Open-access CARBÚNCULO SINTOMÁTICO: OCORRÊNCIA, EVOLUÇÃO CLÍNICA E ACOMPANHAMENTO DA RECUPERAÇÃO DE BOVINO ACOMETIDO DE “MANQUEIRA”

OCCURRENCY, EVOLUTION AND CLINICALHEALING OFBLACKLEG AFFECTED BOVINE

RESUMO

Clostridium chauvoei causa uma infecção conhecida no Brasil como “manqueira” e geralmente desenvolve-se em bovinos entre os 6 meses e 2 anos de idade, raramente acomete animais com menos de 6 meses de vida, sendo que a mortalidade é de quase 100%. Um animal de um ano de idade e sem raça definida, vacinado contra as clostridioses entre 10 a 15 dias antes de ser atendido na Clínica de Bovinos do Centro de Pesquisa e Diagnóstico de Enfermidades de Ruminantes (CPDER), FMVZ-USP, apresentava dificuldade de locomoção do membro anterior direito, sendo que na região acometida observou-se mionecrose com crepitação ao toque, e alterações na temperatura do membro acometido. O animal foi tratado com antibioticoterapia sistêmica e limpeza do local da ferida obtendo cura das lesões após 6 meses do início do tratamento, sendo confirmado o diagnóstico de clostridiose pelo isolamento bacteriano do Clostridium chauvoei.

ABSTRACT

Clostridium chauvoei infection typically develops in young cattle between 6 months and 2 years of age, and is rarely found affecting calves younger than 6 months of age. Mortality is nearly 100%. In the Clinic of Bovines and Small Ruminants of the FMVZ-USP, assistance was given to a one-year old beef calf with no definite race, vaccinated against Clostridium sp. The animal showed movement troubles of the right anterior member, gas presence with volume and temperature increase on the affected area. The animal was submitted to aseptical cleanliness on the affected region and treated with penicillin against C. chauvoei. Six months later the lesion was reduced and the animal showed only a moderate limp.

KEY WORDS Clostridiosis; bovine clinic; Clostridium chauvoei

As infecções por anaeróbios são provavelmente as mais negligenciadas das doenças bacterianas. Pouco se sabe sobre o papel da microbiota normal do organismo, sobretudo do trato intestinal. Mesmo assim, qualquer que seja este, os anaeróbios devem ter uma participação importante, uma vez que se encontram em dominância na microbiota endógena. Talvez, a mais reconhecida de todas infecções por anaeróbios seja a mionecrose ou gangrena gasosa e a história dos anaeróbios inicia-se com esta enfermidade reconhecida pela área médica na idade média. Clostridium spp. é um gênero bacteriano anaeróbio, sendo que os clostrídios produzem mais toxinas protéicas do que qualquer outro gênero bacteriano. Eles estão amplamente distribuídos no ambiente: solo, poeira, água e parte da flora bacteriana compondo mais de 120 espécies descritas, sendo que poucas podem causar doença.

As doenças podem ser divididas em: desordens neurotrópicas (C. botulinum e C. tetani), enterotoxemias (C. perfringens e C. difficile) e aquelas que determinam mionecrose (C. chauvoei, C. septicum, C. haemolyticum, C. novyi, C. hystolyticum e C. sordellii). O gênero Clostridium consiste de um grupo diverso de bactérias gram positivas que não crescem na presença de oxigênio, sendo anaeróbios estritos, com habilidade de formar endosporos resistentes ao calor, fator importante na epidemiologia da variada faixa de doenças que os clostrídios podem causar (ROOD & COLE, 1991). C. chauvoei acomete apenas os animais, principalmente bovinos, ovinos e caprinos de seis meses a 3 anos de idade, podendo ser endógeno ou ingerido. O microrganismo é carreado via circulação sangüínea para o tecido muscular, onde se multiplica, se as condições forem favoráveis.

Tanto o C. chauvoei quanto o C. septicum estão associados com gangrena gasosa em bovinos e ovinos, sendo que a primeira espécie é responsável pela manqueira e a outra pelo edema maligno (BALDASSI, 2005). A manqueira em bovinos é uma infecção endógena sendo que uma proporção considerável de bovinos porta o C. chauvoei no fígado. O C. chauvoei não está associado obrigatoriamente com uma lesão perfurante, contusões podem originar lesões que propiciem um ambiente anaeróbio que permite o desenvolvimento do microrganismo. Ele também pode adentrar feridas com outros microrganismos, sendo que a infecção, juntamente com o tecido necrosado, promovem as condições anaeróbias para que o C. chauvoei se multiplique e produza suas exotoxinas e outros metabólitos. Essa espécie produz quatro toxinas: a-hemolisina, necrotoxina, α-deoxirribonuclease, β-hialuronidase e γ-hemolisina.

Os animais acometidos apresentam-se anoréticos, deprimidos, febris e mancam, apresentando um inchaço localizado, doloroso que se torna frio e edematoso com crepitação ao toque. A morte ocorre dentro de 12 a 48h. Este agente parece ter preferência por grandes músculos (quarto traseiro, diafragma e coração) que, à necropsia apresentam aspecto seco, de coloração vermelho-escura e esponjosos (SIPPEL, 1982). Em ovinos está associada à tosa, castração, corte da cauda e descorna; os músculos acometidos ficam escuros com edema restrito e a morte ocorre após 12 a 36h (HELLER, 1920). Alguns antibióticos têm sido utilizados contra as infecções clostridianas, mas os padrões anteriores de susceptibilidade a eles têm mudado devido à resistência antimicrobiana. O tratamento para as infecções por clostrídios é inútil quando os animais estão doentes e a morte é iminente. O botulismo e tétano são exceções, já que essas doenças duram alguns dias possibilitando o tratamento suporte associado com o uso de antitoxinas, quando disponíveis.

Mais importante do que o tratamento são as medidas profiláticas associadas à vacinação. As vacinas conferem alto grau de imunidade contra as clostridioses e, quando o diagnóstico está correto, a doença pode ser facilmente controlada. Para isso, as amostras devem ser colhidas logo após a morte ou o sacrifício do animal suspeito, selecionando-se os tecidos comprometidos que devem estar bem embalados para evitar deterioração e enviados rapidamente ao laboratório. Além disso, a descrição do caso é de fundamental importância para conduzir a análise laboratorial (BALDASSI, 2005).

Foi atendido na Clínica de Bovinos do Centro de Pesquisa e Diagnóstico de Enfermidade de Ruminantes (CPDER) da FMVZ-USP, um bovino sem raça definida de um ano de idade, criado a pasto, sendo que, pela anamnese, constatou-se que na propriedade de origem do animal enfermo havia histórico de morte súbita de 10 animais O garrote encaminhado ao CPDER apresentava há cerca de 1 dia claudicação no membro anterior direito com dificuldade de locomoção, aumento de volume da região escápulo-umeral , com presença de áreas de crepitação e aumento de temperatura e dor no local afetado. Associado a esses sinais de mionecrose observou-se, apatia, desidratação moderada e hiperemia de mucosas oculares. As funções vitais eram: FC = 100 bpm, FR = 20 mrpm, T = 38,4° C. No campo pulmonar notou-se propagação de ruído cardíaco. Os exames laboratoriais apresentaram os seguintes resultados: He = 8,7 x 106/mm3, Ht = 34%, Leucócitos = 12.500/mm3 sendo Neutrófilos segmentados 26%, Neutrófilos bastonetes 9%, Eosinófilos 1%, Basófilos 0%, Linfócitos 61%, Monócitos 3%, Uréia = 28 mg/dL, Creatinina = 1,2 mg/dL, PT = 6,1g/dL ,Albumina = 2,5 g/dL, AST = 143 U/L, GGT = 16 U/L, BT = 1,2 mg/dL, BD = 0,16 mg/dL, CK = 39 U/L. Enzimas musculares liberadas das regiões de profunda miosite não são detectadas na circulação periférica devido à trombose e destruição vascular promovidas pelas toxinas produzidas (REBHUN, 1995).

O diagnóstico de carbúnculo sintomático foi realizado pelo isolamento de C. chauvoei (Fig. 1) no material obtido por punção aspirativa em região escápulo-umeral do membro anterior direito. Nos esfregaços das colônias hemolíticas corados pelo gram foi verificada a presença de bacilos gram positivos com esporos subterminais. Foi colhida amostra da região da mionecrose com um “swab” estéril, que foi ressuspendido em meio de caldo de carne cozida, o qual, a seguir, foi mantido em estufa a 37º C por 24 a 48h, conforme descrito por BALDASSI (1998) e utilizada a metodologia descrita por BALDASSI (1998) para isolamento do microrganismo. Do cultivo foi coletado um volume de 10 μL que foi semeado, por estriamento, em placa contendo ágar sangue de carneiro a 5%, que foi incubada em condições de anaerobiose em jarra de McIntosh & Fields a 37º C por 18 a 24h. Após o período de incubação, as colônias foram observadas com relação ao aspecto, coloração, presença e tipo de hemólise. A morfologia bacteriana foi verificada por esfregaços corados pelo método de Gram. As colônias suspeitas foram submetidas às seguintes provas bioquímicas para identificação da espécie: catalase, lecitinase, lipase, hidrólise da gelatina, redução de nitrato, motilidade, indol e fermentação de açúcares: glicose, lactose, salicina e sacarose (CARTER & CHENGAPPA, 1991; COWAN, 1974). Ainda para a diferenciação da espécie, um mililitro do sobrenadante do cultivo de 24 horas do caldo de carne cozida foi inoculado intraperitonealmente em um cobaio, que veio a óbito em menos de 72h e, após a necropsia, foi feito um decalque do fígado corado pelo método de gram e observado sob microscopia óptica. O cobaio inoculado com o cultivo apresentou no sub-cutâneo mionecrose, crepitação muscular, odor rançoso, edema gelatinoso e sanguinolento, reproduzindo o quadro clínico da doença. No decalque do fígado observou-se sob microscopia óptica, bacilos gram positivos curtos, isolados ou aos pares, característica morfológica da espécie C. chauvoei.

Fig. 1
(a) Isolado de Clostridium chauvoei em colônia e (b) detectado em imunofluorescência.

Face ao aspecto das lesões de mionecrose com áreas de enfisema, antes da confirmação laboratorial do diagnóstico de carbúnculo sintomático ou “manqueira”, o animal foi submetido à antibioticoterapia com penicilina, sendo utilizadas penicilinas procaína e benzatínica. O esquema de aplicação desta antibioticoterapia conforme apresenta na Figura 2 foi a seguinte: durante 7 dias aplicou-se diariamente, 20.000 UI/kg p.v. de penicilina procaína e alternadamente nos dias 1, 4 e 7 10.000 U.I./kg p.v. de penicilina benzatínica. O intuito foi manter níveis basais de antibiótico (penicilina benzatínica) durante o tratamento e diariamente aumentar a concentração de antibiótico utilizando-se a penicilina procaína.

Fig. 2
Esquema de tratamento utilizado em animal com carbúnculo sintomático (PB = Penicilina Benzatínica; PProc=Penicilina Procaína e PPot = Penicilina Potássica, Birgel Junior, 2003, comunicação pessoal).

Face a gravidade do caso associou-se às penicilinas naturais nos primeiros dias de tratamento, o uso de ampicilina na dosagem de 10 mg/kg de peso vivo com duas aplicações em intervalos de 12h e a aplicação de 50 g de glicose, a cada 12h nos dois primeiros dias de evolução da doença.

O tratamento das clostridioses à base de antibióticos como as penicilinas são, muitas vezes, ineficaz devido à rapidez da evolução do quadro, principalmente, do papel das toxinas produzidas pelos clostrídeos na patogenia das doenças. Apesar da mortalidade nos casos de carbúnculo sintomático atingirem quase 100% dos animais acometidos, verificou-se que após 3 dias de evolução da enfermidade ocorreu diminuição do edema no membro anterior direito, sendo que a área de mionecrose já podia ser bem delimitada. Desta forma decidiu-se pela abertura ampla das lesões com tecido necrosado para realizar limpeza interna com água oxigenada, utilizando-se na seqüência do tratamento sedenhos embebidos em tintura de iodo a 2%.

Conforme pode ser observado na Figura 3 a, b e c, as perdas teciduais ficaram restritas à região escápuloumeral direita, sendo que após 1 mês de evolução apresentavam-se limpas de qualquer tecido necrosado e com abundante tecido de granulação.

Fig. 3
a, b e c mostran lesões na região escápulo-umeral do animal acometido pela clostridiose (Clostridium chauvei) atendido na Clínica de Bovinos e Pequenos Ruminantes.

Passados cerca de seis meses do início da enfermidade o animal recebeu alta.

Decidiu-se pela apresentação desta comunicação científica, pois são poucos os trabalhos que descrevem o tratamento curativo dos casos de clostridioses com sucesso. HALL (1989) obteve sucesso no tratamento da clostridiose em um bezerro de 2,5 meses, apresentando as manifestações clássicas da doença e, após a antibioticoterapia com penicilina e higiene local da lesão, o animal teve alta em um período de 2,5 meses.

Segundo informações prestadas pelo criador, cerca de 10 a 15 dias antes do início dos sintomas o animal havia recebido a 2ª dose da vacina, sendo que a primeira dose já tinha sido aplicada 6 meses antes.

Existem vacinas específicas monovalentes como no caso do carbúnculo sintomático, tétano e botulismo. Em outras clostridioses, a grande variedade de agentes causais e a necessidade de confirmação laboratorial para identificação da espécie de clostrídeo responsável levam o veterinário a optar pelo emprego de vacinas polivalentes contra estas enfermidades. Mesmo assim, o emprego de vacinas não confere proteção total aos animais, pois ocorre muitas vezes uma mutação muito rápida do agente em questão dependendo das condições ambientais ou existe a presença de diferentes cepas na região das utilizadas na vacina (REED & REYNOLDS, 1977). Cabe ao veterinário alertar os criadores e conscientizar da importância de se conhecer as cepas regionais e, em harmonia com os laboratórios de diagnóstico, efetuar paralelamente à indústria um controle mais efetivo e a erradicação desta enfermidade.

REFERÊNCIAS

  • 1 BALDASSI, L. Verificação da toxigenicidade de cepas de Clostridium perfringens isoladas de material de origem bovina e sua tipificação pelo ensaio imunoenzimático e eletroforese corada para esterease 1998. 114f. Tese (Doutorado em Serviços de Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
  • 2 BALDASSI, L. Clostridial toxins – potent poisons, potent medicines. Journal of Venomous Animals and Toxins, v.11, n.4, p.391-411, 2005.
  • 3 CARTER, G.R. & CHENGAPPA, B.V. Essentials of veterinary bacteriology and mycology 4.ed. Philadelphia: Lea & Febiger, 1991.
  • 4 COWAN, S.T. Manual for the identification of medical bacteria 2.ed. London: Cambridge University Press, 1974.
  • 5 HALL, K.E. Treatment of a calf with Clostridium chauvoei infection. Journal of the American Veterinary Medical Association, v.194, n.2, p.272, 1989.
  • 6 HELLER, H. H. A etiology of acute gangrenous infections of animals: a discussion of black leg, braxy, malignant edema and whale septicemia. Journal infectious diseases, v.27, p.385-451, 1920.
  • 7 REBHUN, W.C., Diseases of dairy cattle, Philadelhia: Williams Wilkins, 1995. p.471.
  • 8 REED, G.A. & REYNOLDS, L. Failure of Clostridium Chauvoei vaccines to protect against blackleg. Australian Veterinary Journal, v.53, p.393, 1977.
  • 9 ROOD, J.L.; COLE, S.T. Molecular genetics and pathogenesis of Clostridium perfringens Microbiological Reviews, v.55, p.621-648, 1991.
  • 10 SASAKI, Y.; YAMAMOTO, K.; AMIMOTO , K.; K OJIMA, A.; OGIKUBO, Y.; N ORIMATSU, M.; OGATA, J.; TAMURA, Y. Amplification of the 16S-23S rDNA spacer region for rapid detection of Clostridium chauvoei and Clostridium septicum Research in Veterinary Science, v.71, p.227-229, 2001.
  • 11 SIPPEL, W.L. Diagnosis of clostridial diseases. Journal of the American Veterinarian Medical Association, v.161, p.1299-1305, 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2006

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2006
  • Aceito
    02 Maio 2006
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