Open-access O interesse público do desporto das organizações desportivas sem fins lucrativos que são apoiadas pela administração pública

Resumo

O artigo analisa o conceito de interesse público do desporto e os critérios que devem ser tidos em conta na relação de apoio entre a administração pública, os clubes e as associações desportivas. Metodologicamente, foram realizadas entrevistas semiestruturadas a nove dirigentes desportivos com responsabilidades diretivas: sete de clubes e associações desportivas e dois da administração pública. Os dirigentes consideraram que o desporto é de interesse publico quando: a) é desenvolvido na perspectiva da generalização da prática da atividade fisica e desportiva; b) proporciona beneficios para a saúde; c) serve como ferramenta de educação e de desenvolvimento social. No que respeita às vantagens utilizadas com o estatuto de utilidade publica, os beneficios fiscais e as parcerias com organizações do sistema desportivo, foram as mais apontadas. Os entrevistados consideram que o Governo deveria ter uma estratégia focada na definição de prioridades e de seriação de critérios de financiamento, no sentido de um melhor aproveitamento do papel dos clubes e da obtenção de resultados desportivos. Sugerem ainda um maior cuidado e rigor, por parte da administração pública regional, na avaliação do papel social e desportivo dos clubes e associações, tendo em conta o desenvolvimento do interesse público e social do desporto. Como conclusão o desporto e a atividade fisica devem ser considerados como atividades de interesse público desde que assegurem efeitos positivos nos planos da saúde e do bem-estar da população, proporcionem o desenvolvimento qualitativo e sustentado da prática desportiva e potenciem o desenvolvimento econômico-social.

Palavras-chave: Interesse público; Clubes desportivos; Desenvolvimento desportivo; Administração pública

Abstract

This paper analyses the concept of public interest in sport and the criteria that must be taken into consideration in terms of Government support to clubs and sports associations. The data was collected through semi structured interviews that were applied to nine sports directors with board responsibilities: seven of them from sport clubs and sport associations, and two of them from public administration. The directors pointed out that sport is considered to be of public interest when: it is developed in the concept of “sport for all”, provides health benefits and serves as a means of education and social development. Regarding advantages used with public utility status, tax benefits and partnerships with the sports system organizations were the most mentioned aspects. Given a better use of financial resources provided by public administration to clubs and associations, sport directors believe that the Government should have a strategy focused on setting priorities and ranking financing criteria for sport. If the government had that strategy, the development of sports results would be much better. The participants also suggest that the Government should conduct an assessment of the social role of sport clubs and associations, according to the public and social interest of sport. In conclusion, sport and physical activity should be considered as public interest activities, provided that: are able to ensure positive effects on health plans and wellness, provide a qualitative and sustainable sport development, improve economic and social development of a population.

Key Words: Public interest; Sport clubs; Sport development; Public administration

Introdução

O desporto é reconhecido como uma ferramenta para a aquisição e melhoria das capacidades físicas e técnicas, contribuindo para o desenvolvimento da educação, socialização e satisfação das pessoas. Quando bem utilizado, representa uma escola de formação de valores educativos e sociais que condicionam o comportamento humano1. O desporto é igualmente um fator de cultura2, um espaço interativo e único, que providencia uma ampla atividade social34.

O interesse público refere-se ao bem comum que uma atividade pode proporcionar no meio social, embora se possa levantar dúvidas quanto aos limites da sua ação. Num extremo, uma atividade deve beneficiar todos os membros da sociedade para ser verdadeiramente do interesse público, por outro lado, qualquer outra pode ser do interesse público desde que beneficie uma parte da população e não prejudique ninguém. Geralmente, o interesse público está associado ao papel do Estado ou de organizações que desenvolvem atividades que visam o bem da sociedade. De acordo com o Business dictionary5, interesse público define-se como: “Welfare of the general public (in contrast to the selfish interest of a person, group, or firm) in which the whole society has a stake and which warrants recognition, promotion, and protection by the government and its agencies”. Uma organização desenvolve um serviço de interesse público quando contribui para o bem social das pessoas tornando-o acessível e generalizável à maior parte da população possível. O desporto enquanto bem público não deve constituir um atrativo para o setor privado na justa medida em que não represente um custo para o utente6, no entanto, as organizações privadas com e sem fins lucrativos, não só podem como devem promover atividades socialmente úteis ao bem comum7. A prática de atividade física, desportiva e recreativa deve estar acessível às pessoas para que elas possam desenvolver as suas capacidades físicas, melhorar o seu bem-estar e aumentar a sua satisfação. Por exemplo, uma promenade ou um passeio público marítimo, pode ser visto como um bem público de acesso a todas as pessoas, sem quaisquer contrapartidas pela sua utilização e frequência. Por estas razões, o desporto e a atividade física, quando acrescentam efeitos positivos nos planos social, cultural e econômico, merecem o reconhecimento e apoio por parte do Estado. Mais, o Estado pode mesmo tirar benefícios indiretos (pela via da redução das despesas com a saúde e com a prestação de cuidados primários) quando dispomos de uma sociedade menos sedentária, desportivamente mais ativa e consciente sobre os efeitos positivos do estilo de vida saudável e de uma prática de atividade física que promove o bem-estar das pessoas89.

A valorização dada ao desporto depende muito da educação e da cultura desportiva que a população evidencia1011, mas também, da forma como é organizado e orientado, no sentido da persecução de determinados objetivos formativos e educativos. Por exemplo, no plano pedagógico, não é o desporto, por si, que determina o caráter positivo ou negativo da sua prática, mas sim a natureza das experiências por ele proporcionadas12. Se o desporto for organizado segundo princípios, valores desportivos e humanos socialmente aceites, seguindo objetivos orientados para a cidadania ativa, consciente e autônoma, e para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, naturalmente provocará impactos positivos na sociedade. O “fair play”, os valores sociais ligados à cooperação, à solidariedade, ao respeito, à superação e competitividade, à dedicação e à igualdade de oportunidades de participação entre gêneros no fenômeno da prática desportiva, constituem verdadeiras oportunidades e desafios para uma sociedade mais justa e humanizadora13. Segundo o código de ética desportiva do Conselho da Europa14 o desporto é

uma atividade sociocultural que enriquece a sociedade e a amizade entre as nações, contando que seja praticado legalmente. O desporto é também considerado como uma atividade que, se for exercida de maneira leal, permite ao indivíduo conhecer-se melhor, exprimir-se, realizar-se desenvolver-se plenamente, adquirir uma arte e demonstrar as suas capacidades (p.3).

As políticas sociais que integram o desporto como fator de desenvolvimento social procuram consciencializar as pessoas para a sua relevância e tentam generalizá-lo a toda a comunidade. Porém, a administração pública central, responsável pelo desenvolvimento destas políticas não possui, de forma isolada, capacidade para dar resposta a todas as áreas desportivas. A própria Constituição da República Portuguesa15, apesar de consagrar o desporto como um direito de todos os cidadãos, reconhece que o Estado precisa da colaboração de várias organizações públicas e privadas sem fins lucrativos para: “promover, estimular, orientar, apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como, prevenir a violência no desporto” (artigo 79°, n.2).

As principais organizações colaboradoras para o cumprimento do desporto enquanto direito dos cidadãos, são as escolas, os clubes e associações voluntárias que, pela sua proximidade com a população, tentam incentivar o direito ao desporto como meio cultural e formativo16, como uma ferramenta de educação e de desenvolvimento local1718 e ainda, como fator de desenvolvimento de uma cultura do corpo são e de bem-estar individual e social19. O movimento desportivo associativo em Portugal, ao nível do setor federado, assemelha-se a uma pirâmide onde podemos encontrar três grandes níveis de associativismo. Na base da pirâmide encontram-se os clubes desportivos que têm a missão de promover a prática do desporto de competição e de recreação, a nível local. O agrupamento dos clubes de uma dada região que praticam uma determinada modalidade desportiva constitui uma associação desportiva de modalidade, a qual, dentro do sistema desportivo, representa uma estrutura intermédia, isto é, que se situa entre os clubes filiados e a respetiva federação nacional. Por sua vez, a federação nacional tutela a modalidade a nível do país, organiza os quadros competitivos nacionais e atua como órgão regulador. Todas estas organizações desempenham papéis diferenciados mas coordenados entre e si, de forma a criar as sinergias capazes de promover mais e melhor competição desportiva. Assim, o Estado pode celebrar protocolos, parcerias, contratos programa e acordos com as autarquias e com o movimento desportivo associativo a fim de facilitar a divulgação da prática desportiva na sua localidade e promover o desporto e a atividade física enquanto fator de melhoria da qualidade de vida das pessoas. De acordo com a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (LBAFD)3 e o Decreto-Lei n. 273/200920, o conceito de interesse público pode ser associado a dois fatores de desenvolvimento desportivo: por um lado, como apoio financeiro à construção e utilização das instalações desportivas afetas aos clubes e demais organizações, no sentido de as tornarem bens acessíveis aos praticantes e à população; por outro, como apoio financeiro à organização de eventos ou competições desportivas que integrem os quadros competitivos regulares das respetivas federações desportivas nacionais ou internacionais.

Para além destes dois tipos de financiamento, o Estado pode suportar parte dos encargos relacionados com: a formação dos diversos agentes desportivos; os programas de apoio ao “desporto para todos”; as atividades desportivas de alto rendimento e de representação do País; a promoção de jogos tradicionais; o apoio à organização de eventos e provas de competição desportiva de interesse nacional ou regional, de modo a potenciar o desenvolvimento da economia e do desporto local21; e ainda à deslocação de pessoas para provas regionais, nacionais e internacionais.

Se analisarmos os efeitos do investimento ou financiamento público no desporto, existem evidências científicas que comprovam um retorno positivo para a economia e para o Estado (impostos), desde que no processo de desenvolvimento de um produto desportivo haja mercado para comprar esse mesmo produto22 ou proporcionar benefícios locais indiretos pela via do desenvolvimento econômico. Por exemplo, entre 1987 e 2002, o governo americano apoiou as equipes profissionais na construção das suas instalações desportivas de forma a potenciar o desenvolvimento econômico e a fomentar o desporto espetáculo. Os impactos positivos para o desenvolvimento da economia local, parecem ter justificado o apoio do Estado neste tipo de fator de desenvolvimento desportivo. O mesmo acontece com o apoio do Estado às federações desportivas nacionais e internacionais para organizarem os campeonatos mundiais e internacionais, pois há resultados que realçam a importância das receitas diretas (compra de bilhetes) com impactos positivos no desenvolvimento da economia local e, também, no desenvolvimento turístico23.

No QUADRO 1 são enunciadas as dimensões e critérios que justificam o interesse público do desporto, tendo por referência os autores consultados e os principais normativos que justificam a intervenção de apoio do Estado no desporto.

QUADRO 1
Dimensões e critérios que definem o interesse público do desporto.

O Estado pode conceder às associações desportivas a “declaração de utilidade pública”29, como forma de reconhecimento da sua importância social, e consequentemente, uma forma de incentivo a benefícios sociais e fiscais. São pessoas coletivas de utilidade pública as associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral e que cooperam com a administração pública. Geralmente, a declaração de utilidade pública, da responsabilidade do Governo, só pode ser concedida ao fim de cinco anos de efetivo e relevante funcionamento, salvo circunstâncias excecionais que justifiquem a redução desse prazo. A aquisição deste título representa uma mais-valia para as associações, na medida em que, objetivamente, podem beneficiar de um conjunto de isenções fiscais previstas na lei e, por outro lado, possibilita um maior poder de angariação de parceiros sociais privados, tendo em vista a comparticipação e apoios das atividades promovidas por estas organizações, seja por via do normativo do Mecenato, seja por via do reconhecimento social.

Para uma pessoa coletiva ser declarada de utilidade pública, as suas atividades devem estar enquadradas com os princípios presentes na Lei e ter um fim de interesse público30. A concessão deste estatuto obedece a exigências, tais como o desenvolvimento interventivo junto da comunidade em áreas de relevo social e cultural, não podendo ter como principal objetivo atividades com fins lucrativos.

Neste estudo pretende-se analisar o conceito de interesse público e os critérios que devem ser tidos em conta na relação da administração pública com os clubes e associações desportivas. O artigo explora ainda a relevância do uso do estatuto de utilidade pública do desporto e as suas vantagens. Finalmente, são apresentadas algumas medidas que estão ao alcance dos clubes e associações, no sentido de valorizarem o desporto, enquanto serviço de interesse público.

Método

O estudo baseou-se numa abordagem de natureza qualitativa sobre o conceito e critérios de interesse público do desporto. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas31 a nove dirigentes, dois com responsabilidades na administração pública desportiva e sete com responsabilidades diretivas nos clubes e associações desportivas. Estas são organizações desportivas sem fins lucrativos que beneficiam do apoio da administração pública regional e desenvolvem a sua atividade na ilha da Madeira, Portugal. Das sete organizações participantes, quatro tinham estatuto de utilidade pública.

Recorreu-se à entrevista para a coleta de dados porquanto é um dos instrumentos mais utilizados quando se pretende compreender e estudar um fenômeno em profundidade32. A consulta e análise da literatura, permitiu alicerçar a primeira versão do guia que foi posteriormente submetido à apreciação de dois professores universitários com um vasto currículo na área da gestão do desporto. As suas considerações e sugestões conduziram a algumas reformulações em termos de conteúdo e organização das questões. Posteriormente, foi realizado um estudo piloto, onde se entrevistaram dois indivíduos com funções semelhantes às dos participantes, no sentido de se apurar o grau de compreensão das perguntas e a duração das entrevistas.

A versão definitiva do guia da entrevista abordou: a identificação da missão social da organização; o conceito e os critérios de definição do interesse público do desporto e o papel que está ao alcance das organizações desportivas para valorizar o desporto enquanto atividade de interesse público.

Os procedimentos éticos de pesquisa considerados respeitaram as diretrizes e normas consagradas na legislação brasileira e portuguesa. Neste medida, inicialmente houve um contato prévio para preparar a entrevista com os dirigentes e associações que ocorreu por duas vias: contato telefônico e pessoalmente, de forma a facilitar a participação do dirigente. Posteriormente foi-lhes solicitada uma declaração de consentimento, na qual, constavam todas as informações sobre as condições do estudo e a garantia da confidencialidade dos dados para fins científicos. Por fim, definiu-se um local e uma hora para a realização das entrevistas, tendo estas sido realizadas durante o mês de novembro de 2012. Foi salvaguardado o anonimato de cada um dos dirigentes e das organizações a que pertenciam e as entrevistas foram realizadas em ambiente confortável e sem a ocorrência de fatores de distração.

Depois de transcritas na íntegra, as entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo na sua função confirmatória33.

Foi utilizado o programa Nvivo 9 para a codificação e tratamento dos dados.

Resultados

Missão e relevância social

No que diz respeito à missão e relevância social diferenciamos os resultados de acordo com o tipo de organização. Assim, as associações de modalidade defendem a missão numa lógica de desenvolvimento e promoção da respetiva modalidade no território sob a sua alçada (ex.: conforme QUADRO 2, Ent. 2, 3 e 9), os clubes apresentam maioritariamente uma missão de educação e formação de jovens (QUADRO 2, Ent. 1, 5 e 7) e, finalmente, as organizações públicas defendem o conceito de promoção da atividade física e do desporto (QUADRO 2, Ent. 6 e 8).

QUADRO 2
Missão e relevância social.

Desporto como um bem de interesse público

Quando inquiridos sobre o que representa o interesse público, a maioria dos dirigentes respondeu que o desporto é de interesse público quando é “para todos”, contrariamente ao que acontece no desporto de alta competição (ex.: conforme QUADRO 3, Ent. 7) e profissional (Ent. 9). Quatro dirigentes (QUADRO 3, Ent. 1, 2, 5 e 7) referem que o interesse público do desporto consiste na educação e formação dos jovens. Uma outra opinião (Ent. 8 o e 9) defendeu os benefícios da prática desportiva associada à saúde das pessoas.

QUADRO 3
Conceito de interesse público desportivo.

Critérios para definir uma atividade desportiva como um bem de interesse público

Quando questionados sobre quais os critérios que definem uma atividade de interesse público, observa-se uma constância entre a maioria dos dirigentes. Existem duas respostas padrão. Na primeira, o critério é quando o desporto é “para todos” (QUADRO 4, Ent. 2, 3, 5 e 6); na segunda alude-se aos benefícios que a prática desportiva traz para a saúde e bem-estar das pessoas (QUADRO 4, Ent. 3, 7 e 9).

QUADRO 4
Critérios para uma atividade desportiva de interesse público.

O que leva as organizações a adquirirem o estatuto de utilidade pública?

Neste estudo, quatro das organizações do setor voluntário gozam do estatuto de utilidade pública. Procurou-se saber os motivos que conduziram as organizações a solicitar o referido estatuto. É evidente uma resposta padrão: três dos quatro inquiridos justificam a requisição do estatuto pelos consequentes benefícios fiscais. A outra reporta-se ao desenvolvimento do trabalho social da organização ao nível da formação humana e da sua relevância social (QUADROS 3 e 4).

No que concerne ao aproveitamento do estatuto de utilidade pública, as respostas comprovam as anteriores, isto é: diversos benefícios fiscais, e ainda uma facilidade em criar parcerias com outras organizações, uma vez que existe um maior reconhecimento social e estatal.

Procurou-se saber ainda o que os dirigentes desportivos esperam do Estado para que continue a haver desporto de interesse público e, consequentemente, o respetivo apoio estatal. A maioria dos dirigentes concorda que o Estado deveria definir qual o desporto que deve ser apoiado e qual o caminho que se quer para o desporto (QUADRO 5). Outra opinião realça a necessidade do Estado ser mais criterioso e exigente nos apoios que faculta aos clubes e associações (ex.: conforme QUADRO 5, Ent. 3 e 5).

QUADRO 5
O que deve fazer o Estado para continuar a haver interesse público no desporto.

A última questão prendeu-se sobre o que cada organização pensa fazer para que as suas atividades sejam de interesse público. Esta era uma questão igualmente aberta, e os resultados foram os seguintes: não existe um padrão convergente entre as respostas dos dirigentes das diferentes organizações. Alguns dirigentes afirmam que para utilizar positivamente o conceito de bem-público do desporto se deve valorizar a formação pessoal e social dos praticantes (ex.: conforme QUADRO 6, Ent. 1, 7 e 9), outros dirigentes defendem as parcerias com outras organizações; há também quem responda que o importante é chegar a um maior número de pessoas (Ent. 2, 8 e 9).

QUADRO 6
O que podem fazer as organizações para o bem-público do desporto.

Discussão

A primeira questão colocada aos dirigentes desportivos estava relacionada com a missão e relevância social das suas organizações. A missão social dos clubes é coerente entre os inquiridos; trata essencialmente da formação de jovens, tanto nas modalidades desportivas lecionadas como no caráter social e humano; as associações têm a missão de promover a modalidade desportiva na região e de organizar eventos e competições. As organizações do setor público têm como papel principal a promoção da atividade física e desportiva, em especial nos jovens e pessoas idosas. Todos os entrevistados focaram o objetivo social, salientando que a sua missão visa a satisfação das necessidades e dos interesses dos seus grupos alvo e que essa atuação irá influenciar a qualidade de vida das populações.

A segunda questão tinha como objetivo indagar a opinião dos dirigentes desportivos sobre o que é o interesse público do desporto. Para a maioria dos entrevistados, existe interesse público quando o desporto é dirigido a todos, isto é, quando é orientado para a participação generalizada da população. Outros entrevistados defendem que são os benefícios que a prática desportiva proporciona ao nível da saúde. Para diversos dirigentes, a alta-competição não deve ser considerada de interesse público.

Na perspetiva de diversos autores, entre os quais Hoye et al.6, o desporto é de interesse público quando promove o bem-estar da população ou quando proporciona um bem comum a uma dada população. Como tal, não só merece ser reconhecido, mas também apoiado pelo Estado. A generalidade dos dirigentes aponta o desporto como uma atividade de interesse público quando envolve a população em geral. A integração e valorização social através do desporto parece ser uma tônica na missão dos clubes inquiridos. Se assim é, então, as políticas de apoio ao desporto deveriam ser menos seletivas (que privilegiam o desporto de alto rendimento e os atletas mais aptos), e mais generalistas e promotoras dos valores sociais34. De entre os valores sociais podem ser desenvolvidos: o “fair-play”, a competitividade, a cooperação, o respeito, a responsabilidade social, o combate à desigualdade entre gêneros e à discriminação de raças. As estatísticas do Instituto do Desporto de Portugal35 revelam indicadores relacionadas com a atividade desportiva federada que refletem o crescimento e desenvolvimento desportivo, nomeadamente: as medalhas conquistadas; o financiamento ao movimento desportivo associativo; as taxas de participação desportiva (considerando a sua distribuição no território nacional), a participação desportiva segundo o sexo e os escalões etários dos praticantes; os fatores humanos e a sua formação - treinadores, árbitros, dirigentes e programas de luta contra a dopagem. A título de exemplo, na questão da igualdade de oportunidades entre o homem e a mulher, não obstante ter havido uma evolução interessante da participação da mulher no fenômeno desportivo25, no setor federado, a variação da taxa de participação do gênero feminino entre 2003 e 2010 foi de apenas 2%, tendo passado de 70.051 praticantes, correspondendo a 23% do total, para 133.471, correspondendo a 25%. O desporto é, ainda, uma atividade social que precisa de valorizar a participação da mulher e a promoção de igualdade de oportunidade de gênero. Não obstante esta discriminação social, muito provavelmente pelo papel multidimensional da mulher na família e na sociedade, o movimento desportivo associativo, através das suas diferentes estruturas (clubes desportivos populares, associações e demais coletividades desportivas), desempenha um papel insubstituível no contexto social global promovendo um “contributo essencial dirigido ao interesse geral”36.

Para além disto, o desporto é um excelente meio de educação1, 18, pois quando devidamente orientado e enquadrado, pode proporcionar maior nível de autonomia e de responsabilidade social nos jovens. Poderá ainda proporcionar níveis de autoconfiança e de organização consideráveis.

Na análise dos programas de apoio ao desporto a nível nacional não se conseguem identificar programas de impacto nacional que incentivam a generalização e integração social através do desporto. Apesar de se saber que existem fenômenos sociais que envolvem violência que são arrastados para os espetáculos desportivos.

Os resultados mostram que alguns dirigentes defendem que o desporto de alta-competição não deve ser considerado de interesse público, mesmo gerando receitas e espetáculo desportivo. Com efeito, é sabido e está comprovado que grandes eventos desportivos movimentam pessoas, empresas e impactos positivos em vários planos37-39. Estes eventos são atrativos para a população que segue estas competições através da comunicação social, considerando também as centenas, ou mesmo milhares, de pessoas que se deslocam aos locais onde decorrem estes eventos, sendo uma mais-valia para a promoção de uma ou mais localidades e consequentemente de um país40.

São muitos os exemplos que ilustram o referido no parágrafo anterior. Resgate-se o jogo da final do Europeu de Futebol 2004, realizado na cidade de Lisboa, disputado pelas seleções portuguesa e grega. Uma final seguida por cinco milhões de Portugueses, mais de três milhões de cidadãos gregos e uma audiência entre 130 e 150 milhões de pessoas a nível mundial. Cada jogo deste torneio teve uma média de 80 milhões de espectadores em todo o mundo. Estes megaeventos são atrativos à escala global, o que torna o desporto um produto apetecível. No entanto, é preciso considerar o retorno econômico e social do investimento público no apoio à organização destes eventos23, 37. Se por um lado, pode ser lucrativo para a organização internacional que tem a tutela do evento (por exemplo, a UEFA alcança lucros significativos com a organização da liga dos campeões europeus), por outro lado, é preciso considerar um conjunto de fatores que devem ser tidos em conta no apoio público. Os impactos diretos e indiretos são determinantes para um evento pontual, como o Campeonato do Mundo de 2014 (Brasil), mas também, a sustentabilidade das instalações desportivas afetas aos eventos e sua utilização pelas equipes locais41. Mais do que organizar o evento, a questão central é perspectivar os efeitos positivos que as instalações desportivas e as suas acessibilidades podem proporcionar aos parceiros locais, ao envolvimento da população e ao desenvolvimento da economia7.

Acrescentamos ainda a organização de um evento desportivo num ambiente ímpar, enquanto fator de integração e de diferenciação de uma identidade local24 e que pode servir como fonte de interesse de um destino de turismo experiencial e desportivo42.

Ainda que a alta-competição possa implicar riscos à saúde dos seus praticantes, é um excelente meio para recrutar jovens praticantes, que querem seguir os passos dos seus ídolos. Neste contexto, consideramos que o desporto de alta-competição, quando bem dimensionado e contextualizado à escala local, segundo um ambiente de desportivismo e de “fair play”13, pode ser de elevado interesse público. Neste sentido, e numa perspectiva de desenvolvimento desportivo há que envolver os atletas de alto rendimento e de prestígio internacional, bem como, os seus treinadores, na promoção de atividades desportivas junto dos mais jovens e na melhoria dos talentos desportivos. Esta ligação é fundamental para haver um desenvolvimento desportivo sustentado e coerente43.

Quando questionados sobre o interesse público das suas atividades, constatam-se diferenças entre as organizações do setor público (exemplo: juntas de freguesia, câmaras municipais e organizações ligadas às mesmas) e as do voluntariado (exemplo: clubes e associações desportivas). As organizações do setor voluntário focam o interesse das suas atividades na formação de jovens a nível desportivo, social e humano. Já as organizações públicas, na sua maioria, apoiam o desporto por intermédio de ajuda a outras organizações.

Os dirigentes desportivos assumem que afastar os jovens de caminhos desviantes é o mais importante. O interesse das atividades tem por base a formação social e humana dos jovens por intermédio do desporto. Na realidade, o desporto pode ser uma ferramenta de desenvolvimento social e humano, reconhecido e valorizado por organizações desportivas internacionais44. Porém, deixamos uma reflexão crítica: aquele ideal nem sempre é observável. A competição deveria ser um espaço agradável, de socialização, onde os atletas mostrassem as suas habilidades desportivas, mas nem sempre é isto que se verifica. São inúmeros os estudos que mostram treinadores e dirigentes preocupados em ganhar a todo o custo, colocando resultados acima de valores educativos e formativos12, 27. Ora, se a missão dos clubes é contribuir para a formação dos jovens e melhoria da qualidade de vida das pessoas, e para o desenvolvimento do desporto enquanto fator de cultura e de bem-estar, então o apoio ao desporto na Madeira, por parte da administração pública, deveria ser mais direcionado para o setor da formação dos mais jovens, do desporto para todos, e menos para o desporto de competição e desporto profissional. Os resultados ilustram uma contradição entre o que os dirigentes defendem na missão e no interesse público do desporto e o que se passa na política desportiva de apoio ao desporto, pois esta está muito mais orientada para o desporto de competição nacional e para obtenção de resultados desportivos nos planos nacional e internacional45.

A literatura menciona que as exigências para se considerar uma atividade desportiva de interesse público estão relacionadas com o tipo de atividade que uma organização desenvolve no meio social onde se insere. Ou seja, se intervém em áreas de relevo social como a cultura e a educação, o desporto pode ser reconhecido e valorizado de interesse público6, 46. Os dirigentes inquiridos afirmam que o critério que define o interesse público depende da existência de benefícios acrescidos na saúde da população.

No que diz respeito ao setor público, os dirigentes afirmam que podiam fazer mais, mas a atual conjuntura econômica não permite. Se é um fato que o País e a Madeira não vivem os melhores dias a nível econômico, não é menos verdade de que as organizações públicas (juntas de freguesia, câmaras municipais e organizações ligadas às mesmas) desenvolvem atividades maioritariamente destinadas aos mais novos e aos mais idosos. Neste âmbito, podem realizar-se atividades de baixo custo e com um preço simbólico para os participantes. Se o desporto e a atividade física chegarem a todos, a população terá melhores índices de saúde e o Estado beneficiará a médio-longo prazo. Assim sendo, poderemos reduzir os encargos com a saúde e, como refere o Ent. 7, devemos “preparar uma velhice mais fácil, pois sabemos que a dada altura nós começamos a perder qualidades, mas nós podemos diminuir este ângulo, o decréscimo da diminuição das capacidades com o avançar da idade”.

Das sete organizações voluntárias, quatro gozam do estatuto de utilidade pública, tendo os dirigentes inquiridos, reconhecido que este estatuto pode trazer vantagens de natureza fiscal. Os dirigentes das três organizações que não gozam deste estatuto referem que podiam ter regalias a nível fiscal. Não obstante, o Ent. 5 salienta que os benefícios tendem a diminuir cada vez mais.

De acordo com o Ent. 1, a sua organização requisitou o estatuto pelo trabalho humano e social desenvolvido a nível interno. O aproveitamento “é simplesmente um reforço da nossa imagem como escola de formação, e é um certificado de qualidade que nós temos (…) somos uma escola de formação de excelência e que aqui os atletas receberão uma formação global, que inclui aspectos desportivos, humanos e sociais”.

Tendo em conta o objetivo deste trabalho, uma das questões feitas aos entrevistados reportava-se ao que considerariam serem os critérios de apoio ao desporto e o futuro do desenvolvimento do desporto, tendo em atenção a atual conjuntura financeira. Para a maioria dos dirigentes é importante ser mais discriminatório e exigente nos apoios dados ao movimento desportivo associativo. Para outros, o Estado deveria redefinir a estratégia para o desporto. O Ent. 2, por exemplo, considera ser “importante que o Estado, de uma vez por todas, defina quais as modalidades a apoiar (…), mediante os objetivos que nós temos a nível europeu, mundial e olímpico; deveria haver uma definição de prioridades… vamos apoiar esta ou aquela modalidade”. Também o Ent. 7 afirmou que: “O Estado devia defender: nós queremos chegar a determinada meta, alcançar uma determinada participação mundial, nesta ou naquela modalidade…”. Se por um lado, os dirigentes consideram que o Estado, através das suas políticas para o desporto, deveria ser mais discriminatório e criterioso na atribuição dos apoios financeiros, em consonância com as modalidades desportivas e o nível de performance alcançado; por outro lado, defendem que o desporto é de interesse público quando se destina a todos. Ora, como se pode conciliar uma política desportiva direcionada para o desporto de alta competição (nacional e/ou internacional), e até profissional, com uma política desportiva de generalização do desporto? Esta é uma questão determinante, mas que ultrapassa o âmbito deste estudo; não sendo possível antever uma explicação plausível.

Não obstante, em termos de estratégia de desenvolvimento e de criação de prioridades, é preciso ter um caminho perfeitamente delineado, o “deixa ver onde vai parar” pode ter sucesso a curto prazo, mas a médio-longo prazo não conduz a resultados promissores. Como refere Pires47, quando não se sabe para onde se quer ir, qualquer caminho serve.

Independentemente dos apoios do Estado estarem bem ou mal discriminados, os dirigentes dos clubes não assumem as suas responsabilidades estratégicas quanto à necessidade de gerarem receitas alternativas aos subsídios públicos. As organizações voluntárias devem ter uma estratégia de equilíbrio financeiro48 que lhes permita sustentar os principais encargos e poder desenvolver as suas atividades em prol dos seus associados e da população em geral. Os resultados apurados indiciam uma forte dependência financeira da administração pública regional, confirmando outros estudos que reforçam o poder do Governo Regional no desenvolvimento de políticas desportivas de apoio à competição desportiva nacional e à afirmação da Madeira, enquanto região autônoma em desenvolvimento49-50.

O Ent. 6 defende que o Estado deve apoiar o movimento associativo com a criação de infraestruturas: uma das medidas mais importantes para a promoção do acesso ao desporto. Na nossa perspetiva, é fundamental a realização de um estudo de viabilidade econômica que anteceda a construção de qualquer infraestrutura desportiva. Isto é, um estudo que permita delinear a sua finalidade, bem como o público-alvo e respetiva rentabilidade. Muitas vezes o problema não é o custo inicial, mas a sua manutenção e as oportunidades que podem ser geradas a partir do desenvolvimento de serviços desportivos e de outras atividades associadas36. O desenvolvimento do desporto deverá envolver uma dimensão qualitativa da participação das pessoas nas políticas públicas51 e do aproveitamento que as pessoas fazem do uso da atividade física e desportiva no contexto das instalações desportivas, como se fosse um instrumento de realização pessoal, de subjetividade, de socialização, de promoção do bem-estar e da autonomia.

Depois de se saber a opinião sobre o caminho a seguir pelo Estado, procurámos saber o que podem e devem fazer as organizações para o desenvolvimento do desporto enquanto serviço de interesse público. A grande maioria dos entrevistados não apresenta soluções para o futuro, ou alterações nos seus projetos, mostrando-se conformados com o trabalho realizado até aqui. Alguns aludem ao fato do estado atual do desporto regional (a falta de financiamento e de cumprimento do apoio público contratualizado) limitar as atividades desportivas das organizações. O Ent. 1 refere que: “Estamos limitados porque o desporto regional está no estado em que está (…); a boa vontade, o empenho e a dedicação só nos levam até certo ponto, a partir daí são precisas condições mínimas que de momento não estão reunidas no desporto regional”. Também o Ent. 8 diz que: “O que está ao meu alcance é aquilo que vocês viram, é dinamizar, estar no terreno, estar sempre disponível, ser flexível e muito profissionalismo”. Ainda que conformados, os dirigentes reiteram que para utilizar bem o interesse público do desporto vão continuar a apostar na formação social dos jovens, fazer chegar a prática a um maior número de pessoas. Por seu lado, os entrevistados das organizações do setor público afirmam que continuarão a criar parcerias com outras entidades para assim promover o desporto.

No cômputo geral, concluímos que os resultados obtidos foram muito frágeis, resultante do desconhecimento sobre os vários critérios e dimensões que podem ser exploradas para o desenvolvimento de um desporto de verdadeiro interesse público. Mais, observa-se um certo conformismo e dependência do papel da administração pública no financiamento e apoio ao desporto, como se fosse um dever obrigatório e irrefutável. Talvez mereça ainda ser revisto qual o tipo de desporto e quais os benefícios mais importantes para o retorno do investimento ou do apoio financeiro proveniente do erário público.

Todas as atividades desportivas que representem um bem social e público para um grupo ou uma sociedade, podem e devem ser suportados e assumidas pelo Estado, como um custo social com retornos positivos, isto é, deve ser entendido como um investimento público de médio-longo prazo. No entanto, devem ser estabelecidos critérios objetivos de definição do interesse público do desporto e definir formas de avaliação dos resultados desse “investimento”. Daí que o Estado deva assumir um papel incentivador e patrocinador, e sobretudo, de regulador.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2014
  • Revisado
    25 Maio 2015
  • Revisado
    25 Ago 2015
  • Revisado
    08 Out 2015
  • Aceito
    15 Out 2015
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