecistas, atitude ressaltada por todos os entrevistados como uma violência quase naturalizada.
Às vezes, quando a gente tá fazendo algum ritual aqui, sempre alguém para o carro ali na esquina e coloca umas pregações evangélicas; já até acostumei com isso e nem ligo mais (Oxóssi).
Sempre quando a gente sai na rua com roupa africana ou uma roupa branca, a gente escuta uns comentariozinhos do tipo: olha a macumbeira, sangue de Jesus tem poder, chuta que é macumba, tá amarrado. Antes eu brigava, agora não. Nunca muda, é perda de tempo perder um minuto que seja com pessoas assim (Iansã Topé).
A naturalização do racismo religioso contra candomblecistas pode ser vista como o reflexo do momento em que o racismo da sociedade brasileira passa a ser legitimado e torna-se liturgia em religiões de matriz cristã, em especial as neopentecostais. Nesse campo, assumem a cena um discurso de ódio e a demonização das divindades e das raízes negras como um reflexo de uma matriz colonial. Esses estigmas que repousam sobre o candomblé no Brasil são o resultado de um processo histórico de perseguição de um sistema colonial cristão-europeu que marginalizou e silenciou as religiões de matriz africana (Santos, 2013Santos, T. L. (2013). Leis e religiões: as ações do Estado sobre as religiões no Brasil do século XIX. In Anais do 4º Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades, Maringá, PR. Recuperado de http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/anais4/st16/7.pdf
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), fazendo com que, inclusive, vários integrantes escondessem sua religiosidade na sociedade para evitar o processo de aviltamento. É por esse motivo que religiões como o candomblé, por exemplo, buscam, por vezes, a invisibilidade diante dos olhos leigos, como ressalta Birman (1983Birman, P. (1983). O que é umbanda. São Paulo, SP: Brasiliense.).
Por fim, depois de dois anos de inserção etnográfica, a lógica de trabalho e a dinâmica do candomblé nos fizeram perceber que a r-existência decolonial que tanto mencionamos neste artigo está intimamente relacionada com o sentido que as coisas assumem neste mundo, com a conexão com o sagrado e com simples gestos como varrer um terreiro, recolher algumas folhas ou tomar um banho frio podem assumir.
O mundo perdeu sua conexão com o sagrado. É justamente isso que a gente faz dentro do candomblé, reconectar as pessoas à sua essência, ao seu sagrado (Oxumaré).
Eu não vejo outro sentido no candomblé a não ser uma consciência ética do trabalho, algo que a gente perdeu ao longo deste século. O trabalho deixou de ser essa força que nos dá parâmetro de identidade, que nos dá parâmetro de existência para se transformar em um processo que faz a gente se perder em nós mesmos, a gente perde o sentido de quem a gente é, a gente perde o sentido daquilo que a gente produz, a gente não vê sentido no que a gente produz. E dentro do candomblé eu vejo o movimento totalmente inverso, não há precarização porque há coletividade, não há perda de sentido porque existe a consciência do que se faz e porque se faz. O sentido disso tudo dentro do candomblé é no sentido de criação de identidade de personalidade de um não esvaziamento (Ogum).
Desse modo, a expansão da consciência (ori-xá), o transe, as festas no terreiro, os toques dos atabaques, as roupas de ração, as ornamentadas roupas dos orixás seriam a materialização de uma r-existência decolonial, um ato de decolonizar, de se fazer presente mesmo quando a matriz hegemônica tenta suprimir a existência dessa forma de organizar e da sua relação com o mundo e a natureza, assim como representado nas Figuras 3 e 4 a seguir.
Remontando às senzalas, o que podemos perceber, durante o desenvolvimento deste estudo, está relacionado com a ideia de libertação que o candomblé traz para os participantes da casa de santo. Para a maioria dos entrevistados, a expressão maior dessa libertação vem com o processo de transe que se alcança durante alguns rituais, como representado nas Figuras 3 e 4, anteriormente. Nesse cenário, foi possível perceber que o candomblé, para vários integrantes da casa de santo, surgiu, assim como outrora, pela condição dos escravos, como uma necessidade de criar estratégias para a sobrevivência não só física, mas também dos estilos de vida subalternos. Dessa forma, negligenciar os saberes e os modos de organizar das religiões de matriz afro-brasileira seria um negacionismo à pluriversalidade do conhecimento que pode e se estende para além das fronteiras coloniais.
Acho que o que posso dizer é que existe muito dentro da lógica, das lógicas afrocentradas, e a gente padece de uma perda de sentidos, uma perda de direção na cultura ocidental, de um modo geral, de um modo mais amplo. E todos os sistemas, políticos, epistêmicos, valorativos, econômicos, inclusive agora, durante a pandemia, a gente percebe a urgência de revisitar valores, de repensar a nossa trilha de humanidade, e há muito nas comunidades tradicionais de terreiro. Existem muitos valores que são extremamente necessários para a gente enfrentar essa desumanização pela qual a gente tem passado, e a gente precisa vencer, primeiro, o racismo religioso para entender que existe subjetividade, que existe produção, que existe importância dentro desse lugar que são as comunidades tradicionais de terreiro, e tentar entender, para além das nossas crenças específicas, porque eu posso ser cristão e entender que existe valores dentro das comunidades tradicionais de terreiro que podem ser trazidos para a cena política. Então eu acho que a gente tem muito a ensinar para essa sociedade que fracassou em seus valores até agora, mostrar para eles que existe outra forma de fazer; e também é trabalho nosso resistir e se manter vivo para ensinar aquilo que a gente sabe (Ogum).
Nesse cenário, o candomblé por nós foi visto como a própria estratégia, uma organização decolonial de sobrevivência, de manutenção e, sobretudo, de perpetuação de modos de vida negligenciados, aviltados, negados e subalternizados pela matriz colonial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo objetivou compreender como os terreiros de candomblé se organizam como resistência perante o racismo religioso. Para tanto, desenvolvemos um trabalho etnográfico em um centro de candomblé da Nação Ketu Axé Oxumaré, localizado em Belo Horizonte (MG), com o uso de diferentes técnicas de trabalho de campo, como observação participante, fotos, vídeos, participação em grupo de WhatsApp, entrevistas e práticas incorporadas. Foram criados um diário etnográfico e um caderno de impressões, escritos após cada dia em que um dos autores esteve no local pesquisado. Além disso, foram gravados reuniões e eventos do centro de candomblé e realizadas 30 entrevistas presenciais com outros membros do terreiro. Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de narrativas.
Assim, podemos perceber que a organização do candomblé é permeada por oferendas, rituais e símbolos particulares, em que a magia e a sacralidade se entrelaçam. Além disso, o próprio candomblé é percebido, pelos integrantes da casa de santo, como uma estratégia, uma organização de sobrevivência não só física, mas também de estilos de vida subalternizados, especialmente daqueles sujeitos interseccionais, atravessados por diferentes marcadores sociais que operam de forma combinada, como de raça, classe, gênero e sexualidade. Porém, justamente por envolver ritos sagrados considerados “não tradicionais”, não comumente vistos no cotidiano da sociedade, na mídia hegemônica e em outros espaços, e pelo modo de organizar os terreiros segundo uma lógica pensada com base em uma perspectiva negra, é que esses símbolos, terreiros e seus frequentadores sofrem com regularidade ataques da população em geral e até mesmo do Estado.
Essa violência resulta no racismo religioso, isto é, um processo histórico de perseguição de um sistema colonial cristão europeu que hierarquizou, marginalizou e silenciou as religiões de matriz afro-brasileira, e é respaldada por ele. Dessa forma, o candomblé é visto, por alguns, como algo nocivo à estrutura colonial historicamente herdada e por isso sofre cotidianamente com a marginalização e violência, na tentativa de extirpar o diferente do convívio social e até mesmo como uma punição para tentar submeter o outro aos valores e às crenças impostos pelo contexto social hegemônico, fazendo com que a organização dos terreiros seja longe de centros urbanos para não chamar tanta atenção e até mesmo para que vários candomblecistas escondam sua religiosidade perante a sociedade, a fim de evitar o processo de aviltamento.
Portanto, os orixás, as festas no terreiro, os toques dos atabaques, as roupas de ração, as ornamentadas roupas dos orixás, os demais rituais e símbolos e os próprios terreiros de candomblé podem ser considerados a materialização de uma resistência/r-existência decolonial, ou seja, uma forma de se fazer presente mesmo quando a matriz hegemônica de poder tenta suprimir a existência dessa forma de se organizar. Trata-se da resistência da cultura afro-brasileira, uma resistência anticolonial que promove, por meio da religião, a pertença política de afirmação da negritude. Trata-se de uma organização decolonial de sobrevivência, de manutenção e, sobretudo, de perpetuação de tradições e modos de vida nos terreiros negligenciados, aviltados, negados e subalternizados pela colonialidade. O candomblé existe, logo, resiste. R-existe.
Assim, buscamos, com este trabalho, aprofundar a discussão no campo de estudos em gestão e organizações, ao lançar um olhar decolonial sobre o candomblé, sobre como os terreiros de candomblé r-existem de diferentes formas às dinâmicas neocoloniais, como o modo ocidental de pensar o mundo e a violência advinda do racismo religioso que o permeia. Nesse sentido, a crítica e a luta decolonial neste trabalho não se direcionam somente em desafiar a concepção hegemônica do humano normativo, mas também em relação aos sistemas de opressão que se intensificam, especialmente por meio da demonização e banalização dos saberes e das crenças afro-brasileiras.
As implicações e contribuições desta pesquisa para os estudos em gestão e organizações são diversas. Primeiramente, há a necessidade de valorizarmos pesquisas que abordem outras formas de organização, e não somente aquelas do mainstream, no caso deste artigo, os modos de organizar o candomblé e como ele se constitui como uma organização de resistência. Além disso, com este trabalho, podemos refletir sobre que vozes, perspectivas e modos de organizar vêm sendo negligenciados e silenciados nos estudos de gestão e organizações. Partindo desse ponto, também podemos refletir sobre como pesquisadoras e pesquisadores da área podem mudar essas dinâmicas neocoloniais. Para isso, as respostas são muitas e não é nossa intenção aqui esgotá-las. Mas um dos caminhos seria desnaturalizar essas dinâmicas neocoloniais e dar mais atenção e visibilidade às questões ligadas às religiões de matriz afro-brasileira nos meios em que estamos inseridos, especialmente no ambiente acadêmico, promovendo debates, oficinas e atitudes antirracistas que contribuam para o reconhecimento da importância dessas manifestações culturais e religiosas no país.
Como sugestões de pesquisas futuras, indicamos o estudo do contexto organizacional da umbanda, com evidência e valorização de seus ritos, símbolos, saberes e modos de organizar, já que esta também sofre, cotidianamente, com violência física e simbólica em nosso país advinda do racismo religioso, além de estudos que tratam das interseccionalidades, já que a violência imposta aos praticantes da religião relaciona-se com as questões históricas, de desconhecimento, de raça e de geografias oprimidas.
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Gíria comumente utilizada para referir-se às pessoas que fazem parte do candomblé.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
10 Jun 2022 -
Aceito
07 Out 2022