Resumo
Objetivo Analisar as diferenças entre as proporções de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), em dois momentos, em uma coorte de idosos a partir de determinantes sociodemográficos.
Método Trata-se de estudo longitudinal retrospectivo com dados obtidos do Estudo FIBRA linha de base (2008-2009) e seguimento (2016-2017). O teste de McNemar foi utilizado para comparar as frequências de DCNT segundo sexo, idade e escolaridade, com nível de significância de 5% (p<0,05).
Resultados A amostra foi composta por 453 idosos (idade média 72±5,2 anos; 69,4% do sexo feminino). Observou-se aumento nas proporções de hipertensão arterial (64,4% versus 71,1%) e diabetes mellitus (21,9% versus 27,5%) no período estudado, e redução nas de doença reumatológica (43,6% versus 35,8%) e depressão (21,7% versus 15,7%). A hipertensão aumentou no sexo feminino, e nos idosos com 65-74 anos e com baixa escolaridade; o diabetes aumentou nos idosos do sexo masculino e nos indivíduos com idade acima de 65 anos e com baixa escolaridade; observou-se redução das proporções de doenças reumatológicas e de depressão no decorrer do estudo nas mulheres, naqueles com 65-74 anos de idade e com nível mais baixo de escolaridade.
Conclusão Os dados refletem a necessidade de compreensão dos determinantes sociodemográficos de saúde envolvidos no processo saúde-doença-cuidado para a redução de iniquidades sociais e da carga de DCNT nos segmentos populacionais mais vulneráveis, especialmente na população idosa com multimorbidade.
Palavras-Chave: Doença Crônica; Saúde do Idoso; Epidemiologia; Doenças crônicas não-transmissíveis; Idoso
Abstract
Objective To analyze the differences between the proportions of chronic non-communicable diseases (CNCDs) at two time periods, in a cohort of older adults, based on sociodemographic determinants.
Method This is a retrospective longitudinal study with baseline data obtained in 2008-2009 and follow-up in 2016-2017, from the FIBRA Study. The McNemar test was used to compare the frequencies of CNCDs according to sex, age, and education, with a significance level of 5% (p<0.05).
Results The sample consisted of 453 older adults (mean age 72±5.2 years old; 69.4% women). There was an increase in the proportions of arterial hypertension (64.4% versus 71.1%) and diabetes mellitus (21.9% versus 27.5%) in the periods studied, and a reduction in rheumatologic disease (43.6% versus 35.8%) and depression (21.7% versus 15.7%). Hypertension increased in older women, in those aged 65-74 years old and those with low education levels. Diabetes increased in older men, in those over 65 years of age and those with low education levels. A reduction in the proportions of rheumatologic diseases and depression was observed in women, in those aged 65-74 years old and those with low education levels.
Conclusion The data reflect the need to understand the sociodemographic health determinants involved in the health-disease-care process to reduce social inequities and the burden of CNCDs in the most vulnerable population segments, especially in the older adult population with multimorbidity.
Keywords Chronic Disease; Health of the Elderly; Epidemiology; Noncommunicable Diseases; Elderly
INTRODUÇÃO
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) constituem a principal causa de incapacidade e mortalidade prematura no mundo, responsáveis pela morte de 41 milhões de pessoas a cada ano, equivalente a 71% de todas as mortes1. O avanço das DCNT decorre do gradativo envelhecimento populacional associado ao processo de transição epidemiológica, caracterizado pelo aumento de doenças crônico-degenerativas e pela redução de doenças infecciosas agudas. Dentre as DCNT, as doenças cardiovasculares, diabetes, câncer e doença respiratória crônica são as que mais contribuem para a carga de morbimortalidade, ocasionando piora da qualidade de vida, complicações clínicas permanentes, perda da autonomia e incapacidade funcional, sobretudo na população idosa2–4.
As DCNT são um problema de saúde pública global, mais grave em países tropicais de média e baixa renda, como o Brasil, que apresentam taxas de mortalidade padronizadas por idade superiores aos países de alta renda4,5. Tal condição reflete o contexto socioeconômico e político marcado por problemas estruturais como baixa escolaridade, alimentação inadequada, pior condição de vida, doenças infectocontagiosas, regulamentação insuficiente do tabaco e do álcool e cuidados de saúde com recursos precários e inacessíveis2,3,5. Evidências apontam que a maior parte da carga de DCNT e as iniquidades em saúde ocorrem devido aos determinantes sociais de saúde, termo utilizado para englobar determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais da saúde6,7.
Nas últimas décadas, o estudo dos determinantes sociais da saúde tem ganhado destaque em todo o mundo, dada a necessidade de combater as iniquidades que dificultam o acesso e o direito à saude8. No Brasil, o Ministério da Saúde implementou medidas para o controle das DCNT, com destaque para o “Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das DCNT”. Lançado em 2011, o Plano objetiva desenvolver metas e promover políticas que garantam a redução da morbimortalidade e incapacidades causadas pelas DCNT, por meio de ações de elevado custo-efetividade, como promoção a saúde, detecção precoce, tratamento das DCNT e reorganização dos serviços de saúde2.
Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2013), a prevalência de DCNT é elevada no Brasil (45,1%), com predomínio de hipertensão arterial sistêmica, problema crônico de coluna, depressão, artrite e diabetes mellitus 9. As DCNT atingem todas as camadas socioeconômicas, sendo mais intensas em grupos vulneráveis, especialmente idosos e aqueles de baixa renda e escolaridade2. A maior prevalência das DCNT é observada com o aumento da idade2; e mulheres, que usam mais os serviços de saúde (tanto em consultas quanto em internações), relatam mais limitações em decorrência da DCNT10.
A atenção integral à população idosa assume papel imprescindível no controle das DCNT e a possibilidade do olhar longitudinal acerca da ocorrência de DCNT na população idosa permite conhecer a magnitude e comportamento dessas doenças. Nesse contexto, os determinantes sociodemográficos podem influenciar no perfil de adoecimento da população idosa, tendo em vista a complexidade do binômio saúde-doença. Portanto, o objetivo do estudo foi analisar as diferenças entre as proporções de DCNT, em dois momentos, em uma coorte de idosos a partir de determinantes sociodemográficos.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo de longitudinal retrospectivo com idosos residentes na comunidade. Os dados foram obtidos do Estudo FIBRA (Fragilidade em Idosos Brasileiros) realizado em dois momentos: linha de base (2008-2009)11 e seguimento (2016-2017), em Campinas e em Ermelino Matarazzo, subdistrito da cidade de São Paulo.
Na linha de base, foram estimados tamanhos mínimos de amostra para cada uma das localidades de 4 a 5 pontos percentuais. Para alcançar o tamanho amostral, realizou-se um sorteio aleatório de 90 setores censitários urbanos em Campinas e de 62 em Ermelino Matarazzo e, para cada amostra, foram estimadas cotas proporcionais de homens e mulheres por faixa etária (65-69, 70-74, 75-79 e ≥ 80 anos), conforme a distribuição censitária desses segmentos na população. Os domicílios dos setores censitários sorteados foram visitados por recrutadores treinados para identificar a presença de idosos elegíveis para o estudo: ter 65 anos ou mais, compreender as instruções para responder o questionário, concordar em participar da pesquisa e ser morador permanente no domicílio e no setor censitário.
Os idosos que cumpriram os critérios de elegibilidade foram convidados a comparecer em locais públicos de fácil acesso para a coleta de dados, que se iniciava com a administração do Mini Exame do Estado Mental (MEEM), variáveis sociodemográficas, antropométricas, clínicas (pressão arterial e saúde bucal) e fragilidade. A pontuação obtida no MEEM determinava a continuidade da entrevista, levando em conta que prejuízos nas habilidades cognitivas poderiam inviabilizar as respostas para questões de autorrelato sobre DCNT, uso de serviços médicos, entre outras. As notas de corte utilizadas no MEEM foram de 17 para analfabetos, 22 para indivíduos com 1 a 4 anos de estudo, 24 para os com 5 a 8 anos e 26 para os com 9 anos ou mais de escolaridade12.
Ao todo, foram entrevistados 1.284 idosos na linha de base (900 em Campinas e 384 em Ermelino Matarazzo), com média de idade de 72,6 ± 5,8 anos e 68,7% eram mulheres. Em 2016-2017, os endereços registrados no banco de dados da linha de base foram percorridos para localizar os idosos para um estudo de seguimento. Os recrutadores realizaram até três tentativas por participante. Quinhentos e quarenta e nove idosos foram localizados, 192 haviam falecido desde a linha de base e 543 idosos foram perdidos por não localização dos endereços ou dos idosos, aplicação dos critérios de exclusão, recusa, interrupção da entrevista por um familiar ou pelo idoso e presença de risco à integridade física e psicológica dos entrevistadores. Entre os 549 localizados, foram excluídos 96 em virtude de não terem registros completos de todas as variáveis de interesse.
A Figura 1 apresenta o fluxograma do processo de tomada de decisões para a composição da amostra para este estudo. As entrevistas foram feitas nos domicílios por uma dupla de recrutadores treinados, perante um familiar ou outro acompanhante que estivesse disponível na ocasião.
Fluxograma da composição da amostra. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.
As variáveis de interesse neste estudo foram as doenças crônicas contidas em um checklist que, segundo os idosos, haviam sido diagnosticadas por um médico no decorrer do último ano. O checklist continha nove itens dicotômicos (sim x não): doença do coração (como angina, infarto do miocárdio ou ataque cardíaco); hipertensão arterial sistêmica (HAS); acidente vascular cerebral (AVC) ou derrame; diabetes mellitus (DM); neoplasia/câncer; doença reumatológica (artrite/reumatismo). As variáveis sexo (masculino ou feminino), idade (65 a 74 anos ou 75 anos e mais) e escolaridade (0-4 ou acima de 5 anos de estudo) - retiradas do estudo da linha de base – foram consideradas para avaliar sua relação com a ocorrência das doenças no período.
Foram computados os valores de frequência absoluta e relativa para cada doença crônica registrada na linha de base e no seguimento. Foram estimadas as proporções de ocorrência segundo as variáveis sociodemográficas. O teste estatístico de McNemar foi utilizado para comparar as proporções de doenças crônicas nos dois períodos da pesquisa. Considerou-se como valor crítico de p menor que 0,05.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (CAAE 37597220.7.0000.5404), mediante parecer número 4.356.611 de 23 de outubro de 2020. Os projetos do Estudo FIBRA linha de base (CAAE 39547014.0.1001.5404) e seguimento (CAAE 49987615.3.0000.5404 e 92684517.5.1001.5404) foram igualmente aprovados mediante os pareceres 907.575 de 15/12/2014, 1.332.651 de 23/11/2015 e 2.847.829 de 27/08/2018 no CEP supracitado. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com relação aos objetivos, procedimentos, direitos e deveres dos participantes e compromissos éticos dos pesquisadores.
RESULTADOS
A amostra foi composta por 453 idosos. Na linha de base a idade média foi 72,0 ± 5,2 anos, a maioria eram do sexo feminino (69,4%) e tinha escolaridade entre 0 e 4 anos (71,8%). A Tabela 1 apresenta os dados resultantes da comparação das proporções de DCNT na linha de base e no seguimento. Observou-se aumento estatisticamente significativo da ocorrência de HAS (64,4% versus 71,1%; p = 0,001) e DM (21,9% versus 27,5%; p = 0,001). Foram verificadas quedas nas proporções acumuladas de doença reumatológica (43,6% versus 35,8%; p = 0,003) e depressão (21,7% versus 15,7%; p = 0,004).
Comparação da frequência de ocorrência de DCNT em idosos ao longo do tempo. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.
Ao avaliar a ocorrência das doenças crônicas segundo o sexo, verificou-se aumento da proporção de DM entre os homens (21,5% versus 30,5%; p = 0,010) e de HAS nas mulheres (68,6% versus 75,1%; p = 0,010). Neoplasias, doenças reumatológicas e depressão foram menos frequentes no seguimento em comparação com a linha de base, para as mulheres (Tabela 2).
. Comparação da frequência de ocorrência de DCNT em idosos ao longo do tempo, segundo sexo. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.
As análises estratificadas por faixa etária mostram que, entre os idosos com 65 a 74 anos, as proporções de ocorrência de HAS e DM aumentaram, enquanto que as de doenças reumatológicas e depressão diminuíram no decorrer do estudo (p < 0,05). Para os mais longevos, houve um aumento estatisticamente significativo da ocorrência de DM (Tabela 3).
Comparação da frequência de ocorrência de DCNT em idosos ao longo do tempo, segundo faixa etária. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.
Entre os idosos com baixa escolaridade, averiguou-se um aumento da ocorrência de HAS e DM e redução da ocorrência de neoplasias, doenças reumatológicas e depressão no período. Entre os mais escolarizados, observou-se estabilidade quanto às proporções das condições avaliadas (p > 0,05), exceto para a depressão que apresentou redução (20,4% versus 12,0%; p = 0,049), quando comparados os dois períodos (Tabela 4).
Comparação da frequência de ocorrência de DCNT em idosos ao longo do tempo, segundo escolaridade. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.
DISCUSSÃO
Os resultados apresentados no estudo mostram as proporções de DCNT autorreferidas em idosos residentes na comunidade em dois momentos de medida, considerando-se as variáveis sexo, idade e escolaridade. O processo natural de envelhecimento promove alterações orgânicas que propiciam maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de DCNT13. Neste estudo observou-se aumento da ocorrência de HAS e DM entre os idosos, achado coerente com os de outros estudos14,15. Tais doenças apresentam elevadas prevalências e destacam-se entre os principais problemas de saúde pública e as principais causas de morbimortalidade na população idosa16,17.
A HAS é a doença crônica mais prevalente na população geriátrica brasileira e sua prevalência aumenta com a idade16; representa um fator de risco para declínio cognitivo, AVC, demência de Alzheimer e perda de funcionalidade18,19. A prevalência global de HAS em idosos de 60-69 anos é estimada em 57,0% e 61,6% no sexo masculino e feminino, respectivamente. Acima de 70 anos, observa-se aumento para 68,6% e 75,8% em homens e mulheres20, dado também observado neste estudo.
Observou-se aumento da ocorrência da HAS no sexo feminino. A maior demanda das mulheres por serviços de saúde e sua maior sensibilidade ao estado de saúde predispõem ao frequente relato de doenças, a altas taxas de diagnóstico21 e, provavelmente, a taxas mais altas de sobrevida. Esse processo acarreta o aumento da proporção de mulheres idosas na população, fenômeno conhecido como feminização da velhice22. Vale destacar ainda que mulheres no climatério vivenciam declínio dos níveis de estrogênio, o qual pode desencadear sintomas vasomotores (fogachos, sudorese, palpitações) e psicológicos (nervosismo, irritabilidade, insônia e depressão), além de poder associar-se ao aumento do risco para doenças cardiovasculares e osteoporose23.
A escolaridade é um importante determinante das condições de saúde e doença, principalmente na velhice. Idosos brasileiros com baixa escolaridade apresentaram maior prevalência de HAS e DM, o que denota condições de vida e comportamentos de saúde deficitários, que têm importante impacto sobre a saúde dos idosos24. Uma revisão sistemática identificou que o baixo nível de escolaridade aumentou em 64% as chances de multimorbidade (OR: 1,64, IC95% 1,41-1,91), sendo essa associação mais forte em populações mais idosas do que nas mais jovens25. Bento et al.26 investigaram a associação de variáveis contextuais e individuais com HAS em idosos brasileiros e observaram associação inversa entre hipertensão e escolaridade. Esse resultado pode refletir a maior dificuldade de idosos com baixa escolaridade em reconhecer as necessidades de saúde e de aderir a tratamentos, assim como pode ser um reflexo de uma assistência médica precária, de pior letramento funcional e de dificuldades de acesso aos serviços de saúde25,26.
O DM é outra DCNT de grande importância, por associar-se com incapacidade funcional, complicações multissistêmicas (cardiovasculares, renais e neurológicas), elevadas taxas de hospitalização e mortalidade prematura27. Há estimativas de que, entre 2010 e 2030, haverá aumento de 69% no número de adultos com DM nos países em desenvolvimento e de 20% nos países desenvolvidos28. No Brasil, segundo dados da PNS 2013, a prevalência do DM foi de 6,2% com estimativa de 9,2 milhões de brasileiros portadores da doença; entre os idosos, as prevalências atingiram 14,5% (60-64 anos) e cerca de 20,0% (65 anos ou mais)29. A prevalência de DM em idosos brasileiros aumentou de 22,2% para 25,9% (p = 0,001) entre 2012 e 2016, segundo dados do inquérito telefônico realizado pelo Ministério da Saúde30.
Para idosos brasileiros mais longevos (com 75 anos ou mais) houve aumento da ocorrência de DM (p=0,011) similar aos encontrados na literatura nacional e internacional17,31. Esse aumento pode ser influenciado pelo maior acesso aos serviços de saúde e compreensão do diagnóstico, adesão ao tratamento gratuito e intervenções para o melhor controle da doença (como o programa Hiperdia), o que atenua a mortalidade e aumenta a incidência (pacientes tratados se acumulam), e consequentemente, a sobrevida de idosos que vivem com DM.
Foi observada redução das frequências de depressão e de doenças reumatológicas da linha de base para o seguimento do presente estudo, possivelmente relacionada às perdas no seguimento ou ao viés de sobrevida seletiva - após o diagnóstico, o paciente modifica os hábitos, adotando práticas e comportamentos mais saudáveis. A depressão é uma condição frequente na população idosa, associada com doenças crônicas, limitação funcional nas atividades cotidianas e deficit cognitivos32. Reynolds et al. 33 realizaram um estudo sobre transtornos psiquiátricos em amostra representativa de 12.312 adultos mais velhos nos Estados Unidos e observaram uma diminuição das taxas de transtornos psiquiátricos com o aumento da idade. Os autores relatam que a percepção limitada de tempo pelos idosos, com a busca do cumprimento de objetivos emocionalmente significativos, reduz situações sociais estressantes e aumenta a probabilidade de experimentar emoções positivas33. Nossos resultados parecem replicar esse achado.
A proporção de ocorrência de neoplasias reduziu-se no seguimento em comparação com a linha de base, sugerindo maior probabilidade de falecimento para parte da coorte que apresentou a doença crônica. Em estudo com dados da PNS 2013, a prevalência do diagnóstico de câncer foi identificada em 5,6% dos idosos, sendo maior nos homens (7,1%) do que nas mulheres (4,7%; p<0,001)34, semelhante ao presente estudo que evidenciou maior ocorrência de neoplasias em idosos do sexo masculino. Idosos com câncer que participaram da PNS 2013 apresentaram ainda maiores prevalências de hipertensão arterial, doenças do coração, depressão e doenças respiratórias crônicas, o que reflete a associação entre as DCNT (multimorbidade), suas implicações clínicas e no cuidado oncogeriátrico34.
Diversas medidas foram implementadas nos últimos anos para o controle das DCNT no Brasil, sendo o acesso gratuito ao tratamento medicamentoso uma estratégia imprescindível às políticas de saúde. Matta et al. 35 identificaram a farmácia do SUS como a principal fonte de obtenção de medicamentos no Brasil. Contudo, diferenças regionais relevantes na dispensação medicamentosa foram identificadas, especialmente nas regiões Norte e Nordeste do País. O credenciamento de farmácias e drogarias comerciais por meio do Programa Farmácia Popular do Brasil constitui uma alternativa para garantir o acesso da população a medicamentos essenciais para o tratamento de doenças crônicas, como HAS, DM e asma35.
Embora a linha de base do Estudo Fibra não tenha adotado um delineamento amostral perfeito, esta investigação representa uma contribuição relevante ao estudo da velhice no Brasil, por ser pioneira no estudo da fragilidade, por envolver idosos de 65 anos e mais, pelo seu caráter multicêntrico e por apresentar-se com um nível aceitável de aleatorização da amostra. A composição da amostra poderá ter sofrido o efeito da seleção dos sobreviventes mais aptos, por meio da exclusão daqueles que não atingiram o critério de desempenho cognitivo estabelecido para responder ao protocolo completo.
Depois de em média nove anos desde a linha de base, a localização dos idosos longevos representou um desafio e um obstáculo importante ao recrutamento, tanto quanto a mudança de parte dos idosos para a casa de um filho ou para uma instituição, a proibição de participar imposta pelos filhos e o receio dos idosos de receber estranhos. Os dados de autorrelato podem ter sido prejudicados por vieses de memória ou por desejabilidade social. Deve-se considerar ainda que no presente estudo não foram utilizadas técnicas de imputação simples ou múltipla para calcular as estimativas das proporções, as quais demandam estudos mais aprofundados sobre o tema. Nesse sentido, as estimativas podem estar subestimadas para alguns dos indicadores apresentados.
CONCLUSÃO
O estudo apresentou as mudanças nas proporções de idosos com DCNT, considerando determinantes sociodemográficos do processo saúde-doença. Observou-se o aumento da ocorrência de HAS e DM na população idosa e a diminuição na prevalência de doença reumatológica e depressão depois de, em média, nove anos desde a realização das medidas de linha de base. Diferenças nas prevalências de DCNT segundo sexo, idade e escolaridade também foram identificadas. Esses dados podem contribuir para fomentar ações de promoção da saúde entre idosos, tendo em vista a necessidade de reduzir a incidência e a prevalência de DCNT na velhice.
As alterações orgânicas secundárias ao processo de envelhecimento determinam maior vulnerabilidade do idoso ao desenvolvimento de DCNT, o que implica na necessidade de melhor compreensão dos determinantes sociais de saúde. Medidas de educativas, tratamento, controle de fatores de risco (como o tabagismo e alcoolismo), promoção de comportamentos saudáveis (alimentação saudável e atividade física) e gestão de DCNT são um desafio para a saúde pública. Esforços colaborativos são urgentemente necessários para combater a carga de doenças crônicas nos segmentos populacionais mais vulneráveis, especialmente na população idosa.
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Financiamento da pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital MCT-CNPq/MS-SCTIE-DECIT, Processo 17/2006, projeto nº 555082/2006-7; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Convênio CAPES/Procad 2972/2014-01, projeto nº 88881.068447/2014-01; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), projeto temático nº 2016/00084-8, e ao CNPq, auxílio à pesquisa nº 424789/2016-7.
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Editado por
-
Editado por: Marquiony Marques dos Santos
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Abr 2021 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
05 Out 2021 -
Aceito
22 Dez 2021