Open-access Incidência de tromboembolismo venoso fatal em vasculite associada a anticorpo anticitoplasma de neutrófilos

CARTA AO EDITOR

Incidência de tromboembolismo venoso fatal em vasculite associada a anticorpo anticitoplasma de neutrófilos

Alfredo Nicodemos Cruz SantanaI; Teresa Yae TakagakiII; Carmen Silvia Valente BarbasIII

IAlfredo Nicodemos Cruz Santana Médico Assistente, Departamento de Doenças do Tórax, Hospital Regional da Asa Norte - HRAN- Escola Superior de Ciências da Saúde/Secretaria de Estado da Saúde - ESCS/SES - Brasília (DF) Brasil

IIMédica Assistente, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil

IIIProfessora Livre-Docente dePneumologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP) Brasil

Ao Editor:

Relatamos aqui o caso de uma paciente com tromboembolismo venoso (TEV) fatal durante vasculite ativa associada a antineutrophil cytoplasmic antibody (ANCA, anticorpo anticitoplasma de neutrófilos). Este é o primeiro relato desse tipo a ser publicado em um periódico de língua inglesa dedicado à pneumologia. Além disso, estimamos, pela primeira vez, a taxa de mortalidade por TEV em pacientes com vasculite associada a ANCA.

Classicamente, o surgimento de hemoptise e dispneia em pacientes com vasculite associada a ANCA prontamente leva os médicos a considerar hemorragia alveolar difusa (HAD). Entretanto, há cada vez mais evidências de que o risco de TEV seja elevado na vasculite associada a ANCA, especialmente durante a fase ativa.(1-6) Além disso, o TEV pode se manifestar por meio de hemoptise e dispneia em qualquer paciente, inclusive naqueles com vasculite associada a ANCA.

Em julho de 2010, realizamos uma busca no banco de dados PubMed, utilizando os termos ((ANCA AND vasculitis) OR (Wegener's OR Wegeners OR Wegener)) AND granulomatosis) AND (embolism OR embolic OR thromboembolism OR thromboembolic) e limitando a busca aos últimos 30 anos. Identificamos apenas três artigos publicados em periódicos de língua inglesa dedicados à pneumologia.(7-9) Curiosamente, nenhum dos artigos discutia especificamente a associação entre vasculite associada a ANCA e TEV.

Tratamos uma mulher de 61 anos de idade que, 24 meses antes, fora diagnosticada com vasculite associada a ANCA (especificamente, granulomatose de Wegener, com inflamação nasal, radiografia de tórax alterada e inflamação granulomatosa na biópsia pulmonar realizada no momento do diagnóstico) e estivera em remissão durante 18 meses. A paciente procurou nosso pronto-socorro com um histórico de sete dias de edema de perna esquerda e púrpura em ambas as pernas, além de dispneia e hemoptise durante três dias. Estivera em tratamento com prednisona (10 mg/dia) e sulfametoxazol durante os últimos 6 meses. O exame físico revelou dispneia, edema de perna esquerda e púrpura palpável (Figura 1a). A paciente apresentava SpO2 = 83% em ar ambiente. Os resultados anormais dos exames complementares foram velocidade de hemossedimentação elevada e positividade para ANCA com padrão citoplasmático, bem como embolia pulmonar (EP), consolidação pulmonar compatível com infarto pulmonar devido a EP e trombose venosa profunda (TVP), como mostra a Figura 1b. Consequentemente, a paciente recebeu o diagnóstico de vasculite ativa associada a ANCA com TEV (sem HAD). Iniciou-se o tratamento com enoxaparina (1 mg/kg duas vezes ao dia), prednisona (60 mg/dia), ciclofosfamida oral, sulfametoxazol e oxigênio (2 L/min, cateter nasal). Houve melhora clínica. Entretanto, dois dias depois, a paciente morreu de forma repentina, e as circunstâncias de sua morte foram compatíveis com a ocorrência de outra EP. A autópsia revelou TVP/EP sem HAD ou infarto do miocárdio.


A mensagem mais importante deste relato é que os pneumologistas devem estar atentos à possibilidade de TEV na vasculite associada a ANCA. A suspeita clínica precoce de TEV evitará atrasos no diagnóstico e no tratamento, o que propiciará melhores resultados clínicos. Classicamente, quando a hemoptise de fato ocorre (na vasculite associada a ANCA), está geralmente relacionada a nódulos ou infiltrados localizados, e não a HAD, o que não inclui EP como causa de hemoptise na vasculite associada a ANCA.(7) Além disso, embora rara, a síndrome de ativação macrofágica imita HAD em pacientes com vasculite ou doença reumática.(10)

Até agora, apenas quatro estudos descreveram especificamente a prevalência ou incidência de TEV na vasculite associada a ANCA, e nenhum deles foi publicado em periódicos dedicados à pneumologia (Tabela 1).(3-6) Coletivamente, os quatro estudos avaliaram 1.315 pacientes acompanhados durante 5.626,2 paciente-anos. Em 71,5% dos casos, o TEV ocorreu durante a vasculite ativa associada a ANCA. A incidência de TEV foi de 3,73/100 paciente-anos, e a incidência de TEV durante a vasculite ativa associada a ANCA foi de 6,98/100 paciente-anos, uma incidência que é quase tão alta como a observada em pacientes com TEV idiopático prévio (7,2/100 paciente-anos). Os autores atribuem as elevadas taxas de prevalência/incidência de TEV em vasculite associada a ANCA às alterações fisiológicas induzidas pela própria vasculite.(3-6) Uma dessas alterações é a disfunção endotelial, que é classicamente associada à vasculite associada a ANCA e é um importante componente de várias doenças relacionadas a trombose/embolia.(1-6) Além disso, a incidência de TEV é maior na fase ativa da vasculite associada a ANCA, ocasião em que a disfunção/lesão endotelial é mais grave.(1-6) Ainda, a disfunção/lesão endotelial na vasculite associada a ANCA é induzida pela combinação de ANCA e proteinase 3 no soro. A presença de ANCA no soro causa a ativação prematura de neutrófilos, o que interrompe as interações entre os neutrófilos e o endotélio, causando dano endotelial deletério. A proteinase 3 produzida por neutrófilos ativados correlaciona-se com a atividade da vasculite e causa apoptose de células endoteliais. Além disso, os elementos da tríade de Virchow revisitada, que propõe os mecanismos responsáveis por TVP/EP, são a lesão e a inflamação do endotélio vascular, ambas as quais estão presentes na vasculite associada a ANCA. Finalmente, a presença de anticorpos antiplasminogênio, que retardam a conversão do plasminogênio em plasmina e a dissolução de coágulos de fibrina, também favorece a ocorrência de TEV na vasculite associada a ANCA.

Como se pode observar na Tabela 1, estimou-se a taxa de mortalidade por TEV na vasculite associada a ANCA (total de mortes por TEV na vasculite associada a ANCA dividido pelo seguimento total na vasculite associada a ANCA) em 35,5/100.000 paciente-anos (IC95%: 4,3-128,2/100.000 paciente-anos). Essa taxa é semelhante à taxa de mortalidade por crise hiperglicêmica em adultos diabéticos (23,8/100.000 paciente-anos nos Estados Unidos em 2002). Todos esses dados corroboram a importância epidemiológica/clínica do TEV na vasculite associada a ANCA.

Em conclusão, os pneumologistas devem considerar a possibilidade de TEV em pacientes que apresentem vasculite associada a ANCA, hemoptise e dispneia, especialmente durante a vasculite ativa. A suspeita clínica precoce de TEV permite que tanto o diagnóstico como o tratamento sejam também precoces, um fator que está associado a melhores resultados clínicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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