Resumos
Nos últimos 20 anos, o transplante pulmonar tornou-se o tratamento padrão para algumas pneumopatias graves em estágio terminal. Menos de 20% dos pulmões doados para transplante são realmente utilizados. Essa desproporção entre o crescente número de candidatos ao transplante pulmonar e o reduzido número de doadores resulta em aumento da mortalidade nas filas de espera. Estratégias, como o uso de órgãos de doadores marginais, não se mostraram efetivas em aumentar o número de transplantes. Em 2000, na Suécia, foi desenvolvido um método novo para recondicionar pulmões humanos rejeitados para transplante. Descrevemos nossa experiência inicial com a perfusão pulmonar ex vivo.
Transplante de pulmão; Preservação de órgãos; Soluções para preservação de órgãos; Cirurgia torácica
In the last 20 years, lung transplantation has become the standard treatment for patients with end-stage lung disease. However, less than 20% of the donor lungs available for transplant are actually usable. This disparity between the growing number of recipients and the small number of donors has resulted in increased mortality among lung transplant candidates on waiting lists. Strategies such as the utilization of organs from marginal donors have proven ineffective in increasing the number of transplants. In 2000, a new method for reconditioning human lungs that had been previously rejected for transplantation was developed in Sweden. We describe our initial experience with ex vivo lung perfusion.
Lung transplantation; Organ preservation; Organ preservation solutions; Thoracic surgery
COMUNICAÇÃO BREVE
Perfusão pulmonar ex vivo: experiência nacional inicial*
Paulo Manuel Pêgo-FernandesI; Israel Lopes de MedeirosII; Alessandro Wasum MarianiIII; Flávio Guimarães FernandesIV; Fernando do Valle UnterpertingerIV; Marcos Naoyuki SamanoV; Eduardo de Campos WerebeV; Fábio Biscegli JateneVI
IProfessor Associado, Disciplina de Cirurgia Torácica, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
IIDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Cirurgia Torácica e Cardiovascular, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
IIIMédico Estagiário. Grupo de Transplante Pulmonar do Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
IVAcadêmico de Medicina. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
VMédico Assistente. Disciplina de Cirurgia Torácica, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
VIProfessor Titular. Disciplina de Cirurgia Torácica, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Paulo Manuel Pêgo Fernandes Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44, 2º andar, Bloco 2, Sala 9, Cerqueira César CEP 05403-900, São Paulo, SP, Brasil Tel 55 11 3069-5248 E-mail: paulopego@incor.usp.br
RESUMO
Nos últimos 20 anos, o transplante pulmonar tornou-se o tratamento padrão para algumas pneumopatias graves em estágio terminal. Menos de 20% dos pulmões doados para transplante são realmente utilizados. Essa desproporção entre o crescente número de candidatos ao transplante pulmonar e o reduzido número de doadores resulta em aumento da mortalidade nas filas de espera. Estratégias, como o uso de órgãos de doadores marginais, não se mostraram efetivas em aumentar o número de transplantes. Em 2000, na Suécia, foi desenvolvido um método novo para recondicionar pulmões humanos rejeitados para transplante. Descrevemos nossa experiência inicial com a perfusão pulmonar ex vivo.
Descritores: Transplante de pulmão; Preservação de órgãos; Soluções para preservação de órgãos; Cirurgia torácica.
Em 1983, foi realizado o primeiro transplante de pulmão bem sucedido pelo grupo de Toronto. Desde então, o aprimoramento das técnicas de preservação pulmonar, bem como a melhora no manejo pós-operatório (terapia intensiva, antibioticoterapia, imunossupressão) fizeram do transplante pulmonar um tratamento bem estabelecido para pacientes com pneumopatias em estágio terminal. Segundo dados do registro da International Society for Heart and Lung Transplantation, são realizados cerca de 2.000 transplantes anualmente em todo o mundo.(1) Com isso, o número de candidatos ao transplante cresceu muito nos últimos 10 anos, ao passo que o número de órgãos aceitos para o transplante é muito pequeno. Apenas 15-20% dos pulmões disponibilizados para transplante (doadores em morte encefálica) são realmente utilizados. Como consequência dessa desproporção, o tempo de espera para o transplante aumenta, assim como a mortalidade em lista. Alguns centros europeus relataram que até 50% dos pacientes morrem enquanto aguardam na lista de espera de transplante pulmonar.(2,3)
Dados nacionais mostram uma realidade ainda pior. No estado de São Paulo, em 2006, somente 4% dos pulmões doados para transplante foram usados. No mesmo período, a taxa de aproveitamento de fígado e rins foi superior a 90%, segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.(4) Isso pode ser explicado, em parte, pela maior suscetibilidade dos pulmões aos efeitos deletérios da morte cerebral (instabilidade hemodinâmica, insuficiência endócrina, resposta inflamatória, hipotermia e arritmias) e às complicações da internação em UTI (intubação prolongada, pneumonia, barotrauma e infusão excessiva de cristaloides).
Nos últimos anos, várias estratégias foram propostas para tentar aumentar o número de pulmões transplantados, incluindo transplante intervivos, xenotransplante e doadores em parada cardiocirculatória. Essas estratégias, entretanto, ficaram limitadas a um pequeno número de pacientes devido a limitações técnicas e éticas, não tendo o impacto esperado sobre o número de transplantes.(5)
Outra tentativa empregada por alguns centros para aumentar o número de pulmões aproveitados foi a expansão dos critérios usados para a seleção dos chamados doadores ideais. Passou-se a usar um maior número de doadores marginais, isto é, doadores com mais de 55 anos, tabagistas (>20 anos-maço) e com infiltrado localizado na radiografia de tórax. Embora muitos estudos tenham mostrado uma sobrevida a curto prazo semelhante, o uso de pulmões marginais em receptores de alto risco, como aqueles com hipertensão pulmonar severa, está associado a uma maior mortalidade em trinta dias.(6) Dessa forma, essa estratégia também não reduziu de forma significativa o número de pacientes na lista de espera.
Ficou evidente a necessidade de um método que permitisse uma avaliação mais precisa dos pulmões doados e que, ao mesmo tempo, pudesse melhorar a qualidade desses órgãos. Um novo método para a avaliação pulmonar ex vivo foi desenvolvido e usado pela primeira vez em humanos, quando um pulmão de um doador com coração parado foi transplantado por Steen et al., na Suécia, em 2000.(7) A perfusão pulmonar ex vivo (PPEV) pode ser usada também para o recondicionamento de pulmões marginais e de pulmões rejeitados para o transplante, como foi demonstrado em um estudo experimental, através do aumento da PaO2 após a PPEV.(8) No início de 2009, o mesmo grupo publicou um relato de seis pacientes que receberam pulmões inicialmente rejeitados, após seu recondicionamento através da PPEV.(9)
A maioria dos pulmões que não são usados para transplante é rejeitada devido a resultados de gasometria ruins, isto é, PaO2 < 300 mmHg, com FiO2 de 100% e positive end-expiratory pressure (PEEP, pressão expiratória final positiva) de 5 cmH2O. A solução usada na PPEV, comercializada com o nome Steen Solution® (Vitrolife, Gotemburgo, Suécia), é uma solução de composição eletrolítica extracelular, que contém albumina e dextrana, tendo, portanto, alta pressão oncótica.(10) A dextrana, além de aumentar a pressão oncótica, tem efeito antitrombótico, pois reveste a superfície das células endoteliais e plaquetas. Esse revestimento tem efeito benéfico para a microcirculação pulmonar e preserva a barreira alveolocapilar, reduzindo o extravasamento de água e de proteína durante a perfusão.(11) É importante que a PPEV seja realizada sem a formação de edema; para isso, a temperatura é elevada gradualmente até a normotermia (37ºC), e o fluxo é controlado de forma que a pressão de artéria pulmonar (PAP) não ultrapasse 20 mmHg.(10) Manobras de recrutamento alveolar (ventilação manual, elevação da PEEP) podem ser realizadas para expandir áreas com atelectasias.
O sucesso da PPEV em recondicionar pulmões rejeitados, aumentando sua capacidade de oxigenação, deve-se à mobilização e à redução do edema alveolar e intersticial pela alta pressão oncótica da solução de perfusão, além da expansão de áreas previamente com atelectasias.(8,9)
O nosso protocolo de pesquisa foi iniciado em janeiro de 2009, após aprovação prévia na Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e ampla discussão com a Organização de Procura de Órgãos (OPO) do HCFMUSP, OPO da Santa Casa de São Paulo e Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Quando um doador é notificado, as equipes de transplantes são avisadas. Se os pulmões são rejeitados para transplante (em geral por uma gasometria insatisfatória), o termo de consentimento da pesquisa é apresentado aos familiares. Se houver autorização, fazemos a captação dos pulmões de maneira habitual, juntamente com as outras equipes. Usamos como solução de preservação o Perfadex® (Vitrolife), infundido gelado (4ºC) através do tronco da artéria pulmonar (50 mL/kg), enquanto jogamos salina gelada (4ºC) sobre os pulmões para resfriamento tópico. Após a retirada, o bloco formado pelos dois pulmões é armazenado em uma caixa térmica e mantido na temperatura de 4ºC por 10 h.
Depois desse período, iniciamos a PPEV (Figura 1). O sistema é formado por uma caixa de contenção (Vitrolife), uma bomba centrífuga (Braile Biomédica, São José do Rio Preto, Brasil), um trocador de calor (Fisics Biofísica, São Paulo, Brasil), um oxigenador de membrana (Braile Biomédica) e um reservatório venoso. Inicialmente, introduzimos uma cânula na artéria pulmonar (Vitrolife), que já tem uma pequena sonda para a conexão no transdutor de pressão, de forma que a PAP seja continuamente monitorada. O retorno da solução pelas veias pulmonares flui diretamente para a caixa de contenção, sendo drenado para o reservatório venoso por gravidade. Ao contrário do relatado em um estudo,(12) não utilizamos a canulação do átrio esquerdo em sistema fechado, deixando a técnica mais simples e eliminando a necessidade da cânula especial para o átrio utilizada por esses autores. O sistema é preenchido com 1500 mL de Steen Solution®. Optamos pelo uso da solução acelular, uma vez que a obtenção de sangue humano para estudo não é simples. Além disso, conseguimos reduzir o volume necessário de perfusato com o uso de oxigenadores, reservatórios e tubos infantis (Braile Biomédica). O pH é ajustado entre 7,35 e 7,45 pela adição de trometamol (Addex-THAM®; Fresenius-Kabi AB, Uppsala, Suécia). O fluxo que usamos para a perfusão de ambos os pulmões é de 40% do débito cardíaco (DC) estimado. Esse valor é calculado pela seguinte fórmula: DC = 3 × área de superfície corpórea.
Iniciamos a PPEV com a solução na temperatura de 20ºC e um fluxo inicial de 10% do calculado. A temperatura é gradualmente elevada até 37ºC nos primeiros 30 min. O fluxo também sobe lentamente, atingindo 30% do calculado em 30 min, e alcançando o fluxo máximo (40% × DC) em 60 min. Se a PAP chegar em 20 mmHg antes que o fluxo máximo seja atingido, esse é mantido em um valor mais baixo. É imprescindível que a PAP seja mantida abaixo de 20 mmHg para minimizar a formação de edema. Quando a temperatura do perfusato atinge 32ºC, a ventilação é iniciada através de uma sonda orotraqueal nº 8 introduzida na traqueia. Nesse momento, é liberado um fluxo (aproximadamente 1 L/min) de gás (7% de CO2 e 93% de N2) no oxigenador de membrana que, na realidade, irá desoxigenar o perfusato proveniente das veias pulmonares, de forma que a solução que entra na artéria pulmonar tenha as concentrações gasosas do sangue venoso.
A ventilação mecânica é estabelecida com os seguintes parâmetros: volume corrente de 6 a 8 mL/kg, FR de 7 ciclos/min, PEEP de 5 cmH2O e FiO2 de 100%. Quando o fluxo de perfusão atinge o valor máximo calculado, amostras do perfusato são colhidas das veias pulmonares para a análise gasométrica.
Nos três casos realizados até o momento, observamos uma melhora significativa da PaO2 (Tabela 1). O segundo caso já tinha uma PaO2 satisfatória, sendo rejeitado devido à pneumonia extensa.
Estes três casos representam nossa experiência inicial, que foi animadora. Após treinamento adequado, não é difícil realizar a PPEV, e a diferença encontrada nos resultados das gasometrias aponta para uma melhora significativa na capacidade de troca gasosa dos órgãos avaliados. Prosseguiremos nossos estudos com PPEV no intuito de entender melhor qual é a sua ação no tecido pulmonar, por meio de estudos de anatomia patológica, visando sua aplicação clínica em breve.
Agradecimentos
Agradecemos à Vitrolife, à OPO-HCFMUSP, à OPO da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e à Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.
Recebido para publicação em 15/6/2009.
Aprovado, após revisão, em 9/7/2009.
Apoio financeiro: Este estudo recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e das empresas Farmoterápica e Braile Biomédica.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2009 -
Data do Fascículo
Nov 2009
Histórico
-
Aceito
09 Jul 2009 -
Recebido
15 Jun 2009