Resumo
Com os movimentos das ruas e as constantes transformações sociotécnicas, as bancas convencionadas para comercialização de títulos impressos se redimensionaram em meio às instabilidades temporais e sociais urgentes nas relações possíveis em cada lugar. Com atenção à adaptabilidade das bancas em razão dos contextos urbanos, este trabalho se debruça sobre as bancas com as quais nos deparamos em percursos exploratórios em cidades de sete estados brasileiros para, com elas, refletir sobre “as vidas das bancas” e pensá>-las como ambiências comunicacionais que admitem diferentes formatações em razão dos atravessamentos com os espaços que as constituem e tomando-as como agentes constituidoras dos espaços.
Palavras-chave Bancas; Jornal; Revista; Ambiências comunicacionais; Instabilidades
Resumen
Con el movimiento de las calles y las constantes transformaciones sociotécnicas, los quioscos hechos para la venta de títulos impresos fueron redimensionados en medio de las inestabilidades temporales y sociales de las relaciones posibles en cada lugar. Con atención a la adaptabilidad de los quioscos debido a los contextos urbanos, este trabajo se centra en los que encontramos en caminos exploratorios en ciudades de siete estados brasileños para, con ellos, reflexionar sobre “la vida de los quioscos” y pensarlos como ambientes comunicacionales que admiten diferentes formatos debido a los cruces con los espacios que los constituyen y tomándolos como agentes constituyentes de los espacios.
Palabras clave Quioscos; Periódico; Revista; Ambientes comunicacionales; Inestabilidades
Abstract
With the movements of the streets and the constant socio-technical transformations, the newsstands conventionally used to commercialize printed titles were redimensioned amidst the urgent temporal and social instabilities in the possible relationships of each place. Paying attention to the adaptability of the newsstands due to the urban contexts, this article focuses on the newsstands we have come across in exploratory journeys in cities of seven states of Brazil in order to reflect on “the lives of the newsstands” and think them as communicational environments that admit different formats due to the crossings with the spaces that constitute them and taking them as constituent agents of the spaces.
Keywords Stands; Newspaper; Magazine; Communicational ambiences; Instabilities
Introdução
Em um dos poucos estudos de maior fôlego dedicados às bancas de revista (newsstands, em inglês), a pesquisadora sul-africana Mehita Iqani (2012) percorreu ruas de Londres, na Inglaterra, como parte de seu trabalho etnográfico. Para Iqani, as bancas são “espaços de varejo” (retail spaces) e também um “espetáculo semiótico” dado à profusão de informações e estímulos que nelas se apresentam. A princípio, ao caminhar pelas ruas de uma grande cidade, tem-se a confirmação da observação da Iqani: as bancas são elementos de apelo em meio aos fluxos de pessoas e signos que ali se apresentam. Numa tarde qualquer, assim, é possível deambular por ruas agitadas, tomar café e/ou caldo de cana, dialogar com ambulantes, observar pessoas com ritmos, roupas, corpos e presenças distintas, ser atravessada/o por anúncios publicitários de diferentes qualidades, ouvir música e convocações sonoras de rádios, locutores de lojas, pregadores, entre outras. Nesse percurso, pontuam as estruturas, geralmente metálicas, do que se convencionou chamar de ‘bancas de jornal’, por sua vez usualmente repletas de uma variedade de produtos, organizados de tal forma que parecem um “carnaval de coisas”.
No entanto, essa cena oferece um contraste significativo e decisivo com a caracterização feita por Mehita Iqani. A espetacularidade semiótica das bancas, para ela, estava ligada à diversidade de produtos impressos, em especial revistas, que predominavam em meio a outros objetos à venda. Ao contrário do que a etnografia de Iqani (2012) registrou, o caminhar pelo centro de uma cidade brasileira faz ver que as bancas são cada vez menos “de jornais” ou “de revistas”. Num dia qualquer em meio aos fluxos urbanos, nota-se que as bancas podem trazer de “um tudo”, como perfumes, cosméticos, chaveiros, apostilas, capas de chuva, capas para celular, cartelas lotéricas, livros, flores, álbuns de figurinhas, gêneros alimentícios e os mais variados objetos, além de uma diversidade de serviços (cópias de chave, plastificação de documentos, fotocópias, etc.). Muitas delas não trazem nenhum produto sequer similar a uma revista ou a um jornal.
Investigando as bancas de revistas alguns anos antes de Iqani, a pesquisadora brasileira Cláudia Fonseca (2008, p. 182) já notara as dinâmicas de transformação que as posicionavam como “memória de um passado”. Fonseca (2008) investigou as bancas do chamado “hipercentro” de Belo Horizonte e observou que elas viviam uma interessante dinâmica temporal. Por um lado, as bancas indiciam a decadência de certos processos da indústria editorial, fortemente vinculados ao impresso e que se acelerou com o passar dos anos, e fez com que, por outro, elas tivessem acentuado seu papel de serem “uma das principais portas de entrada das novidades na vida da cidade”.
Nesse sentido, este artigo é parte de um estudo exploratório sobre as bancas, de caráter indicial (BRAGA, 2008) e sem pretensões totalizantes, tendo em vista sua complexidade temporal. Num primeiro momento, essa investigação envolveu o registro de bancas tal como se apresentam em algumas cidades brasileiras, sob a inspiração metodológica de Fonseca, que propõe “se deixar afetar pelo burburinho das ruas e registrar a experiência num caderno de campo e com a câmera fotográfica” (2008, p. 81). Esse registro exploratório compreendeu bancas nas cidades de São Luís, no Maranhão; Recife, em Pernambuco; Salvador, na Bahia; Iguatu e Fortaleza, no Ceará; Belo Horizonte, Itabira, Capitólio, Conselheiro Lafaiete, Nova Lima, Ouro Preto e Contagem, em Minas Gerais; João Pessoa, na Paraíba; e na capital de São Paulo. Essas cidades e as bancas fotografadas não foram escolhidas a partir de um critério específico, mas se apresentaram à investigação à medida que se fizeram presentes nos percursos cotidianos possíveis às/aos pesquisadoras/es1 envolvidos nesse exercício de observação (MACEDO; SOUZA; GABRIELLA; PIMENTEL, 2023), que se deu nos momentos de distensão da pandemia de Covid-19, em 2021 e em 2022. A partir das fotos e, especialmente, da observação das bancas nessas cidades, desenvolve-se a percepção de que elas são como uma espécie de “catástrofe cotidiana”, uma vez que presentificam um processo em curso, no qual desaparecem como “de jornais” ou “de revistas” e já respondem a um novo estado de coisas, apresentando-se na cena urbana às vezes como lojas de conveniência, “de 1,99”, de capas de celulares e de uma miríade de produtos possíveis.
A reflexão aqui desenvolvida se propõe, então, a caracterizar a complexidade temporal das bancas, a partir de dois movimentos complementares. Num primeiro momento, trazemos algumas imagens e observações em algumas das bancas nas cidades elencadas com as quais nos deparamos nos percursos exploratórios. Esse contato com “as vidas das bancas”, por sua vez, incide na revisão da esparsa literatura sobre elas, com destaque para as obras de Fonseca (2008), Iqani (2012) e Chagas (2013). De modo geral, parece-nos que há algo reconhecível em diferentes cidades e que atende pelo nome de “banca”, ainda que cada uma delas seja única, singular. Nesse sentido, para nós, a rigidez da estrutura física das bancas, sua aparente perenidade e seu reconhecimento nacional contrastam com sua forte adaptabilidade, fazendo com que elas sejam um “espaço em movimento”, ambiências comunicacionais relativamente instáveis, plurais e movediças. Na sua sobrevivência, as bancas são pontos de diálogo com seu entorno, que deve ser entendido então como uma paisagem local, circunscrita e localizada em meio à diversidade urbana.
Ao caminhar pelas ruas atentas/os às bancas, tomamos a fotografia como modo de textualização da experiência e como via para registro das superfícies e dos atravessamentos que afloravam em meio às andanças. As bancas se tornaram uma ancoragem de nossos percursos, pois, como observa Fonseca (2008, p. 125), elas instauram “possibilidades de se interromper o fluxo contínuo dos transeuntes sobre calçada”. As bancas oferecem-se como pontos de parada, um locus de fuga à aceleração, um desvio ao convite de pausa, de consumo e de vivência (com a própria banca e, muitas vezes, com o espaço que a envolve). Nesse sentido, os percursos exploratórios feitos nas diferentes cidades revelam as bancas como “espetáculos semióticos” (tal como nominados por Iqani, 2012), ao mesmo tempo reconhecíveis e muito distintos entre si.
Das cidades percorridas na pesquisa, apenas Fortaleza não possui regulamentação municipal que tipifica as bancas e que determinam parâmetros para a atividade comercial. Em todos os casos, porém, há uma amplitude criativa pulsante nas interações vivenciadas nas vias públicas que deslocam as bancas das letras rígidas dos marcos legais. Por isso, optamos por orientar olhares às superfícies do entorno em que as bancas estão situadas (e no qual elas são situantes) a fim de, em meio ao terreno movediço de diferentes espacialidades (HAESBAERT, 2014; INGOLD, 2015; 2018; SANTOS, 2001), tomar notas das tensões e das negociações de sentidos no espaço urbano em que as bancas se fazem como ambiências comunicacionais.
Olhar para as “superfícies”, dialogando com Fonseca (2008, p. 81), é admitir a perenidade em que as bancas e os espaços se (re)constituem em face à constante mudança dos agentes em fluxo urbano, que, por sua vez, (re)ordenam os significados cadentes às pessoas, aos lugares e às coisas. Ao mesmo tempo, mirar as superfícies também nos obriga a reconhecer que a mesma estrutura metálica pode se tornar uma banca de jornal diferente de um dia para o outro, da manhã para a noite ou, ainda, no mesmo dia e na mesma situação para pessoas e grupos distintos quando mobilizam experiências e expectativas particulares. Em outros termos, a observação e o registro das bancas, in loco, nos permitem alcançar o que Milton Santos (2001) caracteriza como eixo horizontal das relações espaciais, nas quais sobressaem as articulações com as circunvizinhanças e experiências “locais”, que se constituem também em diálogo com as tensões e atravessamentos de poder verticais de caráter mais amplo (como as conformações da indústria editorial, por exemplo).
Nessa perspectiva, as bancas podem ser vistas como “em trânsito”, em “crise” ou mesmo, como dissemos, como “catástrofes cotidianas”. Cada um desses termos remete a relações de sentido específicas e produz imagens peculiares para as relações nas quais as bancas são configuradas e nas quais atuam. Diante das variadas implicações dos termos, tal como desenvolvidas por Koselleck (1999), por Bertoll, Maia, Valle e Manna (2020), por Leal, Carvalho, Jácome e Costa (2021), entre outros, destacamos particularmente suas dinâmicas temporais. “Crise” e “catástrofe”, por exemplo, explicitam temporalidades e experiências culturais que põem em xeque tanto perspectivas lineares quanto visões presentistas. Um momento de crise não é apenas um acontecimento do presente, mas uma situação em que as relações com o passado e as possibilidades de futuro se emaranham em função de tensões vividas como imprecisas ou incertas. Na catástrofe, um estado de coisas, um modo de ser é rompido, exigindo outra reorganização da vida, no presente, mas também nas suas articulações com o que se passou e com as reconfigurações necessárias com as expectativas do que há por vir.
A imagem de “catástrofe cotidiana” diz então de um processo em curso, que, ainda tenha aspectos verticais, adquire feições locais particulares, em função de suas relações horizontais. Uma aproximação horizontal às bancas, se baseada na presença, faz expandir o presente, de modo que a contemporaneidade de temporalidades seja vislumbrada, na esteira do que diz Agamben (2021). Como observa o filósofo italiano, na esteira das considerações intempestivas nietzschianas,
[p]ertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais que os outros, de perceber e de apreender o seu tempo
(AGAMBEN, 2021, p. 22).
Nessa perspectiva, refletimos sobre as dinâmicas temporais que fazem das bancas um fenômeno contemporâneo, ao mesmo tempo presente, atuante, anacrônico e inatual. Não se trata, então, nem de diagnosticar a morte (já efetivada ou em curso) das bancas, nem de projetar, a partir delas, seu futuro, e sim de observar as respostas concretas que elas oferecem diante das transformações em andamento e suas configurações do que “já foi”, do que “já é” e do que indicia vir a ser.
Passados mais de uma década das pesquisas de Fonseca (2008) e de Iqani (2012), as bancas permanecem na paisagem urbana das grandes cidades, reinventando-se como lojas de varejo, adaptando-se ao entorno, ao mesmo tempo em que se tornam mais raras em bairros e em cidades menores. Nesse sentido, as bancas materializam nelas mesmas as transformações que envolvem as mídias tradicionais, impressas, diante do crescimento das culturas digitais, e as dinâmicas localizadas que fazem parte da vida das cidades. Elas são presenças cotidianas temporalmente complexas, uma vez que são signos de um passado e também particularmente sensíveis às modas e às sazonalidades culturais e climáticas que captam (talvez até prevendo) as peculiaridades dos fluxos em que se inserem.
Os espetáculos das bancas
Ao andar no centro de Fortaleza, é comum confrontar-se com um conjunto de bancas na Praça do Ferreira. Tida como o coração do comércio na capital cearense e palco dos enredos históricos que envolvem a constituição das identidades alencarinas, a Praça abriga bancas distintas e é ponto de passagem de diferentes agentes que se enovelam no fluxo das compras, das vendas e da vida política ali possível. Ali encontramos a ‘Banca do Maciel’, que vende jornais, revistas e livros de Dostoievski e sobre Lula, mobilizando sua clientela. Na Praça, com comércio prioritário de doces e de bebidas, sem publicações impressas, está também a ‘Banca Principal’, que esconde as poucas revistas em meio ao mar de guloseimas; assim também é a banca vizinha, nomeada ‘Ler é Viver’ e que, na ausência de jornais e revistas, especializou-se no comércio de figurinhas e de álbuns para colecionadores. O comércio especializado adorna com singularidade as bancas na Praça do Ferreira e o uso das sombreiras como lugar de repouso para moradores de rua, para vendedores ambulantes e para compradores que fogem temporariamente do sol, as aproxima como um ponto de parada.
No Centro de São Luís, próximo à Rua Grande, região de comércio da cidade, encontramos bancas nas calçadas em frente às duas grandes escolas públicas estaduais da região, o Instituto Estadual de Educação do Maranhão - IEMA e o Liceu. Essas duas bancas não têm nenhuma identificação e têm identidades muito distintas. A que fica mais próxima ao Liceu ainda vende revistas e publicações impressas que, porém, já concorrem com outros produtos, como panos de prato e utilitários diversos. Já a que se localiza mais próxima ao IEMA, por sua vez, é como uma loja de conveniência, na qual as revistas nitidamente ocupam um espaço bem menor.
A convivência entre publicações impressas e outros produtos também é vista em bancas nos bairros Monte Castelo, Cohab e São Francisco (apresentadas respectivamente nas imagens a seguir), na capital maranhense. Ao contrário das bancas do centro da cidade, essas são identificadas por placas e mantêm certa padronização.
A Rua Carijós, no centro de Belo Horizonte, é uma das ligações à Praça Sete, ponto de referência na região, e à Av. Paraná, corredor de ônibus do sistema BRT da cidade. Nos dois quarteirões que se seguem à Praça, em direção à Av. Paraná, existem três bancas, muito diferentes entre si. A primeira delas, próximo à esquina da Rua São Paulo e frente a uma filial das Lojas Americanas, oferece uma miríade de produtos, desde capas de celular a chinelos, de bichos de pelúcia a chaveiros e água, além de serviços como fotocópias. Mais próxima à esquina da Rua Curitiba, a segunda delas é basicamente uma loja de acessórios para celular complementada por alguns outros produtos, como travesseiros para pescoço e bolas de futebol para crianças. Já a terceira, no meio do quarteirão entre a Rua Curitiba e a Av. Paraná, está em frente a uma grande loja da marca Marisa e remete a uma combinação entre loja de conveniência e “de 1,99”, dada a diversidade dos produtos que oferece.
Ao percorrermos a Avenida do Contorno, no bairro Floresta, em Belo Horizonte, as bancas estão nas calçadas em meio ao frenesi do centro comercial do bairro. Ali encontramos a ‘Banca do Contorno’ e a ‘Banca São Vicente’, ambas com comercialização de jornais, no qual se destaca a venda do Super - jornal local da capital mineira. A segunda, em particular, oferece vasto acervo de produções jornalísticas com títulos impressos da Folha de S. Paulo e d’O Globo. Contudo, esses não são os itens principais de comercialização e tampouco ocupam espaço privilegiado nas vitrines que, por sua vez, estão repletas de pochetes, doces, itens de tabacaria, artigos impressos sobre futebol, apostilas, máscaras, entre outros.
Já no bairro Palmares, localizado a cerca de seis quilômetros do centro de Belo Horizonte, na direção nordeste, existe uma única banca numa das ruas principais da região, em frente a um restaurante e próxima a uma padaria e à entrada de um parque público. Além de vender itens importados, tais como brinquedos, capas e acessórios para celular, chinelos, entre outros, essa banca também presta serviço de gráfica rápida e de assistência técnica de celulares.
Se em grandes cidades, as bancas se apresentam como lojas de produtos diversos, o mesmo acontece em cidades menores. Em Iguatu, no Ceará, as duas bancas da cidade são de um mesmo proprietário e estão situadas no centro. Ambas têm revistas em suas vitrines, mas oferecem um cardápio bem mais amplo de produtos e serviços, como cordéis, doces, jogos de loterias, cigarros e outros itens.
Nas cidades mineiras de Nova Lima e de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a situação não é tão diferente. No centro de Nova Lima, há uma banca na Praça do Mineiro, perto de um ponto de ônibus bastante movimentado. Quem se dirige para pegar o transporte público acaba, eventualmente, fazendo ali uma pausa; mesmo os motoristas de ônibus, esperando dar o horário da partida da próxima lotação. À primeira vista, parece ter se tornado, na prática, uma lojinha que comercializa produtos variados, como óculos escuros, bonés, bolsas, relógios, jogos de tabuleiro, chaveiros, água e refrigerantes armazenados num frigobar. Porém, chegando mais perto, é possível ver que lá dentro encontram-se revistas – um tanto escondidas. Para além das poucas revistas, talvez os únicos produtos que remetem às antigas bancas sejam alguns livros, adesivos variados e pôsteres de futebol à venda. Há uma corrente que impede a entrada não autorizada no interior do estabelecimento, o que dificulta o acesso mais aproximado do leitor aos produtos impressos, que se encontram distantes das vitrines.
Em Contagem, também no Centro, registramos duas bancas, uma delas em frente a uma Escola Municipal e perto de um supermercado; e a outra perto do antigo Fórum, de um ponto de tá>xi e em meio a uma diversidade de lojas e de serviços. Ambas mantêm revistas em suas prateleiras, que concorrem, porém, com diferentes produtos. A primeira delas é ocupada por doces e guloseimas, enquanto a segunda adota uma mistura de produtos bastante variados, que contempla cigarros e serviços de fotocópia.
Em Itabira, cidade mineira localizada no quadrilátero ferrífero, na região central do Estado, encontramos a banca nomeada por ‘Joelbra’, posicionada entre as esquinas da Av. João Pinheiro com a Rua São José – um dos principais pontos de circulação da cidade – que funciona mais como uma lojinha de utilidades onde se pode encontrar de tudo, desde brinquedos infantis até uma raquete para matar mosquitos. Tem de tudo, até jornal e revista.
Já na histórica Ouro Preto, a princípio, não há bancas de revista, ao menos como as que vimos em outras cidades. Situada na Rua São José, tida como a principal via de fluxo comercial, porém, há uma loja que é chamada de banca pelos proprietários e pela população local e se dedica prioritariamente à venda de livros, mantendo um acervo escasso de jornais e de revistas.
Esse pequeno périplo por bancas em diferentes cidades e Estados brasileiros nos faz deparar com uma tensão incontornável, entre mesmice e singularidade. A princípio, independente do lugar, da cidade ou do Estado, há algo que é reconhecido translocalmente como banca. Seja pela padronização de sua estrutura, seja pelo modo como se inserem nas ruas, nas praças e nas avenidas: elas são identificáveis, para além de suas peculiaridades. É como se a associação entre o signo “banca” e seu referente fosse algo pacífico, naturalizado e relativamente estável. No entanto, o exemplo de Ouro Preto, em que uma loja com ares de livraria é reconhecida como banca, sugere mais instabilidade e imprecisão nesse suposto senso comum. Há, ali, um entendimento local, que associa a “banca” a um ponto de venda de produtos impressos e não a uma estrutura física instalada nas calçadas. Essa percepção, por sua vez, é contraditada pelo que efetivamente vendem as bancas das demais cidades que, como dissemos, são cada vez mais de ‘conveniência’ que de ‘jornais e revistas’. Essa tensão entre similaridade e singularidade, porém, talvez seja um elemento a mais dos atravessamentos que constituem as bancas hoje em dia.
Espaços em atravessamentos
Segundo Tejedo-Romero e Araujo (2018), aumentou-se o interesse pela transparência a partir da década de 1990, quando organizações internacionais visando à diminuição da corrupção e abusos de poder, começaram a recomendar que os governos fossem mais transparentes e utilizassem práticas. As bancas “de jornal e revista” não recebem muita atenção nos estudos em Comunicação, mas as pesquisas trazem já alguma diversidade entre si. Silva, Figueiredo e Santos (2015), por exemplo, entendem que as bancas são uma “espécie” de espaço, que, a seu ver, tem como característica a imutabilidade e “um papel relativamente passivo na dinâmica do espaço urbano” (2015, p. 92). Essa visão é contraditada por Chagas (2013, p.51), que, considerando as regulamentações legais que as envolvem, observa que as bancas “se constituem, portanto, em um espaço regulado pelo poder público e operacionalizado por iniciativa privada, a título precário”. Apesar da existência, em algumas cidades, de marcos regulatórios rígidos, isso não implica estabilidade, passividade ou inércia. Para Chagas (2013, p. 51), tendo como referência a cidade do Rio de Janeiro, “as bancas não só se modernizam ao longo dos anos seguintes, como [...] enfrentam os mesmos percalços que outros setores quando das sucessivas transformações políticas ocorridas na cidade”.
É interessante observar que, à época do seu estudo, Viktor Chagas aborda as bancas como parte importante do mercado editorial. Para ele, as bancas atuam como espaços de disputas de memória e de visibilidade na medida em que operam como difusores de informação em pontos de grande circulação das cidades e, nisso, “são ao mesmo tempo a ponta oposta do setor de produção e a principal interface entre jornalista e leitor nos meios de comunicação impressos” (2013, p. 25). Nesse rumo, Chagas reconhece o papel interventor da banca no espaço em que está posicionada e admite, ainda, que ela se modula e se transforma em razão dos interesses dos donos da>s bancas e dos tensionamentos do mercado editorial - em detrimento das relações socioespaciais.
O mesmo ocorre com Mahita Iqani (2012) em suas reflexões a partir da etnografia que realiza em Londres. A própria compreensão das bancas como dispositivo e um “espetáculo” semiótico deriva da onipresença de revistas e publicações diversas, que adensam esses “espaços de varejo” com informação e apelos. Para Iqani (2012, p.61, tradução nossa), as bancas, como lojas varejistas, “[...] operam como palcos em que se dá o consumo visual do espetáculo das mercadorias”. Nesse sentido, as bancas são elementos importantes da flanerie da cidade e abrigam outras formas de interação, com o consumidor direcionado e com o que ela chama de free-readers, ou seja, pessoas que se demoram nas bancas lendo revistas, mesmo que seja brevemente, sem intenção de comprá>-las. Diante da tensão entre mesmice e singularidade presente em cada banca, porém, Iqani pende para o primeiro polo a ponto de associar esses “espaços de varejo” à desterritorialização e aos “não-lugares” identificados por Marc Augé. Diz ela:
A observação participante de banca de jornal destacou essa condição de ‘sem lugar’, semelhante a uma geografia de “não-lugares” na “supermodernidade” (Augé, 1995). Embora cada banca visitada fosse localizada localmente e, de certa forma, única, as semelhanças duradouras de cada espaço (mais notavelmente os títulos de revistas nas prateleiras) corroeu qualquer sentido sólido de colocação e contexto social e destacou em vez disso, como a estética do capitalismo global é reproduzida no cenário de varejo
(IQANI, 2012, p.64, no original em inglês, grifos nossos).
É interessante observar que Iqani, por um lado, reconhece que cada banca é, de certa forma, única, mas opta pelo polo da mesmice, da similaridade, basicamente pela recorrência de revistas e publicações vendidas. A repetição, então, se dá em função dos modos de ser do mercado editorial, que indiferenciam cada banca pela homogeneização de seus produtos. O que acontece, então, quando esse mercado editorial passa a ser cada vez mais digital e não impresso, quando as bancas não são mais “padronizadas” pelos mesmos produtos? Algumas pistas são dadas pela própria Iqani (2012, p. 66), que observa que, já à época de sua pesquisa, as revistas e publicações impressas tinham a companhia de uma diversidade de produtos, quase todos eles baratos e “fáceis de comprar”. Com esse apelo de cores, cheiros, texturas e formas, as bancas são, ao seu ver, algo que remetem ao caos e, especialmente, privilegiam a aparência, uma vez que, como “espaços de varejo priorizam a presença, tanto material quanto mediada, de certos sujeitos e objetos, e fornecem literalmente espaços bem iluminados, extremamente visíveis e acessíveis para a exibição de produtos” (IQANI, 2012, p. 77-78, no original em inglês).
Já Cláudia Fonseca (2008), por sua vez, vai à direção contrária à de Iqani e acentua a singularidade das bancas em face aos contextos instáveis das ruas e das pessoas com as quais interagem. Isto porque, “ao instituir-se como uma ambiência comunicacional na paisagem urbana, ela faz acontecer de forma peculiar uma articulação entre tempo da atualidade e o espaço urbano”, explica Fonseca (2008, p. 126). Com isso, ela admite que diferentes agentes se entrecruzam na cidade e, juntos, conferem marcas que impedem a homogeneização dos espaços, porque “exercem uma influência sobre o seu entorno, diminuem a fragmentação, cruzando os diversos significados que são produzidos no cotidiano dos lugares” (FONSECA, 2008, p. 89). Nas incursões de Fonseca (2008) no centro de Belo Horizonte, ela observa que as bancas e a cidade tecem relações convergentes: a banca é constituinte e constituída pelas dinâmicas da cidade. Assim, admite-se a possibilidade de diferentes bancas em razão de diferentes cidades que se elaboram conjuntamente em práticas sociais que as amparam e as tornam possíveis.
Mais que isso, o próprio espaço da cidade se fratura, abrigando diferenças, peculiaridades e fluxos específicos. Para Fonseca, “o espaço urbano em que as bancas se situam é fragmentado, não existe uma linha que conduza a um destino certo as conversações iniciadas em um ponto” (2008, p. 130) e, portanto, as bancas se fazem heterogêneas e movediças. Não por acaso, as regulamentações legais não encerram as vidas das bancas que, nos ritmos das interações e fragmentações transitórias do espaço urbano, abrigam outros movimentos, imprevistos na letra da lei. Fonseca aprofunda essa reflexão ao discutir que ambiências são “expressões da tensão entre os usos cotidianos e as regulações e constrangimentos que regem os espaços” (2008, p. 81). Essa disputa, entre regulação e adaptabilidade, entre, de um lado, os direcionamentos dos espaços pautados pelas instituições e agentes hegemônicos; e, de outro, as instabilidades provenientes das interações praticadas por diferentes agentes posicionados em fluxos, trânsitos e locais específicos, exige que cada banca ofereça uma resposta peculiar e única, mesmo que movediça e provisória.
Considerações finais
Em meio à amplitude de atravessamentos e composições de sentidos que permeiam a caminhada nas ruas dos centros urbanos, tomamos as bancas como “atratores” no sentido proposto por Fonseca (2008, p. 89), em que elas ancoram e norteiam nossas miradas e nossos passos, em meio às transitoriedades do espaço urbano. O gesto de tomá-las como um ‘atrator’ permitiu-nos relacionarmos com as bancas – no geral – e com cada uma delas observando as tensões entre homogeneizações e singularizações, instituindo a possibilidade de entendermos as bancas como permanentes e também como espaços mutáveis.
Ao mirá-las em face aos contextos e reconhecendo as dinâmicas instáveis com as quais elas interagem, é justo notar que as bancas têm algo de igual, que diz menos de um elemento fixo indiferente às cidades e sim de sua história mais ampla, constituída na íntima relação com as culturas do impresso, dos processos que envolvem sua institucionalização na vida social. Elas não se integram ao espaço como um dado imutável: são configuradas e agentes nas relações concretas do seu entorno, um fragmento do tecido urbano em que estão situadas e do qual são situantes.
Ao propor que o pertencimento das bancas ao espaço não é um dado assegurado, Fonseca (2008) reconhece que as significações a elas atribuídas e os usos sociais que as envolvem são configurações que as posicionam como objeto de “disputa” – logo, instável e transitório diante dos diferentes interesses e das variáveis agências em que os sentidos são moduláveis. A instabilidade das significações e das relações constituídas com as bancas ressaltam as diferentes tramas realizadas como devir dos movimentos realizados por diferentes agentes. Ao se posicionar de modo atuante nos processos comunicacionais de um centro urbano, a peculiaridade das bancas cria ambiências comunicacionais em potência, na medida em que entram “nos movimentos que dão vida e significação aos lugares, e também nos movimentos que os desfazem logo em seguida” (FONSECA, 2008, p. 127).
Ao evidenciar que uma banca cria ambiências comunicacionais, reconhecemos, como diz Fonseca (2008, p. 129), que elas tensionam “as relações espaço-temporais que se dão na cidade”. Encontramos, pois, bancas deveras particulares que nos dizem tanto sobre sua recorrência, sua mesmice, como, na direção contrária, reiteram a força criativa dos terrenos movediços do espaço urbano, em que diferentes agentes se entrecruzam e negociam sentidos sobre as pessoas, as coisas e os lugares. Diferentes bancas são possíveis porque existem em espaços peculiares e, que, com eles, ganham vida ao se erguerem em heterogeneidades que nos dizem dos fluxos, dos encontros, das partilhas e dos deslocamentos possíveis em certo local. Nessa perspectiva, a adaptabilidade da banca ao seu entorno torna-se a condição de sua sobrevivência, diante do acelerado processo de desaparição do que seriam seus “produtos por excelência”, os jornais e as revistas. Enfrentando cotidianamente o fim do mundo e sendo ainda nomeadas por um passado que se torna cada vez mais longínquo, as bancas já vislumbram futuro após a catástrofe; apresentam hoje, no presente, aquilo que paradoxalmente não são mais, já passaram a ser e que, talvez, se tornarão.
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Contribuem para a observação das bancas as/os pesquisadoras/es Alexandre Gouveia, Felipe Borges, Felipe Gonzaga, Francielle de Souza, Igor Lage, Igor Luis, Letticia Gabriela, Luciana Amormino, Maurício Vieira Filho, Paulo Vitor Souza, Pedro Bernardo, Poliana Sales, Prussiana Fernandes, Rafael Andrade, Tess Chamusca e Thiago Pimentel, além dos autores deste artigo.
Financiamento
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A pesquisa que fundamenta esta publicação é apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
Disponibilidade de dados
Os dados que suportam a pesquisa estão disponíveis por meio de solicitação aos autores.
Referências
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- BERTOLL, R.; MAIA, J.; VALLE, F.; MANNA, N. (org). Catástrofes e crises do tempo Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2020
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Editado por
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Editora responsável: Maria Ataide MalcherAssistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
27 Out 2022 -
Aceito
25 Out 2023