RESENHA, ENSAIO, DISCURSO
O paradigma da essencialidade nos contratos: recensão da obra de Teresa Negreiros
The paradigm of essentiality in the contract's law: a recension of Teresa Negreiro's work
Marcia Carla Pereira RibeiroI; Renata Carlos SteinerII
IMestre e Doutora pela UFPR. Professora titular da PUCPR. Professora adjunta da UFPR. Diretora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/PR. Ex-professora visitante em Direito Contratual da Direito GV. Pesquisadora convidada da Université de Montreal em Direito Contratual
IIMestranda em Direito das Relações Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marcia Carla Pereira Ribeiro Rua Conselheiro Laurindo, n. 561 - 7º andar Centro - 80060-100 Curitiba - PR - Brasil revista.empresarial@terra.com.br
RESENHA
NEGREIROS, TERESA. TEORIA DO CONTRATO: NOVOS PARADIGMAS. 2. ED. RIO DE JANEIRO: RENOVAR, 2006.
No ano em que a Constituição da República Federativa do Brasil completa 20 anos de sua promulgação, vem à tona a necessidade de avaliar seus impactos na sociedade brasileira e verificar até que ponto os princípios e valores ali consubstanciados encontram-se arraigados e disseminados na cultura jurídica brasileira.Teresa Negreiros toma a Constituição como marco para a análise do direito civil, no tocante ao que a própria autora chama de revolução axiológica, visto que, como se sabe, a rígida divisão entre direito privado, aquele contido nos códigos, e o direito público, contido nas Constituições, representa o momento histórico da modernidade jurídica. O conhecido tripé da civilística, família, propriedade e contratos, é modificado com a queda do muro "a separar o Estado e a sociedade" (NEGREIROS, 2006, p. 48). Com a leitura constitucional busca-se não apenas fotografar esta mudança, mas antes compreendê-la axiologicamente a partir de seu "valor-fonte", a dignidade da pessoa humana. Substitui-se a ênfase no "ter", dado que o indivíduo moderno é essencialmente o indivíduo proprietário, pelo "ser", que deve ser tutelado com "primazia à realização existencial em detrimento da realização patrimonial" (NEGREIROS, 2006, p. 62). Não se trata, como a própria autora afirma, de uma escolha isenta de valores, pelo contrário. Colocar-se na perspectiva civil-constitucional é uma escolha ideológica e aberta na obra de Teresa Negreiros.
A reverberação do direito constitucional no plano dos contratos dá à luz a uma teoria contratual pautada no paradigma da essencialidade. Trata-se, em linhas gerais, da conjugação da classificação dos bens e dos contratos, a partir da maior ou menor incidência dos princípios clássicos e contemporâneos. Neste contexto, exercem os princípios da boa-fé, do equilíbrio contratual e da função social dos contratos o papel de "base metodológica e axiológica em que será possível edificar o paradigma da essencialidade" (NEGREIROS, 2006, p. 103).
A teoria propugnada por Negreiros tem especial importância por demonstrar que o reconhecimento de uma nova principiologia contratual não significa nem a substituição dos princípios clássicos, nem a aplicação dos novos apenas subsidiariamente. Vive-se, em realidade, um momento de "hipercomplexidade", conforme expressão de Antonio Junqueira de Azevedo, e, a partir da essencialidade e utilidade do bem, se pode trabalhar com a maior ou menor incidência dos novos princípios, ou dos clássicos.
Em toda a obra da autora fica latente que não se está a propugnar pela desconsideração da autonomia privada, pelo contrário.Tal é revigorada com a devida constatação de que a dignidade da pessoa humana não pode pôr em risco a liberdade, sem a qual a vida humana careceria de sentido. Em realidade, defende a autora a criação de uma nova ética, a qual chama de ética da solidariedade, e não mais exclusivamente de liberdade.
Os novos princípios exercem um papel que se pode dizer tanto de desconstrução como de reconstrução. Desconstrução daquele panorama contratual impregnado de valores individual-filosóficos e do liberalismo econômico, surgidos no século XVIII, triunfados no século XIX e positivados nas codificações francesa e alemã (NEGREIROS, 2006, p. 24). O contrato moderno se viu construído pautado na vontade, em decorrência das categorias e valores do cenário jurídico-filosófico dos setecentos, o que foi sedimentado pela teoria jurídica do século seguinte. Propõe-se a reconstrução do conceito de contrato à luz dos princípios e valores constitucionais, a partir do reconhecimento de que não há lógica em tutelar um indivíduo abstratamente considerado, em total desconsideração às vicissitudes da vida concreta em que não há, no mais das vezes, a liberdade apregoada.
No entanto, convém ressaltar que não parece correto, aos olhos da autora, falar em nova teoria contratual, senão quando se façam algumas considerações iniciais. Se modificados a sociedade, o tempo e o homem, é inevitável que a teoria contratual também devesse se modificar, razão pela qual a aposição do adjetivo "novo" às teorias do contrato. No entanto, a adjetivação acaba por demonstrar a permanência arraigada de negação do relativismo histórico no campo jurídico e a crença num sistema jurídico oitocentista que, evidentemente, não mais pode ou deve prevalecer. Aliás, é justamente com tal consideração que a autora afirma a inegável força do modelo de contrato clássico. Alguns autores, como Eros Roberto Grau, sustentam que as inovações vivenciadas nada mais são do que formas de preservar a intocável teoria clássica do contrato. De qualquer forma, Negreiros postula contra uma teoria clássica que busca sua legitimação em um único princípio. Se a crise do paradigma clássico não é tão clara ou unânime, reconhece a autora a indubitável crise de um paradigma único e exclusivo e, mais ainda, tendo-se em vista a necessidade do reconhecimento de que diferentes são os contratos, combate as tentativas de construção de uma teoria geral para enfrentá-los.
A boa-fé é tratada por Teresa Negreiros como assentada na cláusula geral de tutela da pessoa humana, interpretada constitucionalmente sendo:
possível reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica (2008, p. 117).
A autora dedicou-se ao estudo desta interpretação constitucional do princípio em obra anterior (Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé) retomando esta teoria quando trata da teoria do contrato, em que o instituto passa a ser visto como pautado na solidariedade social e não mais no exacerbado individualismo que predominou na modernidade jurídica.
O princípio da boa-fé tem sua atuação alargada a todo o âmbito contratual, operando também como fonte de deveres e obrigações, ainda que não contratados expressamente.Tendo-se em vista a diversa gama de funções atribuídas ao princípio, Teresa Negreiros as divide em três grande grupos, quais sejam a função interpretativa-integrativa, a função de criação de deveres jurídicos e, por fim, como norma de limitação do exercício de direito subjetivo. Em todas elas é imprescindível reconhecer que se está a tratar de um contrato visto como relação de cooperação e respeito mútuo e, mais ainda, na prática, estas funções se complementam e, portanto, não atuam isoladamente.
O princípio contratual nomeado de boa-fé, e aqui tratado, difere substancialmente daquela boa-fé dita subjetiva e que se exemplifica na posse de boa-fé. A concepção subjetiva pode ser definida como o estado ou fato psicológico do agente, que considera estar agindo dentro de determinado padrão de comportamento, como o caso daquele que possui imóvel alheio desconhecendo tal condição. Já a boa-fé dita objetiva, com especial relevância no âmbito do contrato constitucionalizado, vai além de um critério de qualificação de comportamento, impondo também deveres e constituindo-se uma autêntica norma de conduta (NEGREIROS, 2006, p. 120).
A diferença entre ambas também pode ser estabelecida quando se percebe que a concepção objetiva do princípio "distancia-se da noção subjetiva, pois consiste num dever de conduta contratual ativo, e não de um estado psicológico experimentado pela pessoa do contratante" (NEGREIROS, 2006, p. 122). Conforme Teresa Negreiros, a distinção é comumente aceita pela doutrina brasileira, mas é mais suscetível de questionamentos em comparação com a doutrina alemã, na qual são designadas sob nomenclaturas diferentes. Assim, à boa-fé subjetiva corresponde, no direito alemão, a expressão "guter Glaube", enquanto a boa-fé objetiva é denominada "Treu und Glauben". De qualquer forma, ressalta a autora a utilidade da explicitação das duas vertentes da boa-fé no direito brasileiro no sentido de melhor esclarecer e enfatizar as inovações pelas quais passa o direito contratual contemporâneo e o seu papel de "topos subversivo" neste contexto, conforme expressão cunhada por Judith Martins-Costa.
Foi com a edição do Código de Defesa do Consumidor em 1990 que se positivou no Brasil a cláusula geral da boa-fé, embora mesmo antes de seu advento a aplicação do princípio encontrasse guarida na doutrina e jurisprudência pátrias. A mudança de mentalidade, analisada por Antonio Junqueira de Azevedo, ou a mudança de paradigma nas palavras de Claudia Lima Marques, representada pela consagração da boa-fé no Código do Consumidor, é ferramenta de indubitável importância ao que chama Teresa Negreiros de reenvio, de elo de ligação entre relações privadas e a normativa constitucional, sendo esta a grande função do princípio em questão. Daí por que não parece correto limitar os casos de aplicação da boa-fé exclusivamente à interpretação ou integração contratuais, pelo contrário, a boa-fé faz parte do substrato do contrato entendido como relação de cooperação.
É, por exemplo, fonte autônoma de direitos e obrigações, ainda que não contratados, que interessam ao cumprimento da obrigação de forma leal e proba.Trata-se dos chamados deveres instrumentais, laterais ou anexos, a serem mensurados no caso concreto e que se exemplificam, mas não se exaurem, nos deveres de cuidado, de informação, de colaboração, proteção e cuidado com a contraparte e seu patrimônio. As exigências da boa-fé não podem ser de antemão definidas, pois dependem da situação concreta a ser analisada. Assim, especifica-se em comportamentos diversos a depender do nível socioeconômico dos contratantes, da espécie do vínculo, da finalidade do ajuste, entre outras circunstâncias (NEGREIROS, 2006, p. 153). De qualquer forma, evidencia-se, juntamente com Ruy Rosado de Aguiar Jr., que o eixo contratual não mais reside no dogma da vontade, como propugnava a teoria moderna, para se deslocar à lei, uma vez que a ela cabe sancionar os contratos porque são úteis e socialmente relevantes e conferir-lhes eficácia.
Também presente na teoria contratual contemporânea está o princípio do equilíbrio econômico que, na construção de Teresa Negreiros, encontra substrato constitucional no princípio da igualdade substancial no sentido de que "o contrato não deve servir de instrumento para que, sob a capa de um equilíbrio meramente formal, as prestações em favor de um contratante lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento do outro contratante" (NEGREIROS, 2006, p. 158). A tal conclusão se chega a partir da constatação de que um contrato livremente pactuado pode ser um contrato injusto, devendo-se deslocar da ênfase na liberdade à ênfase na paridade.
É possível que o pensamento da autora, no que se refere à liberdade, seja cotejado com a perspectiva do que se entende por liberdade. Amarthya Sen interpreta a idéia de liberdade a partir do seu conteúdo, e nesta análise liberdade significa não só liberdade de escolher que vida se pretende levar, como também de que maneira será feito. Esta possibilidade de escolha, por outro lado, pressupõe acesso às informações, de forma que todo sujeito detenha condições de prolongar e melhorar a sua própria existência. O autor pontua a perda do referencial da liberdade como um retrocesso no processo de desenvolvimento dos países. A partir deste raciocínio, o problema de desequilíbrio nas relações contratuais não está necessariamente na liberdade, nem a solução na sua minimização, mas na insuficiência de investimentos e ofertas em educação e saúde por parte do Estado. Permitindo-se ao homem acréscimo de informações, assim como a possibilidade de melhoria de sua condição de longevidade e qualidade de vida, o desenvolvimento econômico e social, na visão do autor, pode ser mais consistente do que pela intervenção pontual do Estado, e, entenda-se, do Direito, na busca de um reequilíbrio contratual (SEN, 2007).
Voltando-se ao pensamento de Negreiros, o princípio do equilíbrio econômico reverbera no instituto da lesão. Ausente na disciplina do Código Civil de 1916, marcadamente individualista, encontra-se hoje a lesão consagrada tanto no Código de Defesa do Consumidor como no Código Civil, não sendo demais afirmar que sua base está na Constituição da República.
O terceiro e último novo princípio contratual é o da função social dos contratos, expressamente estabelecido pela primeira vez no direito brasileiro, na redação do art. 421 do Código Civil, determinando que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". É esta função social que, juntamente com a boa-fé e o equilíbrio econômico, redefine o alcance dos demais princípios contratuais clássicos. Não se trata de um limite externo ao contrato ou à situação jurídica, mas sim de algo inerente à sua configuração contemporânea. Aqui reside um ponto fundamental da obra de Teresa Negreiros, visto que tem como pretensão traçar diferenciação entre relações contratuais com base na utilidade do bem contratado. Tal diferenciação só pode ser traçada no âmbito da funcionalização das situações jurídicas à disciplina constitucional, uma vez que inexiste diferenciação sob o prisma estrutural da obrigação.
Abalada a autonomia privada como eixo principal dos contratos, também se questiona o absolutismo da relatividade de seus efeitos. Com a socialização do contrato, os conceitos de partes e de terceiros, antes pautados no voluntarismo, acabam sendo revistos. Neste contexto, o princípio da função social produz um grande abalo estrutural, visto que "torna o contrato um fenômeno transcendente dos interesses dos contratantes individualmente considerados" (NEGREIROS, 2006, p. 226).
A força obrigatória dos pactos, antes retirada da vontade, agora é encontrada na própria lei e nas finalidades não individualistas nela inscritas. E com tal se opera também a reformulação do princípio da relatividade dos efeitos dos contratos. Na sua concepção tradicional, um terceiro não seria atingido de forma alguma pela inexecução de obrigações contratuais, e a responsabilidade por tal jamais o alcançaria. Hoje, admite-se uma responsabilidade contratual alargada que alcance também terceiros não contratantes e, mais ainda, a partir do que se convencionou chamar de tutela externa do crédito, pode-se aventar hipótese em que terceiro seja chamado à responsabilidade por ter contribuído para descumprimento de uma obrigação originária.
Em qualquer uma das hipóteses, tem-se a releitura da relatividade à luz do conceito e da função social dos contratos. Com tal, a obrigação não é mais vista como um feixe fechado de obrigações de crédito e de débito, envolvendo unicamente o pólo passivo e ativo. Pelo contrário: a obrigação na ótica civilconstitucional interessa a toda a comunidade na medida em que é um fato social.
Complementando-se a teoria da autora, a consagração do reconhecimento da extensão dos efeitos de uma relação jurídica privada, especialmente ao se ter em vista direitos coletivos que podem ser afetados em decorrência de um contrato, representa uma tentativa de concretização do princípio da função social. Calixto Salomão Filho identifica na defesa do meio ambiente, da concorrência e do mercado de consumo, a possibilidade de invocação da função social de um instituto (SALOMÃO FILHO, 2003). O pensamento de Teresa Negreiros também aponta para o reconhecimento de situações em que a relatividade do contrato sucumbiria diante da importância de seus impactos externos.
Para a autora, ainda, o alargamento do pressuposto da responsabilidade civil de terceiro repousa na constatação de que a liberdade de contratar é dotada de função social e que seu abuso leva à responsabilidade do terceiro que, mesmo não sendo parte da obrigação originária, violou o crédito alheio com a celebração de outro contrato. Foi este, aliás, o fundamento da decisão no caso "Zeca Pagodinho", em que a Ambev, embora não fosse parte do contrato originário assinado pelo cantor e a cervejaria Schincariol, foi proibida de veicular sua campanha publicitária que feria o pacto de exclusividade firmado entre os últimos.
Diga-se, portanto, nas palavras de Teresa Negreiro, que "o princípio da função social condiciona o exercício da liberdade contratual e torna o contrato, como situação jurídica merecedora de tutela, oponível erga omnes" (2006, p. 272). Não se trata de tornar as obrigações contratuais exigíveis de terceiros, mas, sim, impor a estes o respeito àquelas situações jurídicas.
Tecidas estas considerações acerca dos novos princípios contratuais, passa Teresa Negreiros a analisar como se dá sua interação com os princípios clássicos, conforme a proposta de seu trabalho. Tendo-se em vista que se trabalha o direito civil na perspectiva constitucional, há de ser reconhecido o novo papel do estudioso do direito contratual, ao exercer uma tarefa politicamente comprometida. Cabe a ele compreender e estudar as tensões e novas relações entre o direito civil e a Constituição, entre a sociedade e o Estado e, dentro de tal contexto, buscar novos critérios de diferenciação dos contratos.
É possível que se acrescente ao pensamento da autora, no que se refere ao comprometimento político do estudioso do direito, que não apenas o direito, mas também a sociedade organizada, aí compreendidos os Poderes do Estado e o mercado, não podem prescindir da responsabilidade de ordem política que permeia suas decisões. Irti aponta para o caráter político do que se entende por mercado, ao negar a espontaneidade de sua formação, e identifica na sua conformação de maior ou menor intervenção do Estado sempre uma opção política, mesmo se no sentido de não-intervenção. Para ele, mercado é uma noção totalmente dependente daquela de direito, pois sem os institutos da propriedade e do contrato e, mais, sem os meios jurídicos de defesa da primeira e de execução do segundo não há como manter a estrutura que, na visão de alguns, poderia ser considerada natural e desvinculada do direito. Para o autor, se há esta dependência em relação ao direito e, conseqüentemente, em relação ao Estado e seus Poderes, não há como negar a opção política de escolha da conformação do mercado e a responsabilidade daí decorrente (IRTI, 2003). Os contratos e sua condição de instrumentos de troca que se realizam no mercado estão, pois, e também na confirmação de Irti, atrelados a opções políticas.
A corroborar as conclusões de Negreiros, há a decisão em sede de ação direta de inconstitucionalidade movida contra a Lei 8.039/1990 que estabeleceu controle de preços das mensalidades escolares (2006, p. 292 e ss.). Nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, observa-se claro embate entre a liberdade de iniciativa e concorrência e os valores da dignidade da pessoa humana e da justiça social, ou, em outras palavras, entre valores individuais e sociais igualmente contidos na Lei Fundamental. Dos votos favoráveis à constitucionalidade da lei, há clara menção à natureza da atividade em questão, a educação, entendida como direito de todos e dever do Estado e por isso mesmo não podendo ser deixada livremente às leis do mercado. Como se vê, a composição dos princípios se deu por meio da análise de um critério de diferenciação dos contratos, a partir do bem a ser tutelado, ressaltando que, quando se trata de princípios, não há espaço para pensamentos excludentes.
Precedentes do Supremo Tribunal Federal, na análise de questões relacionadas à educação e cultura, muitas vezes transitam entre a definição da natureza jurídica das relações jurídicas estabelecidas como de natureza contratual, de consumo ou econômica, nem sempre mantendo coerência em seus enquadramentos (RIBEIRO, 2006).
A teoria contratual deve se voltar ao estabelecimento de critérios de diferenciação, "de forma a compor adequadamente os princípios constitucionais" (NEGREIROS, 2006, p. 303). É possível, a partir do paradigma da diversidade, construir novas e diferentes categorias de contratos, seja a partir de seu objeto, seja por meio da situação concreta do contratante. E com tal se quer dizer que o direito contratual contemporâneo não deve ser neutro, e sim comprometido com a disciplina constitucional.
A qualidade do contratante considerado como pessoa encontra guarida no Código de Defesa do Consumidor, já na configuração do que venha a ser consumidor, pois leva em conta o propósito da relação obrigacional (no caso do direito brasileiro, adquirir ou utilizar produto ou serviço como destinatário final). Mais especificamente ainda, determina o Código de Defesa do Consumidor também a análise de práticas abusivas, tomando-se em conta a idade, conhecimentos e condição social do consumidor, ou mesmo seu papel social, o que Teresa Negreiros chama de normas weak-person-related. Cada vez mais são levados em consideração aspectos pessoais do contratante "como sejam a inexperiência, a leviandade, a pobreza, a doença, a velhice" (2006, p. 328), numa concepção não imune a críticas.
Podem-se, de maneira sucinta, resumir as críticas às normas person-related ao fato de que são construídas a priori, o que torna a legislação protecionista formal. Quer-se com isso dizer, e Teresa Negreiros não se mostra alheia a esta consideração, que a vulnerabilidade presumida na letra da lei nem sempre ocorre na vida real: o inquilino, por exemplo, nem sempre é a parte mais fraca da relação locatícia, embora sobre ele recaia a maior proteção legal.
De qualquer forma, evidencia-se a diferente concepção que as teorias clássica e contemporânea têm acerca do sujeito contratante. Se as atenções hoje se voltam à tutela da dignidade da pessoa humana concretamente posicionada, tal reverbera no direito dos contratos para dizer que as normas de proteção devem se voltar a indivíduos concretos, o consumidor contratante, o usuário do plano de saúde, idéia esta inconciliável com a noção abstrata de sujeito de direito. Outro aspecto de renovação observado por Teresa Negreiros, ainda em relação ao rompimento da visão atomizada do sujeito, está nas considerações "coletivizadoras" do contrato, em especial pela previsão de defesa coletiva de interesses transindividuais contida também no Código de Defesa do Consumidor.
O uso das cláusulas gerais em busca da proteção do contratante como pessoa concreta encontra resistência em parte da doutrina em relação à incerteza que daí poderia advir, em especial quando se observa que os caracteres trazidos pela lei são apreendidos em termos subjetivos, como a pobreza, a doença, a velhice. Justamente aí reside a proposta de Teresa Negreiros que, considerando o importante papel da técnica de cláusulas gerais na tutela da dignidade da pessoa, pretende preenchê-las com um elemento objetivo, descortinando o paradigma da diversidade em paradigma da essencialidade. Explica-se: o regime do contrato seria diferenciado em relação ao bem contratado, tomando a divisão entre bens essenciais, úteis e supérfluos, o que daria "à prática judiciária um ponto de apoio para argumentações sensíveis às necessidades dos contratantes" por meio de "um parâmetro já reconhecido pelo ordenamento jurídico" (NEGREIROS, 2006, p. 344-345).
Embora a utilidade do bem seja tomada como fundamento de várias decisões judiciais, Negreiros assevera que não houve, até o momento, sistematização deste conceito em um real e novo paradigma dos contratos. Aí a importância e originalidade de sua obra, uma vez que a adoção deste novo paradigma tem por escopo aliar previsibilidade das decisões judiciais e segurança jurídica e a necessidade de tutela dos direitos essenciais do homem pela disciplina contratual.
A classificação tradicional dos contratos não leva em conta a natureza nem a essencialidade do bem contratado. São diversos os critérios de diferenciação, como a estrutura do contrato (bilaterais x unilaterais), a distribuição do ônus (onerosos x gratuitos), o grau de certeza ou incerteza em torno da extensão das obrigações (comutativos x aleatórios) ou a classificação de bens reciprocamente considerados (principal x acessório), entre outros.Tomando-se como ponto de partida tais classificações, em desconsideração ao objeto envolvido (com exceção daquela que em contrato principal e acessório), chegar-se-ia à conclusão de que são iguais os contratos de compra e venda de uma jóia ou de um medicamento, o que evidentemente não se sustenta em face do paradigma da essencialidade.
Os contratos de adesão são entendidos na esteira legal como aqueles em que as cláusulas contratuais são estabelecidas exclusivamente por um parceiro contratual e representam em certa medida o rompimento com tal classificação estrutural dos contratos, em desconsideração seja ao seu objeto, seja às partes contratantes. Neste sentido, a classificação dos contratos em contratos de adesão revela a instituição de medidas compensadoras orientadas à proteção da parte mais fraca, o aderente, por intermédio de princípios específicos. Mais ainda, e especialmente para a análise proposta por Teresa Negreiros, representam a denúncia da "insuficiência dos critérios tradicionais de descrição e interpretação dos contratos e de suas espécies" (2006, p. 383).
Sob o manto do paradigma da essencialidade, por sua vez, busca-se a interligação entre a classificação dos bens e a classificação dos contratos. Aquela, no entanto, em vez de ser pautada no grau da essencialidade patrimonial do bem, como se tem quanto à qualificação das benfeitorias, por exemplo, deve ser tomada em relação à pessoa que deste bem carece.
Na aplicação de um índice de utilidade como parâmetro de classificação dos bens, pode-se recorrer à teoria econômica que os classifica justamente com recursos às noções de utilidade e necessidade, embora esta seja tomada sem sujeição a juízos morais. A esta classificação pode-se acrescentar também o critério da destinação do bem, de forma com que se possa avaliar sua importância para a pessoa que dele se utiliza.
No âmbito jurídico, o critério da essencialidade encontra substrato no direito tributário, tanto na Constituição da República (art. 153, § 3º, I) quanto no Código Tributário Nacional, sob o título de seletividade. Em suma, tais critérios levam ao estabelecimento de alíquotas inversamente à imprescindibilidade do bem. A essencialidade dos produtos no direito tributário está intimamente associada a um padrão mínimo de vida, em última instância, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial que pode ser retirado da Constituição da República.Tendo-se em vista que, como presente em toda a obra de Teresa Negreiros, quando se pensa em dignidade da pessoa ou em sujeito, tal deve ser entendido como concretamente posicionado, é possível também estabelecer a essencialidade de determinado bem pela necessidade criada por hábitos sociais, como o caso de cigarro ou de cerveja. Em relação a esta, assevera a autora que, "embora a cerveja não seja um produto essencial sob o enfoque das necessidades físico-biológicas do indivíduo, ela o é sob o enfoque das necessidades sócio-culturais vigentes" (NEGREIROS, 2006, p. 411). No mais, há de reconhecer que a essencialidade de um bem é critério mutável e subjetivo.
No pensamento da autora, o propósito de aliar classificação dos contratos com aquela dos bens pode ser feito a partir da releitura desta última, já existente na Parte Geral da codificação civil, porém agora "sob o enfoque da primazia dos valores existenciais sobre os valores patrimoniais" (2006, p. 420). Quer-se com isso dizer que a classificação dos bens deva ser feita a partir da perspectiva civil-constitucional, fundamentada na cláusula geral de dignidade da pessoa humana. À classificação já existente pode-se somar a análise da destinação de determinado bem, no sentido de buscar uma diferenciação pautada na função que eles desempenham para a pessoa que deles se serve.
O Código Civil classifica os bens utilizando-se de quatro critérios: a) considerados em si mesmos; b) considerados uns em relação aos outros; c) conforme a natureza do titular do domínio; e d) conforme sua negociabilidade. Não, há em tal classificação, desprezo pela destinação a que é dada aos bens, embora esta se dê exclusivamente do ponto de vista patrimonial. Neste sentido, cita Teresa Negreiros o caso das pertenças, conceituadas como bens que se destinam, de modo duradouro, ao uso, serviço ou aformoseamento de outro, ou mesmo a destinação de determinado bem em princípio fungível (como uma moeda) que se torna infungível pela destinação que lhe é dada (como a moeda de colecionador).
Proceder à classificação do ponto de vista existencial, e não mais patrimonial, tem diversas conseqüências. Por exemplo, tome-se o caso de uma piscina construída em uma casa e em um hotel. No primeiro caso estar-se-ia diante de uma benfeitoria voluptuária e, no segundo, útil. No entanto, alerta Teresa Negreiros que a piscina construída em uma casa voltada à prática de exercícios essenciais a um deficiente físico que ali habite, em que pese a destinação não ser mais o deleite ou aformoseamento, continuaria a ser considerada como benfeitoria voluptuária porque bem reciprocamente considerado em relação à casa, e não a seu morador. Tomando-se um enfoque existencial, poder-se-ia sustentar pela qualificação de tal bem como útil, quiçá necessário (NEGREIROS, 2006, p. 434).
Exemplo maior de bem que, exceção à regra, é tutelado a partir do ponto de vista do sujeito é o bem de família. A especial proteção que recai sobre o bem destinado à residência familiar inova exatamente pelo fato de que toma como objeto desta proteção um bem considerado por sua destinação existencial, e não patrimonial.
Sem pretender desconsiderar a classificação das benfeitorias, Teresa Negreiros a toma como ponto de partida para a classificação a partir da utilidade existencial.
Ainda dentro da disciplina do bem de família, a abrangência do que deva ser assim considerado, como exemplo em relação a eletrodomésticos, pode ser definida a partir de um conflito concreto entre direito de crédito e o interesse existencial operacionalizado por determinado bem. Não se leva em conta unicamente a imprestabilidade do objeto, e sim sua importância para a existência digna.
Pelo paradigma da essencialidade, pautado por sua vez na cláusula geral da dignidade da pessoa humana, chega-se à diferenciação dos contratos a partir da classificação de seu objeto como bem útil, supérfluo ou essencial e, por outro lado, também no enfoque de estarem presentes interesses mais patrimoniais ou mais existenciais. Não se quer com isso colocar em detrimento a esfera patrimonial do indivíduo, pelo contrário, tal é concebida como instrumento para sua realização existencial.
Encaminhando-se para a conclusão de sua teoria, Teresa Negreiros indaga acerca da possibilidade de hierarquizar as necessidades humanas ou mesmo de conceber um critério científico de distinção entre o supérfluo, o útil e o essencial. Em que pese ser possível encontrar alguns parâmetros para tal fixação na lei, como no caso do art. 7.º, VI, da Constituição da República que discrimina necessidades vitais básicas do ser humano a serem proporcionadas pelo salário mínimo, ou mesmo o elenco legal dos serviços essenciais (Lei 7.783/89), parece ser justificável a análise em concreto das relações contratuais, com um inevitável grau de discricionariedade do juiz, evidentemente.
A justificação para análise in casu encontra-se na própria essência da teoria propugnada, assim como na linha axiológica do direito civil-constitucional. Reverberar a dignidade da pessoa humana no âmbito dos contratos, historicamente tão estático e fechado na absolutização da autonomia privada, pode significar colocar o direito contratual na linha mestra da Constituição brasileira, e dar ao direito civil mais uma ferramenta de transformação social.
A acuidade do pensamento da autora e a excelência de sua pesquisa, ao se utilizar da analogia das relações contratuais no âmbito da disponibilidade dos bens privados e das relações tributárias, sujeita ao princípio da legalidade, permite ao leitor questionar no que se refere à forma de enquadramento dos bens a partir de sua essencialidade. Vale dizer, no direito tributário a essencialidade dos bens e a eventual fixação de tarifas diferenciadas depende de previsão legal expressa, decorrendo, pois, do exercício do poder legiferante, por parte da autoridade constituída pelo voto. No pensamento da autora, a definição da essencialidade dos bens se daria a partir de uma análise casuística, já que não se poderia imaginar que a Lei viesse a definir a partir de incontáveis subjetividades, o que para um seria essencial, e não para o outro. Por outro lado, como a autora afirma, poder-se-ia considerar uma bebida alcoólica lícita como dotada de essencialidade para o bebedor contumaz. Ainda, se a análise da essencialidade deve se apresentar no caso concreto, caberia precipuamente ao Poder Judiciário a sua identificação, outorgando-se ao magistrado a competência que, analogicamente em relação às relações tributárias, seria do Legislativo.
As objeções identificadas acima permitem que se questione a condição do juiz perante a atribuição de julgamento de condições psicológicas dos sujeitos, diferentemente da definição legislativa prévia que se opera nas relações tributárias, assim como permitiria uma válvula de escape para análise de situações objetivamente idênticas, mas psicologicamente valoradas de forma diversa.
Por outro lado, a valoração da subjetividade como balizador da essencialidade do bem e, conseqüentemente, da interpretação que será atribuída ao contrato que instrumentaliza a sua mobilidade poderia trazer consigo uma completa impossibilidade de juízo de previsão dos agentes econômicos na definição dos custos, o que, por conseqüência, tenderia a uma elevação generalizada na fixação dos preços, de forma a respaldar o negociante na hipótese de corriqueiras e imprevisíveis alterações das condições de contratação, especialmente nos contratos associados a práticas econômicas repetitivas.
Uma concepção de essencialidade ligada ao conceito de bem-estar geral poderia reduzir a subjetividade das definições na análise do caso concreto, especialmente se a compreensão do que seja bem-estar ligue-se aos conceitos mensuráveis de longevidade e de qualidade de vida do ser.
A obra não apresenta uma proposta de classificação totalmente inovadora, ainda mais quando se reconhece que a essencialidade dos bens em relação à pessoa já foi tomada pela jurisprudência como critério de decisão, ainda que nem sempre explicitamente. Trata-se, porém, e aqui reside o caráter inovador da obra de Teresa Negreiros, de agrupar tais concepções em um novo paradigma contratual, o que demonstra a habilidade da autora em apresentar instrumentos para a concretização da incidência de princípios constitucionais nas relações privadas, tarefa especialmente oportuna no momento em que se computam vinte anos de uma Constituição.
Renata Carlos Steiner
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- IRTI, Natalino. L'ordine giuridico del mercato 9. ed. Roma: Laterza, 2003.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Nov 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008