Resumo
O presente artigo consiste em pesquisa de campo sobre normas de gênero em curso de Direito de uma universidade pública no Sul do Brasil, em que se investiga como as normas de gênero organizam as relações entre discentes mulheres no campo estudado. A pesquisa, orientada pelo pós-estruturalismo, é de abordagem qualitativa, com objetivo exploratório, e tem como ponto nuclear entrevistas realizadas durante o ano de 2021 na área mencionada. Das entrevistas, emergiram enunciados atrelados a relações de poder que envolvem gênero, raça, corporalidades, idade, regionalismos, entre outros. Para este artigo, com inspiração na ferramenta da interseccionalidade, focam-se as categorias relacionadas ao gênero e à raça. Baseia-se, também, em materiais registrados do campo, disponibilizados publicamente, assim como em revisão bibliográfica narrativa, costurando o viés epistemológico com teóricos como Michel Foucault e Judith Butler, como também com referências pós-coloniais, como Lélia Gonzalez, Enrique Dussel e Gayatri Spivak. Da pesquisa, a partir da análise temática, notou-se que as relações de poder estabelecidas mantêm acessos, visibilidades e reconhecimentos acadêmicos a sujeitos cujos corpos e comportamentos se enquadrem nas prescrições da ordem colonial.
Palavras-chave Normas de gênero; interseccionalidade; colonialidade; Direito; ensino do Direito
Abstract
This article consists of field research on gender norms in a Law Undergraduate at a public university in the South of Brazil, in which it is investigated how gender norms organize the relationships between female students in the field studied. The research, guided by post-structuralism, has a qualitative approach, with an exploratory objective, and has as its core point interviews carried out during the year 2021 in the aforementioned area. From the interviews, statements linked to power relations involving gender, race, corporeality, age, regionalisms. For this study, inspired by the intersectionality tool, it focuses on categories related to gender and race. It is also based on publicly available registered materials from the field, as well as a narrative bibliographic review, stitching the epistemological bias with theorists such as Michel Foucault and Judith Butler, as well as with post-colonial references, such as Lélia Gonzalez, Enrique Dussel and Gayatri Spivak. From the research, from the thematic analysis, it was noticed that the established power relations maintain access, visibility and academic recognition to subjects whose bodies and behaviors fit the prescriptions of the colonial order.
Keywords Gender norms; intersectionality; coloniality; Law; teaching of Law
Resumen
Este artículo consiste en una investigación de campo sobre las normas de género en un curso de Derecho en una universidad pública del Sur de Brasil, en que se investiga como las normas de género organizan las relaciones entre alumnas en el campo estudiado. La investigación, guiada por el postestructuralismo, tiene un enfoque cualitativo, con el objetivo exploratorio, y su punto central es las entrevistas realizadas durante 2021 en el campo de investigación mencionado. De las entrevistas surgieron declaraciones vinculadas a las relaciones de poder que involucran género, raza, corporalidad, edad, regionalismo, entre otros. Este estudio, buscando un análisis adecuado del material disponible a través de la interseccionalidad, se centra en categorías relacionadas con el género y la raza. También se basa en materiales grabados sobre el campo, puestos a disposición del público, así como en revisiones narrativas bibliográficas, uniendo el sesgo epistemológico con teóricos como Michel Foucault y Judith Butler, así como con referentes poscoloniales, como Lélia González, Enrique Dussel y Gayatri Spivak. De la investigación se desprende que las relaciones de poder establecidas conducen al mantenimiento del acceso, a la visibilidad y al reconocimiento académico a sujetos cuyos cuerpos y conductas encajan en el prescripciones del orden colonial.
Palabras clave Normas de género; interseccionalidad; colonialidad; Derecho; enseñanza del Derecho
Introdução
Organizações de ensino superior, públicas e privadas, são constituídas por parâmetros de instituição do projeto moderno, o qual produz normas para determinada padronização de comportamento, consistindo no sujeito moderno (Foucault, 1987). Na sua configuração, uma universidade apresenta uma série de disciplinas cujo objetivo é produzir e reproduzir tais normativas e, consequentemente, organizar a normalização de determinadas práticas voltadas à subjetivação de indivíduos funcionais para essa instituição moderna. Para o alinhamento a esse regime produtivo, há práticas que se caracterizam como modos disciplinares, relativos a meios de sujeição e de correção dos indivíduos, em que se encontram definições de padronização caracterizadoras de uma tecnologia política. É nesse compasso que se sugere que as universidades organizam o gênero por meio de relações de poder-saber interseccionais e desiguais.
Para a produção de corpos dóceis e obedientes às funcionalidades (Foucault, 1987), os indivíduos são classificados, divididos e hierarquizados. Tais ordenações são reforçadas pela divisão do espaço e construção de uma lógica de tempo. O poder que incide sobre os corpos na instituição produz controle sobre os indivíduos e direciona suas forças, orientando sua força política. O poder, que opera com mecanismos disciplinadores para constituir uma função a determinado corpo, atua no sentido de conformá-lo anatomicamente à instituição. Essa operação produtiva, amparada em relações de poder e saber e articulada por diversas tecnologias políticas que investem sobre o corpo dentro de uma instituição política, será denominada anatomopolítica (Foucault, 1987).
Nos espaços formais de ensino, ocorrem, portanto, operações conjuntas de distribuição e análise e de controle e inteligibilidade, constituintes do enquadramento: uma técnica de poder e um processo de saber. No quadro, há uma organização, a partir de determinadas premissas, do múltiplo, com a finalidade de ser um instrumento passível de dominação. Diferente da norma, pois, deve ser conferida uma ordem, visando à normalização/padronização (Foucault, 1987). Para alcançar a ordem, o ambiente de ensino desdobra-se e é organizado de maneira serial, estabelecendo lugares individuais, homogeneidade dos indivíduos, ordenação por fileiras, controle de presença por chamada, avaliação e classificação por desempenho de tarefas e funções. Os espaços são organizados normativamente (pelas classificações e hierarquias) com diversas ordens e posição de sujeitos e coisas, a disposição de prédios, salas, móveis de edifícios (Foucault, 1987).
Os modos disciplinares organizam os lugares, as classificações, as fileiras. Criam-se determinados lugares, sejam arquitetônicos, hierárquicos ou funcionais, que fixam categorias políticas de sujeitos e permitem o seu trânsito dentro da lógica organizacional. Com isso, marcam as posições dos sujeitos, indicam crenças, valores e a garantia de obediência, ao lado da economia funcional das práticas e de tempo.
Na instituição, esse poder disciplinar é entendido como anatomopolítica: um poder que produz o sujeito mediante a sujeição e a correção dos indivíduos e define padrões de uma tecnologia comportamental, como meio de controlar seu corpo e direcionar suas forças, bem como orientar ou diminuir sua força política (Foucault, 2014). Por isso, a anatomopolítica contempla uma concepção de anatomometafísica e produz efeitos de verdade sobre a percepção de realidade do indivíduo. Nas relações sociais determinadas pela disciplina, o poder produz saber e o saber produz poder. As relações poder-saber atravessam e constituem o sujeito, assim como estabelecem possibilidades e limites do conhecimento (Foucault, 1987). É aí, então, que técnicas, saberes e supostos discursos científicos se constituem entrelaçados com tais relações de poder que condicionam o sujeito a determinado senso de obediência às normas (Foucault, 1987).
Sob essa perspectiva teórica, propõe-se refletir como isso pode ocorrer faticamente. Assim, a proposta deste artigo é a reflexão sobre como as normas de gênero, mediante esse enquadramento, organizam a vida em curso de Direito de uma universidade pública da cidade de Katara,1 no Sul do Brasil. Assim, como problema de pesquisa, investiga-se como as normas de gênero organizam as relações entre discentes mulheres no campo investigado.
Para o desenvolvimento deste artigo, orientado pela matriz epistemológica do pós-estruturalismo, adota-se a abordagem qualitativa, com objetivo exploratório, e tem-se como ponto nuclear entrevistas realizadas durante o ano de 2021 no campo de pesquisa mencionado, conforme se detalha a seguir.
1. Aspectos metodológicos: sujeitos, categorias teóricas introdutórias e campo de pesquisa
Os dados aqui coletados condizem com enunciações e relações de poder que associam elementos para formar um sistema simbólico funcional, que é entendido como discurso (Foucault, 2017, 2021). Esse conjunto de enunciados e relações opera, portanto, em um mesmo sistema de formação; assim, pode-se falar em discurso psiquiátrico, discurso econômico e discurso jurídico (Foucault, 2017). Nesse entendimento, discurso não se refere a falas, mas a uma forma de organizar técnicas, instituições, maneiras de conduta, modos de produção de conhecimento, as quais determinam e reforçam os discursos (Foucault, 2010). Incidindo discursos sobre os corpos, o indivíduo será subjetivado, ou normalizado, pelas diversas relações de poder que o constituirão como sujeito (Foucault, 2006; Butler, 2013, 2018a).
No campo semântico da epistemologia adotada, os significados das categorias teóricas, que se relacionam entre a base de autoras e autores utilizados, “normas de gênero” e “colonialidade” são aqui estabelecidos. As normas de gênero são entendidas como diretivas hegemônicas de comportamento, afetividade, convivência, advindas de regimes de verdade generificados e mantidos por sistemas de poder, relacionais e difusos, presentes de forma fundante nos processos de subjetivação das pessoas (Butler, 2018a; Foucault, 2000). São produzidas pelo sistema sexo-gênero, o qual articula mecanismos que regulam a organização dos corpos em sociedade (Rubin, 1975). Determinam um campo ontológico de legitimidade dos corpos a partir da ideia de dimorfismo ideal e da complementaridade do binarismo sexual, que está associada também a códigos de pureza racial (Toneli; Becker, 2010).
Pressupõe-se que tais normativas, por sua vez, organizando as relações de poder e, especialmente, os modos disciplinares, direcionam o comportamento das mulheres, que estão na posição de discentes na hierarquia institucional, de forma a estarem associadas a práticas orientadas pela colonialidade. Esta refere-se a um padrão de exercício de poder que opera por meio da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, o que possibilita a reprodução de relações de poder marcadas pela dominação. Esse padrão de poder garante, dessa forma, dinâmicas de subjugação de determinados grupos sociais, bem como a subalternização e obliteração de conhecimentos, experiências e formas de vida (Restrepo; Rojas, 2010).
Os sujeitos que dialogam com esta pesquisa são discentes da área de Direito de uma instituição de ensino superior do Sul do Brasil, em diferentes fases de sua formação. Todas as participantes identificam-se como mulheres, cisgêneras. Entre elas, a maioria se entende heterossexual, tendo diversidade relacionada à questão racial (brancas e negras). O convite para participar da pesquisa foi feito por meio do envio de e-mail à plataforma institucional do curso da área (que congrega os endereços de correspondência eletrônica de todas as pessoas discentes), com descrição acerca da pesquisa, link para preenchimento de questionário de identificação e indicação de dia e hora para entrevista. Foi também enviada mensagem para discentes pelo aplicativo WhatsApp, com as mesmas informações do e-mail, além de um pedido de encaminhamento às pessoas das quais tivessem o contato. Durante as entrevistas, pela técnica snowball, foram mencionadas pessoas que poderiam contribuir para a pesquisa, em virtude do conhecimento de determinadas situações relatadas, inclusive homens discentes. Em razão dessa técnica, os sujeitos podem ter aderido à pesquisa por conveniência e de forma aleatória. Assim, há, nos dados utilizados para análise, possibilidade de viés, com a tendência dos sujeitos entrevistados de aproximação ou identificação com as temáticas tratadas.
Para este artigo, foram utilizadas as narrativas de dez discentes de graduação. Para participar da pesquisa, as discentes concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que destaca a confidencialidade dos dados sensíveis obtidos. O estudo foi aprovado por Comitê de Ética, cujos dados específicos estão reservados. Com o aceite de participação da pesquisa, as entrevistas semiestruturadas foram realizadas pela plataforma Google Meet, sendo solicitado que as discentes refletissem sobre sua condição como mulher no curso de Direito da unidade de ensino pesquisada. A pergunta disparadora das entrevistas foi “como você se percebe mulher no espaço de formação em Direito”.
As entrevistas, que tiveram como duração cerca de uma hora, foram registradas em gravação de vídeo e, em seguida, convertidas em áudio e transcritas. Cada uma das discentes, na transcrição, em cumprimento a procedimentos éticos de sigilo e confidencialidade, recebeu respectivas nominações: Charlie, Blenda, Gael, Megumi, Alex, Sol, Duda, Noah, Coral e Maki, sendo as quatro primeiras identificadas como alunas negras. É por tais termos que serão tratadas daqui adiante. Para descrever e analisar os materiais obtidos, foi efetuada uma análise temática das práticas discursivas, embasada no referencial teórico-epistemológico pós-estruturalista. Durante a entrevista, foram anotadas questões iniciais relativas ao tema da tese. Posteriormente, durante a degravação das entrevistas e sua consequente leitura, as transcrições foram categorizadas em temas principais como citações-chave de cada uma das discentes.
Para o tratamento dos dados, direcionando-se para resolver o problema de pesquisa, qual seja a investigação sobre como as normas de gênero organizam as relações de poder no campo investigado, o enfoque é dado às práticas narradas pelas discentes. Essas narrativas revelam enunciados que, em seu conjunto, sugerem em qual campo simbólico estão sendo submetidas as entrevistas. Além disso, indicam quais normas orientativas das relações de poder estão impondo o sentido da subjetivação.
Do material coletado nas entrevistas, emergiram enunciados atrelados a relações de poder concernentes a gênero, raça, corporalidades, idade, regionalismos, entre outros, que subjetivam as pessoas entrevistadas. Para este artigo, a análise temática inspirada na ferramenta da interseccionalidade é trazida como estratégia para o estudo dos discursos enunciados nas entrevistas que oferece uma perspectiva sobre como as relações sociais marcadas pela diversidade são moldadas pelas relações de poder (Collins; Bilge, 2021).
Das categorias políticas que apareceram nas entrevistas, terão como foco aquelas relacionadas a gênero e a raça. Desse modo, sobre as demais categorias, como as concernentes a corporalidades e sexualidades, escolhe-se trabalhar, oportunamente, com outros elementos que possam conferir uma análise adequada à temática. Demais dados utilizados para o desenvolvimento da pesquisa basearam-se em materiais registrados do campo disponibilizados publicamente,2 assim como em revisão bibliográfica narrativa, costurando o viés epistemológico com teóricos como Michel Foucault e Judith Butler, como também com referências pós-coloniais, como Lélia Gonzalez, Enrique Dussel e Gayatri Spivak.
2. Normas de gênero e moldura do reconhecimento
As normas de gênero, as quais direcionam a observação deste artigo, orientam a disciplina para o enquadramento dos corpos a determinada funcionalidade e também organizam a moldura do reconhecimento das vidas. Nas possibilidades desse reconhecimento do que é vida, de como os indivíduos são entendidos e como são tratados, aqui se articula a ideia butleriana de enquadramento de critérios de inteligibilidade, que se referem a categorias políticas que constituem o sujeito em determinado tempo e lugar e que formam o que vem a ser entendido como moldura de reconhecimento ou moldura de inteligibilidade.
As linhas de reconhecimento desse enquadramento, que formam uma espécie de moldura sobre o que é vida passível de consideração, organizam as normas pelas quais os sujeitos são produzidos e em quais termos se deslocam em tais normas para serem reconhecidos (Butler, 2017). Nesse processo, o reconhecimento é produzido por formas conceituais e normas do que é vida e do que não é vida, de acordo com o que fora aprendido contextualmente (Butler, 2017). As normas de reconhecimento são condições amplas, discursivas e historicamente associadas a critérios objetivos de como alguém pode ser reconhecido. Essas condições projetam como o indivíduo deve se sujeitar para ser reconhecido como sujeito, com ideias, expressões, convenções, razão pela qual “a condição de ser reconhecido precede o reconhecimento” (Butler, 2017, p. 19).
As condições do reconhecimento, portanto, pressupõem molduras epistemológicas pelas quais os corpos recebem uma série de sentidos e que são, também, assujeitados por relações de poder. O assujeitamento, ou sujeição, pode caracterizar um processo de subordinação ao poder, mas também uma condição de possibilidade contínua de se tornar sujeito, o que confere ao mesmo tempo, ao indivíduo, um lugar discursivo. Desse lugar de posição perante as normas de reconhecimento, a sujeição, que é condição para a produção do sujeito, também “é o motivo de o sujeito se tornar garantidor de sua própria resistência e oposição” (Butler, 2018a, p. 23). Na questão ambivalente em que se diferenciam o poder que forma o sujeito e o próprio poder do sujeito, tem-se que “o poder é externo ao sujeito e simultaneamente seu âmbito de ação” (Butler, 2018a, p. 23-24).
Das normas de reconhecimento que estruturam simbolicamente sentidos de vida, são fundamentais, para esta pesquisa, as normas de gênero, i.e., o sentido do corpo, seus limites e suas potências, o que é definido pelas relações que proporcionam as possibilidades de vida e de ação (Butler, 2016). A ideia do corpo atuando em determinados contextos convoca, portanto, uma reflexão sobre posições precárias, ou em sua precariedade, em que os corpos devem ser compreendidos pela sua interdependência, ou seja, que um corpo não pode existir sem outro corpo. O Sujeito produz o Outro, que também o define pela condição de interdependência, que significa “que esse ‘eu’ requer ‘você’ para sobreviver e se desenvolver” e que “as lutas mais individuais pela sobrevivência também são sempre lutas sociais” (Butler, 2016, p. 32).
Os corpos que não estejam na moldura normativa do reconhecimento, entendidos como corpos não representados ou sub-representados (como passivos ou reificados), sofrem reconhecimento indevido e essa pessoa suporta toda ordem de violência, marginalização econômica, discriminação cultural, violência policial ou patologização psiquiátrica (Butler, 2016). Os corpos são possibilidades de habitação cujas fronteiras são conferidas pela sua constituição como sujeito nos processos de reconhecimento das relações de poder mantidas pelos indivíduos. Assume-se um corpo, como um território político, com fronteiras produzidas politicamente, em que os sentidos políticos tentam justificar as violências (exploração, submissão, alienação, escravidão) de determinados sujeitos sobre outros (Grijalva, 2020).
Na pesquisa empírica realizada, o campo de investigação, orientado pela exploração de práticas relacionadas às normas generificadas, revela determinada moldura normativa de gênero que apresenta matrizes de reconhecimento que reforçam discursos hierarquizantes e desencadeiam uma simultaneidade de discriminações e privilégios interseccionais a mulheres discentes (Butler, 2017). Pelas interações dos sujeitos do campo de pesquisa, pensamos sobre a constituição das discentes do Direito e as dimensões nas quais a sujeição é mediada e negociada. Nessa posição hierárquica, há certa sujeição das mulheres que dialogaram com tal investigação. Há indicação de uma necessária concessão por parte delas, em dimensões interseccionais de negociação com o poder estabelecido. Buscamos, assim, desenvolver um pensamento de fronteira, cientes dos problemas coloniais da Modernidade e intentando entender seus efeitos na observação dos processos de constituição dos saberes e dos sujeitos cognoscentes (Mignolo, 2003). Para a compreensão dessas práticas, pautamo-nos prioritariamente nos/pelos enunciados proferidos pelas pessoas entrevistadas, que relatam questões relacionadas à estrutura acadêmica (acesso e permanência nas atividades acadêmicas), aos sentidos conferidos à ideia de mulher e aos modos disciplinares, como formas da prática do poder que impulsionam outras práticas associadas aos signos locais (Collins; Bilge, 2021).
2.1. Sentidos da moldura do reconhecimento
As condições do reconhecimento de uma vida condizem com molduras de inteligibilidade pelas quais uma série de significados são inscritos nos corpos, o que produz seu assujeitamento às relações de poder nas instituições. Essa moldura do reconhecimento, organizada por normas de gênero (Butler, 2017), é aqui associada pelo sistema de significados da colonialidade.
A colonialidade é efeito do colonialismo europeu, que configurou, na segunda metade do século XIX, diversas premissas políticas e científicas para justificar a hierarquização dos corpos e a subjugação de determinados grupos sociais (Gonzalez, 1988). No Brasil, tais processos de formação e consolidação das instituições pela lógica da Modernidade, engendrados pela colonização, caracterizaram uma série ordenada de implicações epistêmicas, culturais, políticas e econômicas, cujos efeitos convergem para a manutenção de uma estrutura social desigual e discriminatória. E, como uma categoria de análise que promove a desestabilização de diversas noções colocadas como universais, pela colonialidade são identificadas as hierarquias produzidas pelo paradigma da Modernidade e que representam hierarquias constituídas historicamente, as quais estão associadas a diversas formas de discriminação, como sexismo e racismo.
A Modernidade consiste em um conjunto de elementos que integram dispositivos de poder-saber e formam uma episteme colonial que se fundamenta na ideia de ponto zero, configurado como um lugar fictício, em que determinados sujeitos são constituídos em uma posição de regentes e observadores do mundo, podendo-se afirmar como neutros daquele contexto; e outros sujeitos são sujeitados a poderes relacionais que os conformam em uma inteligibilidade do outro, daquele que é objeto de observação, de medida, de julgamento, em risco de desumanização ou animalização.
Os sujeitos produzidos como neutros não seriam eles mesmos observáveis, classificáveis ou nomináveis, pois seriam “o universal” (Colaço; Damázio, 2012; Grosfoguel, 2008). Assim, seriam produzidos por práticas hierárquicas de autoridade, entendendo-se como autorizados a nomear o mundo, a estabelecer limites sobre a legitimidade dos conhecimentos, validando-os ou não, a definir sobre normalidade e patologia (Castro-Gómez, 2005).
Nessa posição, os sujeitos produzidos como autoridade nessas relações de poder-saber emulam uma origem epistemológica de tudo e congregam condições de possibilidade para o direcionamento do poder a um sentido determinado (Castro-Gómez, 2005). A partir dessa episteme, capilarizam-se inúmeras formas de relações sociais, políticas, econômicas, que constituem modos e saberes mediante violência colonial, como a imposição ao outro de modos como sentir, como pensar, como viver e, inclusive, de como se nominar aos sujeitos outros, cujo processo de subjetivação específico no campo de pesquisa é aqui analisado.
3. Colonialidade e interseccionalidade: categorias analíticas e pressupostos ao campo
A colonialidade, pelos estudos do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C),3 é integrada pelos eixos colonialidade do poder, do ser, do saber e colonialidade de gênero (Ballestrin, 2013; Lugones, 2007, 2014). Para este artigo, a partir das entrevistas realizadas, escolhe-se não apresentar os eixos específicos por se perceber que todos são estritamente articulados. No lugar dessa divisão, portanto, opta-se por compreender os enunciados a partir das práticas reveladas nas entrevistas, o que nos orienta à ferramenta da interseccionalidade.
A interseccionalidade, como ferramenta analítica para a análise dos discursos enunciados nas entrevistas desta pesquisa, assume uma perspectiva não só macropolítica das relações, mas também micropolítica, que possibilita considerar, no exame, os mais diversos códigos de inteligibilidade que constituam a moldura do reconhecimento a ser delineada. Como uma forma, portanto, de articular a compreensão acerca das relações sociais e das normativas, permite a observação sobre categorias inter-relacionadas que constituam as hierarquias interseccionais que operam segundo lógicas coloniais.
Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) dimensionam quatro domínios de poder interconectados que funcionam, cada um, de uma maneira específica: (i) o domínio estrutural do poder, relativo às relações de macropolítica institucional, que consiste na forma de organização da instituição em relação ao trânsito dos indivíduos por ela; (ii) o domínio cultural do poder, caracterizado pelas ideias concernentes às categorias políticas que organizam as relações; (iii) o domínio disciplinar do poder, referente à aplicação de regras e sanções; e (iv) o domínio interpessoal do poder, que é o modo com que os indivíduos experienciam os domínios mencionados anteriormente.
Para o presente artigo, são considerados os quatro domínios que organizam as lógicas coloniais e as relações de poder. A linha investigatória das práticas relatadas, portanto, refere-se a uma episteme colonial generificada, que opera seguindo valores da heteronormatividade, da cisnormatividade e da branquitude, e produz uma hierarquização multidimensional entre as pessoas na medida em que privilegia determinados corpos e sujeitos em detrimento de outros. Contudo, como se verá na análise discursiva, mesmo o privilégio é mediado por concessões ambíguas sobre o enquadramento de reconhecimento a ser conferido a um indivíduo.
Para tanto, da mesma forma que a identificação da colonialidade representa a desnaturalização de valores falaciosamente impostos como universais, localizando-os em uma lógica discriminatória da Modernidade, tais orientações também promovem esse questionamento sobre como opera a moldura do reconhecimento a ser analisada e sobre como a posição na fronteira ou externamente a essa moldura de inteligibilidade acarreta exclusões. Nessa reflexão, são trazidas matrizes normativas de governamentalidade vigentes na Modernidade ocidental e seus ideais regulatórios, destacando-se o sistema cis-heternormativo e o sistema de branquitude.
A heteronormatividade opera em uma lógica de regular os corpos em uma funcionalidade heterossexual, validando tal modelo de sexualidade como o mais legítimo ou o único permitido (Oliveira, 2017). A cisnormatividade, por sua vez, pauta-se pela cisgeneridade como a forma legítima ou mais adequada de vida, a qual é definida pré-discursivamente por uma compreensão reducionista e binária do corpo (em feminino ou masculino) pela permanência de seu status como padrão (Vergueiro, 2016). Os modelos normativos cis (Serano, 2007; Vergueiro, 2016) e hetero (Rich, 1993; Butler, 2018b) são emulados como naturais e, portanto, compulsórios. Suas matrizes normativas e seus ideais regulatórios fortalecem a complementaridade entre homem cis e mulher cis, conforme defendido pelo projeto humanista moderno, especialmente pelo Estado e pelas denominações religiosas cristãs. Por consequência, essa complementaridade naturalizada organizará a família moderna, inventada em uma subjetivação da mulher cis, branca e burguesa, na dependência econômica das mulheres aos homens e na busca do modelo ideal de feminilidade (devendo a mulher ser esposa submissa, passiva, obediente, preocupada com a casa e boa mãe). Ainda, como um efeito e uma das condições de possibilidade da heteronormatividade, tem-se a homonormatividade, como uma dimensão daquela, ao buscar a adesão de sujeitos da comunidade LGBT+ no enquadramento heteronormativo (Oliveira; Costa; Nogueira, 2013). A homonormatividade aparece nesta pesquisa na assunção dos indivíduos, os quais, apesar de se identificarem como dissidentes da heterossexualidade, parecem não refletir a respeito desse modelo político de moldura de reconhecimento.
A branquitude associa-se às lógicas anteriormente descritas na medida em que constitui posições de sujeitos. Para Bento (2002, p. 7), a branquitude é caracterizada como “um lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual a racialidade, não nomeada como tal, é carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas” em que são preservadas as “hierarquias raciais, como pacto entre iguais”, especialmente nas organizações, que são instituições “essencialmente reprodutoras e conservadoras”. Pela branquitude, em razão de determinados critérios do que se entende ser branco ou branca, pessoas assim identificadas são sistematicamente beneficiadas no acesso a recursos de diversas ordens (materiais e simbólicas), produzidos por hierarquias interseccionais do colonialismo e do imperialismo e mantidos atualmente (Schucman, 2014).
Apesar de ser possível uma definição genérica sobre tais critérios, seus sentidos também são instáveis, a depender das peculiaridades históricas, políticas e culturais da região. No território brasileiro, por exemplo, a moldura do reconhecimento da branquitude exige fenótipo de pele clara, feições entendidas como europeias e cabelo liso (Schucman, 2014). As práticas decorrentes dessas normativas produzem o racismo como uma estrutura hierárquica que cria e polariza uma superioridade branca ocidental a uma inferioridade negra. Como se a África fosse “o continente ‘obscuro’, sem uma história própria (Hegel); por isso, a Razão é branca, enquanto a Emoção é negra. Assim, dada a sua ‘natureza sub-humana’, a exploração socioeconômica dos amefricanos por todo o continente é considerada ‘natural’” (Gonzalez, 1988, p. 77).
Entrelaçadas a tais práticas, estão as normativas do ocidentalismo e do eurocentrismo/imperialismo. A categoria ocidentalismo é formulada por Edward Said (2011) para se refletir sobre a posição dominadora do Ocidente e os símbolos ocidentais que produziram estereótipos sobre o Oriente, representativo de áreas associadas ao Islã (o Norte da África, o Oriente Médio, a Indonésia, a Índia e a costa leste africana). Articulado a isso, “o imperialismo consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala global. Mas seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que as pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo, exclusivamente brancas, pretas, ocidentais ou orientais” (Said, 2011, p. 144). Nessa lógica maniqueísta produzida pelo ocidentalismo, o imperialismo atenta contra “a continuidade duradoura de longas tradições, de moradias constantes, idiomas nacionais e geografias culturais” (Said, 2011, p. 510) e representa, além de um projeto territorial, um projeto de constituição violenta do sujeito colonial “que se autoimola para a glorificação da missão social do colonizador” (Spivak, 2002). Nessa geopolítica, o eurocentrismo, como categoria geopolítica, é entendido como uma forma de conhecimento que elabora a lógica de que a Europa Ocidental é referência para os demais territórios. Surge associada à expansão e secularização da burguesia e do pensamento europeu por força da colonização e voltada a atender às suas exigências coloniais e capitalistas (Quijano, 1992).
Tais linhas categoriais temáticas que formam a colonialidade e a moldura de reconhecimento aqui apresentadas foram pressupostas na organização desta pesquisa, e, após análise, foram formulados os seguintes eixos temáticos: (a) pensar o sujeito mulher, em que são analisadas as hierarquias interseccionais presentes no campo a partir das mensagens culturais sobre os significados do sujeito mulher, na dicotomia cis-heteronormativa; (b) acesso e participação, relativa às possibilidades de ação dentro do espaço de formação profissional, em que são percebidos os limites e as disciplinas a partir dos significados relacionados às alunas; (c) possibilidades de vida e estrutura, em que são percebidas as relações hierárquicas, especialmente com os sujeitos que representam comandos administrativos institucionais.
4. Análise do campo: a constituição da discente de graduação em Direito
As normas institucionais para discentes, como regra geral, dizem respeito a atividades de ensino, pesquisa e extensão, em observância aos eixos constitucionais que estruturam a instituição de ensino superior, conforme art. 207 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988). Essas atividades integram o currículo oficial do curso e as discentes mulheres desenvolvem-nas por meio de relações sociais com discentes homens, com docentes mulheres e homens (que ministram aulas e coordenam grupos de pesquisa e extensão), com docentes em cargos administrativos e com técnicas e técnicos de apoio pedagógico.
Para o presente artigo, serão analisadas as relações com seus pares e com docentes. Dessas atividades, pelos relatos das discentes entrevistadas, a participação mais efetiva nos grupos de pesquisa e extensão é de pessoas brancas, que têm disponibilidade de tempo para se dedicar às atividades extraclasse e não são responsáveis pelo seu sustento e/ou pela sua manutenção material, além de não demonstrarem problemas em ter acesso às atividades de ensino.
Na relação com outras discentes e com discentes homens, discentes brancas relatam um bom contato, de modo geral, apesar de seus colegas homens não demonstrarem interesse em temas ligados à categoria política de gênero relacionada a mulheres. Quanto às relações com professores homens, foram recorrentes as afirmações de que docentes não se preocupam com a participação das mulheres, dando primazia à participação dos discentes homens, e que as tratavam de uma forma diferenciada, ora de maneira infantilizada, ora tentando alguma proximidade. A categoria política de raça, especialmente para este artigo, foi preponderante para as discentes negras, sendo recorrente a afirmação de que a questão de gênero não as atravessava tanto quanto a questão racial.
4.1. Pensar o sujeito mulher
As ideias e a cultura organizacional da instituição, especialmente na unidade de ensino que foi campo da pesquisa, condizem com o domínio cultural de poder, que mobiliza ideias a respeito das categorias políticas estudadas, bem como quais são as possibilidades dos corpos reconhecidos nelas. Nesse aspecto, cabe, aqui, a referência de significante sobre ser mulher, que advém dos sentidos percebidos pelas entrevistadas nas relações que travam com pares e docentes. Pelos relatos das entrevistadas, há uma expectativa de quem é discente no curso de Direito: seria um homem, branco, que se expresse de forma entendida como masculina, de idade próxima a 20 anos, descendente de uma família de juristas e com possibilidades de realização de atividades acadêmicas com carga horária de grande dedicação. O reconhecimento de corpos diversos dessa expectativa modula as relações sociais ali estabelecidas. No campo de pesquisa, a categoria racial traz uma identificação das normativas de reconhecimento de gênero às discentes brancas. Para as discentes negras, os sentidos sobre o reconhecimento de si, referente ao que é ser mulher, são conformados em razão da categoria racial:
[me sinto] menos mulher... é preciso tirar mecanismos pra que eu seja ouvida enquanto mulher; [...] aí não tem como dissociar eu sou uma mulher negra. Portanto, tenho opiniões menos e menos validadas; a minha opinião sempre tem que vir ancorada num dado científico [...] e eu não tenho o direito de errar. [...] As minhas opiniões, se elas não forem extremamente fortes e bem ancoradas, elas são menos do que as opiniões das mulheres brancas (Megumi).
Das entrevistas, os enunciados sugerem dimensões relacionais diferentes, a variar preponderantemente pela questão racial. Discentes negras revelam um discurso de não reconhecimento como acadêmicas do curso de Direito, como também de não pertencimento ao espaço, apesar de relatarem que sentiam sua presença ser percebida, de certa forma, naquele local.
O sentido sobre ser mulher também atravessa a percepção que as discentes têm sobre as docentes mulheres. Das entrevistadas, há o reconhecimento de que as docentes realizam o trabalho de excelência, mas que, ambiguamente, não podem competir com os homens devido à sobrecarga de trabalho externo (como família e casa). Mesmo assim, as discentes indicam a imposição de exigências às docentes, diferentemente de como abordam um professor homem.
As mulheres, eu vejo que, pela pressão, elas se colocam numa posição de tentar chegar no nível que eles estão, mas eles não, elas não têm como chegar no nível que eles estão, porque eles não, eles não têm casa pra limpar. Eles não têm roupa pra lavar, eles não têm nenhuma tarefa que as mulheres que ficam na casa das mulheres. [...] É isso: as mulheres não têm como entrar nessa competição, eu vejo que elas tentam ao máximo entrar na produtividade, produtividade, produtividade [...]. São homens e brancos, e os homens brancos têm todo um exército de pessoas que para cuidar deles como se fossem bebês infantilizados, eles são infantilizados (Gael).
As posições das discentes no campo de pesquisa investigado apresentam-se em dimensões diversas, dependendo de sua constituição racial. Pelo colocado, sugere-se que o reconhecimento dos corpos brancos, entendidos como funcionais, recebe tratamento pautado em normas cis-heteronormativas, ora direcionado a um tratamento objetificador, ora a um tratamento de condescendência e paternalista. De outro modo, nas relações em que não se reconhece a branquitude, há uma resistência de aceitação de acesso e participação de acadêmicas negras na formação jurídica da instituição pesquisada, como se percebe a seguir.
4.2. Acesso e participação
Neste tema, são abordados enunciados que se associam ao acesso às aulas, aos grupos de pesquisa e extensão, bem como à participação efetiva nessas atividades acadêmicas, com demais discentes e com docentes. Entre as discentes que mencionaram sua participação em sala de aula, todas relataram participar menos do que os discentes homens nas aulas, por falta de incentivo, seja por receio da reação dos professores homens, seja pela reação dos colegas.
[...] é muito nítido como meninos participam muito mais das aulas. Eles falam, os professores dão bem mais atenção também. Nossa, [...] são muito poucas meninas que falam, sabe, que, que fazem perguntas pros professores. É bem claro (Alex).
[Determinado professor] ele é muito impositivo [...]; então parece que a gente é um pouquinho menor, sabe? (Duda).
O desestímulo também foi percebido para a participação em iniciação à pesquisa. Houve enunciado de discentes entrevistadas que indica tratamento diverso entre homens e mulheres. A discente Sol narrou que, comparado a outro colega na mesma atividade, o tratamento que um professor lhe conferia era omisso, impondo-lhe o dever de saber aquilo que ele deveria ensinar:
[...] eu te falar assim, “senti idiota, senti burra”, foi mínima de toda essa experiência que eu tive. [...] Teve diversas situações, né, e que, que enfim acabou, infelizmente, nutrindo esse sentimento negativo, né? [a situação mais marcante] pra mim foi o fato de eu pedir ajuda, literalmente, a palavra “ajuda” pra conseguir superar [...] uma dúvida [...] e não receber nenhuma resposta, zero. Pra mim, isso é, assim, a maior clareza de desinteresse pelo jeito que ele fala que não acredita na minha passagem, de verdade, muito claro, desde o começo. Ele não explicava, ele me ignorava [...] e eu não pedia desculpa, eu pedia perdão. [...] Toda [reunião], ele mudava de ideia, mudava de ideia [...], tinha que apagar e começar do zero. E isso está acontecendo agora: tenho que entregar um relatório amanhã e hoje, cinco minutos atrás, ele me mandou mensagem do tipo: “Oh, tu não pode esquecer de falar isso na pesquisa”, e nunca nem [tínhamos conversado sobre durante] um ano e... e eu peço perdão [...] Óbvio que eu estou me arrastando no chão, [...] que ele vai sentir superior (Sol).
O represamento do conhecimento, que impede a discente de ter acesso a saberes necessários para o desenvolvimento do seu trabalho, sugere uma formação relacional de dependência, na qual a discente se vê impelida constantemente a acionar o docente para poder estudar, o que relativiza a sua autonomia de pesquisa. Ainda, conforme o relato, produz a noção de que a discente deveria saber, mas não sabe; logo, por isso, não se entende suficiente para realizar aquele trabalho.
Essa situação refere-se à lógica das relações com discentes brancas, uma vez que o acesso às atividades acadêmicas para discentes negras foi relatado como mais restrito ainda. Para discentes negras, a participação em aula parece ser considerada somente após apresentarem diversos argumentos relacionados a seu ponto de vista, como estatísticas ou argumentação de autoridade reconhecida pela colonialidade; ou reivindicada quando se aborda o processo escravocrata de forma colonial:
Como mulher dentro do curso de Direito [me sinto] menos mulher. E aí é preciso tirar mecanismos para que eu seja ouvida enquanto mulher; não [...] tem como dissociar: eu sou uma mulher negra. [Nessa ideia] Portanto, né, tenho opiniões menos [...] menos validadas; a minha opinião [...] sempre tem que vir ancorada num dado científico, [...] eu não tenho o direito de errar. Eu, enquanto um ser pensante que tem opiniões, as minhas opiniões, se elas não forem extremamente fortes e bem ancoradas, elas são menos do que as opiniões das mulheres brancas (Megumi).
Ademais, a participação em grupos ou eventos por tais discentes só é pensada quando seus temas refletem algo vinculado ao pertencimento racial dessas discentes:
[...] um dos motivos que, que me faz querer sair daqui porque as patotas, os grupos, [...] eu não consigo me sentir inserida em um lugar; [...] apenas se for pra tratar de racismo. [...] Algum professor vai falar alguma coisa e ele olha pra mim pra que eu valide se o que ele está falando é correto ou se não está incorrendo em racismo, em alguma outra coisa. Eu não quero esse olhar, eu não quero essa postura de estar ensinando o tempo inteiro. [...] Eu sei falar bem de direito administrativo, eu sei falar bem de propriedade intelectual [...]. Eu sinto que essa experiência aqui ela me mostra muito o lugar que tá reservado pra mim. A posição que está reservada pra mim, isso fica muito demarcado. E principalmente essa possibilidade de ensinar branco, sabe? (Megumi).
O enunciado referido alcança um discurso do projeto colonial, sobretudo pelo viés da individualidade, em que não se reconhece como responsabilidade de todas e todos a luta antirracista e impõe-se ao sujeito negro um lugar reduzido de possibilidades.
Nessa perspectiva, a branquitude representa uma posição social em uma estrutura discriminatória que constitui o sujeito, reconhecido como branco, em uma série de privilégios, e, nesse sentido, tal sujeito também reforça a lógica estrutural. Para a manutenção da colonialidade, as dinâmicas relacionais ocorrem em termos de categorização de pessoas negras e indígenas a partir da ideia de branquitude (Schucman, 2020). É nesse caminho que se faz necessário compreender o compartilhamento de processos e de responsabilização sobre a discriminação, visto que a branquitude cria o Outro e, como uma exímia invenção, não se identifica ou localiza como branco. A resistência ao aprendizado acerca de racismo, como pessoas brancas, sugere também uma resistência em se reconhecer como responsável por pensar ações antirracistas.
Esses enunciados triangulam-se com o “véu ideológico do branqueamento”, o qual “é recalcado por classificações eurocêntricas”, que hierarquizam práticas e corpos, e podem subjetivar todos os indivíduos que estejam sujeitos a essa lógica. Seria o racismo à brasileira essa “denegação de nossa latinoamefricanidade”, que produz efeitos deletérios “contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer”, utilizando o mito da democracia racial como escusa (Gonzalez, 1988, p. 69).
Nas atividades extraclasse, as entrevistadas demonstraram existir, entre as pessoas participantes dos grupos de pesquisa ou de extensão, vínculos privilegiados, especialmente com a pessoa docente, o que acaba gerando uma espécie de poder político que tais discentes possuem. Em alguns relatos, foram mencionadas situações de discentes outros/outras que se reconheciam como “crias” ou “filhos/filhas” de determinados professores e/ou identificavam-se, com orgulho, como participantes de um grupo ou de outro. Aparentemente, segundo as entrevistadas que comentaram sobre o assunto, o acesso das pessoas a oportunidades de trabalho, estágio, assessoria, chances de ingresso na pós-graduação e consequentes viagens acadêmicas, seria facilitado com a proximidade a determinados docentes. Esse suposto poder político também apareceu nas entrevistas quando foram citadas deferências conferidas a discentes com determinados sobrenomes de famílias consideradas de relevância social local e/ou parentesco com algum profissional considerado relevante no campo do Direito. Essa é uma tentativa de manutenção da lógica colonial, especialmente a plasmada pela branquitude, por meio de uma lógica familista, que integra a colonialidade.
Eu acho que as pessoas já chegam com um pouco disso [negociação do poder] porque boa parte da [unidade de ensino] vem de famílias, né? Ah, famílias, o sobrenome faz. O sobrenome: sobrenome que, que fala antes da pessoa, antes de a pessoa chegar, já tem um não sei o quê, um sei lá, uma coisa assim (Gael).
Eu observo [a existência de determinados grupos na unidade de ensino] como uma tentativa de manutenção desse status, né? [...] Eu acho que o comportamento deles é muito semelhante com comportamento [...] tipo do Judiciário, sabe? Que vô é juiz, o pai tem que ser juiz, o filho também vai ter que ser juiz (Blenda).
A lógica familista, como um subproduto do colonialismo, opera de diversas formas, e destaca-se pelo paternalismo (proteção e facilitação de acessos mediante um homem reconhecido como patriarca), pelo clientelismo (relações de favores entre famílias/grupos) e pelo assistencialismo (uma lógica de manutenção de dependência que mantém a hierarquia e impede que os componentes do grupo/família se tornem interdependentes ou formem outros grupos sem o aval do patriarca) (Coimbra, 2021). Assim, paternalismo, clientelismo e assistencialismo formam dinâmicas que constituem também as dinâmicas institucionais, favorecem as pessoas que integram determinadas famílias e conspurcam até a falácia do fair play.
Pelo colonialismo, o Brasil, país que mais traficou pessoas negras para fins de escravização, foi formado por grandes latifúndios, controlados por determinados homens que chefiavam famílias (Schwarcz, 2019). A lógica familista atual, que impera em certos espaços, seria resquício prático desses esquemas sociopolíticos, os quais são conhecidos, em algumas regiões do território brasileiro, como coronelismo. Isso reforçará o individualismo familiar, em um fortalecimento com o que é estreitado por laços de afeto em detrimento das relações públicas (Schwarcz; Starling, 2015). São os sobrenomes de tais famílias e os sobrenomes de imigrantes, principalmente europeus, que chamam a atenção e recebem destaque em sala de aula por professores homens. Com perguntas como “de onde é sua família” ou “qual a sua ascendência” ou “de qual região da Europa é seu sobrenome”, com prevalência tão somente desses nomes, são constituídos sujeitos marcados pelo eurocentrismo e pelo imperialismo.
O acesso às atividades acadêmicas não se mostrou facilitado para discentes negras. Sobre o acesso a matérias curriculares, as enunciações apreendidas nas entrevistas sugerem normativas racializadas que orientam o tratamento institucional e implicam discriminação racial:
[No] reajuste excepcional das matrículas, várias pessoas estavam conseguindo [a aprovação do pedido de quebra de pré-requisito], várias pessoas brancas, né? [...] Quando uma amiga [negra] foi tentar uma matéria, ela não conseguiu essa matéria. E aí ela pegou e voltou chorando. Ela falou: “Todo mundo da minha sala, tipo quase todo mundo da minha sala que tentou a matéria conseguiu e eu não consegui”. [...] Aí [...] uma amiga dela branca [...] falou: “Ah, vamos lá comigo porque ele [o professor responsável na época] me adora” [...] E aí ela foi com ela e ela conseguiu a matéria. E aí fiquei naquela... será que é uma situação de racismo ou de racismo? [...] Será que ele não via a cor dela como igual ou será que soube fazer essa diferenciação de gênero ali na hora porque ela também era uma mulher branca igual? (Blenda).
No Brasil, há o disfarce, cuja articulação ideológica é marcada pela denegação, como mencionado anteriormente, em que se verifica a colonialidade produzida por ideias e teorias racistas, como a teoria da miscigenação, da assimilação e da democracia racial (Gonzalez, 1988). Ao serem questionados sobre o comportamento, a resposta é a negação. Isso impede o reconhecimento dos indivíduos de si mesmos e de agrupamento por coletivos, que vão obstacularizar, por consequência, estratégias e resistências coletivas contra práticas discriminatórias.
4.3. Possibilidades de vida e estrutura
A omissão institucional em relação ao combate às práticas discriminatórias reforça o poder colonial de hierarquização de determinados corpos. Vinculados à questão disciplina, associam-se os sentidos a respeito das categorias integrantes da moldura do reconhecimento desses mesmos corpos. Foram recorrentes as menções de percepção de não lugar, de não pertencimento, e, no que tange à associação com a categoria racial negra, relacionadas ao enunciado de não reconhecimento das ações afirmativas como direito:
Tirando [algumas] disciplinas, [...] você vê [que] não está nem um pouco a fim de estar ali [...] Voltamos para o quadradinho dogmático, cartesiano [...] Tirando [...] aquelas discussões [sobre questões antidiscriminatórias], eu só fiquei falando sozinha e eu percebendo a cara das pessoas [...] ... e sei lá, uma sensação, eu me sinto [...] perdida ali no [curso]. Tanto que eu parei dois semestres, né? E, e relutei em voltar por várias questões [...]. Eu relutei em voltar porque eu tava muito exausta. O [coletivo de discentes] foi uma coisa que exauriu muito a gente e deixou a gente muito cercado, quando a gente começou a pautar aqui as coisas estavam muito equivocadas, como investigação de fraude às cotas e falas de professores contrários (Gael).
A colonialidade, pelos pressupostos da Modernidade, apresenta uma justificativa indefensável de um diferencial de caráter civilizatório entre os grupos sociais, em que se produzem determinados Outros como inferiores. As omissões de inclusão e de cumprimento de direitos humanos fundamentais associam-se a modos disciplinatórios coloniais que investem contra corpos que não se identificam pela tentativa de se enquadrar na moldura de reconhecimento de cisnormatividade, heterocisnormatividade e branquitude. As violências parecem, assim, nefastamente justificáveis, em um limbo no qual se negocia o inegociável (Rolnik, 2019).
Nessa criação colonial do Outro, há uma exigência moral de quem ocupa a posição social superior de ensinar aos inferiorizados o caminho do desenvolvimento - que também é adotado pela lógica da falácia desenvolvimentista (Dussel, 2000). É aí que, na oposição ao processo civilizador, o sujeito moderno poderia, deleteriamente, praticar a violência, que é defendida como um ato inevitável. Desse caráter, a violência torna-se assumida e naturalizada nas hierarquias interseccionais e justificada como uma guerra justa em nome da modernização. Nesse processo de violência colonial, a produção de “vítimas” produz também o herói civilizador: a culpa da vítima é sua própria condição, da qual o civilizador, o salvador, a salva. Na colonialidade, o Outro “tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente, mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas (Dussel, 2000, p. 49).
No final do ano de 2020, a Administração da unidade de ensino pesquisada convocou para uma reunião, realizada e disponível em plataforma virtual, discentes e docentes, a fim de discutir sobre o primeiro semestre de ensino remoto excepcional. Foi enunciado pelo responsável pela unidade de ensino:
Então a gente tem que ter uma presença para evitar racismo, discriminação e, desde cedo, chamar a atenção do novo aluno para o curso que nós estamos construindo, que é solidário, [...], que se tem alguém com dificuldade, toda a turma presta atenção e procura ajudar e é só comunicar. [...]. E isso a gente tem que desenvolver, sabe… porque o diferente é aquele que nos torna ainda mais completos. O diferente é aquele que traz uma necessidade… por exemplo, se você conviver com a [pessoa reconhecida pela categoria deficiência], ou conviver com aluno indígena, isso é uma riqueza. [...]. (Responsável pela unidade de ensino).
O discurso foi endossado, posteriormente, pela representação do curso de graduação presente na mesa virtual, em que os indivíduos são percebidos e tratados em uma lógica individualista, na qual não se pensa que os obstáculos são de responsabilidade coletiva e das pessoas com quem se relacionam. Apesar de sugerir uma convocação à responsabilidade das pessoas, essa chamada é estruturada pela nominação do outro como diferente daquele que o pode nominar, como um sujeito neutro e com autoridade atribuída a isso nas relações de poder. Além disso, é uma convocação apontada ao indivíduo e à sua solidariedade, localizando a questão em uma relação interpessoal, o que promove um afastamento da responsabilidade institucional sobre o assunto.
A conivência com essa lógica associa-se a uma ideia do feminismo liberal, que reforça os pressupostos excludentes do imperialismo e do ocidentalismo, e motiva a adesão a práticas em nome da salvação do Outro (Oliveira, 2017). Tais enunciações sugerem, assim, além de um projeto territorial, um projeto de constituição violenta do sujeito colonial “que se autoimola para a glorificação da missão social do colonizador” (Spivak, 2002, p. 28).
Os modos disciplinares também atuam sobre as discentes brancas a partir do discurso da heteronormatividade, que sugere que os professores homens se sentem autorizados a extrapolar demasiadamente os limites da relação pedagógica com as alunas mulheres, expondo-as em sala de aula, com contatos externos ao horário de trabalho ou com intervenções questionáveis.
[...] desde o começo [da relação de orientação de pesquisa] eu já senti que tinha alguma coisa errada. Eu achei que era comigo. Eu achei que eu não tinha capacidade de pesquisar, que eu não tive capacidade de entender [...]. Ele [professor] faz se sentir como se fosse completamente idiota e ele simplesmente me ligou [...] três horas da manhã contando da vida dele, pensativo (Sol).
Se você põe um short, você passa a ser vista... mas a forma como você é vista [...] é muito delimitada pela raça, porque outras garotas [com] poucas roupas, elas vão ser olhadas de um jeito... como se um olhar pra branca fosse um olhar para uma princesa e o olhar pra negra fosse um olhar de sexualização (Megumi).
Na interação com os colegas homens, temas relacionados às mulheres ou aos movimentos e às teorias feministas parecem ser menosprezados pelos alunos do curso, sendo alvo de piada ou encarados como um tema superado, sugerindo uma prática legitimada em sala de aula. São práticas que levam a um processo de interdição acerca do que se pode falar ou não (Foucault, 2014). São práticas também associadas à lógica colonial, na qual há a hierarquização do conteúdo que merece consideração pelos alunos homens:
[...] tu percebe, tem alguma percepção se eles não entram nessas discussões porque eles não se interessam ou porque têm medo de falar alguma besteira... [...]. Colegas mais próximos, eu acho que têm um certo desinteresse que passa muito pelo cansaço, assim, como se fosse um tema batido da academia... como se fosse uma coisa tipo: “Ah, de novo falar sobre”, sabe? Sobre gênero ou sobre, sei lá, direito das minorias (Noah).
Para as discentes, ainda, os temas relativos às mulheres e aos movimentos sociais são tangenciais às disciplinas e trazidos pontualmente por professoras mulheres.
Os professores [homens] muitas vezes não se dedicam a aula, [...] mas você observa que os professores respeitam a especialidade... [determinados professores] têm problemas com horário; todos eles têm problemas pra agendar prova, pra agendar atividades [...] (Megumi).
Se uma professora mulher tem o mesmo comportamento [de imposição, como o de um professor homem] e isso já é bem visível [...] é colocada como a louca, como a desequilibrada... Porque ela não faz parte [...] desse símbolo, o símbolo [homem hétero branco]... ele pode se comportar dessa forma, sim, os outros não, né? (Blenda).
Dos enunciados recolhidos apresentados, o que emerge de significado sobre ser mulher e discente em um curso de graduação em Direito é estritamente relacionado a normas de gênero, as quais, por sua vez, são conformadas à colonialidade e às relações hierárquicas respectivas. Aí, não se produzem somente sujeitos que podem agir somente em determinados limites simbólicos, mas também os sujeitos que ditam quais são as delimitações e as possibilidades de ação. Em uma perspectiva pós-estruturalista, portanto, a produção dos sujeitos, que deve ser observada de um prisma relacional, demonstra a produção de lugares políticos em hierarquia, por vezes, discriminatória.
Conclusão
Na instituição moderna, imperam a ordem, a hierarquia e a padronização a partir de um enquadramento do que pode ser categorizado dentro da moldura da Modernidade, a qual, por sua vez, é orientada por um ideal de identificação de reconhecimento colonial. Nesse ideal, preponderam as condições da heteronormatividade, da cisnormatividade, da branquitude, do imperialismo/eurocentrismo/ocidentalismo. Na episteme moderna, o sujeito é produzido e outros são produzidos para que se normalizem ao enquadramento. Nesse compasso, a instituição de ensino também se organiza na formatação de tais corpos para que cumpram a sua docilização e que aprendam, no assujeitamento, a ordem profissional. São relações de poder que modelam sujeitos para que sirvam a relações de poder.
O desafio que se coloca nesse tipo de instituição é a legitimação da hierarquia, o que nos faz questionar sobre o próprio processo educacional (quais são essas posições, como elas se dão, o que extrapola os objetivos deste artigo). Contudo, excessos e deturpações do processo pedagógico insinuam a forma com que operam outras pretensões hierárquicas, aqui refletidas pelas normas de gênero. Nas dinâmicas percebidas, notam-se reiteradas criações do Outro para si mesmo, como uma satisfação em representar a salvação desse Outro, na qual, estando acima deste, sabe orientá-lo e dizer como ele deve agir, sentir, o que deve estudar, como deve ser tratado. Daí surgem as menções à condescendência; à negligência, como se as pessoas fossem superar obstáculos mediante a própria vontade tão somente e com boas práticas colegiais; à compaixão, pois, afinal de contas, o Outro não sabe o que faz.
Nesse processo de assujeitamento do Outro, as definições de padronização para enquadramento no reconhecimento como sujeito incidem sobre os corpos, controlando-os. As normas de gênero praticadas no campo revelaram a hierarquia estabelecida de organização do próprio espaço - sobre quem aparece, quem é destaque, sobre poder estar, quem é tolerável, quem é percebido e sob quais condições. Pela anatomopolítica de tais dinâmicas, sua força política é canalizada e orientada na/pela valorização da lógica imperialista, em uma negação de si para aqueles que não cumprem os protocolos do reconhecimento pela colonialidade, o que pode produzir a denegação, como assinalado por Gonzalez (1988). Na escassez da sua força política, em que imperam o individualismo e a lógica concorrencial sem fair play, são reduzidas as possibilidades de ações conjuntas para efetivar mudanças, ou para pensar coletivamente. Nessa escassez, o objetivo das pessoas ouvidas torna-se (daquelas que não assimilaram totalmente a colonialidade) apenas sobreviver naquele ambiente, conseguir se formar e logo dali sair. As forças de potência de vida são canalizadas para que o mínimo de si possa existir.
Nas dimensões das hierarquias interseccionais, as práticas relacionadas às discentes brancas reforçam padrões cis-heteronormativos, designados pela condescendência, pelo paternalismo e por práticas para a criação de dependência e envolvimento em uma lógica familista e em relação aos sentidos do que significa ser/estar mulher, associando-a ao signo de vítima. Configura-se como secundária a posição das discentes, o que, de certa forma, é aceito. Às discentes negras, nota-se a imposição da branquitude, com racismo velado, epistemicídio, imposição do eurocentrismo, não reconhecimento de direitos e associação da negritude a símbolos de crime. Nas constituintes do enquadramento da instituição de ensino, mantidas por técnicas de poder e processos de saber, atuam conjuntamente práticas de reconhecimento, classificação, distribuição e análise, que, pelas relações de poder estabelecidas, conduzem à manutenção dos acessos, das visibilidades e dos reconhecimentos acadêmicos a sujeitos cujos corpos e comportamentos se enquadrem nas prescrições da ordem colonial.
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1
O projeto relacionado a esta pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética, com o comprometimento de confidencialidade das informações concernentes à identificação das pessoas entrevistadas. Atende, assim, aos padrões éticos exigidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa/Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde (Conep/CNS/MS), bem como às determinações da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Diante disso, os nomes de locais e de pessoas do campo de pesquisa foram substituídos por nomes fictícios ou nominações indicativas dos cargos ocupados na instituição de ensino, visando, assim, evitar o “efeito sem nome”, consistente no possível apagamento da historicidade das pessoas participantes (Despret, 2011).
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Aqui mantidos sob o crivo da confidencialidade, visando ao cumprimento das exigências estabelecidas pelo Comitê de Ética. As referências encontram-se registradas e reservadas com a autoria.
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O Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), constituído no final dos anos 1990, consiste no coletivo de pensadores e pensadoras latino-americanos que se debruçaram nos estudos pós-coloniais visando uma renovação epistemológica, política e ética das ciências sociais na América Latina, formando a noção de giro decolonial (Ballestrin, 2013).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
14 Mar 2022 -
Aceito
06 Jun 2023