Open-access Vivências de pessoas idosas que moram sozinhas: arranjos, escolhas e desafios

Resumo

Objetivo  analisar relatos da vivência de pessoas idosas acerca de morarem sozinhos.

Método  clínico-qualitativo realizado junto a 18 pessoas idosas em uma cidade do interior do Rio Grande do Norte, Brasil, no período de setembro a dezembro de 2016. Na coleta de dados, realizou-se entrevista semidirigida com questões abertas, observação livre e auto-observação, simultaneamente. O material produzido foi analisado através da técnica qualitativa de análise de conteúdo descritas por Turato.

Resultado  Elaboraram-se quatro categorias, a saber: 1) Venturas e Desventuras de morar sozinho: escolhas ou imposições? 2) Redefinição de arranjos familiares: qual o lugar do idoso? 3) Sociabilidade e cuidados com a saúde: estratégias de enfrentamento da solidão? e 4) Desejo de transcendência e exercício da espiritualidade: mecanismos de resiliência? Mediante as categorias, identificaram-se sentimentos e vivências das pessoas idosas sobre morarem sozinhos, como acontece as relações familiares, além das perspectivas de cuidados que cultivam, as possíveis situações de necessidades ou dependência.

Conclusão  as experiências de morar sozinho para a pessoa idosa refletem diretamente as adaptações e desafios que permeiam o processo de envelhecimento, seja na realização de escolhas individuais, na conjugação das relações familiares, na tessitura cotidiana de sociabilidade e convívio interpessoal, ou mesmo na produção intersubjetiva do cuidado de si. Entende-se a necessidade de uma maior atenção e sensibilidade por parte dos profissionais e serviços de saúde a esse grupo, reconhecendo seus sentimentos, percepções e experiências como elemento estratégico para a garantia do atendimento psicossocial à pessoa idosa.

Palavras-Chave: Saúde do Idoso; Solidão; Ajustamento Emocional; Pesquisa Qualitativa

Abstract

Objective  to analyze reports about the experience of the old people living alone.

Method  a clinical-qualitative trial carried out with 18 old people in a city in the countryside of Rio Grande do Norte, Brazil, from September to December 2016. For data collection, a semi-directed interview was carried out with open questions, free observation, and self-observation simultaneously. The material produced was analyzed using the qualitative content analysis described by Turato.

Result  Four categories were developed, namely: 1) Happiness and misfortunes of living alone: choices or impositions? 2) Redefinition of family arrangements: what is the place of the old person? 3) Sociability and health care: strategies for coping with loneliness?, and 4) Desire for transcendence and the exercise of spirituality: mechanisms of resilience? The categories helped identify feelings and experiences of the old person about living alone, how family relationships go, in addition to the care perspectives they cultivate, possible situations of need, or dependence.

Conclusion  the experiences of the old person living alone directly reflect the adaptations and challenges permeating the aging process, whether in making individual choices, combining family relationships, the daily experiences of sociability and interpersonal interaction, or even the intersubjective production of self-care. The need for greater attention and sensitivity on the part of health professionals and services to this group is understood, as well as their feelings, perceptions, and experiences as a strategic element to guarantee psychosocial care for the old person.

Keywords Health of the Elderly; Loneliness; Emotional Adjustment; Qualitative Research

INTRODUÇÃO

Entende-se o fenômeno do envelhecimento humano como um processo complexo e multidimensional que contextualiza em si diversos fatores, dentre esses, biológicos, psicológicos, sociais e culturais1 . Essa perspectiva ampliada sobre o envelhecimento associado ao cenário de transformações demográficas e epidemiológicas trazem novas configurações de produção e de organização espacial entre os grupos sociais.

Atualmente, observam-se núcleos de famílias, antes com a presença de várias gerações numa mesma residência, hoje com um número crescente de pessoas idosas morando sozinhas2 . Em algumas situações, a opção em morar sozinho pode refletir a busca por autonomia e privacidade, não significando, necessariamente, o afastamento do convívio e cuidado da família. Na formação de um domicílio unipessoal por pessoas idosas confluem um conjunto de interesses e necessidades, atrelado à sua história pessoal, as relações sociais e as várias decisões ao longo da vida.

Por outro lado, morar sozinho pode sinalizar o problema de abandono ou ainda a falta de opção em compor um domicílio junto a outros familiares, podendo levar a riscos maiores de saúde e isolamento social, menor suporte social e baixa qualidade de vida3 .

Pessoas idosas que residem sozinhos se deparam com cenários complexos no cotidiano, como dificuldade na realização de tarefas de casa, lidar com as limitações fisiológicas do corpo, as relações familiares, memória vacilante, renda fixa, por vezes decrescente, entre outros. Ao mesmo tempo convivem com as cobranças sociais ligadas ao comportamento e independência funcional4 .

Circunscrevendo os cenários e desafios que envolvem a produção intersubjetiva do processo de envelhecimento e seus reflexos no morar sozinho entre as pessoas idosas, traçou-se como questão de pesquisa: quais as percepções e vivências de pessoas idosas sobre morarem sozinhas? Reconhece-se que as experiências desse grupo podem ajudar profissionais e serviços de saúde a implementarem o atendimento psicossocial da pessoa idosa na perspectiva da promoção do envelhecimento saudável. Soma-se ainda a existência de poucos estudos que exploraram os motivos desses arranjos de moradia e a formulação de estratégias para superá-los3 .

Assim, o estudo tem como objetivo analisar relatos da vivência de pessoas idosas acerca de morarem sozinhas.

MÉTODO

O percurso adotado foi o Método Clínico-Qualitativo (MCQ), que na descrição de Turato³ está ancorado em uma valorização das posturas clínica, psicodinâmica e existencialista do pesquisador. O MCQ pressupõe então que a coleta de dados seja realizada por meio de entrevista semidirigida com questões abertas, em profundidade; e observação livre e auto-observação, simultâneas5 . Deste modo, a questão norteadora do estudo foi: quais as percepções e vivências de pessoas idosas sobre morarem sozinhos?

Realizou-se uma fase de ambientação e aculturação pré coleta de dados por meio de visitas frequentes ao serviço de saúde como forma de conhecer as rotinas assistenciais, bem como acessar informações para o mapeamento de pessoas idosas morando sozinhas.

Após essa primeira etapa de identificação dos sujeitos, passou-se ao acompanhamento dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) nas primeiras visitas domiciliares para estabelecer o primeiro vínculo com essa população. Posteriormente, foi estabelecida uma agenda, de pelo menos duas visitas domiciliares realizadas individualmente, como estratégia de fortalecimento do vínculo com as pessoas idosas e aplicação dos critérios constitutivos da amostra. O levantamento realizado no serviço de saúde apontou para um total de 64 pessoas idosas residentes em ambiente unipessoal na zona urbana do município de Portalegre, RN, Brasil.

A amostragem foi estabelecida pelo critério de exaustão, que consistiu na abordagem de todos os sujeitos elegíveis para o estudo. Adotaram-se como critérios de inclusão: indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos que residissem sozinhos durante as 24h; estivessem cadastrados na Estratégia Saúde da Família da zona urbana do município de Portalegre, RN, apresentassem condições físicas, emocionais e intelectuais adequadas que não prejudicassem a validade das informações esperadas no emprego de entrevista clínico-psicológica. Ou seja, se fosse observado dificuldades para verbalização, choro copioso que não cessasse, e alterações dos processos de pensamento expressos em discursos desconexos, a entrevista seria descontinuada e o sintoma acolhido pelo pesquisador, porém isso não aconteceu.

Quando foram iniciadas as visitas, identificou-se que 35 possuíam algum tipo de companhia (dia ou noite), duas eram alcoolistas e uma tinha diagnóstico de transtorno mental, sendo por isso excluídos da pesquisa. Durante a fase de ambientação, quatro pessoas idosas viajaram e duas mudaram para zona rural do mesmo município, os quais também foram excluídos, o que resultou em um total de 20 potenciais colaboradores; destes, dois se recusaram a participar da pesquisa. Ao final, obteve-se uma amostra de 18 participantes.

As entrevistas foram realizadas de setembro a dezembro de 2016, no próprio domicílio da pessoa idosa, todas foram gravadas, posteriormente transcritas e submetidas à Análise Qualitativa de Conteúdo, a qual se seguiu cinco etapas descritas por Turato³: Preparação Inicial do material; Pré-análise; Categorirização e Subcategorização; Validação Externa e Apresentação dos Resultados.

Seguindo os preceitos éticos da autonomia, privacidade e confidencialidade dos sujeitos como preconiza a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/2012, o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado Rio Grande do Norte (UERN), com parecer favorável à sua execução, CAAE de nº 53359416.3.0000.5294, em 09 de maio de 2016.

RESULTADOS

O perfil sociodemográfico dos participantes é constituído por uma distribuição paritária quanto ao sexo, oito divorciados, quatro viúvos e seis solteiros, a idade variou de 60 a 78 anos; todos católicos e aposentados, a quantidade de filhos variou de nenhum a 24, a maioria tinha até 4 anos de estudo.

Após o emprego da técnica de Análise Qualitativa de Conteúdo emergiram quatro categorias, a saber:

Venturas e Desventuras de morar sozinho: escolhas ou imposições?

Tranquilidade e liberdade para fazer o que quiser em um espaço que é só seu, são justificativas apresentadas pela maioria dos idosos sobre as vantagens de morar em ambiente unipessoal, por manter ativa sua individualidade, autonomia e independência.

“Vivo sozinho, mas graças a Deus eu passo bem, me alimento bem, não tenho tristeza comigo. [...] Eu saio, vou para onde eu quero, [...] a casinha é minha, não tem quem me bote para fora [...] e assim vou vivendo” E1.

Mesmo com muitos relatos de boa aceitação em ambiente unipessoal, há aqueles que anseiam fortemente por companhia, para que o processo de envelhecimento seja mais prazeroso.

“Uma vez passei o dia internada noutra cidade, fiquei sozinha mais Deus. Aí como é que eu mim sinto? É uma tristeza! Vivo porque Deus me ajuda né? A custa de medicamentos. Tem dias que eu choro que só falto perder o juízo de chorar. E tem dia que eu dou uma de dura” E3.

“Eu não acho que morar só seja o ideal para ninguém. [...] E a solidão? É muito ruim você dormir sozinho. É bom ter uma pessoa para conversar. [...] A minha sorte que tem uma televisão para ouvir as coisas” E15.

Os idosos disseram que morar em ambiente unipessoal é difícil, mas têm buscado meios para interagir constantemente com outras pessoas, com destaque para familiares e amigos (vizinhos). Contudo, mesmo aqueles que negaram solidão admitiram sentir a falta de companhia em certos momentos da vida, ou de alguém que pudesse estar presente quando estivessem doentes ou sentissem algum mal-estar.

Se tem uma coisa que eu acho ruim na vida: É viver só, comer só e dormi só. [...] A vida da gente que vive só é ruim, não tem com quem conversar, dormir. Então a minha vida é assim de solidão, eu acho muito triste, e isso me deixa perturbada. E8

Os pontos negativos são esses: [...] de adoecer, assim durante a noite, não tem por quem chamar, não tem quem faça nada. [...] A gente vai se acostumando aos poucos, ou melhor, se acostumando não, vai passando que a gente não se acostuma. E9

Redefinição de arranjos familiares: qual o lugar do idoso?

Os relacionamentos familiares foram relatados, por muitos idosos, como bons. Quando se mantêm o contato ativo com seus parentes, seja através de visitas frequentes, seja de telefonemas que expressem preocupação, afetividade, atenção e respeito para com eles. Essas relações afetivas tidas como positivas, são significadas pelo idoso que reside sozinho, como um apoio, auxiliando no enfrentamento das dificuldades do dia-a-dia, e contribuindo assim, para o afastamento de sentimentos de solidão por abandono, que pode surgir na velhice.

“Graças a Deus meus filhos são todos bons para mim, ave Maria, esse telefone aqui é pra eu falar a qualquer momento com eles. [...] Eles veem aqui na minha casa (os que moram aqui). Eu vou lá. Se eu dissesse assim para eles: - Venha um morar mais eu, eles vinham, mas eu não quero, tudo tem filho. Eu tenho é 14 netos [...] quando dá fé enche a casa” E6.

Contrastando com a expressão desses sentimentos bons, houve relatos em que o sentimento de solidão e abandono pôde ser claramente percebido ao enfatizarem a ausência ou distanciamento da família, falta de atenção, preocupação e carinho para com eles. Parece que os conflitos familiares podem estar subjacentes nesse estado de solidão nos idosos, e são potencializados por outros elementos.

“Meu filho só vem aqui quando está bêbado pedir dinheiro” E1.

“Eu me sinto assim, muito triste porque meus dois filhos moram em São Paulo, eu tenho minhas irmãs [...] que não têm contato comigo, não ligam para mim, eu também não ligo, porque nenhuma é melhor que a outra. [...] Eu tenho primas aqui, não andam na minha casa. [...] Então assim, eu me vejo muito abandonada da minha família. [...] Meu cunhado disse assim: -Tenho tanta vontade de você ir lá em casa, passar uns dois dias, mas sua irmã é muito esquisita. Eu questionei: - Quando você chega daqui, ela pergunta por mim?. Ele disse: - Não. [...] Tem um neto meu que mora ali na esquina, andou aqui vai fazer 2 anos” E3.

Minha filha me abandonou, deixou apenas uma carta dizendo: - Mamãe, estou indo embora e não me procure. Ela me deixou sozinha naquela casa grande com aquele menino (o irmão deficiente, um rapaz bem comprido) e eu carregando ele nos braços. [...] Eu chorava, aí ele dizia mesmo assim: - Chore não mamãe, ela não quis sair, deixar nós? Ela achou melhor ir embora do que ficar mais nós. [...] Depois de um tempo, ele morreu [...]. Eu não tive nem sorte, até os aleijadinhos morreram tudinho só na minha companhia. Não teve uma irmã que viesse ajudar na hora da precisão” E4.

Sociabilidade e cuidados com a saúde: estratégias de enfrentamento da solidão?

Sem o apoio total da família, os idosos apostam e apoiam-se em laços de amizades com os vizinhos, na busca de suprir a carência, a falta de cuidado e o sentimento de solidão que os circundam.

“Graças a Deus, até agora, por aqui todo mundo me conhece, [...] os vizinhos são bons pra mim[...] No dia que eu precisar, [...] no dia que eu cair doente e chamar um ou outro, eles me atendem, aí vão me entregar a minha tia” E1.

“Minha vizinha tem uma cópia da chave daqui, eu digo: - Olhe, se der 7 horas e eu não acordar, não abrir a porta, a senhora pode vim, e acontecer que estou morta ali. Porque hoje a pessoa pra morrer, basta tá vivo; dá um infarto, dá um AVC, dá uma coisa e eu já tenho problema de saúde” E3.

Além do apoio dos vizinhos, os idosos ainda referem outros elementos significantes da habitação unipessoal. A televisão, o rádio, a bíblia, o livro e a ida a igreja aparecem como estratégias de enfrentamento dos sentimentos de solidão.

“Eu me entreto mais com televisão, às vezes eu vou à igreja, não vou muito, mas eu vou a igreja. Adoro as novelas [...] a gente sabe que não é verdade, mas enquanto a gente está assistindo, a gente está iludida, né? Melhor do que só notícia ruim” E9.

“Cuido das minhas plantas, da minha casa, da minha comida, faço minha caminhada, vou à igreja, na casa de uma irmã minha que mora noutro bairro; [...] tudo isso faz passar o tempo” E11.

Uma preocupação frequentemente manifestada nos relatos diz respeito ao teto da renda mensal, que tem se mostrado insuficiente para o gerenciamento das despesas. Assim os idosos elegem os gastos com subsistência, consigo e com os outros, e medicação como prioritários, relegando atividades de cultura e lazer para um segundo plano.

“Eu tenho que pegar meu dinheiro do aposento, porque eu sou sozinha, e tudo que eu quero aqui, eu tenho que pagar pra fazer: uma lâmpada para trocar, casa para pintar, trocar uma pia, [...] meus medicamentos, o dinheiro quase não dá para tanta coisa” E3.

“O salariozinho da minha finada esposa, estou comprando legumes e mandando lá para os meus filhos que plantam e não têm condições. Aí justamente, o dinheiro que eu tiro, eu mando pra eles. [...] Eu com o meu, vou me virando, e assim mesmo, não devo um centavo a ninguém, Deus vai me ajudar, porque que eu vou passar fome?” E10.

Os vizinhos aparecem ainda como substitutos a uma procura no núcleo familiar, quando este se apresenta continente há uma relação de gratidão do idoso para com seus membros. Por outro lado, quando a situação de solidão se torna socialmente percebida, o idoso se torna mais susceptível as relações de poder verticalizadas, e por vezes autoritárias, da equipe de saúde.

“Tudo que eu preciso vou lá no posto. Apesar de não ser bem atendido. Tem delas que são bem boazinhas, mas têm outras que são enjoadas, nojentas. [...] Nossa senhora, aborrecida que só não sei o quê. Às vezes eu até digo: - Você num está aqui para essas coisas?. [...] Se chegar a adoecer, seja o que Deus quiser, tudo tem seu tempo né? (de adoecer, para morrer). Feliz de quem morre de um infarto, é muita felicidade. Há se Jesus me desse esse presente. Eu não tenho medo de morrer, só tenho medo de ficar doente” E17.

Outra causa geradora de angústia é a possibilidade de dependência futura para o autocuidado, onde se polariza as expectativas de proximidade com a família ou a remuneração de terceiros para esse fim.

“Quando eu estiver mais velha, ou adoecer, que seja do jeito que Deus quiser, que eu merecer. Não é possível que tanta gente na raça; criei uma sobrinha e um sobrinho, eles são os que mais me procuram, não é possível que na hora da precisão eles me abandonem” E16.

“Ai o que eu mais penso assim é que daqui uns tempos vai ter uma pessoa pra cuidar de mim, pegar meu cartão pra pegar o dinheiro, essas coisas” E12.

Desejo de transcendência e exercício da espiritualidade: mecanismos de resiliência?

A religiosidade tem sido considerada como fonte potencial de significado pessoal e bem-estar psíquico, com ênfase maior na aceitação e superação das dificuldades que o ambiente unipessoal acarreta. Assim, podemos observar nos depoimentos dos idosos, que tal prática também contribui para o envelhecer com saúde.

“Eu sou conformada com as coisas, com a vida que Deus me deu. [...] A minha felicidade é um terço que eu amanheço e anoiteço [com ele] na mão, o meu escudo. [...] A velhice é bom demais, que você já viveu, você já passou, você já sofreu, você já gozou... Eu já gozei, eu já farreei, eu já brinquei, eu já amei, eu já fiz muita coisa; não coisa ruim, mas eu já gozei tanto na minha vida, mas não estou mais na idade de gozar, vou viver a minha velhice, agora se Deus me desse um pouco de saúde, Santa Luzia limpasse a minha vista, dava para eu viver. E dá para eu ir muito bem porque eu confio neles” E8.

DISCUSSÃO

A escolha em residir em um ambiente unipessoal para a pessoa idosa pode estar relacionada a situações do seu contexto de vida atual, como o processo de viuvez, a separação conjugal ou mesmo a ausência de parentes próximos. Entende-se que as mudanças na composição e configuração da família trazem reflexos diretos entre seus membros, em especial quando filhos ou outros saem de casa e passam a morar sozinho.

Existem ainda casos em que a pessoa idosa tem a possibilidade de morar com familiares, no entanto, opta por morar sozinha. Isso pode se justificar quando se busca maior autonomia, privacidade e a vivência em um ambiente de maior tranquilidade, aspectos apontados pelos participantes do estudo como as principais vantagens de morarem sozinhos.

A busca pela individualidade tem mais êxito quando a pessoa idosa apresenta função cognitiva preservada e bom desempenho nas atividades cotidianas, contam com o apoio da família ou amigos, com melhores condições de saúde, renda, acesso a serviços de saúde e cor branca6,7 .

Em contrapartida, em situações de dissolução de lares devido divórcio ou separação do casal (forçada ou não), fruto de crises matrimoniais que acabam gerando na pessoa idosa, a desmotivação em buscar um novo relacionamento e, na maioria das vezes, optam por seguir a vida sem uma companhia conjugal2 . Soma-se ainda ao mister de sentimentos negativos identificados como revolta, rancor, tristeza e outros que interferem diretamente em seu estado psicológico e emocional.

O fato de morar sozinho pode desencadear o aumento da sensação de solidão, levando, em alguns casos, a um quadro psicopatológico de depressão. Por vezes, se identifica no indivíduo o receio de desamparo por medo de acidentes ou doenças inesperadas quando sozinho em casa, a incerteza quanto ao futuro, considerando o receio de quem cuidará deles em caso de necessidade8 .

Reconhece-se como um dos principais desafios no envelhecimento, a capacidade do indivíduo em se adaptar a situações adversas e manter sua qualidade de vida. Neste contexto, a família se mostra como excelente ponto de apoio, considerando o valor simbólico e cultural que representa em todas as camadas sociais, tendo como função principal cuidar, zelar, proteger seus membros, entre outras responsabilidades9 . Para as pessoas idosas, ser cuidado pelo familiar expressa um simbolismo cultural presente na ideia do cuidar geracional, historicamente difundido como uma forma de retribuição e gratidão pelo carinho e cuidado ofertados por estas ao longo da vida.

Sabe-se que a família exerce influência no acompanhamento e promoção do envelhecimento saudável, seja no estímulo da autonomia para desempenho das atividades no dia-a-dia da pessoa idosa, seja no aconchego e suporte oferecidos para seu bem-estar biopsicossocial10 . O sentir-se apoiado pelos familiares não se restringe apenas à presença ou contato físico em si, mas também ao “estar próximo” materializado em ações que demonstrem preocupação, atenção ou zelo, como um telefonema inesperado, um recado através de aplicativos móveis de mensagens e chamadas para smartphone, reforçando a presença e contato.

Os vizinhos também foram identificados pelos participantes do estudo como importantes facilitadores no processo de sociabilidade. Neste sentido, a percepção positiva da pessoa idosa acerca do apoio de vizinhos e de amigos está diretamente ligada à sua boa saúde11 . A integração e convivência interpessoal ampliam o senso de viver em comunidade entre as pessoas, constituindo importante via de sociabilidade entre os envolvidos.

Chama-se atenção o fato das pessoas que moram sozinhas se afastarem, ao longo do tempo, do convívio em família, em relação as que moram com outras pessoas. No entanto, o morar sozinho, muitas vezes, favorece a aproximação com os amigos e a ampliação dos vínculos fraternos, incluindo os vizinhos, levando ao maior envolvimento em atividades sociais regulares3,12 .

A espiritualidade é outro elemento que apresenta dimensão central na vida de grande parte das pessoas idosas. Com o avançar da idade ocorre um aumento da espiritualidade tornando-se fonte importante no suporte emocional, com repercussões nas áreas da saúde física e mental13 . Práticas e crenças religiosas parecem contribuir decisivamente para o bem-estar na velhice14 .

Soma-se ainda neste cenário, a utilização de tecnologias de informação e comunicação (TICS) e de outras mídias no cotidiano da pessoa idosa. Entende-se que a difusão das TICS contribui para a diminuição da solidão, favorecendo o acesso à informação e novas possibilidades de interação com outras pessoas, sendo também fonte de entretenimento em tempos livres.

O grupo de convivência na terceira idade constitui outra estratégia de integração e inclusão social voltado a essa faixa etária, estando presentes na maioria dos municípios brasileiros. A vivência no grupo estimula o resgate da autonomia, o viver com dignidade e no âmbito de ser e estar saudável nessa fase15 . No entanto, as pessoas idosas participantes desta pesquisa demonstraram uma postura mais receosa a esses espaços.

No contexto dos cuidados em saúde, observa-se que as pessoas idosas com baixa renda têm maiores dificuldades para gerenciar suas despesas financeiras. No geral, a renda mensal é destinada exclusivamente ao custeio de gastos com alimentação, remédios e outras contas fixas; não priorizando despesas com lazer ou mesmo o próprio autocuidado (ida ao salão de beleza, compra de vestimentas, etc.).

Na ida ao serviço de saúde ou procura por assistência médica, identifica-se um certo grau de dependência por parte da pessoa idosa, sendo necessário alguém para acompanhá-la nesses momentos. Quando se vivencia com mais intensidade o sentimento de solidão, a dependência se torna mais perceptível, requerendo a figura de outa pessoa ou companhia para lhe dar atenção, carinho e apoio na realização das atividades básicas do dia a dia, como preparo da alimentação, lavar roupas, conversar e até mesmo dar seus remédios no horário certo16 .

Mesmo com o apoio familiar em situações de fragilidade ou dependência por adoecimento, a maioria das pessoas idosas temem o momento em que não conseguirão manter o domicílio unipessoal. Se, por um lado, havia uma expectativa em relação a ser cuidado por um familiar, dispor de algum cuidador contratado ou mesmo a ida para uma instituição de longa permanência; de outro, se identificou o sentimento de incerteza em relação ao futuro, embora todos mantenham a esperança de continuar vivendo com saúde17 .

No cenário das políticas públicas de saúde no Brasil voltadas à pessoa idosa, ainda se evidenciam desafios e distorções no campo das responsabilidades e suporte do Estado a essa faixa etária que acaba sendo assumida numa perspectiva individual ou familiar18 . Entre os participantes do estudo, teve-se relatos de mau atendimento e falta de acolhimento por parte dos profissionais entre os serviços de saúde da rede básica.

Reforça-se a necessidade de uma maior sensibilização dos profissionais no cenário de atenção a pessoa idosa que vive sozinha, tendo em vista as necessidades específicas deste grupo, buscando-se fortalecer as ferramentas de cuidado em saúde ligadas a escuta ativa e qualificada, a criação do vínculo, acompanhamento domiciliar e atendimento psicossocial, essenciais na promoção do envelhecimento saudável19 .

Como limitação deste estudo, aponta-se a não generalização dos achados. Entretanto, os achados obtidos suscitam novas reflexões sobre a temática, com possiblidades de aplicação a outros grupos desta faixa etária que vivenciam realidades próximas às dos participantes.

CONCLUSÕES

O arranjo domiciliar unipessoal no contexto das pessoas idosas constitui um fenômeno social complexo e multifacetado, considerando os aspectos intersubjetivos presentes nas experiências individuais ao longo da vida. Observou-se que o morar sozinho para os participantes do estudo reflete diretamente as adaptações e desafios enfrentados no processo de envelhecimento, seja na realização de escolhas individuais, na conjugação das relações familiares, na tessitura cotidiana de sociabilidade e convívio interpessoal, ou mesmo na produção do cuidado de si.

Embora os domicílios unipessoais possam representar uma conquista quanto a autonomia e independência com o avançar da idade, as pessoas idosas que residem sozinhas se tornam mais vulneráveis nas questões ligadas à saúde e ao adoecimento. Adentrar nessa realidade, permitiu conhecer de maneira ampliada significados e vivências desse grupo em particular, identificando-se os distintos modos que lidam com essa fase, bem como os condicionantes imbricados na produção de saúde e do autocuidado.

Entende-se que os elementos encontrados neste estudo trazem importantes reflexões aos profissionais de saúde, reforçando a necessidade da promoção de um atendimento mais adequado e sensível às necessidades das pessoas idosas em domicílio unipessoal, atentando-se aos aspectos psicossociais envolvidos. Mediante os impactos psíquicos negativos para as pessoas que envelhecem morando sozinhas na realidade estudada, recomenda-se o desenvolvimento de pesquisas futuras no intento de analisar esse fenômeno com maior amplitude, utilizando instrumentos psicométricos para dar conta da abrangência pretendida, bem como a influência da classe social e raça nesse grupo.

  • Não houve financiamento para a execução deste trabalho.

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Editado por

  • Editado por: Yan Nogueira Leite de Freitas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2020
  • Aceito
    27 Jan 2021
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