Open-access SURTO DE CERATOCONJUTIVITE INFECCIOSA DOS CAPRINOS CAUSADA POR MYCOPLASMA CONJUNCTIVAE EM CAPRINOS ADULTOS, CRIADOS NO ESTADO DE SÃO PAULO

OUTBREAK OF CONTAGIOUS KERATOCONJUNCTIVITIS IN CAPRINES CAUSED BY MYCOPLASMA CONJUNCTIVAE IN ADULT CAPRINES, BRED IN SÃO PAULO STATE

RESUMO

Descreveu-se, pela primeira vez no Brasil, um surto de ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos causada por Mycoplasma conjunctivae, em animais adultos atendidos pela Clínica de Bovinos do Centro de Pesquisa e Diagnóstico de Enfermidades de Ruminantes da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo. Os animais enfermos apresentaram como principal manifestação clínica opacidade da córnea, presença de auréola avermelhada na periferia da córnea (injeção ciliar), hiperemia das conjuntivas oculares, secreção ocular seromucosa com aglutinação de pelos da região periocular e blefaroespasmo.

PALAVRAS-CHAVE: Ceratoconjuntivite infecciosa; caprinos; Mycoplasma conjunctivae.

ABSTRACT

This report is the first description of an outbreak contagious keratoconjunctivitis in caprines caused by Mycoplasma conjunctivae. The outbreak affected adult animals treated in the Clínica de Bovinos - Centro de Pesquisa e Diagnóstico e Enfermidades de Ruminantes - Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia - Universidade de São Paulo. Affected animals presented corneal opacity as the main clinical manifestation, with reddish ring in its periphery (ciliar injection), hyperemia of ocular conjunctivae, sero-mucous ocular secretion with hair agglutination in the periocular region, and blefarospasm.

KEY WORDS: contagious keratoconjunctivitis; goats; Mycoplasma conjunctivae.

As micoplasmoses são enfermidades infecciosas causadas por microrganismos da Classe Mollicutes e dos gêneros Mycoplasma e Ureaplasma que acometem diversas espécies de animais domésticos (COTTEW, 1979) e foram consideradas, como doenças de distribuição cosmopolita (PENHA & D'APICE, 1942; COTTEW, 1979; NASCIMENTO et al., 1986; GOMES et al., 1994). Além do mais a micoplasmose dos caprinos foi classificada como uma das mais importantes doenças desses animais, resultando em significativas perdas econômicas no Continente Africano e em alguns países da Europa como Grécia, França, Itália, Espanha e, também, nos Estados Unidos da América, na Índia e em Israel. Nesses países os levantamentos epidemiológicos demonstraram que a infecção tem grande morbidade, atingindo, às vezes, até 100% do rebanho, com grandes índices de mortalidade (DAMASSA et al., 1992).

As espécies patogênicas de bactérias do gênero Mycoplasma (Mycoplasma mycoides subsp. mycoidesL C - large colony, Mycoplasma mycoides subsp. capri e Mycoplasma capricolum) são responsáveis pelo aparecimento de diversas doenças em caprinos, tais como: pneumonia; pleuropneumonia, mamite; artrite e poliartrite; conjuntivite e ceratoconjuntivite (ABEGUNDE et al., 1981; EAST et al., 1983; CORDY, 1984; DAMASSA et al., 1983, 1984 e 1992). No Brasil descreveu-se o isolamento do Mycoplasma mycoides subsp. capri (NASCIMENTO et al.,1986); do Mycoplasma subsp. mycoides LC (NASCIMENTO et al.,1986) e do Mycoplasma arginini (GOMES et al., 1994) em animais acometidos de micoplasmoses.

Além das já mencionadas enfermidades, os micoplasmas foram caracterizados como agentes etiológicos de três doenças infecto-contagiosas específicas dos caprinos: a agalaxia contagiosa dos caprinos; a pleuropneumonia contagiosa caprina e a ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos. Dessas três doenças infecto-contagiosas, somente a agalaxia contagiosa dos caprinos foi descrita no Brasil por PENHA & D'APICE (1942), sendo o agente etiológico da enfermidade (Mycoplasma agalactiae) isolado de uma cabra com mamite. A referida doença foi caracterizada pelos processos inflamatórios localizados na glândula mamária, articulações e por lesões oculares, podendo se manifestar por surtos com 100 % dem orbidade e 10 a 20 % de mortalidade (ROSENDAL, 1994).

A pleuropneumonia contagiosa dos caprinos, por não ter sido descrita no Brasil, é considerada uma doença exótica e o seu agente etiológico é a espécie Mycoplasma capricolum subsp. capripneumoniae. Coube a CHRISTIANSEN & ERNO (1982) e DARZI et al. (1998) essa classificação, atualmente, aceita pelos especialistas como a correta para a cepa F-38 de Mycoplasma e considerado o responsável pela enfermidade. A pleuropneumonia contagiosa dos caprinos foi descrita como endêmica na Europa Oriental, África e Ásia, e se exterioriza, freqüentemente, por surtos com quadro sintomático típico, como anteriormente descrito: sinais de insuficiência respiratória, frêmito pleural, sensibilidade torácica, respiração abdominal, presença de estertores pulmonares, secreção nasal e febre (SMITH & SHERMAN, 1994).

Por outro lado, a ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos, também, foi descrita como enfermidade infecto-contagiosa específica dos caprinos, independente da idade, com quadro sintomático caracterizado por ceratite, conjuntivite, secreção ocular sero-mucosa com aglutinação de pelos da região periocular, evoluindo inúmeras vezes para ulcerações da córnea, sendo os agentes etiológicos dessa enfermidade nos caprinos identificados como: Mycoplasma conjuctivae e Chlamydia psittaci (SMITH & SHERMAN, 1994).

No Brasil, até o presente momento, a ocorrência de ceratoconjuntivite dos caprinos era sempre descrita como associada a quadros multissistêmicos, como foram os casos relatados por NASCIMENTO et al. (1986), que descreveu a ocorrência de dois surtos de micoplasmose em caprinos criados nos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, causados por Mycoplasma mycoides subsp. capri e Mycoplasma subsp. mycoides LC, em caprinos jovens, que apresentavam manifestações típicas de pneumonia, associada a outras manifestações clínicas como ceratoconjuntivite e artrite.

Dessa forma, baseado na literatura brasileira sobre o assunto, verificou-se que até o presente momento não foi descrito a ocorrência da ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos causada pelo Mycoplasma conjunctivae.

Em junho de 2002 foram atendidos na Clínica de Bovinos e Pequenos Ruminantes da FMVZ-USP três caprinos adultos, sem raça definida, com quadro clínico de ceratoconjuntivite. Na anamnese foi relatado que 50% (3/6) dos animais da propriedade, localizada em São Bernardo do Campo, apresentavam a mesma sintomatologia, fazendo supor que se tratava do surto de doença infecto-contagiosa.

Ao exame clínico observou-se que somente um dos olhos de cada animal estava acometido e as cabras enfermas apresentavam como principal manifestação clínica opacidade de córnea, presença de auréola avermelhada na sua periferia (injeção ciliar), e hiperemia das conjuntivas oculares, secreção ocular sero-mucosa com aglutinação de pelos da região periocular e blefaroespasmo, sendo que as lesões observadas estão em acordo com o citados na literatura para a ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos (SMITH & SHERMAN, 1994).

Na seqüência da avaliação clínica dos caprinos internados na Clínica de Bovinos da FMVZ-USP, colheram-se amostras da secreção ocular que foram semeadas nos meios de cultura Ágar brucela sangue, EMB-Levine e Hayflick para isolamento dos possíveis agentes etiológicos causadores de ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos, sendo a metodologia de cultivo e isolamento do Mycoplasma spp. efetuada segundo RUHNKE et al. (1978). Nas amostras colhidas dos três animais enfermos foi isolado Mycoplasma conjuntivae, que foi identificado através das provas bioquímicas de fermentação de glicose, hidrólise de arginina, atividade de fosfatase e redução de tetrazólio.

Baseado na sensibilidade genérica dos Mycoplasma spp. à tetraciclina (SMITH & SHERMAN, 1994) e ao fato dos animais medicados por via sistêmica com esse antibiótico excretarem pelas lágrimas concentrações terapêuticas do antibiótico, optou-se pelo uso de 10 mg cloridrato de tetraciclina por quilo de peso vivo, aplicado por via intravenosa a cada 12 horas até a regressão dos sintomas, que ocorreu no prazo de uma semana, sendo dado alta aos animais após 10 dias do início do tratamento.

Ao se considerar a ocorrência dessa micoplasmose nos caprinos, dois fatos foram considerados preocupantes: a gravidade da doença nos caprinos quando a infecção pelo Mycoplasma spp. se manifesta e o inexpressivo número de relatos de casos clínicos ou de pesquisas científicas, considerando o impacto econômico que poderiam envolver as micoplasmoses, nas várias espécies animais, sobretudo nos caprinos (RIBEIRO et al., 1995).

As razões das referidas observações de RIBEIRO et al. (1995), possivelmente, estejam relacionadas ao fato da pleuropneumonia contagiosa dos caprinos ser uma doença exótica, da agalaxia contagiosa dos caprinos ter ocorrido de forma fortuita em nosso país com um único relato de sua ocorrência (PENHA & D'APICE, 1942) e a ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos, pelas características da enfermidade se retringir a manifestações no globo ocular. Por tais razões o agente patogênico e a doença que determinam não despertou grande interesse na descrição dos casos clínicos e na identificação dos possíveis patógenos envolvidos na infecção.

Excluindo-se o Mycoplasma agalactiae, o Mycoplasma capricolum subsp. capripneumoniae e o Mycoplasma conjunctivae que foram considerados como extremamente contagiosos, as demais espécies patogênicas do gênero Mycoplasma seriam capazes de provocar doença, somente em condições, nas quais houvesse quebra de resistência orgânica ou comprometimento do sistema imune. E, assim sendo, a doença acometeria alguns animais dos rebanhos, de forma individualizada. Raramente, em situações esporádicas, a enfermidade poderia acometer maior número de animais, caracterizando ocorrência de surtos, justificando-se, mais uma vez, o pequeno número de relatados da enfermidade (NASCIMENTO et al. 1986; GOMES et al., 1994).

A observação e descrição dos casos clínicos, o exame microbiológico e a terapia utilizada, permitiu afirmar-se, de forma categórica: o isolamento pela primeira vez no Brasil - São Paulo/São Bernardo do Campo do Mycoplasma conjunctivae, atribuir-lhe a determinação da ceratoconjuntivite infecciosa dos caprinos, caracterizar o quadro sintomático, estabelecer e demonstrar a eficiência do uso do cloridrato de tetraciclina por via intravenosa como terapia eficiente para a cura da doença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2003

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2002
  • Aceito
    24 Mar 2003
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