Este documento está relacionado com:

Open-access Teorizando a partir de noções habermasianas na pesquisa em administração

Teorizando a partir de las nociones habermasianas en la investigación en Administración

Resumo

O pensamento habermasiano constitui um significativo referencial da sociologia e da filosofia contemporâneas. Nas ciências sociais, espraiou-se por vários campos, inclusive a administração, ao qual ainda tem muito a oferecer. O translado da sociologia e da filosofia - seus loci originários - para campos diversos não se dá, no entanto, de maneira intuitiva; é necessário mediação. O objetivo do presente artigo é, em nível epistemológico e metodológico, demonstrar uma forma de mobilização do referencial habermasiano na pesquisa em administração, o que se faz por meio de ilustração didática, servindo-se de uma pesquisa que investigou distorções comunicativas em relatórios organizacionais de sustentabilidade. As questões de método apontadas exploram o modo de proceder utilizado na pesquisa, visando ao potencial explicativo do procedimento. A partilha empreendida tenciona estimular o manuseio do referencial habermasiano na pesquisa em administração, seja pela réplica da forma apresentada, seja, sobretudo, inspirando outras formas de operacionalização do referencial.

Palavras-chave: Teoria crítica. Habermas; Administração; Organizações. Procedimentos metodológicos

Resumen

El pensamiento habermasiano constituye un referente significativo de la sociología y filosofía contemporáneas. En las ciencias sociales se ha extendido a varios campos, incluida la Administración, a la que todavía tiene mucho que ofrecer. Sin embargo, la transferencia de la sociología y filosofía, sus loci originales, a diferentes campos no ocurre intuitivamente: la mediación es necesaria. El objetivo de este artículo es, pasando por el nivel epistemológico y acercándose al metodológico, demostrar una forma de movilizar el referente habermasiano en la investigación en Administración. Esto se hace a través de una ilustración didáctica, utilizando una investigación que analizó las distorsiones comunicativas en los informes de sostenibilidad corporativa. Los problemas de método señalados exploran el modo de proceder utilizado en la investigación, teniendo en vista el potencial explicativo del procedimiento. La compartición emprendida pretende estimular el manejo del referente habermasiano en la investigación en Administración, ya sea replicando el formulario presentado, o (sobre todo) inspirando otras formas de operacionalización del referente.

Palabras clave: Teoría crítica; Habermas; Administración; Organizaciones; Procedimientos metodológicos

Abstract

Habermasian thought constitutes a significant reference in contemporary sociology and philosophy, permeating various fields of the social sciences, including administration, where it holds considerable potential. However, the transfer from its original loci in sociology and philosophy to different fields is not seamless and requires mediation. This article aims to demonstrate a way of mobilizing the Habermasian framework in administration research at the epistemological and methodological levels. The study employs a didactic case based on a research investigating communicative distortions in corporate sustainability reports. At the methodological level, the Habermasian framework helps to explore the procedures adopted in the didactic case, revealing the framework’s explanatory potential. This study seeks to stimulate the use of the Habermasian framework in administration research by replicating the approach introduced in this article or, more importantly, inspiring other forms of operationalizing the framework.

Keywords: Critical theory; Habermas; Administration; Organizations; Methodological procedures

INTRODUÇÃO

A apropriação do pensamento habermasiano pela pesquisa em administração não é intuitiva e tende a demandar esforço intelectual, sem o qual o risco de incorrer em esterilidade é significativo. A dificuldade parece ser maior quando se pretende realizar pesquisa empírica, especialmente nos moldes da administração. Habermas é sociólogo, filósofo, e, a despeito da abertura de seu pensamento a outras disciplinas, conduz pesquisa de modo distinto de como usualmente se faz na administração. Ademais, é portador de uma macrossociologia, que se ocupa de questões amplas sucedidas no horizonte da modernidade. A administração, embora experimente progressivo elastecimento em seu enfoque, carrega um comprometimento embrionário com um objeto particular: a organização, sobretudo a empresarial. Habermas, conquanto teça comentários sobre a empresa, não escreve com o fito de compreendê-la nem chancela premissas básicas que, na administração, ganham status naturalizado, colocando-se à margem do espectro do pensável.

Por que, então, mobilizar o pensamento habermasiano na pesquisa em administração? Seja qual for, a resposta passa pelo intento de teorizar criticamente na administração. Um projeto emancipatório da magnitude do habermasiano não pode prescindir da reforma das organizações e da forma como se inscrevem na sociedade as relações que as envolvem. Qualquer projeto emancipatório aventado na teoria organizacional deve, se não compartilhar do projeto habermasiano, ao menos considerá-lo. Como, porém, realizar a aproximação? É este o ponto que suscita o objetivo do presente artigo: demonstrar como mobilizar noções do pensamento habermasiano na pesquisa em administração.

Não se trata de condensar os modos de mobilização num único modo. A finalidade é apenas dividir com aqueles que têm interesse na aproximação um modo de proceder, que pode ser replicado em pesquisas futuras ou inspirar outros modos. Como ressaltado por Favoreto et al. (2019, p. 8), “a despeito de transcorridas mais de duas décadas desses escritos, inseguranças ainda permeiam o terreno em que se opera a aproximação entre o pensamento habermasiano e a administração”. Toma-se como ilustração didática, para tanto, uma pesquisa que analisou distorções comunicativas em relatórios de sustentabilidade de empresas que integram a carteira ISE - índice de sustentabilidade empresarial -, na qual se examinam relatórios de 4 empresas. Especificamente, a pesquisa converteu em categorias analíticas os pressupostos pragmáticos veiculados por Habermas na teoria do agir comunicativo - inteligibilidade, verdade, legitimidade e sinceridade -, considerando distorcidas comunicações que não atendem a tais pressupostos (Inocêncio & Favoreto, 2022).

Antes de adentrar a aproximação, veremos o pensamento do autor. Pretende-se, com isso, chamar a atenção para os limites do uso do referencial habermasiano, que, a despeito de receptivo, não se presta a qualquer operação. Entre outros, há limites ao sistema teórico desenvolvido pelo autor, ao tempo histórico em que se desenvolveu sua obra e à tradição intelectual na qual se inscreve. A farta acolhida do pensamento habermasiano em meios distintos talvez o ressignifique, mas não deve descaracterizá-lo no que tem de principal. A popularidade de Habermas, paradoxalmente, pode ocultá-lo. É o risco de ser mobilizado, de ser comentado. Conhecer a posição do autor no quadro maior da intelectualidade ajuda a preservá-lo.

HABERMAS, TEÓRICO CRÍTICO DA MODERNIDADE

Habermas nasceu em 1929, em Düsseldorf, na Alemanha. Ainda moço, passou pela Segunda Guerra, evento que deixou marcas profundas em seu pensamento. Não por acaso, Habermas dá centralidade ao consenso, elemento pretensamente orientador das relações intersubjetivas, que guarda relação com um tipo de processo deliberativo a que Sofield e Marafa (2019, p. 540) aludem como “definir coletivamente os problemas e propor soluções que atendam, na medida do possível, aos objetivos dos diferentes participantes”. Não por acaso, a democracia aparece em seu pensamento como tema maior, postura de um pensador que vivenciou o totalitarismo e compreendeu a nova realidade social como complexa e plural. Interpretando o pensamento habermasiano, Lara e Vizeu anotam:

[...] o autor considera que a habilitação da esfera pública sem constrangimentos discursivos e estruturais, onde as decisões para a ação social potencialmente podem ser tomadas sem qualquer imposição coercitiva e ideologicamente subordinadas, torna possível se vislumbrar uma disposição democrática baseada no diálogo e na busca por consenso intersubjetivamente constituído (2019, p. 8, grifo nosso).

Sua teoria do agir comunicativo, sintetizada em obra publicada em 2 volumes em 1981 (Habermas, 2012a, 2012b), tem sido mobilizada em campos diversos. A partir dela, Habermas revisitou, em 3 importantes obras, os tradicionais 3 elementos da razão prática. Em Consciência moral e agir comunicativo, publicada na primeira metade da década de 1980, fala de ética e moral (Habermas, 2003); em A inclusão do outro, publicada na segunda metade da década de 1980, de política (Habermas, 2018); em Direito e democracia, publicada no início da década de 1990, de direito (Habermas, 2020). O projeto iniciado em 1968, com Técnica e ciência como “ideologia” (Habermas, 2014b), culmina na obra de 1981 e em outra de 1992, quando Habermas, desdobrando o próprio aparato conceitual - promovendo ajustes naturais, dada a passagem do tempo -, completa a análise dos elementos da razão prática, cujo bloqueio e o correspondente intento de desbloqueio estão no centro de seu projeto crítico, como diagnóstico e prognóstico.

No quadro do pensamento sociológico, Habermas é um teórico da racionalização, a compreender a sociedade moderna como produto da racionalização social. Martuccelli (2013) identifica 3 grandes matrizes emergidas entre o fim do século de XIX e o fim do século XX, a da diferenciação social, a da racionalização e a da condição moderna, e situa Habermas na da racionalização, que se inaugura a partir do pensamento de Weber e desdobra-se em autores como Horkheimer, Adorno, Marcuse. Habermas, nesse quadro, toma parte na matriz que se apoia na ideia de modernização como desencantamento - no pensamento weberiano, “processo histórico-religioso”, a implicar a “eliminação da magia como meio de salvação” (Weber, 2004, pp. 96-106).

Horkheimer, Adorno e Marcuse são teóricos que, assim como Habermas, se notabilizaram na tradição frankfurtiana, a qual teorizou criticamente sobre o capitalismo, à luz de uma leitura renovada do marxismo. A teoria crítica, expressão que designa o tipo de teoria operado pelos frankfurtianos, pretendia recuperar promessas não cumpridas da modernidade. Para Habermas, a modernidade é um projeto inacabado. A ideia encorpa com o clássico Teoria tradicional e teoria crítica, publicado em 1937 (Horkheimer, 2002). Nele, estabelece-se o corte metodológico que viria a orientar a atuação dos frankfurtianos. A teoria crítica nasce em oposição à tradicional, lastreada no positivismo. Recusando-se a segregar o descritivo do normativo, a teoria crítica busca, na fusão entre razão teórica e razão prática, a força emancipatória de que carece a teoria tradicional. Ainda hoje, preserva-se o estilo. Garcia et al. (2018), por exemplo, buscam reconstruir as esferas públicas como categoria empírico-descritiva e normativa da gestão social. A teoria crítica olha para o que é em vista do que poderia ser, buscando, na realidade concreta, identificar obstáculos e potenciais emancipatórios - uma emancipação que se dirige, em especial, à igualdade e à liberdade.

Manter o equilíbrio entre o descritivo e o normativo é uma das chaves para demarcar a teoria tradicional. Se não otimismo, o texto de 1937 reverberava certa esperança. A emancipação era efetivamente uma aposta. No entanto, ocorrências perturbadoras, como a eclosão da Segunda Guerra, abalaram a esperança. Em 1947, Dialética do esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 1985) já denotava que o pêndulo havia mudado de posição. Dois dos principais frankfurtianos da primeira geração desconfiavam da própria razão, que bloqueara as possibilidades de emancipação. O texto atestava o óbito da racionalidade que movimentara o projeto moderno. Ao contrário de fomentar a emancipação, a razão a obstava. Uma década depois de sistematizada, a teoria se tornara um celeiro de pessimismo.

O breve resgate desse percurso é fundamental para posicionar o pensamento habermasiano. Quando Horkheimer e Adorno retornam para a Alemanha após exílio nos Estados Unidos e passam a tomar parte no debate público como intelectuais, Habermas é um jovem. Estudioso tenaz, envereda-se pelo caminho otimista de buscar alternativas de desbloqueio da razão e de resgatar-lhe a credibilidade, recuperando, de certa forma, a esperança consignada na teoria crítica, marcada, em alguns momentos, por intensa melancolia. Enredado na paisagem da teoria crítica, Habermas se contrapõe ao legado de seus predecessores - uma situação aporética da crítica e um bloqueio estrutural da prática transformadora -, reformulando o conceito de racionalidade (Nobre, 2004).

Marcado pela virada linguística, Habermas propõe o deslocamento do paradigma do sujeito para o da linguagem. A pragmática da linguagem habermasiana o distancia da epistemologia historicista. Refutam-se as asserções absolutistas sobre o curso da história, o condicionamento sincrético do porvir ao passado, os apriorismos e as arquiestruturas. Daí vem a demarcação de sua posição em relação ao marxismo, do qual, na esteira da tradição dos frankfurtianos de primeira geração, incorpora não poucas contribuições.

De modo significativo, o marxismo orientou por muito tempo o pensamento e a práxis política irradiados da cena europeia e alastrados mundo afora. Habermas inicia seu projeto de teoria social numa época em que o socialismo, inspirado no marxismo, se oferecia como alternativa ao capitalismo. O Estado, qual o exercício político nele operado, foi concebido pelo marxismo originário como engrenagem voltada à dominação de classes, que se instaura em sociedade com vistas a sustentar os interesses dos dominantes; o direito, ligado ao Estado, como legitimador da dominação; e a ética, como valores burgueses que reforçavam o status quo. Considerando os apontamentos marxistas em sua leitura de sociedade, Habermas oferta uma apreciação diversa das instituições - políticas e jurídicas, por exemplo -, não deixando de vislumbrar nelas um potencial emancipatório. A emancipação se descola da revolução, o que tem como contrapartida a valorização dos potenciais emancipatórios consignados em mecanismos do estado democrático de direito (Nobre, 2004).

A guinada paradigmática operada no pensamento habermasiano atinge mais, porém, a relação com o paradigma da filosofia da consciência, que Habermas considera esgotado, como aventado em O discurso filosófico da modernidade, no capítulo “Uma outra via para sair da filosofia do sujeito” (Habermas, 2000, p. 411). Sob influência de pensadores como Charles Sanders Peirce, Habermas busca aberturas para a passagem de uma filosofia centrada na consciência para uma filosofia centrada na comunicação. A abordagem pragmatista de Peirce foi percebida por Habermas, no contexto de uma comunidade de pesquisadores, como promessa de salvar os insights kantianos de forma destranscendentalizada, mas analítica (Habermas, 2002). O pensamento habermasiano adversa a filosofia do sujeito como concebida por Kant e suas derivações, ancorando-se na ausência de um determinismo ontológico ou epistemológico e na viabilização de um procedimento que comporta o entendimento mútuo.

De igual modo, o positivismo é perspectivado criticamente no pensamento habermasiano. Espraiado pelas sociedades ditas modernas, o positivismo se consolidou como cânone do desenvolvimento, condicionando a validade do conhecimento ao seu enquadramento no estatuto de cientificidade em vigor. Acolhendo a sempiterna possibilidade de falseamento, desenvolveu-se com pretensões englobantes, salvaguardando-se, ao mesmo tempo que degredava formas de conhecer não afeitas ao seu figurino. Os elementos que, originariamente, não se davam a leituras científicas - a política e o direito, por exemplo - se cientificizaram, em resposta à supremacia positivista. Habermas se contrapõe ao ideal de objetividade, sobrelevando a relação das descrições com padrões, que não se inferem logicamente nem se comprovam empiricamente, mas que se estabelecem mediante argumentos. Tanto na teoria do agir comunicativo quanto na do conhecimento habermasianas se encontram móbeis que apontam para transcendência da lógica ou do empirismo positivistas.

No plano dos acontecimentos de época, Habermas vivencia um século marcado por demonstrações do estado de barbárie a que o ser humano, coletivamente, pode chegar. Parte significativa de tais eventos sucederam na companhia histórica de regimes totalitários. Arendt (2012) concebe o totalitarismo como uma conjugação de elementos: medo, terror, burocracia, anulação da individualidade, massificação, entre outros. O totalitarismo ocupa o espaço derivado da anulação do espaço entre os homens. Onde não há agir potencialmente autônomo, a política, a ética e a comunicação se acanham, restando inviabilizadas. A democracia, não fortuitamente, se releva no projeto habermasiano, com destaque para sua noção de democracia deliberativa, que repercutiu como modelo de deliberação política. O estado democrático de direito, em especial a partir dos anos 1990, ocupa posição significativa em sua pesquisa. Conectado à democracia subsiste o agir comunicativo, perturbado em situações de violência.

Envolto na teoria crítica, Habermas, mantendo-se crítico, busca renovar o que circulava entre os frankfurtianos, sobretudo no que diz respeito à concepção de razão e de racionalidade. No horizonte do pensamento do autor, preservam-se o intento e a expectação de reabilitação da razão. Não por acaso, Habermas se notabilizou por relevar a possibilidade de emancipação, revertendo o pessimismo crítico por vezes presente entre os frankfurtianos. Seu engenho foi desdobrar a racionalidade para além da perspectiva instrumental. Ao plano do sistema econômico e político, regido pela razão instrumental, Habermas conjugou o mundo da vida, tecido vivo da sociedade, regido pela razão comunicativa. Ele adicionou à razão um potencial preterido em argumentos alvitrados por teóricos frankfurtianos da primeira geração e a reanimou. Se a razão escraviza, ela também pode emancipar. Há que se exceder, e o diagnóstico crítico é capaz de apontar os pontos de entrave.

CONSIDERAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS

A seção precedente situa, sob coordenadas gerais, o pensamento habermasiano no contexto europeu, no quadro da tradição frankfurtiana. A posição que se estabelece em decorrência de suas características, ou as características que se estabelecem em decorrência de sua posição, definem limites ao seu manuseio. Habermas, como qualquer outro grande pensador, não se presta a qualquer propósito analítico, de modo que conhecer sua posição no campo sociológico nos auxilia a visualizar suas potencialidades e insuficiências, suas compatibilidades e incompatibilidades.

Na presente seção, com finalidade semelhante, projeta-se o pensamento habermasiano à pesquisa em administração, ao que se procede fazendo referência, no ponto de partida, aos estudos organizacionais. O encaixe entre o pensamento e o campo no qual dele se faz uso não se dá de modo aleatório. Predisposições de um e outro condicionam a forma como se opera a aproximação. No âmbito dos estudos organizacionais, como apontam Andrade et al. (2019, p. 13), a despeito de seguir limitada a discussão das ideias habermasianas, os estudos organizacionais vêm se afigurando como campo de interface importante entre a pesquisa em administração e referenciais das ciências sociais para ela ainda inusuais.

Afetam-se os estudos organizacionais por epistemologias diversas. Na resenha de um instigante texto de Ana Paula Paes de Paula, “Repensando os estudos organizacionais”, Nogueira e Favoreto (2017, p. 238) expressam que os fundamentos epistemológicos dos diferentes caminhos pelos quais se têm conduzido os estudos organizacionais “podem e devem ser questionados pelo motivo de trazerem consigo concepções de mundo que orientam a compreensão das organizações e o desejo de intervenção nas organizações”. Acompanhando Habermas, orienta-se a compreensão do fenômeno organizacional de dada forma, potencialmente distinta da forma que sucederia da companhia de outro pensador.

Em geral, a pesquisa em administração tem sido classificada de acordo com a matriz de paradigmas proposta por Burrel e Morgan (1979). Tal forma de classificação não é isenta de críticas, com destaque para aquelas centradas na argumentação da inadequação do modelo paradigmático kuhniano, tomado como base por Burrel e Morgan, às ciências sociais (Martucelli, 2013; Paes-de-Paula, 2015, 2016). A proposta matricial, estimulando a concorrência, gerou, como relata Caldas (2005, p. 56), “polarização e segregação”. Perspectivas distintas ficaram ilhadas. As provisórias e precárias aberturas se deram num cenário geral do que Paes-de-Paula (2015, p. 49) qualificou como “guerra paradigmática”. A lógica kuhniana de desenvolvimento da ciência não explicaria o desenrolar do conhecimento nas ciências sociais, entre elas administração.

Autores como Martucelli, Paes-de-Paula e o próprio Habermas encontram alternativas ao modelo kuhniano e inspirações para repensar o modo como se concebem os fundamentos epistemológicos na administração. Martucelli (2013) fala em termos de matrizes sociológicas. Villas-Bôas (2010), autor que tem difundido ideias de Martucelli no Brasil, explica que “o conceito de matriz designaria, sobretudo, um espaço de invenção teórica e de descrição da modernidade que não poderia ser reduzido a uma doutrina ou a um único modelo epistemológico consistente” (Villas-Bôas, 2010, p. 565). A noção de matriz comporta continuidade, e às rupturas se sobrepõe sedimentação. Paes-de-Paula (2015) fala em termos de matrizes epistêmicas, fundamentando-se, para tanto, no próprio Habermas, particularmente em sua teoria dos interesses cognitivos. Nogueira e Favoreto (2017, p. 239) elucidam: “Na proposta engendrada, Habermas assume o papel que, no modelo de Burrel e Morgan, coubera a Kuhn”. Passemos, então, a Habermas.

Em Conhecimento e interesse, publicado em 1968, o autor apresenta sua teoria do conhecimento (Habermas, 2014a). Para ele, a dinâmica na qual se gera conhecimento se alimenta de interesses de 3 tipos: técnico, prático e emancipatório. São interesses e orientações básicas a mover conhecimento, e não o contrário. A cada interesse é correspondido um tipo de conhecimento. Ao técnico, o conhecimento engendrado nas ciências da natureza, empírico-analíticas, que operam na dimensão da realidade objetiva, da atividade instrumental, do trabalho; ao prático, o conhecimento engendrado nas ciências do espírito, hermenêuticas, que operam na dimensão da realidade social, do entendimento intersubjetivo, da interação; ao emancipatório, o conhecimento engendrado na ciência crítica, que opera na dimensão da autorreflexão, da liberdade, da transformação social. Entre eles, estabelecem-se interdependência e complementaridade. De modo isolado, cada conhecimento é incompleto e distante das necessidades sociais.

O interesse técnico se manifesta na tentativa de controlar, prever e manipular os ambientes natural e social. As ciências empírico-analíticas se voltam especialmente para a predicação e o controle. Elas jogam com teorias e enunciados nomológicos, generalizáveis, passíveis de verificação empírica. Formulam-se hipóteses (a priori) e verificam-se hipóteses (a posteriori). A passagem do antes para o depois se dá por observação sistemática da realidade - uma realidade, portanto, pressuposta. A validade do conhecimento é extraída da coerência entre teoria e fatos. Uma teoria é boa quando “atua” no ambiente, produzindo os efeitos previstos. Os silogismos e a matemática são copiosos na argumentação transcorrida nas ciências empírico-analíticas.

O interesse prático se manifesta na interação, simbolicamente mediada, entre sujeitos socializados, conhecedores de si mesmos e dos outros como intercambiáveis. O quadro referencial aqui não se adstringe à atividade instrumental. As ciências hermenêuticas se voltam para a interação, mediada pela linguagem. O propósito é granjear entendimento. A interpretação e a compreensão do significado substituem a formulação de leis gerais. A validade do conhecimento se desloca da aderência entre teoria e fatos para o consenso sobre significados, em meio a uma realidade que não está de todo dada, sendo construída pelos sujeitos. Em lugar de silogismos e matemática, os sentidos marcam a argumentação nas ciências do espírito, hermenêuticas.

O interesse emancipatório se manifesta, na relação com o interesse técnico, no questionamento de suposições dadas como certas pelas ciências empírico-analíticas e, na relação com o prático, na reflexão sobre os significados compartilhados. Associado à ciência crítica, constitui-se como prática reflexiva, inserta num movimento que visa à emancipação social. Teorias que se propõem críticas se engajam na denúncia das formas de dominação e de exploração vigentes. A validade do conhecimento emancipatório é buscada na contribuição para uma ação humana responsável e autônoma. É conhecimento dirigido para gerar transformação social.

A despeito das lógicas distintas, os conhecimentos são comunicáveis. O conhecimento prático, por exemplo, informa aquilo que é pensável no conhecimento técnico. Nem tudo que é factível, afinal, é admissível. A pesquisa tomada como base no presente artigo se move, possivelmente, pelos interesses prático e emancipatório. Analisando distorções comunicativas em relatórios de sustentabilidade, envereda-se na busca por significados compartilhados, mas não só. Também denuncia manipulações no processo comunicativo, transcorrido numa situação de fala em que as partes ocupam posições desiguais. A relação entre quem comunica (a empresa) e quem recebe a informação (o público) se estabelece como uma relação de poder.

TIPIFICAÇÃO GERAL DA PESQUISA

A pesquisa tomada como base é de abordagem qualitativa. Como explicitado em Triviños (1987), a pesquisa qualitativa é uma alternativa metodológica ao positivismo quantitativista, reconhecendo-se, porém, como pontuado pelo próprio autor em texto que versa sobre a pesquisa qualitativa em educação: ser falsa a dicotomia quantitativo-qualitativo; servir positivamente ao conservadorismo postulado do estrutural-funcionalismo, o qual assinala certo tipo de pesquisa qualitativa; a possibilidade de que a pesquisa seja, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa. Não reside o interesse em generalizações ou predições, e sim no significado e na sua construção, segundo Merrian (2009, p. 24), em “como o significado é construído, como as pessoas dão sentido às suas vidas e aos seus mundos”, tendo por objetivo “descobrir e interpretar esses significados”. Nos termos de Willig (2008, p. 9), “descrever e possivelmente explicar eventos e experiências, mas nunca prever”. Cuida-se, assim, de uma abordagem afim à construção de conhecimento orientado por interesses de ordem prática ou emancipatória.

No Brasil, a abordagem qualitativa é uma tendência prevalente na pesquisa empírica em administração que mobiliza o referencial habermasiano. Em levantamento recente, Inocêncio e Favoreto (2020) identificaram que a produção publicada em periódicos brasileiros de estratos mais elevados se constitui, em sua maior parte, de ensaios teóricos, e o que há de pesquisa empírica é de abordagem qualitativa. Sublinham os autores: “Destaca-se que esses estudos de caso, qualitativos, contrapõem-se à perspectiva positivista tradicional” (Inocêncio e Favoreto, 2020, p. 131). Em outro trecho, afirmam:

A abordagem qualitativa utilizada nesses estudos procura superar o tratamento estatístico dos métodos quantitativos, pois o pesquisador emprega métodos e técnicas que reúnem informações com a interação dos pesquisados, permitindo a pesquisa qualitativa ser capaz de descrever, interpretar e explicar (Inocêncio & Favoreto, 2020, p. 141).

No que toca à finalidade, a pesquisa é de cunho eminentemente descritivo, uma vez que se propõe a descrever as distorções comunicativas presentes nos relatórios, detalhando como se manifestam. A descrição guarda relação estreita com a abordagem qualitativa. Flick (2013) destaca que a descrição e a reconstrução da complexidade das situações são mais relevantes na pesquisa qualitativa do que estudar relações do tipo causa e efeito. Eisenhardt e Graebner (2007), versando sobre o estudo de caso - uma das formas comuns pelas quais se conduz pesquisa qualitativa na administração e a forma, como estudo de múltiplos casos, eleita pela pesquisa em tela -, destacam seu caráter altamente descritivo.

Uma marca final que convém registrar é o tom exploratório da pesquisa, característica que se relaciona com o fato de não serem correntes pesquisas do tipo. Toda pesquisa exploratória leva consigo um pouco do incomum, do insólito, que pode estar no fenômeno para o qual se volta, mas também na forma como se procede. Exploratórias são pesquisas que abrem caminho e, assim, suscitam e estimulam aprofundamento por pesquisas ulteriores, concepção que aparece em teóricos como Lakatos e Marconi (2003), bem como em Severino (2017). É difícil imaginar a construção de um conhecimento emancipatório que prescinda de pesquisas do tipo. Explorações são, na pesquisa crítica, inovadoras - pesquisas que se colocam diante de um novo que já está dado, mas que mereceria ser visto de outro modo.

COLETA E ANÁLISE DE DADOS

A pesquisa tomada como base foi estritamente documental - análise circunscrita aos relatórios de sustentabilidade das empresas. Em resumo, esse tipo de pesquisa não interfere nos eventos cotidianos, mesmo porque os dados são coletados sem envolvimento direto de terceiros. Merrian (2009) advoga que, nesse quadro, se demanda do investigador habilidade e intuição para encontrar e interpretar os dados, uma vez que ele próprio atua como espécie de instrumento de coleta. Considerando tal pressuposto, lançou-se mão de 2 táticas balizadoras. A primeira consistiu na derivação dos objetivos de pesquisa em questões indicativas do alvo a perseguir em cada qual, sob a ideia geral de definir o interesse específico envolvido para cada objetivo.

Quadro 1
Operacionalização dos objetivos específicos

A segunda tática consistiu no estabelecimento de definições constitutivas e operacionais - as constitutivas, pinçadas do referencial teórico; as operacionais, adaptadas à pesquisa que se está conduzindo. Vale destacar a relevância desse exercício quando se manuseiam noções abstratas, como costumam ser aquelas provenientes da filosofia. A operatividade de tais noções fica a cargo do analista, a quem incumbe transladar para seu campo algo originariamente inscrito noutro. É possível, nesse movimento, se apoiar em pesquisas prévias, que também enfrentaram o desafio. Decorrem disso pelo menos 3 ações: perpetuar leituras deformadas do referencial de base, desenvolver tradição do modo de apropriação do referencial no campo que dele se apropria e aproveitar a experiência prévia de exercitação do translado. Para lidar com qualquer uma delas, deve-se ter familiaridade com o referencial.

Quadro 2
Definições constitutivas e operacionais

Com base nas definições operacionais, conforme o Quadro 2, formularam-se questões que pudessem auxiliar a identificar as distorções, procedimento indicado na etapa de pré-análise. Conhecidos os segmentos representativos de distorções, os dados foram organizados no MAXQDA, próprio para análise qualitativa de dados. Codificados os segmentos, o software foi empregado para analisar as distorções de inteligibilidade e sinceridade. Tanto a formulação de questões quanto o apoio de software constituem táticas particularmente úteis quando o material a analisar é volumoso.

Quadro 3
Questões para identificação das distorções

A busca sistemática por significado exprime a concepção de análise empregada na pesquisa - nos termos de Merrian (2009), extrair dos dados sentido, a fim de responder às perguntas de pesquisa; nos de Hatch (2002), organizar e interrogar, a fim de identificar padrões, temas, relacionamentos, além de fazer interpretações, realizar críticas e gerar teorias. Tal busca envolve a conciliação de pares postos em díades, como indução e dedução, descrição e interpretação. O procedimento operacional foi colhido da análise de conteúdo, privilegiando a sistematicidade e o esquadrinhamento de significados manifestos e latentes - de outro modo, dirigindo-se, nos termos de Bardin (2011), à presença ou à ausência de uma característica de conteúdo ou de um conjunto de características em dado fragmento de mensagem.

Antes de passar às etapas percorridas na análise, cabem 2 realces. A análise de conteúdo de viés qualitativo sublinha os contextos de fala - o que se depreende, por exemplo, de autores como Gomes (2009) - na compreensão dos significados, favorecendo a interpretação de significados latentes. Trata-se de qualidade fundamental à teorização crítica, que objetiva ultrapassar as aparências primeiras da comunicação. O segundo ponto a realçar é a sistematicidade, apontada por autores como Flick (2013), uma característica da análise de conteúdo de viés qualitativo. A sistematização dos procedimentos imprime transparência na análise, favorecendo o lastreamento da crítica, que, em geral, demanda um assento mais robusto que seu contrário: a reafirmação do estado corrente. Além disso, a sistematicidade é particularmente recomendável quando se opera com um volume grande de textos, como na presente pesquisa.

A pesquisa passou por 3 etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento/interpretação dos dados. Na primeira, procedeu-se à leitura flutuante do material, à seleção dos documentos - de acordo com a relevância, em vista da proposta de pesquisa -, à formulação dos objetivos e ao desenvolvimento dos conceitos teóricos a orientar a análise, traduzidos numa espécie de esquema classificatório. Na segunda, de exploração, à categorização, uma codificação em função do esquema classificatório previamente desenvolvido. Na terceira, de tratamento/interpretação dos dados, a inferências sobre as mensagens, incluindo o contexto formado por elementos como emissor, canal e receptor. Para o planejamento das etapas, apoiou-se principalmente em Bardin (2011) e Gomes (2009).

Quadro 4
Etapas da análise da pesquisa

Selecionaram-se para análise os relatórios mais recentes publicados nos sites institucionais. Das 30 empresas que compunham a carteira ISE de 2020, 4 apenas declararam publicação no padrão abrangente, segundo a instrução 102-54 (Global Reporting Initiative [GRI], 2016). A opção abrangente se baseia na essencial, mas exige divulgações adicionais sobre estratégia, ética, integridade e governança, além de que “a organização deve relatar de forma mais abrangente seus impactos, relatando todas as divulgações de tópicos específicos para cada tópico material coberto pelas normas GRI” (GRI, 2016, p. 21). Entre relatórios produzidos no padrão essencial e no padrão abrangente, optou-se pelos segundos, por serem marcados por um grau de completude supostamente mais elevado. Ao todo, os relatórios analisados somaram 915 páginas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proficuidade da mobilização do referencial habermasiano na pesquisa em administração já se afigura como bastante evidente. Pelo menos 3 vias sobressaem: a interface entre reabilitação da razão prática e organizações; o modo como se enxergam as organizações na estrutura diagnóstico/prognóstico metodologicamente colocada na teoria crítica, em particular no pensamento habermasiano; e o modo como se enxergam as organizações no escopo da díade trabalho-interação, ação instrumental-ação comunicativa. As vias mencionadas são todas de cunho estrutural/estruturante e denotam, por assim dizer, espaços de teorização amplos do pensamento habermasiano, que demarcam suas emanações, observáveis na pesquisa em administração. É preciso haver mediação, e é justamente nesse ponto que reside o maior risco.

Qualquer pensador não apenas pensa o mundo, mas pensa no mundo. Luhmann, interlocutor e contundente opositor de Habermas, alertava para o equívoco contido no pressuposto de que a sociedade pode ser observada de fora (ab extra), como objeto de conhecimento passivo - nos termos do autor, um obstáculo epistemológico (Luhmann & Giorgi, 1995). O sociólogo se acha dentro da sociedade, é nela que se forja. Como lembrava Bourdieu, os pensadores - os intelectuais, nos termos do autor - não tencionam ser eles próprios pensados (Bourdieu, 2019, p. 62). Acresceríamos que não só os intelectuais não se põem em questão; os pesquisadores também não os colocam. Dito isso, cumpre relembrar que Habermas é um pensador europeu dos séculos XX e XXI, tendo por horizonte a Europa contemporânea.

Uma primeira mediação necessária quando se coloca diante da realidade brasileira atine justamente a esse ponto. Considerar diferenças de contexto é fundamental para mitigar as limitações inerentes às transposições. Quando se reflete, por exemplo, sobre o fenômeno a que Habermas alude como “colonização do mundo da vida”, como deixar de cogitar que, em países periféricos, conforme aponta a análise de Soto (2001), a imaturidade do plano sistêmico talvez seja mais problemática que a invasão dos sistemas sobre o mundo da vida? Realidades distintas produzem urgências e teorias distintas. Com relação a esse primeiro ponto, uma tática desponta como útil para subsidiar a mediação: operar a contextualização histórica dos fenômenos em questão. Proceder assim é respeitar história e admitir que dado fenômeno não é analisável de qualquer modo, senão dentro dos limites de sua constituição histórica. A ideia é aproximar o referencial das possibilidades de análise contidas na empiria, intento para o qual concorre a visão de Habermas, que se declara um realista segundo o viés pragmático: “Estou convicto de que, na prática, não podemos senão nos opor a um mundo objetivo feito de entidades independentes da descrição que fazemos delas; um mundo que é mais ou menos o mesmo para todos” (Habermas, 2016, p. 47).

A segunda mediação é deflagrada pelas diferenças entre as áreas - em consequência, entre seus respectivos objetos prioritários de análise. Enquanto Habermas está olhando para a sociedade moderna, a administração visa os fenômenos relacionados à organização, a qual se encontra no tempo moderno, mas, ainda assim, é uma organização. Todavia, há portas no pensamento habermasiano que podem se abrir para a interlocução entre as áreas. Ainda que talvez sem intenção, ao resgatar Weber, relegando a centralidade que seus precedentes conferiram a Marx, Habermas possibilitou a leitura da organização - elemento do sistema econômico - numa perspectiva social. Além da função principal de adequação dos conceitos à análise pretendida, as definições constituem um importante repositório de síntese - não a síntese operada pela junção apenas, mas aquela que se dá pelo amoldamento, em alguma medida cuidadoso, de ideias distintas.

Pesquisas futuras que se engajassem na edificação de uma espécie de vocabulário comum, com o propósito de subsidiar a pesquisa em administração, seriam bem-vindas. O pensamento habermasiano não é hermético. Longe disso. Também não é de fácil compreensão. É provável que sua disseminação entre nós, pesquisadores da administração, não se dê na ausência de empreendimentos que congreguem esforços de sistematização - disciplinas de pós-graduação, projetos de pesquisa, colaborações interdisciplinares etc. Nesse cenário, textos que vulgarizem as possibilidades de aproximação cumprem um papel importante, tanto mais num momento embrionário, quando o modo de apropriação do referencial não está consolidado - cabe lembrar que a pesquisa produzida ainda é tímida em volume, especialmente no contexto nacional, em que o pensamento habermasiano se desenvolveu na administração com certo retardo em relação a outros locais.

Vale ressaltar outro ponto em relação à pesquisa. Seus resultados não são generalizáveis, e o desenho metodológico empregado talvez demande adequações em face dos objetivos postulados em cada circunstância de pesquisa. Analisando relatórios produzidos por empresas integrantes da carteira ISE, a pesquisa pretendeu lidar com empresas tidas como referências na cena nacional em matéria de sustentabilidade, tanto mais em se restringindo a análise a relatórios publicados segundo o padrão abrangente, mais completo que seu par, o padrão essencial. Assim, conquanto não se possam generalizar os resultados, a notabilidade dos atores com que se lida impregna as inferências com certa proeminência. Possivelmente, os relatórios analisados espraiem alguma dose de isomorfismo no campo em questão. Os padrões sugestionam a forma de relatar, numa tendência de homogeneização (Inocêncio & Favoreto, 2022).

Ressalte-se, por fim, a importância de proceder a uma crítica responsável, que, na medida do possível, se afaste de juízos apriorísticos. Diz-se “na medida do possível” porque assumir o ato de comunicação alheio como razoável deve ser um ideal, uma espécie de ideal regulatório do exercício interpretativo, o que não quer dizer um paradigma fundamentalista a se sustentar. Há estruturas maiores dentro das quais se opera a comunicação. Não convém deixar de considerá-las, sobretudo quando se pretende teorizar criticamente. De todo modo, portar uma “atitude caridosa”, nos termos de Dascal (2003, p. 297), na leitura do material analisado contribui para promover uma compreensão entre os interlocutores e para, em decorrência dessa compreensão, construir uma crítica consequente. Na medida do possível, pode ser recomendável se aproximar do exame formal do conteúdo - nesta pesquisa, a harmonização ou não com os pressupostos pragmáticos habermasianos.

REFERÊNCIAS

  • Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento Ed. Zahar.
  • Andrade, L. F. S., Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2019). Comunicação que constitui e transforma os sujeitos: agir comunicativo em Jürgen Habermas, ação dialógica em Paulo Freire e os estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 17(1), 12-24.
  • Arendt, H. (2012). Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo Edições 70.
  • Bourdieu, P. (2019). Questões de sociologia Ed. Vozes.
  • Burrell, G., & Morgan, G. (1979). Sociological paradigms and organizational analysis: elements of the sociology of corporate life Ashgate.
  • Caldas, M. P. (2005). Paradigmas em estudos organizacionais: uma introdução à série. Revista de Administração de Empresas, 45(1), 53-57.
  • Cukier, W., Gagnon, S., Roach, E., Elmi, M., Yap, M., & Rodrigues, S. (2016). Trade-offs and disappearing acts: shifting societal discourses of diversity in Canada over three decades. The International Journal of Human Resource Management, 28(7), 1031-1064.
  • Cukier, W., Middleton, C., & Bauer, R. (2003). The discourse of learning technology in Canada: understanding communication distortions and the implications or decision making. In E. H. Wynn, E. Whitley, M. Myers, & J. Degross(Eds.), Global and organizational discourse about information technology(pp. 197-221). Kluwer Academic.
  • Cukier, W., Ngwenyama, O., Bauer, R., & Middleton, C. (2009). A critical analysis of media discourse on information technology: preliminary results of a proposed method for critical discourse analyses. Information Systems Journal, 19, 175-196.
  • Dascal, M. (2003). Interpretation and understanding John Benjamins.
  • Eisenhardt, K. M., & Graebner, M. E. (2007). Theory building from cases: opportunities and challenges. Academy of Management Journal, 50(1), 25-32.
  • Favoreto, R. L., Nogueira, A. J. F. M., & Bannwart, C. J. J.(2019). Momento de reflexão: pensamento habermasiano e Administração. Organizações e Sustentabilidade, 7(1), 7-10.
  • Flick, U. (2013). Introdução à metodologia de pesquisa: um guia para iniciantes Penso.
  • Forester, J. (1982). Planning in the Face of Power. Journal of the American Planning Association, 48(1), 67-80.
  • Forester, J. (1994). Teoria crítica e análise organizacional. Plural, 1, 131-148.
  • Forester, J. (2003). On fieldwork in a habermasian way: critical ethnography and the extra-ordinary character of ordinary professional work. In M. Alvesson, & H. Wilmoot (Eds.), Studying Management Critically(pp. 46-65). Sage.
  • Garcia, A. S., Pereira, J. R., Alcântara, V. C., & Cruz, E. S. T. (2018). Aprofundamento das esferas públicas para a gestão social: caminhos para uma reconstrução empírico-descritiva e normativa. Cadernos EBAPE.BR, 16(2), 163-185.
  • Global Reporting Initiative. (2016). Foundations https://www.globalreporting.org/information/about-gri/Pages/default.aspx
    » https://www.globalreporting.org/information/about-gri/Pages/default.aspx
  • Gomes, R. (2009). Análise e interpretação de dados na pesquisa qualitativa. In M. C. S. Minayo(Org.), Pesquisa social: teoria, método e criatividade (pp. 79-108). Ed. Vozes.
  • Habermas, J. (2000). O discurso filosófico da modernidade Ed. Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2002). Postscript: some concluding remarks. In M. Aboulafia, M. Bookman, & C. Kemp(Eds.), Habermas and pragmatism Routledge.
  • Habermas, J. (2003). Consciência moral e agir comunicativo Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2012a). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social WMF Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2012b). Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista WMF Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2014a). Conhecimento e interesse Fundação Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2014b). Técnica e ciência como “ideologia” Fundação Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2016). A ética da discussão e a questão da verdade Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2018). A inclusão do outro: estudos de teoria política. Fundação Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2020). Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia Fundação Editora Unesp.
  • Hatch, J. A. (2002). Doing qualitative research in education settings State University of New York Press.
  • Hopwood, B., Mellor, M., & O’Brien, G. (2005). Sustainable development: mapping different approaches. Sustainable Development, 13, 38-52.
  • Horkheimer, M. (2002). Critical theory: selected essays Continuum.
  • Inocêncio, E. R., & Favoreto, R. L. (2020). Contribuições sociológicas de Jürgen Habermas para os estudos organizacionais. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, 14(1), 124-145.
  • Inocêncio, E. R., & Favoreto, R. L. (2023). Distorções comunicativas em relatórios de sustentabilidade: uma análise pautada no pensamento habermasiano. Cadernos EBAPE.BR, 20(4), 543-556.
  • Lakatos, E. M., & Marconi, M. A. (2003). Fundamentos de metodologia científica (5a ed.). Ed. Atlas.
  • Lara, L. G. A., & Vizeu, F. (2019). O potencial da frankfurtianidade de Habermas em estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 17(1), 1-11.
  • Luhmann, N., & Raffaele, G. (2013). Teoria della società(7a ed.). Franco Angeli.
  • Martucelli, D. (2013). Sociologías de la modernidad LOM Ediciones.
  • Merrian, S. B. (2009). Qualitative research: a guide to design and implementation Jossey-Bass.
  • Milne, M. J., Kearins, K., & Walton, S. (2006). Creating adventures in wonderland: the journey metaphor and environmental sustainability. Organization, 13(6), 801-839.
  • Montiel, I., & Delgado-Ceballos, J.(2014). Defining and measuring corporate sustainability: are we there yet? Organization & Environment, 27(2), 113-139.
  • Nobre, M. (2004). A teoria crítica Ed. Zahar.
  • Nogueira, A. J. F. M., & Favoreto, R. L. (2017). Teoria do conhecimento e estudos organizacionais: para além de um único caminho. Teoria e Prática em Administração, 7(2), 237-240.
  • Paes-de-Paula, A. P. (2015). Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento Ed. FGV.
  • Paes-de-Paula, A. P. (2016). Para além dos paradigmas nos estudos organizacionais: o círculo das matrizes epistêmicas. Cadernos EBAPE.BR, 14(1), 24-46.
  • Pierri, N. (2001). El proceso histórico y teórico que conduce a la propuesta del desarrollo sustentable. In N. Pierri, & G. Foladori(Eds.), ¿Sustentabilidad? Desacuerdos sobre el desarrollo sustentable(pp. 27-79). Trabajo y Capital.
  • Severino, A. J.(2017). Metodologia do trabalho científico Cortez.
  • Silva, S. S., Reis, R. P., & Amâncio, R. (2014). Conceitos atribuídos à sustentabilidade em organizações de diferentes setores. Revista de Ciências da Administração, 16(40), 90-103.
  • Sofield, T. H. B., & Marafa, L. M. (2019). Revitalizing field trips in tourism: visual anthropology, photo elicitation, rapid appraisal, participant observation and Habermas. Tourism Management, 7, 522-546.
  • Soto, H. (2001). O mistério do capital: por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo Ed. Record.
  • Triviños, A. N. S. (1987). Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação Ed. Atlas.
  • Villas-Bôas, O Filho. (2010). A sociologia do direito: o contraste entre a obra de Émile Durkheim e a de Niklas Luhmann. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 105, 561-593.
  • Vizeu, F., & Cicmanec, E. R. (2013). A música que encanta, o discurso que aprisiona: a distorção comunicativa em uma loja de departamentos. Cadernos EBAPE.BR, 11(1), 149-164.
  • Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” de capitalismo Companhia das Letras.
  • Welford, R. J. (1998). Corporate environmental management, technology and sustainable development: postmodern perspectives and the need for a critical research agenda. Business Strategy and the Environment, 7(1), 1-12.
  • Willig, C. (2008). Introducing qualitative research in psychology: adventures in theory and method(2a ed.). Open University Press.
  • Word Commission Environment and Development. (1987). Our common future Oxford University Press.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

PARECERISTAS

  • 4
    Rossi Henrique Soares Chaves (Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória / ES - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2229-9472
  • 5
    Paulo Emílio Matos Martins (Universidade Federal Fluminense, Niterói / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3326-9378
  • 6
    José Luiz Zanette (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo / SP - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1792-2020
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES
    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/91503/85939

Editado por

  • Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
  • Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2022
  • Aceito
    14 Ago 2023
location_on
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro